O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A COMPREENSÃO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA DO CONCEITO DE PROPRIEDADE Fernando J. Armando Ribeiro Mestre e Doutor em Direito pela UFMG Professor da Faculdade Mineira de Direito da PUC/Minas (Cursos de Graduação e Pós-Graduação) Professor da Faculdade de Direito Milton Campos. 1 Introdução; 2 O sentido da propriedade em Roma; 3 O sentido da propriedade na civilização burguesa; 4 A propriedade e o Cristianismo; 5 O sentido de propriedade nos dias contemporâneos; 6 A efetivação do princípio da função social da propriedade; 7 Conclusão; 8 Bibliografia 1 Introdução O estudo que desenvolvemos tem como finalidade analisar um dos fenômenos mais intrigantes que ocorrem na Ciência do Direito, ensejador das maiores perplexidades, dúvidas e incompreensões por boa parte dos operadores jurídicos, e que, inúmeras vezes, termina por alargar a distância, já sabidamente existente, entre a dicção da dogmática normativa contida num determinado ordenamento jurídico e a realização efetiva que lhe é proporcionada no seio de uma sociedade juridicamente organizada. Trata-se das mudanças conceituais operadas sobre institutos jurídicos normativamente estabelecidos, tendo em vista a consubstanciação de novos paradigmas jurídicos ou sociais que tangenciam o sentido semântico previamente estabelecido. O trabalho fixar-se-á em um dos mais importantes e não obstante polêmicos institutos jurídicos de todos os tempos, cuja origem remota permite evidenciar a profunda mudança que a hermenêutica sistêmica permite que se opere sobre conceitos aparentemente consolidados: trata-se do instituto da propriedade. Sabemos ser ela um fato econômico e social de primeira grandeza, sendo enorme a sua influência em todo campo em que haja relações entre indivíduos desde os tempos mais longínquos. Nas várias facetas de sua concretização no mundo, ela se apresenta tanto como fato econômico, como fenômeno jurídico e também como fato de ordem política. Assim, fez-se objeto de estudo de historiadores, filósofos, sociólogos e juristas, tendo ainda motivado a elaboração de célebres encíclicas papais. Todavia, no momento presente, diante da dogmática normativa constitucional, há que se visualizar o instituto da propriedade sob a perspectiva do Direito Público, a qual lhe fornece, como veremos, um novo perfil capaz de melhor adequá-lo a estes dias tumultuosos e de profunda crise social em que vivemos. Ademais, ao realizarmos nossa pesquisa, procuramos trazer a lume um ponto que, parece-nos, deve ser sempre inserido no debate. É o postulado de que, em um Estado Democrático de Direito, somente através do paradigma constitucional é que se poderá fazer uma reflexão adequada dos diversos institutos jurídicos. Ao fim e ao cabo, pretendemos demonstrar uma hipótese: a de que há de se fazer, no Brasil de nossos dias, por parte dos órgãos públicos, uma nova leitura do sentido de propriedade introjetado no sistema jurídico brasileiro atual, a fim de que a idealização normativa contida no arcabouço principiológico de nossa Constituição Federal não se revele inócua, e não se frustem as fundadas esperanças de que o Poder Público brasileiro sempre se faça valer dos instrumentos jurídicos já disponíveis para a incessante tarefa da consolidação do Estado Democrático de Direito. 2 O sentido da propriedade em Roma De espírito pragmático, não se preocuparam os romanos em definir o direito de propriedade. Como alerta ALVES, “a partir da Idade Média é que os juristas, de textos que não se referiam à propriedade, procuraram extrair-lhe o conceito. Assim, com base num rescrito de Constantino (C. IV, 35, 21), relativo à gestão de negócios, definiram o proprietário como suae rei moderatur et arbiter (regente e árbitro de sua coisa); de fragmento do Digesto (V, 3, 25, 11), sobre o possuidor de boa-fé, deduziram que a propriedade seria o ius utendi re sua (direito de usar e de abusar da sua coisa); e de outra lei do Digesto (I, 5, pr.), em que se define a liberdade, resultou a aplicação desse conceito à propriedade que, então, seria a naturalis in re facultas eius quod cuique facere libet, nisi se quid aut iure prohibetur (faculdade natural de se fazer o que se quiser sobre a coisa, exceto aquilo que é vedado pela força ou pelo direito)”.(ALVES, 1995: 281) Sabe-se que, em Roma, a propriedade privada ocupava relevante lugar na constituição social, sendo base da organização institucional da sociedade, ao lado da família e da propriedade. Não podia sequer ser objeto de alteração violadora, seja por deliberação popular, seja mesmo por decisão das autoridades governamentais. Os modernos estudos dos romanistas são inequívocos em apontar o vínculo direto existente entre a idéia de propriedade privada e a religião, a adoração do deus lar: quem tomava posse de um solo não podia mais dele ser desalojado, visto ser tido como pilar de sustentação material para todos os efetivos laços humanos que sobre ele se iriam exercer. (VILLEY, [s.d.]: passim) É que, como leciona COMPARATO, “o núcleo essencial da propriedade, em toda a evolução do Direito privado ocidental, sempre foi o de um poder jurídico soberano e exclusivo de um sujeito de direito sobre uma coisa determinada. No Direito Romano arcaico, este poder fazia parte das prerrogativas do paterfamilias sobre o conjunto dos escravos e bens (familia pecuniaque), que compunham o grupo familiar. Prerrogativas soberanas, porque absolutas e ilimitadas, imunes a qualquer encargo, público ou privado, e de origem sagrada, por força de sua vinculação com o deus-lar.” E conclui: “Por aí se percebe como seria absurdo falar, no Direito antigo, de deveres do cidadão, enquanto proprietário, para com a comunidade. A propriedade greco-romana fazia parte da esfera mais íntima da família, sob a proteção do deus doméstico. Por isso mesmo, o imóvel consagrado a um lar era estritamente delimitado, de forma que cometia grave impiedade o estranho que lhe transpusesse os limites sem o consentimento do chefe da família”.