HISTÓRIA DO DIAGNÓSTICO CLÍNICO Paulo Tubino Elaine Alves Do Dicionário Michaellis, 2000: semeion = sinal; logos = estudo. Semiologia: ciência dos sinais e arte de empregá-los. Em medicina: ramo da medicina que trata dos sintomas; sintomatologia. Do Dicionário Médico Manuila, 9.ª edição, 2003: semiologia – parte da medicina que estuda os sintomas e os sinais manifestados pela lesão de um órgão ou pelos distúrbios de uma função. Com o conhecimento científico crescente, a facilidade de acesso às informações científicas e a tecnologia atual para diagnóstico e tratamento, fica difícil resistir à tentação de “economizar tempo”. No entanto, sempre será fundamental a presença do médico de “carne e osso” e alma. O médico, com sua capacidade de pensar, perguntar, ouvir, sentir, olhar, tocar e examinar o paciente, é o instrumento diagnóstico mais poderoso que temos (e, algumas vezes, já terapêutico...). A tecnologia avançada possibilita informações importantes e decisivas, mas só válidas se usadas com inteligência e sensibilidade. Os aparelhos não avaliam uma parte fundamental de nossos pacientes: os fenômenos da mente que tanto influenciam o corpo. O exame físico, ou melhor, o exame do paciente continua indispensável: método clínico. A medicina, na sua pré-história, teve origens em práticas mágicas e religiosas. Desde os primeiros tempos houve a tentativa do ser humano para lutar contra a doença. O temor da morte e das enfermidades fez o homem se interessar, desde os primórdios da sua história, pela natureza da vida propriamente dita. Sem nada poder fazer, observou seus semelhantes serem destruídos por forças de origem desconhecida. Havia a convicção de que a morte e as doenças eram obras do demônio e que as coisas boas e prazerosas eram advindas de divindades gentis e generosas. Eram associados ao demônio outros fenômenos como tempestades, escuridão, noites sem lua, etc. Apareceram feiticeiros que tinham conhecimento sobre estrelas, propriedades curativas de ervas e venenos, que acalmariam os demônios. Assim, o início da medicina foi de magia e suas práticas eram instintivas e empíricas. MESOPOTÂMIA A civilização suméria floresceu há 6.000 anos em Ur, na Mesopotâmia, e é de onde temos a mais antiga manifestação médica conhecida. Era baseada na astrologia e os distúrbios do corpo eram regidos pela relação entre os movimentos das estrelas e as estações. A medicina entre os assírios e babilônios era prerrogativa dos sacerdotes, que tinham responsabilidades perante Deus. Os cirurgiões respondiam ao Estado pelo que faziam. O grande rei Hamurabi (1948-1905 a.C.), com seu código, foi o primeiro a definir a responsabilidade civil e criminal das profissões. Código de Hamurabi Artigo 215: “Se o médico faz uma operação grande ou cura um olho doente, ele receberá dez shekels de prata. Se o paciente é um homem livre, ele pagará cinco shekels. Se ele é um escravo, então seu proprietário pagará dois shekels em seu benefício. Mas se o paciente perder sua vida ou um olho na operação, então as mãos do médico serão cortadas.” Os sintomas eram descritos em peças de argila. Descrição de tuberculose pulmonar: “O paciente tosse muito, sua saliva algumas vezes tem sangue, sua respiração soa como uma flauta. Sua pele é fria e úmida, mas seus pés são quentes. Ele transpira muito e seu coração tem ruídos tumultuados.” Havia a crença de que o fígado era o centro da vida e a sede da alma (Figura 1). Figura 1 – Modelo em barro de fígado de carneiro, com inscrições, usado na Babilônia, para adivinhações e prognóstico de doenças (séculos XIX a XVIII a.C.). British Museum, Londres. EGITO Em papiros médicos (1553 – 1550 a.C.) foram encontrados escritos de Imhotep, considerado o Asclépio dos egípcios. Os egípcios achavam que a respiração era a função vital mais importante. Consideravam que o coração era o centro da circulação, mas dependente da respiração. Todas as curas eram atribuídas a deuses e codificadas por Toth, conhecido pelos gregos por Hermes Trimegistus. Toth teria inventado as ciências e as artes. Conta a mitologia que Horus vingou o assassinato de seu pai Osiris, lutando contra Seth, o criminoso. Na luta Horus perde um olho que lhe é reposto por Toth, deus da saúde e da sabedoria, reconhecendo a devoção filial de Horus. O olho esquerdo de Horus lembra a letra R e por isto o R é escrito no início de toda receita, quando