a intervenção do estado na propriedade

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O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A
COMPREENSÃO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA
DO CONCEITO DE
PROPRIEDADE
Fernando J. Armando Ribeiro
Mestre e Doutor em Direito pela UFMG
Professor da Faculdade Mineira de Direito da PUC/Minas
(Cursos de Graduação e Pós-Graduação) Professor da
Faculdade de Direito Milton Campos.
1 Introdução; 2 O sentido da propriedade em Roma; 3 O sentido da
propriedade na civilização burguesa; 4 A propriedade e o
Cristianismo; 5 O sentido de propriedade nos dias contemporâneos;
6 A efetivação do princípio da função social da propriedade; 7
Conclusão; 8 Bibliografia
1 Introdução
O estudo que desenvolvemos tem como finalidade analisar um dos
fenômenos mais intrigantes que ocorrem na Ciência do Direito, ensejador das
maiores perplexidades, dúvidas e incompreensões por boa parte dos
operadores jurídicos, e que, inúmeras vezes, termina por alargar a distância, já
sabidamente existente, entre a dicção da dogmática normativa contida num
determinado ordenamento jurídico e a realização efetiva que lhe é
proporcionada no seio de uma sociedade juridicamente organizada. Trata-se
das mudanças conceituais operadas sobre institutos jurídicos normativamente
estabelecidos, tendo em vista a consubstanciação de novos paradigmas
jurídicos ou sociais que tangenciam o sentido semântico previamente
estabelecido.
O trabalho fixar-se-á em um dos mais importantes e não obstante
polêmicos institutos jurídicos de todos os tempos, cuja origem remota permite
evidenciar a profunda mudança que a hermenêutica sistêmica permite que se
opere sobre conceitos aparentemente consolidados: trata-se do instituto da
propriedade. Sabemos ser ela um fato econômico e social de primeira
grandeza, sendo enorme a sua influência em todo campo em que haja relações
entre indivíduos desde os tempos mais longínquos. Nas várias facetas de sua
concretização no mundo, ela se apresenta tanto como fato econômico, como
fenômeno jurídico e também como fato de ordem política. Assim, fez-se
objeto de estudo de historiadores, filósofos, sociólogos e juristas, tendo ainda
motivado a elaboração de célebres encíclicas papais.
Todavia, no momento presente, diante da dogmática normativa
constitucional, há que se visualizar o instituto da propriedade sob a
perspectiva do Direito Público, a qual lhe fornece, como veremos, um novo
perfil capaz de melhor adequá-lo a estes dias tumultuosos e de profunda crise
social em que vivemos. Ademais, ao realizarmos nossa pesquisa, procuramos
trazer a lume um ponto que, parece-nos, deve ser sempre inserido no debate. É
o postulado de que, em um Estado Democrático de Direito, somente através
do paradigma constitucional é que se poderá fazer uma reflexão adequada dos
diversos institutos jurídicos.
Ao fim e ao cabo, pretendemos demonstrar uma hipótese: a de que há
de se fazer, no Brasil de nossos dias, por parte dos órgãos públicos, uma nova
leitura do sentido de propriedade introjetado no sistema jurídico brasileiro
atual, a fim de que a idealização normativa contida no arcabouço
principiológico de nossa Constituição Federal não se revele inócua, e não se
frustem as fundadas esperanças de que o Poder Público brasileiro sempre se
faça valer dos instrumentos jurídicos já disponíveis para a incessante tarefa da
consolidação do Estado Democrático de Direito.
2 O sentido da propriedade em Roma
De espírito pragmático, não se preocuparam os romanos em definir o
direito de propriedade. Como alerta ALVES,
“a partir da Idade Média é que os juristas, de textos que não se
referiam à propriedade, procuraram extrair-lhe o conceito. Assim,
com base num rescrito de Constantino (C. IV, 35, 21), relativo à
gestão de negócios, definiram o proprietário como suae rei
moderatur et arbiter (regente e árbitro de sua coisa); de
fragmento do Digesto (V, 3, 25, 11), sobre o possuidor de boa-fé,
deduziram que a propriedade seria o ius utendi re sua (direito de
usar e de abusar da sua coisa); e de outra lei do Digesto (I, 5, pr.),
em que se define a liberdade, resultou a aplicação desse conceito
à propriedade que, então, seria a naturalis in re facultas eius
quod cuique facere libet, nisi se quid aut iure prohibetur
(faculdade natural de se fazer o que se quiser sobre a coisa,
exceto aquilo que é vedado pela força ou pelo direito)”.(ALVES,
1995: 281)
Sabe-se que, em Roma, a propriedade privada ocupava relevante lugar
na constituição social, sendo base da organização institucional da sociedade,
ao lado da família e da propriedade. Não podia sequer ser objeto de alteração
violadora, seja por deliberação popular, seja mesmo por decisão das
autoridades governamentais. Os modernos estudos dos romanistas são
inequívocos em apontar o vínculo direto existente entre a idéia de propriedade
privada e a religião, a adoração do deus lar: quem tomava posse de um solo
não podia mais dele ser desalojado, visto ser tido como pilar de sustentação
material para todos os efetivos laços humanos que sobre ele se iriam exercer.
(VILLEY, [s.d.]: passim)
É que, como leciona COMPARATO,
“o núcleo essencial da propriedade, em toda a evolução do
Direito privado ocidental, sempre foi o de um poder jurídico
soberano e exclusivo de um sujeito de direito sobre uma coisa
determinada. No Direito Romano arcaico, este poder fazia parte
das prerrogativas do paterfamilias sobre o conjunto dos escravos
e bens (familia pecuniaque), que compunham o grupo familiar.
Prerrogativas soberanas, porque absolutas e ilimitadas, imunes a
qualquer encargo, público ou privado, e de origem sagrada, por
força de sua vinculação com o deus-lar.”