(COMPARATO, 1997: 93) 3 O sentido de propriedade na civilização burguesa No direito feudal, assim como entre os povos germânicos, preponderou a vinculação social ao instituto da propriedade, que, no tocante ao solo, era considerada coletiva, restando às pessoas tão-somente o seu uso e gozo. (LOPES, 1964: 235). Sofria a propriedade individual inúmeras limitações em favor dos senhores feudais. Com o advento da civilização burguesa e a propagação das idéias da Revolução Francesa, e sob a influência do Código Napoleão, o instituto da propriedade viu-se totalmente desvinculado de tais restrições, bem como da dimensão religiosa de suas origens greco-romanas, passando a ter eminentemente um sentido de mera utilidade econômica. O Direito burguês, segundo o modelo do Código Napoleão, concebia a propriedade como um poder absoluto e exclusivo sobre determinada coisa, com vista a sua utilização exclusiva por seu titular. Era a reafirmação da clássica plena in re potestas romana. Segundo o Código Civil napoleônico, em seu art. 544, “a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, contanto que não se faça um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos”. HEGEL, apontando os fundamentos filosóficos da codificação napoleônica, sustenta a propriedade como uma das bases da liberdade, assegura ser esta precedente, tanto teórica quanto praticamente ao contrato, posto que a pessoa, ao se diferenciar de si mesma, entra em relação com outra pessoa, e essas duas pessoas só têm uma existência empírica uma para com a outra enquanto proprietárias (HEGEL, 1997: 47 et seq.). Assim, a propriedade privada foi totalmente inserida no campo do Direito Privado, não comportando mais nenhuma das limitações antes impostas por postulados advindos da esfera pública. Isso porque tanto a atribuição de sentido religioso que lhe era conferida em Roma quanto as restrições que lhe foram impostas no medievo revelavam a insofismável intenção de se atribuir um mínimo de feições públicas à propriedade privada. No afã de atribuir um sustentáculo ético e político à propriedade privada é que o constitucionalismo liberal, lidimamente representado por LOCKE, afirma o direito de propriedade como algo inerente ao homem, ao qual sua natureza aspira, base de sua própria teoria política. Refletindo sobre o pensamento de LOCKE, leciona SALGADO: “A razão natural nos diz que os homens têm direito à sua preservação. Para isso, o homem tem como primeiro e inalienável direito natural o de propriedade, que não é dado por Deus (que a todos sem distinção deu a terra), mas conseguida ‘com o trabalho de seu corpo e obra das suas mãos’, que são propriamente dele e por meio dos quais lhe é garantida a propriedade daquilo que tirou da natureza. Isso significa que o direito de propriedade não deriva do Estado - é ‘anterior a toda Constituição’ política - mas somente do trabalho”.(SALGADO, 1995: 76-77) A justificação da propriedade como imperativo da subsistência individual tornar-se-ia a garantia fundamental da liberdade do cidadão contra as arremetidas do Poder Público, convertendo-se no ponto fulcral de reflexão dos jusnaturalistas modernos. Sabemos que o jusnaturalismo é a concepção que afirma a existência do direito natural (ius naturale, ius naturae) como realidade anterior e superior ao direito positivo, isto é, ao direito estabelecido pelos homens (ab hominibus institutum, in civiatate positum). Todavia, sabe-se da existência de “vários jusnaturalismos”, por vezes acentuadamente dissemelhantes, v.g., o jusnaturalismo realista clássico, da tradição aristotélica, romanista e tomista; o jusnaturalismo racionalista moderno, dos séculos XVII e XVIII; e o jusnaturalismo em sentido estrito, que pressupõe um verdadeiro direito natural ontologicamente fundado. No cerne da filosofia dos jusnaturalistas modernos está a idéia de “contrato social” por eles concebida. Como ensina COMPARATO, “Rousseau foi, nesse particular, malgrado uma certa contradição nas idéias, o grande maître à penser de sua geração. No Discurso sobre a economia política, publicado na Encyclopédie, considerou certo que o direito de propriedade é o mais sagrado de todos os direitos dos cidadãos e mais importante, de certa forma, que a própria liberdade. É preciso relembrar aqui, insistiu, que o fundamento do pacto social é a propriedade, e sua primeira condição que cada qual se mantenha no gozo tranqüilo do que lhe pertence. Em outro escrito, incluído entre os seus Escritos Políticos, o grande genebrino chegou mesmo a afirmar que, fundando-se todos os direitos civis sobre o de propriedade, assim que este último é abolido nenhum outro pode subsistir. A justiça seria mera quimera, o governo uma tirania, e deixando a autoridade pública de possuir um fundamento legítimo, ninguém seria obrigado a reconhecê-la, a não ser constrangido pela força”. (COMPARATO, 1997: 94) Daí adveio a necessidade de se dar guarida à proteção da propriedade em quase todos os documentos políticos a partir do final do século XIX, do Bill of Rights de Virgínia à Constituição brasileira do Império, de 1824, mantendo o resguardo da propriedade em sua dupla natureza de direito subjetivo e de instituto jurídico. Além de garantir o direito de propriedade contra as arremetidas dos demais sujeitos de direito privado, cuidava-se também de evitar as investidas do próprio Estado, seja como administrador das políticas públicas, seja como legislador, temendo-se pudesse ele vir a suprimir o instituto ou desfigurá-lo completamente. A Constituição brasileira do Império, de 1824, dizia peremptoriamente em seu art. 170, § 22: “É garantido o direito de