o médico invoca a proteção e a inspiração divinas para a prescrição (Figura 2). Figura 2 – Olho de Hórus HEBREUS Para os antigos hebreus a doença representava a cólera de Deus contra os pecados dos homens. A saúde jamais seria perdida se os dez mandamentos fossem obedecidos. Constava de seu código de saúde: − Durante a menstruação as mulheres eram consideradas impuras e não podiam ir aos templos. − Pessoas portadoras de doenças infecciosas, como gonorréia e lepra, eram consideradas impuras assim como as pessoas que com elas tivessem contato. Já tinham isolamentos. Operavam: fístulas; ânus imperfurado; luxações e fraturas; circuncisões; Tubino P, Alves E. História do diagnóstico clínico, 2009. 2 faziam cesarianas. ÍNDIA Era forte em cirurgia, mas fraca em anatomia pela proibição religiosa de cortar com uma faca. O maior médico hindu, Susruta, aconselhava os médicos a mergulharem os corpos nos rios dentro de uma cesta; após sete dias de decomposição, o estudo das vísceras podia ser feito sem incisões, apenas abrindo-se as cavidades manualmente. Cirurgia plástica: reconstrução do nariz (cortado nos casos de adultério). Técnica diagnóstica aprimorada: inspeção; palpação; ausculta (coração, pulmões e abdome); exame da pele e da língua. Doenças: desequilíbrio entre três humores físicos (espírito, bile e fleugma) e humores morais. Primeiro reconhecimento das doenças psicossomáticas. CHINA Lenda taoísta (pa kua): após o caos a ordem foi estabelecida baseada em dois pólos opostos: Yin e Yang. A medicina se baseava nestes dois princípios, juntamente com o sangue. A doença era o desequilíbrio dos dois princípios e a morte sobrevinha quando paravam de circular. A dissecção dos mortos era proibida uma vez que somente com o corpo íntegro era possível se juntar aos ancestrais. Mas os imperadores podiam conduzir investigações anatômicas. Não aprofundavam a história clínica. Não faziam um exame físico completo. Concentravam-se no exame do pulso, que era tomado de diferentes maneiras, levando a uma longa lista de variações. Pulso: união de Yin e Yang com o sangue. Para o exame físico das mulheres eram usadas bonecas de marfim. Hua T’o, mais famoso cirurgião chinês, era especialista na castração: eunucos para proteger as concubinas imperiais. GRÉCIA Ilíada de Homero: a mais antiga fonte de informações sobre a medicina grega, que não era baseada em magia. Era independente e praticada por experts que retiravam flechas, dardos, paravam hemorragias, faziam curativos com bálsamos e usavam medicamentos extraídos de ervas. Após Homero: influência oriental com aparecimento de encantos, demônios, adivinhos e augúrios. Muitos deuses gregos passaram a se identificar com a cura. O culto de Asclépio se desenvolveu com seu símbolo, a serpente − antiga representação de forças do submundo, sinal sagrado do deus da cura entre as tribos semíticas da Ásia Menor. Na mitologia grega Asclépio (Esculápio), filho de Apolo e da ninfa Coronis, foi criado pelo centauro Quiron que lhe ensinou o uso de plantas medicinais. Médico famoso, além de curar enfermos, começou a ressuscitar os que ele já encontrava mortos e, ultrapassando os limites de medicina, foi fulminado com um raio por Zeus. Após sua morte foi cultuado como deus da Medicina tanto na Grécia como no Império Romano. É sempre representado segurando um bastão com uma serpente em volta. Higéia (deusa da saúde) era filha de Esculápio; daí a palavra higiene. Julgava-se que curava todas Tubino P, Alves E. História do diagnóstico clínico, 2009. 3 as doenças. Panacéia (deusa da farmácia) era sua irmã. O tratamento nos templos de Esculápio se baseava em banhos e dietas. Hipócrates Nasceu, aproximadamente, em 460 a.C. na ilha de Cós e morreu em torno de 370 a.C. em Larissa, na Tessália. Impressionava pela aparência: rosto de nobre e corpo elegante. Escritos de Hipócrates: Corpo Hipocrático ou Coleção Hipocrática; Escola Hipocrática. Sistematizou o método clínico: inspeção e palpação apenas; observação objetiva dos fatos e rigor moral. O médico devia se abster de qualquer especulação e se inspirar apenas no exame do paciente e de suas condições de vida. A aparência do paciente era observada detalhadamente. Já fazia a ausculta pulmonar diretamente com o ouvido no tórax do paciente. Já fazia exame vaginal e de outros orifícios do corpo com espéculos. Usava a palpação para observar a