E conclui:
“Por aí se percebe como seria absurdo falar, no Direito antigo, de
deveres do cidadão, enquanto proprietário, para com a
comunidade. A propriedade greco-romana fazia parte da esfera
mais íntima da família, sob a proteção do deus doméstico. Por
isso mesmo, o imóvel consagrado a um lar era estritamente
delimitado, de forma que cometia grave impiedade o estranho
que lhe transpusesse os limites sem o consentimento do chefe da
família”.(COMPARATO, 1997: 93)
3 O sentido de propriedade na civilização burguesa
No direito feudal, assim como entre os povos germânicos,
preponderou a vinculação social ao instituto da propriedade, que, no tocante
ao solo, era considerada coletiva, restando às pessoas tão-somente o seu uso e
gozo. (LOPES, 1964: 235). Sofria a propriedade individual inúmeras
limitações em favor dos senhores feudais.
Com o advento da civilização burguesa e a propagação das idéias da
Revolução Francesa, e sob a influência do Código Napoleão, o instituto da
propriedade viu-se totalmente desvinculado de tais restrições, bem como da
dimensão religiosa
de suas origens greco-romanas, passando a ter
eminentemente um sentido de mera utilidade econômica. O Direito burguês,
segundo o modelo do Código Napoleão, concebia a propriedade como um
poder absoluto e exclusivo
sobre determinada coisa, com vista a sua
utilização exclusiva por seu titular. Era a reafirmação da clássica plena in re
potestas romana.
Segundo o Código Civil napoleônico, em seu art. 544, “a propriedade
é o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, contanto que
não se faça um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos”.
HEGEL, apontando os fundamentos filosóficos da codificação
napoleônica, sustenta a propriedade como uma das bases da liberdade,
assegura ser esta precedente, tanto teórica quanto praticamente ao contrato,
posto que a pessoa, ao se diferenciar de si mesma, entra em relação com outra
pessoa, e essas duas pessoas só têm uma existência empírica uma para com a
outra enquanto proprietárias (HEGEL, 1997: 47 et seq.).
Assim, a propriedade privada foi totalmente inserida no campo do
Direito Privado, não comportando mais nenhuma das limitações antes
impostas por postulados advindos da esfera pública. Isso porque tanto a
atribuição de sentido religioso que lhe era conferida em Roma quanto as
restrições que lhe foram impostas no medievo revelavam a insofismável
intenção de se atribuir um mínimo de feições públicas à propriedade privada.
No afã de atribuir um sustentáculo ético e político à propriedade
privada é que o constitucionalismo liberal, lidimamente representado por
LOCKE, afirma o direito de propriedade como algo inerente ao homem, ao
qual sua natureza aspira, base de sua própria teoria política.
Refletindo sobre o pensamento de LOCKE, leciona SALGADO:
“A razão natural nos diz que os homens têm direito à sua
preservação. Para isso, o homem tem como primeiro e inalienável
direito natural o de propriedade, que não é dado por Deus (que a
todos sem distinção deu a terra), mas conseguida ‘com o trabalho
de seu corpo e obra das suas mãos’, que são propriamente dele e
por meio dos quais lhe é garantida a propriedade daquilo que
tirou da natureza. Isso significa que o direito de propriedade não
deriva do Estado - é ‘anterior a toda Constituição’ política - mas
somente do trabalho”.(SALGADO, 1995: 76-77)
A justificação da propriedade como imperativo da subsistência
individual tornar-se-ia a garantia fundamental da liberdade do cidadão contra
as arremetidas do Poder Público, convertendo-se no ponto fulcral de reflexão
dos jusnaturalistas modernos.
Sabemos que o jusnaturalismo é a concepção que afirma a existência
do direito natural (ius naturale, ius naturae) como realidade anterior e
superior ao direito positivo, isto é, ao direito estabelecido pelos homens (ab
hominibus institutum, in civiatate positum). Todavia, sabe-se da existência de
“vários jusnaturalismos”, por vezes acentuadamente dissemelhantes, v.g., o
jusnaturalismo realista clássico, da tradição aristotélica, romanista e tomista;
o jusnaturalismo racionalista moderno, dos séculos XVII e XVIII; e o
jusnaturalismo em sentido estrito, que pressupõe um verdadeiro direito natural
ontologicamente fundado.
No cerne da filosofia dos jusnaturalistas modernos está a idéia de
“contrato social” por eles concebida. Como ensina COMPARATO,
“Rousseau foi, nesse particular, malgrado uma certa contradição
nas idéias, o grande maître à penser de sua geração. No Discurso
sobre a economia política, publicado na Encyclopédie,
considerou certo que o direito de propriedade é o mais sagrado de
todos os direitos dos cidadãos e mais importante, de certa forma,
que a própria liberdade. É preciso relembrar aqui, insistiu, que o
fundamento do pacto social é a propriedade, e sua primeira
condição que cada qual se mantenha no gozo tranqüilo do que lhe
pertence. Em outro escrito, incluído entre os seus Escritos
Políticos, o grande genebrino chegou mesmo a afirmar que,
fundando-se todos os direitos civis sobre o de propriedade, assim
que este último é abolido nenhum outro pode subsistir. A justiça
seria mera quimera, o governo uma tirania, e deixando a
autoridade pública de possuir um fundamento legítimo, ninguém
seria obrigado a reconhecê-la, a não ser constrangido pela força”.
(COMPARATO, 1997: 94)
Daí adveio a necessidade de se dar guarida à proteção da propriedade
em quase todos os documentos políticos a partir do final do século XIX, do
Bill of Rights de Virgínia à Constituição brasileira do Império, de 1824,
mantendo o resguardo da propriedade em sua dupla natureza de direito
subjetivo e de instituto jurídico. Além de garantir o direito de propriedade
contra as arremetidas dos demais sujeitos de direito privado, cuidava-se
também de evitar as investidas do próprio Estado, seja como administrador
das políticas públicas, seja como legislador, temendo-se pudesse ele vir a
suprimir o instituto ou desfigurá-lo completamente.