propriedade em toda sua plenitude. Se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção e dará as regras para se determinar a indenização”. Nessas palavras pode-se ver impresso o espírito da Revolução Francesa, que se fazia presente e iluminava os espíritos por todo o século XIX. Tome-se por exemplo BARBALHO, célebre comentador de nossa primeira Constituição republicana, que assim se manifesta sobre o direito de propriedade, verbis: “A inviolabilidade da propriedade é condição essencial de toda organização política regular. É o reconhecimento e respeito de um direito inerente ao homem e superior às contingências e expedientes dessa organização. A propriedade é elemento fundamental da ordem civil. Sua segurança importa imensamente ao desenvolvimento industrial da nação, à sua riqueza e prosperidade. Sendo garantida, se anima e incrementa o trabalho, expandindo-se a aplicação da atividade individual e coletiva, com proveito dos particulares e das rendas do Estado e da prosperidade geral”. (BARBALHO, 1924: 436-437) É nessa perspectiva de exagerada importância que se inseriu no constitucionalismo liberal a idéia de propriedade privada como reflexo imediato da individualidade do ser humano e, via de conseqüência, de sua própria liberdade, alimentada pelo direito à aquisição dos bens indispensáveis à sua subsistência e à manutenção de sua dignidade historicamente afirmada. 4 A propriedade e o Cristianismo Apesar de não se ter ocupado em formular teoria a respeito do direito de propriedade, a doutrina do Cristianismo jamais deixou de refletir a seu respeito. Concebeu-a como uma espécie de utilização da coisa, que se concedia aos homens, para distribuí-la e fazer com que os demais membros da sociedade também dela se aproveitassem. Dentre os filósofos cristãos, foi o direito de propriedade objeto de aprofundados estudos em vários de seus aspectos. Assim, pois, BARROS situa o pensamento de Santo Tomás de Aquino: “É na justiça que se funda a instituição da propriedade. A propriedade é uma função social – que, aliás, pode organizar-se segundo moldes muito diversos – não tem por fim o bem do proprietário mas o de toda sociedade. Em princípio, os bens materiais pertencem à sociedade; mas, se não houvesse indivíduos diretamente responsáveis pela conservação e pela valorização dos diversos bens – responsáveis perante os fatos, sujeitos pessoalmente a conseqüências da sua gestão – cada um deixaria aos outros os esforços e cuidados necessários, e, pelo desleixo de todos, todos seriam prejudicados”. (BARROS, 1945: 396) A tradição nos ensina que, nos primórdios da Igreja, viviam os cristãos em comunhão perfeita, prevalecendo, mais tarde, as idéias de Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino, que vieram a formar a base da doutrina traçada por LEÃO XIII em sua memorável Encíclica Rerum Novarum. Esta declarou ser a propriedade privada conforme a natureza, constituindo-se o trabalho, entretanto, no meio universal de prover as necessidades da vida.(LEÃO XIII, 1991: passim) Também as encíclicas sociais como, v.g., a Quadragesimo Anno, de PIO XII, a Mater et Magistra, de JOÃO XXIII, e a Laborem Exercens, de JOÃO PAULO II, focalizaram a propriedade em sua função social. Na Mater et Magistra, JOÃO XXIII sublinha a função social da propriedade: “Outro ponto de doutrina, proposto constantemente pelos nossos predecessores, é que o direito de propriedade privada sobre os bens possui intrinsecamente uma função social. Hoje, tanto o Estado como as entidades de Direito Público vão estendendo continuamente o campo da sua presença e iniciativa. Mas nem por isso desapareceu, como alguns erroneamente tendem a pensar, a função social da propriedade privada: esta deriva da natureza mesma do direito de propriedade”.(JOÃO XXIII, 1971: 40) É de se notar a grande influência que tiveram tais concepções no mundo ocidental, principalmente em um país como o nosso, de sólidas raízes católico-romanas, na elaboração do conceito de propriedade em suas Constituições. 5 O sentido da propriedade nos dias contemporâneos A evolução socioeconômica ocorrida a partir do final do século passado, o surgimento do paradigma do Estado Social e a força do pensamento social da Igreja vieram alterar profundamente o sentido da proteção constitucional à propriedade. Atentemo-nos para a análise de COMPARATO: “A rápida e maciça concentração populacional urbana, durante este século, aliada à destruição de grandes cidades por efeito de sucessivas guerras, obrigou o Estado, em vários países, a intervir legislativamente nas relações de inquilinato, reforçando os direitos dos locatários e limitando a autonomia negocial dos locadores. Ao direito tradicional de propriedade desses, opôs-se o direito pessoal dos inquilinos à moradia própria e familiar, o qual passou, sob muitos aspectos, a gozar de uma proteção constitucional semelhante à daquele, enquanto não se constrói, nos diferentes sistemas jurídicos, um autônomo direito fundamental à habitação, tal como preconizado na II Conferência das Nações Unidas sobre assentamentos humanos, realizada em Istambul em junho de 1996”. (COMPARATO, 1997: 95) O sentido de propriedade da era contemporânea implica, destarte, uma retomada da esfera pública sobre a privada em matéria de propriedade, tal qual ocorreu no direito germânico e no direito feudal, tendo como fonte de inspiração imediata a doutrina social da Igreja. Não sem razão, verifica-se a retomada de postulados do direito medieval e do direito germânico. Assim, sabe-se que, no direito feudal, a propriedade bifurcou-se em domínio útil e eminente. Tais expressões remanesceram no direito real de enfiteuse em nosso ordenamento, ganhando relevo ainda a classificação da propriedade em móvel e imóvel, sendo conferida maior importância à última, atribuindo-se maior rigor à sua disciplina e forma de transmissão, distinção também mantida no Direito brasileiro. Ademais, é de se notar que, na linha do Código Civil alemão, o BGB, nosso Código Civil confere tratamento diferenciado à propriedade móvel e imóvel, exigindo ato solene (como o registro) para a transferência inter vivos da primeira, e contentando-se com a tradição (entrega) para a efetiva transmissão da segunda. A Constituição de 1934, em seu art. 113, § 13, dispunha: “É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior”. A Constituição de 1937 rezava, em seu art. 122, § 14: “A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros no país o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade nos termos seguintes: [...]