temperatura, assim como outras características das regiões corporais. O pulso era verificado, mas ainda não era considerado importante. Usava o cheiro do paciente como dado para complementar a observação de suas condições. Seus escritos eram livres de explicações religiosas e sobrenaturais. Princípios do método hipocrático: observe tudo; estude o paciente mais do que a doença; avalie com honestidade; observe e ajude a natureza. Hipócrates descreveu o baqueteamento dos dedos como sinal de doenças crônicas. OBSERVAÇÃO CLÍNICA Foi com Hipócrates, portanto, que nasceu a observação clínica, incluindo a história da doença que leva o doente a procurar o médico, e o exame físico detalhado do paciente em busca de dados para a formulação do diagnóstico e do prognóstico. O exame físico que preconizava, como já mencionado, incluía a inspeção e a palpação. Mas há referências, em seus relatos, a ruídos ouvidos no tórax. No século XVIII o exame físico foi enriquecido pela descoberta do médico austríaco Josef Leopold Auenbrugger (1722-1809). Em 1754, quando ainda era médico voluntário, ele idealizou o método da percussão do tórax para saber a condição dos órgãos intratorácicos pela variação dos sons. Auenbrugger era músico e seus conhecimentos musicais colaboraram com sua descoberta. Escreveu o libreto para uma ópera cômica de Antonio Salieri em 1781. Quando criança, percutia os barris de vinho da adega de seu pai para saber o quão cheios estavam. Em 1761 publicou o livro Inventum novum ex percussione thoracis humani ut signo abstrusos interni pectoris morbos detegendi (Uma nova descoberta que habilita o médico a partir da percussão do tórax humano a detectar doenças escondidas dentro do tórax), reeditado em 1763 e 1775. Em 1843 foi feita a primeira tradução para o alemão, em Viena. Descreveu o sinal de Auenbrugger: abaulamento da região epigástrica em casos de efusão pericárdica extensa. Jean-Nicolas Corvisart (1755-1821), cardiologista e médico pessoal de Napoleão, traduziu o livro de Auenbrugger e adotou sua técnica. Certa vez olhando um quadro disse: “Se o pintor estiver certo, este homem na pintura morreu de doença cardíaca”. Corvisart tinha razão. Napoleão concedeu-lhe o título de barão. René Theophile Hyacinthe Laennec, discípulo mais importante de Corvisart, foi o inventor do estetoscópio e o primeiro a criar um sistema completo para o diagnóstico das afecções pulmonares e Tubino P, Alves E. História do diagnóstico clínico, 2009. 4 cardíacas. Até então a técnica de ausculta era encostar o ouvido no tórax do paciente. Em 1816, Laennec, ainda jovem, examinava uma paciente com todos os sinais de doença cardíaca. Diante da paciente, um pouco gorda, ficou inibido e enrolou uma folha de papel como se fosse um tubo e a usou para a ausculta. Para sua surpresa conseguiu auscultar perfeitamente o coração. Decidiu-se depois por um tubo cilíndrico de 3,5 cm de diâmetro e 25 cm de comprimento. Era o estetoscópio. Em 1819 publicou sua obra De la auscultation médiate. Pulso: a palpação dos pulsos, especialmente do pulso radial, é um dos procedimentos clínicos mais antigos da prática médica. Merece registro o conteúdo simbólico do gesto, com freqüência o primeiro contato físico entre o médico e o paciente. Termômetro: Galileu Galilei, em 1593, idealizou um termômetro rudimentar de água, que permitia observar apenas as variações da temperatura. Até o começo do século XVII não havia como quantificar a temperatura corporal. Os primeiros termômetros, chamados termoscópios, foram idealizados por vários inventores, mas o italiano Santorio Santorio foi o primeiro a colocar uma escala no instrumento. Santorio Santorio formou-se em medicina na Universidade de Pádua em 1582, aos 21 anos. Em 1611 foi escolhido para a cátedra de medicina teórica nesta mesma Universidade. Em 1614 propôs o termômetro para a medida da temperatura corporal. Os mais famosos experimentos de Santorio Santorio foram sobre o peso corporal. Observou que a maior parte do alimento e líquidos que consumia era perdida por poros de corpo, o que chamou de perspiração insensível (perspiratio insensibilis). Determinou, em sua balança, que a variação diária da massa corporal era de, aproximadamente, 1250 g. Daniel Gabriel Fahrenheit (1686-1736), físico alemão, inventou o termômetro a álcool (1709). Em 1724 introduziu a escala de temperatura que hoje leva seu nome. Anders