A Constituição brasileira do Império, de 1824, dizia peremptoriamente
em seu art. 170, § 22:
“É garantido o direito de propriedade em toda sua plenitude.
Se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso e emprego
da propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado do
valor dela.
A lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção e
dará as regras para se determinar a indenização”.
Nessas palavras pode-se ver impresso o espírito da Revolução
Francesa, que se fazia presente e iluminava os espíritos por todo o século XIX.
Tome-se por exemplo BARBALHO, célebre comentador de nossa primeira
Constituição republicana, que assim se manifesta sobre o direito de
propriedade, verbis:
“A inviolabilidade da propriedade é condição essencial de toda
organização política regular. É o reconhecimento e respeito de
um direito inerente ao homem e superior às contingências e
expedientes dessa organização. A propriedade é elemento
fundamental da ordem civil. Sua segurança importa imensamente
ao desenvolvimento industrial da nação, à sua riqueza e
prosperidade. Sendo garantida, se anima e incrementa o trabalho,
expandindo-se a aplicação da atividade individual e coletiva, com
proveito dos particulares e das rendas do Estado e da
prosperidade geral”. (BARBALHO, 1924: 436-437)
É nessa perspectiva de exagerada importância que se inseriu no
constitucionalismo liberal a idéia de propriedade privada como reflexo
imediato da individualidade do ser humano e, via de conseqüência, de sua
própria liberdade, alimentada pelo direito à aquisição dos bens indispensáveis
à sua subsistência e à manutenção de sua dignidade historicamente afirmada.
4 A propriedade e o Cristianismo
Apesar de não se ter ocupado em formular teoria a respeito do direito
de propriedade, a doutrina do Cristianismo jamais deixou de refletir a seu
respeito. Concebeu-a como uma espécie de utilização da coisa, que se
concedia aos homens, para distribuí-la e fazer com que os demais membros da
sociedade também dela se aproveitassem.
Dentre os filósofos cristãos, foi o direito de propriedade objeto de
aprofundados estudos em vários de seus aspectos. Assim, pois, BARROS situa
o pensamento de Santo Tomás de Aquino:
“É na justiça que se funda a instituição da propriedade. A
propriedade é uma função social – que, aliás, pode organizar-se
segundo moldes muito diversos – não tem por fim o bem do
proprietário mas o de toda sociedade. Em princípio, os bens
materiais pertencem à sociedade; mas, se não houvesse indivíduos
diretamente responsáveis pela conservação e pela valorização dos
diversos bens – responsáveis perante os fatos, sujeitos pessoalmente
a conseqüências da sua gestão – cada um deixaria aos outros os
esforços e cuidados necessários, e, pelo desleixo de todos, todos
seriam prejudicados”. (BARROS, 1945: 396)
A tradição nos ensina que, nos primórdios da Igreja, viviam os cristãos
em comunhão perfeita, prevalecendo, mais tarde, as idéias de Alberto Magno e
Santo Tomás de Aquino, que vieram a formar a base da doutrina traçada por
LEÃO XIII em sua memorável Encíclica Rerum Novarum. Esta declarou ser
a propriedade privada conforme a natureza, constituindo-se o trabalho,
entretanto, no meio universal de prover as necessidades da vida.(LEÃO XIII,
1991: passim)
Também as encíclicas sociais como, v.g., a Quadragesimo Anno, de
PIO XII, a Mater et Magistra, de JOÃO XXIII, e a Laborem Exercens, de
JOÃO PAULO II, focalizaram a propriedade em sua função social. Na Mater
et Magistra, JOÃO XXIII sublinha a função social da propriedade:
“Outro ponto de doutrina, proposto constantemente pelos nossos
predecessores, é que o direito de propriedade privada sobre os
bens possui intrinsecamente uma função social.
Hoje, tanto o Estado como as entidades de Direito Público vão
estendendo continuamente o campo da sua presença e iniciativa.
Mas nem por isso desapareceu, como alguns erroneamente
tendem a pensar, a função social da propriedade privada: esta
deriva da natureza mesma do direito de propriedade”.(JOÃO
XXIII, 1971: 40)
É de se notar a grande influência que tiveram tais concepções no
mundo ocidental, principalmente em um país como o nosso, de sólidas raízes
católico-romanas, na elaboração do conceito de propriedade em suas
Constituições.
5 O sentido da propriedade nos dias contemporâneos
A evolução socioeconômica ocorrida a partir do final do século
passado, o surgimento do paradigma do Estado Social e a força do
pensamento social da Igreja vieram alterar profundamente o sentido da
proteção constitucional à propriedade. Atentemo-nos para a análise de
COMPARATO:
“A rápida e maciça concentração populacional urbana, durante
este século, aliada à destruição de grandes cidades por efeito de
sucessivas guerras, obrigou o Estado, em vários países, a intervir
legislativamente nas relações de inquilinato, reforçando os
direitos dos locatários e limitando a autonomia negocial dos
locadores. Ao direito tradicional de propriedade desses, opôs-se o
direito pessoal dos inquilinos à moradia própria e familiar, o qual
passou, sob muitos aspectos, a gozar de uma proteção
constitucional semelhante à daquele, enquanto não se constrói,
nos diferentes sistemas jurídicos, um autônomo direito
fundamental à habitação, tal como preconizado na II Conferência
das Nações Unidas sobre assentamentos humanos, realizada em
Istambul em junho de 1996”. (COMPARATO, 1997: 95)
O sentido de propriedade da era contemporânea implica, destarte, uma
retomada da esfera pública sobre a privada em matéria de propriedade, tal qual
ocorreu no direito germânico e no direito feudal, tendo como fonte de
inspiração imediata a doutrina social da Igreja.