. § 14. O direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício”. A Carta Política de 1946 dispunha, em seus arts. 141, § 16, e 147: “É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito à indenização ulterior.” [...]. Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”. A Emenda Constitucional n. 1, de 1969 (EC 1/69), em seu art. 160, III, estabelecia: “A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: [...]. III- função social da propriedade.” A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 garante a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5o., caput), reafirmando que é garantido o direito de propriedade no inciso XXII do mencionado art. 5o.. Entretanto, dispõe expressamente no seu inciso XXIII que “a propriedade atenderá a sua função social”. Da leitura das últimas Constituições brasileiras e do atento acompanhamento da evolução histórica do instituto, podemos verificar uma verdadeira dessacralização do direito de propriedade que, de direito fundamental do indivíduo e forma de manifestação de sua liberdade, de caráter eminentemente individual e privado, passou a ser visto sob o paradigma social. Não é que com isso se negue o conteúdo de liberdade inerente ao direito de propriedade, tampouco que se deixe de vislumbrá-la como direito básico da ordem econômica, mas apenas se opera o fenômeno da mudança de paradigma. Assim, diante de nosso ordenamento jurídico-constitucional hodierno parecem ressaltar duas normas jurídicas antinômicas, vale dizer, tanto aquela já presente no constitucionalismo antigo e que teve lugar destacado sobretudo sob o paradigma do Estado liberal – qual seja a norma de proteção absoluta ao direito de propriedade em caráter universal, quanto a delimitadora do âmbito de validez universal deste mesmo direito de propriedade. Todavia, se nos atentarmos para uma interpretação teleológica e sistêmica de nosso ordenamento constitucional, veremos que se trata de uma antinomia aparente, de um conflito normativo facilmente resolvido – não pela opção simplificadora e excludente ou pela via da sobreposição entre uma ou outra das disposições normativas, como pretendem alguns –, mas pela compreensão, na linha do pensamento de DWORKIN, de que o Direito é um sistema que comporta a existência de normas conflitantes e no entanto dotadas de universalidade.1 Em sua crítica ao positivismo jurídico, ressalta o célebre professor norte-americano que, para esta corrente de pensamento o Direito é apenas um sistema de normas-regra (rules), sendo esta visão do sistema jurídico limitada ao prisma único da esfera de atribuição de validade das regras, olvidando-se da grandiosa importância desempenhada pelos princípios (principles) e diretrizes (polices) (DWORKIN, 1977: 43-48). Face ao sistema dworkiano, a característica essencial das regras é o fato de ou serem aplicáveis por 1 DWORKIN, R. Is law a system of rules?, p. 38-52; Taking rights seriously, p. 14-45; O império do direito, passim. completo, ou não serem sequer aplicáveis (“é tudo ou nada”) (DWORKIN, 1977: 45). Ocorrendo pois os pressupostos do fato aos quais a regra se refira – suporte fático hipotético, fattispecie, Tatbestand–, em uma dada situação concreta, e sendo ela válida, será aplicada em qualquer caso. Já os princípios são possuidores de uma dimensão de peso ou importância que não comparece nas regras jurídicas, são standards juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça ou num imperativo ético.(DWORKIN, 1977: 45-46) Ademais, como ensina CANOTILHO, “o fato de a constituição constituir um sistema aberto de princípios insinua já que podem existir fenômenos de tensão entre os vários princípios estruturantes ou entre os restantes princípios constitucionais gerais e especiais. Considerar a constituição como uma ordem ou sistema de ordenação totalmente fechado e harmonizante significaria esquecer, desde logo, que ele é, muitas vezes, o resultado de um compromisso entre vários atores sociais, transportadores de idéias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagônicos ou contraditórios. O consenso fundamental quanto a princípios e normas positivo-constitucionalmente plasmados não pode apagar, como é óbvio, o pluralismo e antagonismo de idéias subjacentes ao pacto fundador”. (CANOTILHO, 1999: 1107-1108) Assim, podemos afirmar que o ordenamento jurídico-constitucional é um sistema normativo aberto de regras e princípios pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a forma de regras. Não constitui portanto um conjunto de regras jurídicas cujo sentido e alcance independe do contexto político e social, mas sim que tais regras estão subordinadas a fins em função dos quais devem ser permantemente interpretadas. Assim, se quisermos chegar a uma compreensão constitucionalmente adequada do sentido de propriedade em nossos dias, entendemos, com Konder COMPARATO, que se deve frisar a bifurcação conceitual do instituto, operando-se a distinção entre a propriedade-direito fundamental e a propriedade-poder. A propriedade-direito fundamental, enquanto salvaguarda da liberdade do homem, é fonte de direitos fundamentais