FILOSOFIA DO DIREITO E CIÊNCIA DO DIREITO

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Filosofia do Direito e Ciência do Direito
Miguel Reale
1. O problema da distinção entre Filosofia do Direito e Ciência do Direito põe em
questão toda a problemática dessas duas ordens de investigação, desde o
conceito mesmo de Direito, envolvendo indagações de ordem geral sobre a
natureza das ciências humanas.
2. O primeiro problema que se põe é, com efeito, o da distinção entre ciências
naturais e ciências humanas, o que vou passar a examinar de conformidade
com as soluções que venho dando a essa matéria.
3. No seu famoso livro Transformações da Filosofia - O a priori da comunidade
de comunicação, Karl Otto Apel diz que a questão tem sido situada como
complementaridade ou, por melhor dizer, como partilha tática entre ciências
físico-matemáticas e ciências humanas, aquelas suscetíveis de firmar
conclusões racionais de validade universal; estas que deveriam se contentar com
conclusões de ordem subjetivas, e, como tais, irracionais, aceitas de comum
acordo para atender às necessidades da convivência social.
4. Essa divisão do trabalho científico dependeria, pois, de convênio entre
estudiosos de ambos os campos, a partir da verdade posta por Hume e aceita
por Kant de que "não há passagem possível do mundo dos fatos para o mundo do
dever ser", ou seja, dos fatos para os valores.
5. Karl Otto Apel, em sua tentativa de superar esse ajuste de complementaridade,
acolhe a tese, a meu ver, bem pouco convincente de que a aceitação das
conclusões das ciências sociais se legitimaria por estar implícita a priori na
discussão do assunto a sua validade mesma, impondo-se assim à comunidade
da comunicação. Haveria, assim, em toda argumentação o pressuposto da
validade comunitária dos princípios a que chega o discurso comunicativo.
6. Essa colocação do problema feita pela escola neo-marxista de Frankfurt tem o
mérito de superar a ficção formal da suposta complementaridade, mas, no meu
entender, não resolve o problema básico que continua sendo o da objeção posta
por Hume quanto à inviabilidade da passagem do fato para o valor, do Ser para o
dever ser.
7. É aqui que situo uma das questões básicas de meu pensamento, um ponto de
vista que geralmente não é levado em conta, a não ser por Antonio Paim, que nele
viu uma contribuição que emancipa a Axiologia da Metafísica. Senão vejamos.
8. Trata-se, no fundo, do conceito mesmo de valor, que desde Dilthey até Husserl
- seguidos por Max Scheler e Nicolai Hartmann - continua sendo visto como um
modelo ideal, à maneira de Brentano. Daí a impossibilidade de passar do fato
para o valor, do que é para o que deve ser.
9. Ora, pondero eu, é preciso rever a posição do valor perante a distinção serdever ser, ou Sein/Sollen, reconhecendo-se que ele não pertence ao mundo do
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Sein, mas sim do Sollen.
10. Foi em 1953, ao publicar a edição da minha Filosofia do Direito que situei o
problema axiológico nesses termos, sustentando que o valor se situa de per si no
mundo do dever ser, não sendo pois um objeto ideal como são os lógicos e os
matemáticos.
11. Nesse sentido, acentuava eu, um triângulo ou uma conferência, assim como
uma equação matemática, são objetos ideais pertencentes ao Sein, ao contrário,
por exemplo, do belo ou do útil que "devem ser". Desse modo, o conceito de valor
não se sujeita a objeção de Hume, pelo simples fato de que ele já pertence ao
plano do dever-ser.
12. Dá-se, assim, uma inversão na colocação do problema, visto como não há mais
que falar em passagem do fato para o valor, mas, ao contrário na necessária
passagem do valor para o fato, uma vez que um valor que jamais se realiza deixa
de ser um valor para ser uma quimera.
13. Isto posto, as ciências humanas devem ser consideradas ciências culturais,
as quais se caracterizam por "serem enquanto devem ser". Haveria, destarte,
estas três posições:
a) a do que é (objeto real)
b) a do que deve ser (objeto ideal)
c) a do que é enquanto deve ser (objeto cultural)
14.Conseqüência é que as ciências físico-matemáticas estão no "mundo da
cultura", mas não são ciências culturais como são as ciências humanas,
como o Direito, a Sociologi a, a Antropologia etc.
15. Pode-se perceber que essa colocação do problema corresponde à teoria
tridimensional do Direito, o qual é, ao mesmo tempo e dialeticamente, fato, valor
e norma. Dava-se, desse modo, o superamento da redução do Direito ao
mundo empírico dos fatos (realismo ou positivismo jurídicos) ou das normas
(normativismo puro kelseniano) ou dos valores (Direito Natural), para passar a
ser visto como integração normativa de fatos segundo valores.
16. A essa luz, a relação entre Filosofia do Direito e Ciência do Direito ganhava
uma nova dimensão, tendo como centro de referência a idéia de valor. Aquela,
a Filosofia do Direito vê sob três "perspectivas transcendentais", a saber:
a) a da Gnosiologia Jurídica (Ontognosiologia Jurídica)
b) a da Deontologia Jurídica (Estudo do dever ser do Direito)
c) a da Culturologia Jurídica (Estudo dos pressupostos da experiência histórica
do Direito).
17. Situada a Filosofia do Direito no plano transcendental, a Ciência do Direito
passa a ser indagação do Direito em sua concreção cultural, ou seja, em sua
positividade, isto é, como ordenamento normativo enquanto concreção de fatos
segundo valores.
18. Por outras palavras, a Filosofia do Direito realiza-se ou se desenvolve, a final,
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como Ciência do Direito, dependendo a compreensão desta da compreensão
daquela. Desse modo, a distinção entre Filosofia de Direito e Ciência do Direito
deixa de ser didático-formal, para passar a ser lógico-experiencial.
19. Daí a igual importância dada ao sentido dialético tanto da Filosofia do Direito
como da Ciência do Direito, questão esta que adquiriu maior consistência em meu
pensamento como o conceito de Invariantes Axiológicas, ou seja, não de valores
inatos, mas sim de "valores históricos" que, graças à experiência cultural, adquirem
validade universal como se fossem inatos, a começar pelo valor fundante da pessoa
humana que considero "valor fonte" de todos os valores, tais como o da liberdade,
da cidadania e, finalmente, do valor ecológico, a última grande personagem
axiológica.
20. Como se vê, a vexata quaestio da validade universal objetiva das afirmações ou
conclusões das ciências humanas - o que implica a fundamentação racional da
Ética - é resolvida à luz de uma perspectiva histórico-cultural, o que, a meu ver,
somente foi possível quando se deixou de considerar o valor como objeto ideal, do
plano do ser, e não dever-ser. É desnecessário observar que todas essas
colocações se inserem na minha compreensão do culturalismo, cuja última
concepção se dá com a idéia básica de a priori da cultura.
REALE, Miguel. IN: Revista ABRAFI. Curitiba, PR: Instituto de
Pesquisas Jurídicas Bonijuris, Ano I, nº 1/2004, p. 6-7.
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