Não sem razão, verifica-se a retomada de postulados do direito
medieval e do direito germânico. Assim, sabe-se que, no direito feudal, a
propriedade bifurcou-se em domínio útil e eminente. Tais expressões
remanesceram no direito real de enfiteuse em nosso ordenamento, ganhando
relevo ainda a classificação da propriedade em móvel e imóvel, sendo
conferida maior importância à última, atribuindo-se maior rigor à sua
disciplina e forma de transmissão, distinção também mantida no Direito
brasileiro. Ademais, é de se notar que, na linha do Código Civil alemão, o
BGB, nosso Código Civil confere tratamento diferenciado à propriedade
móvel e imóvel, exigindo ato solene (como o registro) para a transferência
inter vivos da primeira, e contentando-se com a tradição (entrega) para a
efetiva transmissão da segunda.
A Constituição de 1934, em seu art. 113, § 13, dispunha:
“É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser
exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei
determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade
pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa
indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou
comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da
propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado
o direito à indenização ulterior”.
A Constituição de 1937 rezava, em seu art. 122, § 14:
“A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros no país o
direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade nos
termos seguintes:
[...].
§ 14. O direito de propriedade, salvo a desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O
seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe
regularem o exercício”.
A Carta Política de 1946 dispunha, em seus arts. 141, § 16, e 147:
“É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por
interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro.
Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina,
as autoridades competentes poderão usar da propriedade
particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia,
assegurado o direito à indenização ulterior.”
[...].
Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar
social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, §
16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual
oportunidade para todos”.
A Emenda Constitucional n. 1, de 1969 (EC 1/69), em seu art. 160, III,
estabelecia: “A ordem econômica e social tem por fim realizar o
desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes
princípios:
[...].
III- função social da propriedade.”
A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 garante a todos os
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5o., caput),
reafirmando que é garantido o direito de propriedade no inciso XXII do
mencionado art. 5o.. Entretanto, dispõe expressamente no seu inciso XXIII que
“a propriedade atenderá a sua função social”.
Da leitura das últimas Constituições brasileiras e do atento
acompanhamento da evolução histórica do instituto, podemos verificar uma
verdadeira dessacralização do direito de propriedade que, de direito
fundamental do indivíduo e forma de manifestação de sua liberdade, de caráter
eminentemente individual e privado, passou a ser visto sob o paradigma
social. Não é que com isso se negue o conteúdo de liberdade inerente ao
direito de propriedade, tampouco que se deixe de vislumbrá-la como direito
básico da ordem econômica, mas apenas se opera o fenômeno da mudança de
paradigma.
Assim, diante de nosso ordenamento jurídico-constitucional hodierno
parecem ressaltar duas normas jurídicas antinômicas, vale dizer, tanto aquela
já presente no constitucionalismo antigo e que teve lugar destacado sobretudo
sob o paradigma do Estado liberal – qual seja a norma de proteção absoluta ao
direito de propriedade em caráter universal, quanto a delimitadora do âmbito
de validez universal deste mesmo direito de propriedade. Todavia, se nos
atentarmos para uma interpretação teleológica e sistêmica de nosso
ordenamento constitucional, veremos que se trata de uma antinomia aparente,
de um conflito normativo facilmente resolvido – não pela opção
simplificadora e excludente ou pela via da sobreposição entre uma ou outra
das disposições normativas, como pretendem alguns –, mas pela compreensão,
na linha do pensamento de DWORKIN, de que o Direito é um sistema que
comporta a existência de normas conflitantes e no entanto dotadas de
universalidade.1
Em sua crítica ao positivismo jurídico, ressalta o célebre professor
norte-americano que, para esta corrente de pensamento o Direito é apenas um
sistema de normas-regra (rules), sendo esta visão do sistema jurídico limitada
ao prisma único da esfera de atribuição de validade das regras, olvidando-se
da grandiosa importância desempenhada pelos princípios (principles) e
diretrizes (polices) (DWORKIN, 1977: 43-48). Face ao sistema dworkiano, a
característica essencial das regras é o fato de ou serem aplicáveis por
1
DWORKIN, R. Is law a system of rules?, p. 38-52; Taking rights seriously, p. 14-45; O império do direito,
passim.
completo, ou não serem sequer aplicáveis (“é tudo ou nada”) (DWORKIN,
1977: 45).
Ocorrendo pois os pressupostos do fato aos quais a regra se refira –
suporte fático hipotético, fattispecie, Tatbestand–, em uma dada situação
concreta, e sendo ela válida, será aplicada em qualquer caso. Já os princípios
são possuidores de uma dimensão de peso ou importância que não comparece
nas regras jurídicas, são standards juridicamente vinculantes radicados nas
exigências de justiça ou num imperativo ético.(DWORKIN, 1977: 45-46)
Ademais, como ensina CANOTILHO,
“o fato de a constituição constituir um sistema aberto de
princípios insinua já que podem existir fenômenos de tensão
entre os vários princípios estruturantes ou entre os restantes
princípios constitucionais gerais e especiais. Considerar a
constituição como uma ordem ou sistema de ordenação
totalmente fechado e harmonizante significaria esquecer, desde
logo, que ele é, muitas vezes, o resultado de um compromisso
entre vários atores sociais, transportadores de idéias, aspirações e
interesses substancialmente diferenciados e até antagônicos ou
contraditórios. O consenso fundamental quanto a princípios e
normas positivo-constitucionalmente plasmados não pode apagar,
como é óbvio, o pluralismo e antagonismo de idéias subjacentes
ao pacto fundador”. (CANOTILHO, 1999: 1107-1108)
Assim, podemos afirmar que o ordenamento jurídico-constitucional é
um sistema normativo aberto de regras e princípios pois as normas do sistema
tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a forma de regras.