e, portanto, sujeitos à observação universal, do Estado ao indivíduo. Seria, por exemplo, no caso do direito positivo brasileiro, a pequena e média propriedade rural, que a Constituição declara insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária e determina lhes seja dado tratamento legal específico (art. 185 da CF/88) (COMPARATO, 1997). Ao contrário, a propriedade-poder tem lugar quando a propriedade não se apresenta, concretamente, como um garantia da liberdade humana, mas, ao contrário, serve de instrumento ao exercício de poder sobre outrem. Ora, seria evidente contra-senso que a qualificação de direito fundamental fosse estendida ao domínio de um latifúndio injustificadamente improdutivo ou de uma gleba urbana não utilizada ou subtilizada, mormente em dias nos quais se enfrenta sérios problemas de moradia popular. Da mesma sorte, é da mais elementar evidência que a propriedade do bloco acionário, com que se exerce o controle de um grupo empresarial, não pode ser incluída na categoria dos direitos humanos. Nesse sentido é que surge o princípio da função social da propriedade como idéia-diretriz (na acepção kantiana do termo) informadora do sentido da propriedade na contemporaneidade. No caso brasileiro não remanescem dúvidas quanto à sua aplicabilidade, posto que ela não figura apenas na teoria constitucional, mas consta expressamente na dogmática normativa da Constituição. De fato, estabelece a Constituição em seu art. 5º inciso XXIII, que “a propriedade atenderá à sua função social”. A função social não surge como mero limite ao exercício do direito de propriedade, mas como princípio básico de Direito, fazendo parte de sua própria estrutura. Não se pode hoje elaborar um conceito de propriedade olvidando sua função social. Essa é o que DUGUIT denominava propriedadefunção social, descrevendo-a com as seguintes palavras: “Todo indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade uma certa função, na razão direta do lugar que nela ocupa. Ora, o detentor da riqueza, pelo próprio fato de deter a riqueza, pode cumprir uma certa missão que só ele pode cumprir. Somente ele pode aumentar a riqueza geral, assegurar a satisfação de necessidades gerais, fazendo valer o capital que detém. Está, em conseqüência, socialmente obrigado a cumprir esta missão e só será socialmente protegido se cumpri-la e na medida em que o fizer. A propriedade não é mais o direito subjetivo do proprietário; é a função social do detentor da riqueza”. (DUGUIT, 1920: 158) A Constituição da República estabelece que a função social da propriedade urbana deverá ser estabelecida em lei municipal, a qual chamou de Plano Diretor, nomenclatura já utilizada em várias leis orgânicas municipais, possuindo esse caráter facultativo para as cidades com população de menos de 20 mil habitantes e obrigatório para as que tiverem mais que este montante. Aprovado o Plano Diretor pela Câmara Municipal e criada a lei específica para a área nela incluída, sujeitar-se-á o proprietário inerte à exigência do Poder Público municipal de promover o aproveitamento adequado da propriedade imóvel urbana, sob pena, sucessivamente, de: a) parcelamento ou edificação compulsórios; b) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, progressivo no tempo; e c) desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública. A função social da propriedade rural foi, de certa forma, delimitada pela Constituição Federal nos quatro incisos do art. 186: I– aproveitamento racional adequado; II– utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III– observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e IV– exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. 6 A efetivação do princípio da função social da propriedade Sabe-se que a amplitude do domínio econômico poder de intervenção do Estado no privado não se adstringe meramente à forma de monopólio de indústrias e atividades outras, senão sob os múltiplos aspectos em que elas possam se apresentar sob as relações jurídicas do Direito Privado. Assim é que, nas relações jurídicas contratuais privadas, deparamo-nos com ele disciplinando, de modo especial, as relações de posse e propriedade e, por conseqüência, todas as demais a elas relacionadas. É que esse intervencionismo do Estado não apenas se limita aos campos das indústrias e atividades privadas, mas se amplia às relações contratuais pessoais ou reais, indo alcançar o direito de propriedade ou seus desmembramentos, segundo o interesse público, ou, se expressão equivalente a esta, o interesse social ou bem-estar social. O princípio da função social da propriedade incide de forma geral nos bens patrimoniais, os quais deverão ser destinados a um aproveitamento satisfatório para a coletividade, conforme sua própria natureza. Os bens de consumo, tais como roupas e alimentos, por exemplo, como bem anota A . SILVA, cumprem a função social com a “sua aplicação imediata e direta na satisfação das necessidades humanas primárias, o que justifica até a intervenção do Estado no domínio da sua distribuição” (SILVA, 1997: 682). Os bens de produção, por sua vez, suscetíveis de apropriação privada, aliás, característica básica do regime adotado na ordem constitucional, devem ser fortemente atingidos pelo princípio econômico da função social no que tange à sua destinação normal: produção de bens e riquezas. Ressalte-se que esse intervencionismo do Estado, por intermédio de lei, no que concerne ao uso da propriedade, condicionando-o ao bem-estar social e ao interesse público da coletividade, jamais fere o conteúdo do direito de propriedade, posto que, como se viu, assentado está em postulados da ordem jurídica constitucional. Conforme se demonstrou, a propriedade é hoje um direito-meio, não mais sustentável na simples passividade de suas faculdades tradicionais do jus utendi, jus