Celsius (1701-1744), astrônomo sueco, inventou a escala de 100 graus − entre o ponto de congelação (zero) e o ponto de ebulição (100) da água pura ao nível do mar – em 1742. Atkin (1852) tornou o termômetro de menor espessura. Thomas Clifford Allbut (1870) fez o termômetro como é hoje. Ludwig Traube (1818-1876) foi o introdutor do ensino da semiologia. Em 1853 tornou-se chefe do Departamento de Doenças Torácicas na Clínica Charité. Utilizou as curvas térmicas como rotina no método clínico e apresentou o primeiro gráfico de uma evolução febril, com o registro simultâneo de freqüência do pulso e da respiração. Espaço de Traube: área de projeção do fundo gástrico na parede torácica; espaço em forma de meia lua na altura do nono espaço intercostal esquerdo, ventralmente à linha axilar anterior, cuja percussão é timpânica normalmente. O som se torna maciço em casos de esplenomegalia. Pierre Charles Alexandre Louis francês (1787-1872) foi o introdutor do método estatístico na medicina. Publicou trabalho comprovando, por método quantitativo, que as sangrias faziam mais mal do que bem (1835). Descreveu o ângulo de Louis (ângulo do esterno), onde se articula a 2.ª costela. Joseph Skoda (1805—1881) correlacionou, em 1839, os dados de exame físico do tórax (percussão e ausculta) com os achados de necropsia. Deu maior importância ao uso da percussão e preconizava uma descrição objetiva dos sinais clínicos. Em seu livro Abhandlung über Perkussion und Auskultation (1839), dizia que os fenômenos acústicos produzidos pela percussão não eram específicos deste ou daquele órgão, mas definidos pela quantidade de ar ou líquido existentes. Hermann von Helmholtz (1821-1894) introduziu, em 1851-1852, o oftalmoscópio na prática médica. Pressão arterial: Samuel Siegfried Karl Ritter von Basch (1837-1905) idealizou, em 1881, um Tubino P, Alves E. História do diagnóstico clínico, 2009. 5 esfigmomanômetro que consistia de uma bolsa com água conectada a um manômetro. Scipione Riva-Rocci (1863-1937) desenvolveu, em 1896, um esfigmomanômetro de vidro, cheio com mercúrio, conectado a um manguito insuflável com ar que colocado no braço comprimia a artéria braquial. Nicolai Korotkoff, usando o estetoscópio, observou diferentes sons durante o enchimento e o esvaziamento do manguito. Sons de Korotkoff → cinco fases: I. Aparecimento dos sons (sistólica). II. Batimentos com murmúrio. III. Desaparecimento do murmúrio. IV. Abafamento dos sons. V. Desaparecimento dos sons (diastólica). Exames complementares Rudolf L. K. Virchow (1821-1902): Die Celularpathologie (1858). Mostrou que era possível o reconhecimento das afecções hematológicas pelo exame do esfregaço sangüíneo. Louis Pasteur (1822-1895): microbiologia. Mostrou que microorganismos causam doenças e se reproduzem, resultando no fim da teoria da geração espontânea. Definiu organismos aeróbios e anaeróbios. Wilhelm Konrad Roentgen (1845-1923): descobriu os raios-X em 1895. Recebeu o primeiro Prêmio Nobel de física. O anúncio da descoberta dos raios-X foi ilustrado com a radiografia da mão da Sr.ª Roentgen. Pierre e Marie Curie, em 1898, após a descoberta da radioatividade por Becquerel, criaram as bases para a aplicação dos radioisótopos na medicina. Irene Curie (filha do casal Curie) e seu marido, Frédéric Joliot, descobriram a radioatividade artificial em 1931. Em 1940: primeiros aparelhos para captar o iodo radioativo fixado pela tireóide. Willem Einthoven (1860-1927), fisiologista holandês, construiu o primeiro eletrocardiógrafo em 1901. Hans Berger (1873-1941): criou a eletroencefalografia em 1924. Aforismos de William Osler: Medicine is learned by the bedside and not in the classroom. Make a thorough inspection. Never forget to look at the back of a patient. Always look at the feet. Looking at a woman’s legs has often saved her life. To study the phenomena of disease without books is to sail an uncharted sea, while to study books without patients is not to go to sea at all. The physician needs a clear head and a kind heart; his work is arduous and complex, requiring the exercise of the very highest faculties of the mind, while constantly appealing to the emotions and higher feelings. “Não vos esqueçais, então, de que se toda a medicina não está na bondade, menos vale separada dela...” Miguel Couto (1865-1934) Tubino P, Alves E. História do diagnóstico clínico, 2009. 6