Não constitui portanto um conjunto de regras jurídicas cujo sentido e alcance
independe do contexto político e social, mas sim que tais regras estão
subordinadas a fins em função dos quais devem ser permantemente
interpretadas.
Assim, se quisermos chegar a uma compreensão constitucionalmente
adequada do sentido de propriedade em nossos dias, entendemos, com Konder
COMPARATO, que se deve frisar a bifurcação conceitual do instituto,
operando-se a distinção entre a propriedade-direito fundamental e a
propriedade-poder. A propriedade-direito fundamental, enquanto salvaguarda
da liberdade do homem, é fonte de direitos fundamentais e, portanto, sujeitos à
observação universal, do Estado ao indivíduo. Seria, por exemplo, no caso do
direito positivo brasileiro, a pequena e média propriedade rural, que a
Constituição declara insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma
agrária e determina lhes seja dado tratamento legal específico (art. 185 da
CF/88) (COMPARATO, 1997).
Ao contrário, a propriedade-poder tem lugar quando a propriedade
não se apresenta, concretamente, como um garantia da liberdade humana, mas,
ao contrário, serve de instrumento ao exercício de poder sobre outrem. Ora,
seria evidente contra-senso que a qualificação de direito fundamental fosse
estendida ao domínio de um latifúndio injustificadamente improdutivo ou de
uma gleba urbana não utilizada ou subtilizada, mormente em dias nos quais se
enfrenta sérios problemas de moradia popular. Da mesma sorte, é da mais
elementar evidência que a propriedade do bloco acionário, com que se exerce
o controle de um grupo empresarial, não pode ser incluída na categoria dos
direitos humanos.
Nesse sentido é que surge o princípio da função social da propriedade
como idéia-diretriz (na acepção kantiana do termo) informadora do sentido da
propriedade na contemporaneidade. No caso brasileiro não remanescem
dúvidas quanto à sua aplicabilidade, posto que ela não figura apenas na teoria
constitucional, mas consta expressamente na dogmática normativa da
Constituição. De fato, estabelece a Constituição em seu art. 5º inciso XXIII,
que “a propriedade atenderá à sua função social”.
A função social não surge como mero limite ao exercício do direito de
propriedade, mas como princípio básico de Direito, fazendo parte de sua
própria estrutura. Não se pode hoje elaborar um conceito de propriedade
olvidando sua função social. Essa é o que DUGUIT denominava propriedadefunção social, descrevendo-a com as seguintes palavras:
“Todo indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade uma
certa função, na razão direta do lugar que nela ocupa. Ora, o
detentor da riqueza, pelo próprio fato de deter a riqueza, pode
cumprir uma certa missão que só ele pode cumprir. Somente ele
pode aumentar a riqueza geral, assegurar a satisfação de
necessidades gerais, fazendo valer o capital que detém. Está, em
conseqüência, socialmente obrigado a cumprir esta missão e só
será socialmente protegido se cumpri-la e na medida em que o
fizer. A propriedade não é mais o direito subjetivo do
proprietário; é a função social do detentor da riqueza”.
(DUGUIT, 1920: 158)
A Constituição da República estabelece que a função social da
propriedade urbana deverá ser estabelecida em lei municipal, a qual chamou
de Plano Diretor, nomenclatura já utilizada em várias leis orgânicas
municipais, possuindo esse caráter facultativo para as cidades com população
de menos de 20 mil habitantes e obrigatório para as que tiverem mais que este
montante. Aprovado o Plano Diretor pela Câmara Municipal e criada a lei
específica para a área nela incluída, sujeitar-se-á o proprietário inerte à
exigência do Poder Público municipal de promover o aproveitamento
adequado da propriedade imóvel urbana, sob pena, sucessivamente, de: a)
parcelamento ou edificação compulsórios; b) imposto sobre a propriedade
predial e territorial urbana, progressivo no tempo; e c) desapropriação com
pagamento mediante títulos da dívida pública.
A função social da propriedade rural foi, de certa forma, delimitada
pela Constituição Federal nos quatro incisos do art. 186: I– aproveitamento
racional adequado; II– utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e
preservação do meio ambiente; III– observância das disposições que regulam
as relações de trabalho; e IV– exploração que favoreça o bem-estar dos
proprietários e dos trabalhadores.
6 A efetivação do princípio da função social da
propriedade
Sabe-se que a amplitude do
domínio
econômico
poder de intervenção do Estado no
privado não se adstringe meramente
à
forma de
monopólio de indústrias e atividades outras, senão sob os múltiplos
aspectos em que elas possam se apresentar sob as relações jurídicas do
Direito Privado. Assim é que, nas relações jurídicas contratuais privadas,
deparamo-nos com ele disciplinando, de modo especial, as relações de posse
e propriedade e, por conseqüência, todas as demais a elas relacionadas. É que
esse intervencionismo do Estado não apenas se limita aos campos das
indústrias e atividades privadas, mas se amplia às relações contratuais
pessoais ou reais,
indo alcançar o direito de
propriedade ou seus
desmembramentos, segundo o interesse público, ou, se expressão equivalente
a esta, o interesse social ou bem-estar social.
O princípio da função social da propriedade incide de forma geral nos
bens patrimoniais, os quais deverão ser destinados a um aproveitamento
satisfatório para a coletividade, conforme sua própria natureza. Os bens de
consumo, tais como roupas e alimentos, por exemplo, como bem anota A .
SILVA, cumprem a função social com a “sua aplicação imediata e direta na
satisfação das necessidades humanas primárias, o que justifica até a
intervenção do Estado no domínio da sua distribuição” (SILVA, 1997: 682).