fruendi e jus abutendi. É direito que só se vê plenamente realizado quando se faz instrumento de proteção de valores fundamentais, isto é, quando cumpre com sua função social. Nem se diga que, pelo fato de as disposições constitucionais a que ela se refere requererem definição do conteúdo da função social da propriedade pelo legislador infraconstitucional, estariam os proprietários dispensados de dar cumprimento a tais normas. Esta via hermenêutica que pretende ver a função social da propriedade como mera recomendação ao legislador e não como norma jurídica efetiva é insustentável diante dos paradigmas constitucionais modernos, em que já se fala mesmo da “morte das normas constitucionais programáticas”. Neste sentido é a lição de CANOTILHO, segundo o qual “existem, é certo, normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que ‘impõem uma atividade’ e ‘dirigem’materialmente a concretização constitucional. O sentido destas normas não é, porém, o assinalado pela doutrina tradicional: ‘simples programas’, ‘exortações morais’, ‘declarações’, ‘sentenças políticas’, ‘aforismos políticos’, ‘promessas’, ‘apelos ao legislador’, ‘programas futuros’, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às normas programáticas é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da constituição. Não deve pois falar-se de simples eficácia programática (ou diretiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãos do poder político”. (CANOTILHO, 1999: 1102) E conclui o mencionado autor: “Em virtude da eficácia vinculativa reconhecida às ‘normas programáticas’, deve considerar-se ultrapassada a oposição estabelecida por alguma doutrina entre “norma jurídica atual’ e ‘norma programática’ (aktuelle Rechtsnorm-Programmsatz): todas as normas são atuais, isto é, têm uma força normativa independente do ato de transformação legislativa. Não há, pois, na constituição, ‘simples declarações (sejam oportunas ou inoportunas, felizes ou desafortunadas, precisas ou indeterminadas) a que não se deva dar valor normativo, e só o seu conteúdo concreto poderá determinar em cada caso o alcance específico do dito valor’(Garcia de Enterria)”.(grifos no original) (CANOTILHO, 1997: 1103) Ademais, em sistemas constitucionais como o nosso, a relutância em conferir efetividade ao princípio da função social da propriedade revela-se não apenas teoricamente inaceitável, face aos novos paradigmas da moderna doutrina constitucional, como também juridicamente incorreta, tendo em vista a expressa consagração pela dogmática constitucional do princípio da vigência imediata dos direitos fundamentais. Com efeito, declara a Constituição da República que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art. 5º, § 1º). Ora, a detenção de um direito de propriedade-poder que, como demonstramos, não tem a natureza de direito humano, passa a ser, ao contrário, uma fonte de deveres fundamentais, ou seja, o lado passivo de direitos humanos alheios. Reza o brocardo latino que jus et obligatio correlata sunt, sendo pois conclusão lógica e inafastável a de que, aos direitos fundamentais contrapõem-se, conseqüentemente, os deveres fundamentais, e vice-versa. Não há que se reconhecer, entretanto, seja alguém possuidor de deveres constitucionais, sem simultaneamente postular a existência de um titular de direitos constitucionais correspondentes. E, dessa forma, ao reconhecer aplicação imediata às normas definidoras de direitos fundamentais, está a Constituição, implicitamente, reconhecendo a situação inversa, vale dizer, que a exigibilidade dos deveres fundamentais é também imediata, dispensando intervenção legislativa. Na omissão legislativa, cabe, pois, à doutrina e à jurisprudência a tarefa ingente de construção e desenvolvimento do conceito de função social da propriedade. Não é nenhum trabalho hercúleo, nem algo que tenha o sabor de novidade. Muitos já se têm empenhado com sucesso no instigante mister. A Constituição dispõe que o imóvel deve ser aproveitado racional e adequadamente. Não é difícil deduzir que a racionalidade do aproveitamento da terra está relacionada com a utilização do método e da técnica apropriados para auferir-se o que de melhor ela pode produzir. Já o aproveitamento adequado relaciona-se ao tipo de cultura que melhor se adapta ao potencial que a terra oferece (NASCIMENTO, 1989: 124 et seq.). Ao proprietário rural impõe-se ainda a adaptação de sua atividade em relação ao imóvel, utilizando adequadamente os recursos naturais do bem, tais como os rios e as quedas d’água, sem, contudo, provocar prejuízo ao meio ambiente, posto que a norma constitucional em epígrafe (art. 186, II), ampliando a concepção da função social, reforça a proteção ecológica que encontra tanta evidência na atualidade e é consagrada na própria Carta Política (art. 225). Na Constituição de 1988, cumpre fazer distinção entre duas modalidades de atuação estatal: a participação e a intervenção stricto sensu, sendo a primeira fundada nos arts. 173 e 177 e a segunda, no art. 174, quando o Estado aparece como “agente normativo e regulador da atividade econômica” (SILVA, 1997: 738). Deve-se atentar sempre à correlação que entre si mantêm os princípios que a norteiam, atendendo, sobretudo, à incidência deles sobre o princípio fundamental do direito de propriedade e de seu uso condicionado nas restrições impostas aos prevalentes critérios da utilidade pública, da necessidade pública e do interesse social, tendo, contudo, por limite, os direitos fundamentais assegurados naquela Carta. Com relação às duas modalidades de intervenção do Poder Público no domínio econômico – previstas no art. 5º, XXIV, c./c. o art. 182, § 3º e 184, todos da Constituição Federal – relativas à expropriação e ao uso, como exceção ao direito de propriedade ou restrição ao uso deste direito, tornaram-se elas