Os bens de produção, por sua vez, suscetíveis de apropriação privada, aliás,
característica básica do regime adotado na ordem constitucional, devem ser
fortemente atingidos pelo princípio econômico da função social no que tange à
sua destinação normal: produção de bens e riquezas.
Ressalte-se que esse intervencionismo do Estado, por intermédio de
lei, no que concerne ao uso da propriedade, condicionando-o ao bem-estar
social e ao interesse público da coletividade, jamais fere o conteúdo do
direito de propriedade, posto que, como se viu, assentado está em postulados
da ordem jurídica constitucional.
Conforme se demonstrou, a propriedade é hoje um direito-meio, não
mais sustentável na simples passividade de suas faculdades tradicionais do jus
utendi, jus fruendi e jus abutendi. É direito que só se vê plenamente realizado
quando se faz instrumento de proteção de valores fundamentais, isto é, quando
cumpre com sua função social. Nem se diga que, pelo fato de as disposições
constitucionais a que ela se refere requererem definição do conteúdo da
função social da propriedade pelo legislador infraconstitucional, estariam os
proprietários dispensados de dar cumprimento a tais normas.
Esta via hermenêutica que pretende ver a função social da propriedade
como mera recomendação ao legislador e não como norma jurídica efetiva é
insustentável diante dos paradigmas constitucionais modernos, em que já se
fala mesmo da “morte das normas constitucionais programáticas”. Neste
sentido é a lição de CANOTILHO, segundo o qual
“existem, é certo, normas-fim, normas-tarefa, normas-programa
que ‘impõem uma atividade’ e ‘dirigem’materialmente a
concretização constitucional. O sentido destas normas não é,
porém, o assinalado pela doutrina tradicional: ‘simples
programas’, ‘exortações morais’, ‘declarações’, ‘sentenças
políticas’, ‘aforismos políticos’, ‘promessas’, ‘apelos ao
legislador’, ‘programas futuros’, juridicamente desprovidos de
qualquer vinculatividade. Às normas programáticas é
reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico
ao dos restantes preceitos da constituição. Não deve pois falar-se
de simples eficácia programática (ou diretiva), porque qualquer
norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante
quaisquer órgãos do poder político”. (CANOTILHO, 1999: 1102)
E conclui o mencionado autor:
“Em virtude da eficácia vinculativa reconhecida às ‘normas
programáticas’, deve considerar-se ultrapassada a oposição
estabelecida por alguma doutrina entre “norma jurídica atual’ e
‘norma programática’ (aktuelle Rechtsnorm-Programmsatz):
todas as normas são atuais, isto é, têm uma força normativa
independente do ato de transformação legislativa. Não há, pois,
na constituição, ‘simples declarações (sejam oportunas ou
inoportunas, felizes ou desafortunadas, precisas ou
indeterminadas) a que não se deva dar valor normativo, e só o seu
conteúdo concreto poderá determinar em cada caso o alcance
específico do dito valor’(Garcia de Enterria)”.(grifos no original)
(CANOTILHO, 1997: 1103)
Ademais, em sistemas constitucionais como o nosso, a relutância em
conferir efetividade ao princípio da função social da propriedade revela-se não
apenas teoricamente inaceitável, face aos novos paradigmas da moderna
doutrina constitucional, como também juridicamente incorreta, tendo em vista
a expressa consagração pela dogmática constitucional do princípio da vigência
imediata dos direitos fundamentais.
Com efeito, declara a Constituição da República que as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art.
5º, § 1º). Ora, a detenção de um direito de propriedade-poder que, como
demonstramos, não tem a natureza de direito humano, passa a ser, ao
contrário, uma fonte de deveres fundamentais, ou seja, o lado passivo de
direitos humanos alheios. Reza o brocardo latino que jus et obligatio correlata
sunt, sendo pois conclusão lógica e inafastável a de que, aos direitos
fundamentais contrapõem-se, conseqüentemente, os deveres fundamentais, e
vice-versa.
Não há que se reconhecer, entretanto, seja alguém possuidor de
deveres constitucionais, sem simultaneamente postular a existência de um
titular de direitos constitucionais correspondentes. E, dessa forma, ao
reconhecer aplicação imediata às normas definidoras de direitos fundamentais,
está a Constituição, implicitamente, reconhecendo a situação inversa, vale
dizer, que a exigibilidade dos deveres fundamentais é também imediata,
dispensando intervenção legislativa.
Na omissão legislativa, cabe, pois, à doutrina e à jurisprudência a
tarefa ingente de construção e desenvolvimento do conceito de função social
da propriedade. Não é nenhum trabalho hercúleo, nem algo que tenha o sabor
de novidade. Muitos já se têm empenhado com sucesso no instigante mister. A
Constituição dispõe que o imóvel deve ser aproveitado racional e
adequadamente. Não é difícil deduzir que a racionalidade do aproveitamento
da terra está relacionada com a utilização do método e da técnica apropriados
para auferir-se
o que de melhor ela pode produzir. Já o aproveitamento
adequado relaciona-se ao tipo de cultura que melhor se adapta ao potencial
que a terra oferece (NASCIMENTO, 1989: 124 et seq.).
Ao proprietário rural impõe-se ainda a adaptação de sua atividade em
relação ao imóvel, utilizando adequadamente os recursos naturais do bem, tais
como os rios e as quedas d’água, sem, contudo, provocar prejuízo ao meio
ambiente, posto que a norma constitucional em epígrafe (art. 186, II),
ampliando a concepção da função social, reforça a proteção ecológica que
encontra tanta evidência na atualidade e é consagrada na própria Carta Política
(art. 225).
Na Constituição de 1988, cumpre fazer distinção entre duas
modalidades de atuação estatal: a participação e a intervenção stricto sensu,
sendo a primeira fundada nos arts. 173 e 177 e a segunda, no art. 174, quando
o Estado aparece como “agente normativo e regulador da atividade
econômica” (SILVA, 1997: 738). Deve-se atentar sempre à correlação que
entre si mantêm os princípios que a norteiam, atendendo, sobretudo, à
incidência deles sobre o princípio fundamental do direito de propriedade
e de seu uso condicionado nas restrições impostas aos prevalentes
critérios da utilidade pública, da necessidade pública e do interesse social,
tendo, contudo, por limite, os direitos fundamentais assegurados naquela
Carta.
Com relação às duas modalidades de intervenção do Poder
Público no domínio econômico – previstas no art. 5º, XXIV, c./c. o art. 182,
§ 3º e 184, todos da Constituição Federal – relativas à expropriação e ao
uso, como exceção ao direito de propriedade ou restrição ao uso deste direito,
tornaram-se elas admitidas, desde que as guerras e as crises subseqüentes
obrigaram todos a admitir o princípio da requisição, confiscação e
expropriação por utilidade pública, decorrente dos interesses sociais.
Além das modalidades “necessidade ou utilidade pública”, contém
a
nova Carta – a exemplo da Constituição de 1946 – a modalidade do
“interesse social” que, inegavelmente encerra conceito diverso e amplo
como bem o definiu FAGUNDES (1949: 21), e a que outros, aferrados à
prevalência do direito de propriedade sob o paradigma do Direito Privado,
pretendem emprestar sentido equivalente aos já anteriores princípios de
“necessidade ou utilidade pública”.
O “interesse social” é elemento concretizador da função social da
propriedade, já sustentando FAGUNDES que
“haverá motivo de interesse social, quando a expropriação se
destine a solucionar os chamados problemas sociais, isto é,
aqueles diretamente atinentes às classes pobres, aos trabalhadores
e à massa do povo em geral, pela melhoria das condições
de vida, pela mais eqüitativa distribuição da riqueza, enfim,
pela atenuação das desigualdades sociais. Com base nele terão
lugar as expropriações que se façam para atender a planos de
habitações
populares
ou de
distribuição
de terras,
monopolização de indústrias ou nacionalização de empresas,
quando relacionadas com a política econômica trabalhista do
Governo”. (FAGUNDES, 1949: 23)
Não há de se confundir o motivo de “interesse social” com o
motivo do “bem-estar social”, consagrado este nas hipóteses do art. 147
da Carta Federal de 1946. Ambos os motivos poderão concorrer ao mesmo
tempo, mas não se confundem. Não há dúvida de que, na intervenção
expropriatória por motivo de
“interesse social”, se procura concretizar o
princípio da função social da propriedade, valendo também destacar que é
medida que se reveste de caráter sancionatório, posto que a responsabilidade
social incumbe não só ao Estado, bem como aos particulares entre si e perante
a comunidade como um todo, desde que devidamente constatada, a cada caso
concreto, a justa adequabilidade do princípio.
É que, o aproveitamento racional adequado da propriedade ou, por
oposição, a inércia no seu aproveitamento só existiriam se fossem dadas
condições de exploração ao proprietário: crédito como juros compatíveis,
seguros, preço mínimo etc., ou se comprovada a latente má-fé ou desídia
infundada na sua exploração, quando se conformaria a propriedade-poder a
que nos referimos.
Em sua linguagem textual, diz o art. 5º, XXIII e XXIV, de nossa
Carta Política:
“A propriedade atenderá a sua função social”;
[...]
“a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social,
mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os
casos previstos nesta Constituição”.
Inserto sob o título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, o
dispositivo em causa revela a intenção do legislador constituinte em conciliar
os dois fatos, isto é, o econômico e o social, no pressuposto de que a ordem
a que se filia o primeiro se embasa nos princípios da justiça social, de
onde devem a ordem econômica e social assentar-se nos princípios da justiça.
E justamente em atenção ao sentimento de justiça íncito ao ordenamento
jurídico é que se deve atentar para o outro lado do argumento jurídico, o qual
agrega um aparente conflito no discurso jurídico: a omissão injusta do
governante descaracteriza, por imperativo de adequabilidade na aplicação da
norma, a incidência de princípio de validade universal, que, todavia,
conforme constata DWORKIN, remanesce portador deste mesmo âmbito de
validade universal.
O respeito aos deveres fundamentais decorrentes da regulamentação
constitucional da propriedade privada dá ensejo à ocorrência de uma política
pública que venha pôr fim ao descaso de muitos para com a imposição
constitucional de se dar à propriedade uma função social. Entretanto,
imperioso se faz que a configuração da aplicabilidade deste princípio seja
sopesada e adequada diante de cada caso específico concreto. Esta parece ser a
única via constitucionalmente adequada para se garantir tanto a efetividade do
sistema quanto a concreção da justiça que lhe é inerente. De fato, verificamos
que todas as outras interpretações possíveis redundam em um conflito na
justificação. A aplicação irrestrita da função social da propriedade,
desfiguraria sua verdadeira natureza de princípio, convertendo-a em regra, o
que ocasionaria solução injusta para inúmeros casos concretos e terminaria por
desvelar um conflito na própria Constituição. Por outro lado, a inadequada
observância, ou mesmo desconsideração do princípio como elemento
normativo (posto que norma ele verdadeiramente o é) resulta no dramático
descompasso entre a vontade fundamental de um povo revelada na norma
constitucional, e sua real eficácia no seio da sociedade.
Aliás, é esse descompasso entre a vigência e a eficácia dos direitos a
origem de tantos dramas e conflitos neste nosso país sofrido, que hoje assiste
com angústia e perplexidade ao desenrolar do movimento dos sem-terra. É um
movimento polêmico e controvertido, que hoje infelizmente parece
apresentar-se absolutamente desvirtuado de sua proposição original, valendose da justificativa da reforma agrária para pregar a revolução socialista.