admitidas, desde que as guerras e as crises subseqüentes obrigaram todos a admitir o princípio da requisição, confiscação e expropriação por utilidade pública, decorrente dos interesses sociais. Além das modalidades “necessidade ou utilidade pública”, contém a nova Carta – a exemplo da Constituição de 1946 – a modalidade do “interesse social” que, inegavelmente encerra conceito diverso e amplo como bem o definiu FAGUNDES (1949: 21), e a que outros, aferrados à prevalência do direito de propriedade sob o paradigma do Direito Privado, pretendem emprestar sentido equivalente aos já anteriores princípios de “necessidade ou utilidade pública”. O “interesse social” é elemento concretizador da função social da propriedade, já sustentando FAGUNDES que “haverá motivo de interesse social, quando a expropriação se destine a solucionar os chamados problemas sociais, isto é, aqueles diretamente atinentes às classes pobres, aos trabalhadores e à massa do povo em geral, pela melhoria das condições de vida, pela mais eqüitativa distribuição da riqueza, enfim, pela atenuação das desigualdades sociais. Com base nele terão lugar as expropriações que se façam para atender a planos de habitações populares ou de distribuição de terras, monopolização de indústrias ou nacionalização de empresas, quando relacionadas com a política econômica trabalhista do Governo”. (FAGUNDES, 1949: 23) Não há de se confundir o motivo de “interesse social” com o motivo do “bem-estar social”, consagrado este nas hipóteses do art. 147 da Carta Federal de 1946. Ambos os motivos poderão concorrer ao mesmo tempo, mas não se confundem. Não há dúvida de que, na intervenção expropriatória por motivo de “interesse social”, se procura concretizar o princípio da função social da propriedade, valendo também destacar que é medida que se reveste de caráter sancionatório, posto que a responsabilidade social incumbe não só ao Estado, bem como aos particulares entre si e perante a comunidade como um todo, desde que devidamente constatada, a cada caso concreto, a justa adequabilidade do princípio. É que, o aproveitamento racional adequado da propriedade ou, por oposição, a inércia no seu aproveitamento só existiriam se fossem dadas condições de exploração ao proprietário: crédito como juros compatíveis, seguros, preço mínimo etc., ou se comprovada a latente má-fé ou desídia infundada na sua exploração, quando se conformaria a propriedade-poder a que nos referimos. Em sua linguagem textual, diz o art. 5º, XXIII e XXIV, de nossa Carta Política: “A propriedade atenderá a sua função social”; [...] “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”. Inserto sob o título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, o dispositivo em causa revela a intenção do legislador constituinte em conciliar os dois fatos, isto é, o econômico e o social, no pressuposto de que a ordem a que se filia o primeiro se embasa nos princípios da justiça social, de onde devem a ordem econômica e social assentar-se nos princípios da justiça. E justamente em atenção ao sentimento de justiça íncito ao ordenamento jurídico é que se deve atentar para o outro lado do argumento jurídico, o qual agrega um aparente conflito no discurso jurídico: a omissão injusta do governante descaracteriza, por imperativo de adequabilidade na aplicação da norma, a incidência de princípio de validade universal, que, todavia, conforme constata DWORKIN, remanesce portador deste mesmo âmbito de validade universal. O respeito aos deveres fundamentais decorrentes da regulamentação constitucional da propriedade privada dá ensejo à ocorrência de uma política pública que venha pôr fim ao descaso de muitos para com a imposição constitucional de se dar à propriedade uma função social. Entretanto, imperioso se faz que a configuração da aplicabilidade deste princípio seja sopesada e adequada diante de cada caso específico concreto. Esta parece ser a única via constitucionalmente adequada para se garantir tanto a efetividade do sistema quanto a concreção da justiça que lhe é inerente. De fato, verificamos que todas as outras interpretações possíveis redundam em um conflito na justificação. A aplicação irrestrita da função social da propriedade, desfiguraria sua verdadeira natureza de princípio, convertendo-a em regra, o que ocasionaria solução injusta para inúmeros casos concretos e terminaria por desvelar um conflito na própria Constituição. Por outro lado, a inadequada observância, ou mesmo desconsideração do princípio como elemento normativo (posto que norma ele verdadeiramente o é) resulta no dramático descompasso entre a vontade fundamental de um povo revelada na norma constitucional, e sua real eficácia no seio da sociedade. Aliás, é esse descompasso entre a vigência e a eficácia dos direitos a origem de tantos dramas e conflitos neste nosso país sofrido, que hoje assiste com angústia e perplexidade ao desenrolar do movimento dos sem-terra. É um movimento polêmico e controvertido, que hoje infelizmente parece apresentar-se absolutamente desvirtuado de sua proposição original, valendose da justificativa da reforma agrária para pregar a revolução socialista. Todavia, há que se atentar para o fato de que suas ações iniciais podem ser vistas como uma justa forma de iniciativa do particular ofendido pelo desrespeito aos ditos deveres fundamentais em matéria de propriedade. Nesse sentido, abalizados teóricos já sustentam a justiça de muitas de suas pretensões. SALGADO, em recente e oportuníssimo estudo acerca dos conflitos do sistema democrático, reflete com profundidade sobre os fundamentos jurídicos do movimento dos sem-terra: “O MST (Movimento dos Sem-Terra), na sua pureza inicial, justificava suas ações através de argumento jurídico: não estavam invadindo os latifúndios, mas ocupando-os. A invasão é ato contra a lei, viola o direito