Todavia, há que se atentar para o fato de que suas ações iniciais podem ser
vistas como uma justa forma de iniciativa do particular ofendido pelo
desrespeito aos ditos deveres fundamentais em matéria de propriedade. Nesse
sentido, abalizados teóricos já sustentam a justiça de muitas de suas
pretensões.
SALGADO, em recente e oportuníssimo estudo acerca dos conflitos
do sistema democrático, reflete com profundidade sobre os fundamentos
jurídicos do movimento dos sem-terra:
“O MST (Movimento dos Sem-Terra), na sua pureza inicial,
justificava suas ações através de argumento jurídico: não estavam
invadindo os latifúndios, mas ocupando-os. A invasão é ato
contra a lei, viola o direito de propriedade e tem como
conseqüência jurídica a evacuação forçada. A ocupação define
uma situação jurídica mais complexa: ocupa-se o que está
abandonado (res derelicta) ou não é de ninguém, por nunca ter
sido utilizado (res nullius). Ora, a Constituição do Brasil
estabelece no art. 170, que a propriedade tem função social e no
art. 186, que a função social da propriedade rural é cumprida com
os requisitos de ‘aproveitamento racional adequado’, dentre
outros, segundo o que estabelecer a lei. O não aproveitamento
racional é entendido como abandono, pois que se trata de
requisito ou elemento essencial do direito de propriedade.
Como a reforma agrária está determinada no art. 184, ocorre
omissão constitucional do Poder Público em não a fazendo, e
omissão do proprietário não lhe dando a destinação
constitucional. Daí, a ação dos sem-terra para efetivar as
disposições constitucionais. O conflito não seria, pois, ilícito,
mas entre a justiça legal no sentido de dar efetividade à lei, e a
ordem pública”. (grifos no original)
E conclui o notável professor da UFMG:
“É a ação dos sem-terra justa? Primeiro, negativamente, seria
justa, por opor-se à omissão injusta da realização dos direitos
fundamentais, pois que não distribuídos universalmente, apesar
de pactuados como universais. Segundo, positivamente, seria
justa, no sentido jurídico, como se argumentou, e no político,
como iniciativa do processo de movimentação do governo no
sentido de cumprir a Constituição. Os sem-terra contestam o
sistema, não os seus valores; a segurança, não a justiça material
da ordem jurídica. Essa seria sua justificação.”( SALGADO,
1998: 8-9)
Cabe, pois, ao Estado a realização de política de fomento à
produtividade agrícola e redistribuição de propriedades, justamente para que o
Brasil não deixe perder este enorme potencial que possuímos, talvez o ponto
mesmo capaz de estabelecer a diferença entre nosso país e a maior parte do
mundo na atualidade. Afinal, os territórios da Europa e grande parte da
América já se encontram totalmente tomados por cultivos e formas de
ocupação as mais diversas, não lhes restando muito campo para expandir.
Como tem sido dito em recentes congressos e reuniões internacionais, Brasil e
China são talvez os únicos países portadores de extensas áreas de cultivo ainda
virgens. E para dar solução à questão do campo, instrumento indispensável é o
da desapropriação por interesse social.
7 Conclusão
A consolidação e o enraizamento do sentido dos institutos jurídicos no
seio de uma comunidade politicamente ordenada não deve nunca significar a
petrificação conceitual destes mesmos institutos, mas sim que, ao lado de sua
essência geralmente imutável, seja sempre mantido um certo grau de
flexibilidade para que possam os mesmos adequarem-se às mutações operadas
nos consensos racionais socialmente verificados.
Desta maneira, vimos que o instituto da propriedade, após uma longa
trajetória de mutações conceituais, encontra no Brasil de nossos dias um novo
perfil
provindo
do
arquétipo
principiológico
do
sistema
jurídico-
constitucional. Face ao princípio da função social da propriedade e sua
conjugação com regras constitucionais impositivas como as dos arts. 5o.,
XXIV, e 184 da Constituição Federal de 1988 não se pode mais sustentar o
direito
de
propriedade
sobre
bases
exclusivamente
privatísticas,
consubstanciadas em regras consagradoras de uma perene prevalência da
esfera individual sobre a coletiva.
Em nosso sistema jurídico hodierno, salvo naquelas formas definidas
como propriedade-direito fundamental o direito de propriedade deverá
cumprir uma função social, que, caso não observada, poderá dar ensejo a que
o Poder Público proceda a uma série de medidas coercitivas, viabilizando-se
inclusive a expropriação por “interesse social” (art. 5o., XXIV). Ao fazê-lo,
estará o Estado brasileiro não apenas contribuindo para a concretização de
princípios fundamentais de nosso sistema, como também para assegurar a aura
de supremacia de que se deve revestir a Constituição para que seja capaz de
legitimar tanto o Estado quanto todo o demais Direito que nela se assentam
Em virtude da conciliação entre os critérios de justiça econômica,
justiça social e política, estabelece-se também o respeito pelos direitos
fundamentais assegurados na Constituição, contribuindo sobremaneira para
que se possa ao menos reduzir o imenso drama que cerca as sociedades
contemporâneas. Drama que, no dizer de GONÇALVES, nasce da consciência
da dignidade reconhecida a cada ser humano pelo direito, e da indignação por
sabê-lo existente e por vê-lo, não obstante, negado. (GONÇALVES, 1992:
11)
É que a intervenção do Estado no domínio da propriedade em nada se
assemelha a uma retomada da pregação marxista de que é chegada a hora final
da propriedade privada capitalista. A propriedade privada é indubitavelmente
um bem necessário, sobretudo para a afirmação da liberdade individual,
porém, entende-se que a propriedade é importante para todos, não apenas para
os proprietários, sendo conveniente estimular sua democratização, não a sua
extinção, de forma a torná-la instrumento da dignidade e da felicidade do
homem.
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