de propriedade e tem como conseqüência jurídica a evacuação forçada. A ocupação define uma situação jurídica mais complexa: ocupa-se o que está abandonado (res derelicta) ou não é de ninguém, por nunca ter sido utilizado (res nullius). Ora, a Constituição do Brasil estabelece no art. 170, que a propriedade tem função social e no art. 186, que a função social da propriedade rural é cumprida com os requisitos de ‘aproveitamento racional adequado’, dentre outros, segundo o que estabelecer a lei. O não aproveitamento racional é entendido como abandono, pois que se trata de requisito ou elemento essencial do direito de propriedade. Como a reforma agrária está determinada no art. 184, ocorre omissão constitucional do Poder Público em não a fazendo, e omissão do proprietário não lhe dando a destinação constitucional. Daí, a ação dos sem-terra para efetivar as disposições constitucionais. O conflito não seria, pois, ilícito, mas entre a justiça legal no sentido de dar efetividade à lei, e a ordem pública”. (grifos no original) E conclui o notável professor da UFMG: “É a ação dos sem-terra justa? Primeiro, negativamente, seria justa, por opor-se à omissão injusta da realização dos direitos fundamentais, pois que não distribuídos universalmente, apesar de pactuados como universais. Segundo, positivamente, seria justa, no sentido jurídico, como se argumentou, e no político, como iniciativa do processo de movimentação do governo no sentido de cumprir a Constituição. Os sem-terra contestam o sistema, não os seus valores; a segurança, não a justiça material da ordem jurídica. Essa seria sua justificação.”( SALGADO, 1998: 8-9) Cabe, pois, ao Estado a realização de política de fomento à produtividade agrícola e redistribuição de propriedades, justamente para que o Brasil não deixe perder este enorme potencial que possuímos, talvez o ponto mesmo capaz de estabelecer a diferença entre nosso país e a maior parte do mundo na atualidade. Afinal, os territórios da Europa e grande parte da América já se encontram totalmente tomados por cultivos e formas de ocupação as mais diversas, não lhes restando muito campo para expandir. Como tem sido dito em recentes congressos e reuniões internacionais, Brasil e China são talvez os únicos países portadores de extensas áreas de cultivo ainda virgens. E para dar solução à questão do campo, instrumento indispensável é o da desapropriação por interesse social. 7 Conclusão A consolidação e o enraizamento do sentido dos institutos jurídicos no seio de uma comunidade politicamente ordenada não deve nunca significar a petrificação conceitual destes mesmos institutos, mas sim que, ao lado de sua essência geralmente imutável, seja sempre mantido um certo grau de flexibilidade para que possam os mesmos adequarem-se às mutações operadas nos consensos racionais socialmente verificados. Desta maneira, vimos que o instituto da propriedade, após uma longa trajetória de mutações conceituais, encontra no Brasil de nossos dias um novo perfil provindo do arquétipo principiológico do sistema jurídico- constitucional. Face ao princípio da função social da propriedade e sua conjugação com regras constitucionais impositivas como as dos arts. 5o., XXIV, e 184 da Constituição Federal de 1988 não se pode mais sustentar o direito de propriedade sobre bases exclusivamente privatísticas, consubstanciadas em regras consagradoras de uma perene prevalência da esfera individual sobre a coletiva. Em nosso sistema jurídico hodierno, salvo naquelas formas definidas como propriedade-direito fundamental o direito de propriedade deverá cumprir uma função social, que, caso não observada, poderá dar ensejo a que o Poder Público proceda a uma série de medidas coercitivas, viabilizando-se inclusive a expropriação por “interesse social” (art. 5o., XXIV). Ao fazê-lo, estará o Estado brasileiro não apenas contribuindo para a concretização de princípios fundamentais de nosso sistema, como também para assegurar a aura de supremacia de que se deve revestir a Constituição para que seja capaz de legitimar tanto o Estado quanto todo o demais Direito que nela se assentam Em virtude da conciliação entre os critérios de justiça econômica, justiça social e política, estabelece-se também o respeito pelos direitos fundamentais assegurados na Constituição, contribuindo sobremaneira para que se possa ao menos reduzir o imenso drama que cerca as sociedades contemporâneas. Drama que, no dizer de GONÇALVES, nasce da consciência da dignidade reconhecida a cada ser humano pelo direito, e da indignação por sabê-lo existente e por vê-lo, não obstante, negado. (GONÇALVES, 1992: 11) É que a intervenção do Estado no domínio da propriedade em nada se assemelha a uma retomada da pregação marxista de que é chegada a hora final da propriedade privada capitalista. A propriedade privada é indubitavelmente um bem necessário, sobretudo para a afirmação da liberdade individual, porém, entende-se que a propriedade é importante para todos, não apenas para os proprietários, sendo conveniente estimular sua democratização, não a sua extinção, de forma a torná-la instrumento da dignidade e da felicidade do homem. 8 Bibliografia ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 5 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995. v 1. BARROS, Manuel Corrêa de. Lições de filosofia tomista. Porto: Livraria Figueirinhas, 1945. BARBALHO, João. Comentários à Constituição Federal brasileira. 2 ed., Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia Editores, 1924. BATISTA, V. Oliveira. Elementos de teoria da constituição: de Carl Schmitt aos dias de hoje. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 3, p. 165-201, maio 1999. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1999. 1414p. COMPARATO, Fábio Konder. 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