AS POLÍTICAS SOCIAIS NO CENÁRIO BRASILEIRO - cress-mg

Propaganda
AS POLÍTICAS SOCIAIS NO CENÁRIO BRASILEIRO: O DESAFIO DA
INTERSETORIALIDADE
Autora: Ana Maria Eler Mariano1
RESUMO
As desigualdades e demais complexidades produzidas pelo sistema capitalista e a retração do
Estado na área social vêm produzindo, e reafirmando, problemas e situações frente aos quais
conhecimentos e ações focalizadas, fragmentadas e setoriais são incapazes de explicar e de
enfrentar. Neste entendimento, a partir de uma revisão bibliográfica, este estudo trata-se de
uma investigação acerca das proposições e do debate recente sobre a intersetorialidade e a
política social no cenário brasileiro. Esta discussão se faz necessária para o processo de
implementação das políticas públicas brasileiras e, por essa razão, pesquisas voltadas para o
campo social, principalmente, no âmbito das áreas da saúde, assistência social e
administração pública, nas últimas duas décadas, têm gradativamente alcançado esta temática,
contudo, seu enfoque geralmente se restringe à sua dimensão técnica. Essa situação revela-se,
portanto, um impetuoso desafio, principalmente considerando que a intersetorialidade tem
como pressupostos dimensões que vão além da perspectiva técnica, como a política,
ideológica e cultural, que perpassam todo o processo de formulação e implementação das
políticas sociais, as quais passam a ser as principais mediações profissionais de enfrentamento
da crescente desigualdade social e pobreza das classes subalternizadas.
Palavras-Chaves: Retração do Estado; Intersetorialidade; Política Social.
1
Graduada em Serviço Social pelas Faculdades Integradas de Caratinga (2003), Especialista em Organização do
Trabalho e Serviços no âmbito das Políticas Públicas Municipais pela mesma faculdade (2006), Especialista em
Administração e Planejamento em Projetos Sociais pela Universidade Veiga de Almeida (2008), Especialista em Serviço
Social: Direitos sociais e competências pela Universidade de Brasília- UNB (2010) e Mestre em Serviço Social pelo
Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -UERJ (2013). Atuou como Professora do Curso
de Serviço Social das Faculdades Integradas de Caratinga (2004-2005 e 2008); Diretora Municipal de Assistência Social na
Prefeitura Municipal de Vargem Alegre – MG (2005-2007); Assistente Social da Associação de Assistência às Pessoas com
Câncer – AAPEC de Governador Valadares (2008); Assistente Social do Setor de Atendimento ao Estudante - SAE da
Universidade Vale do Rio Doce - Univale (2008-2014); Professora do Curso de Serviço Social da Univale (2008 a 2015);
Coordenadora do Curso de Graduação em Serviço Social na Univale (2015) e de Pós-Graduação em Lato-Sensu em Gestão
de Políticas Públicas na Univale (2012 e 2015).
1
INTRODUÇÃO
Travar o debate acerca da configuração das políticas sociais e ainda relacioná-la à
discussão sobre a intersetorialidade, leva-nos a considerar que existe um grande desafio a ser
enfrentado, pois essa associação requer a sua compreensão à base de uma leitura crítica que
envolve reconhecer a importância da historicidade dos fenômenos que se manifestam na
sociedade capitalista e o seu desvendamento dialético. De acordo com Pereira (2011, p. 2) “a
política social constitui um processo internamente contraditório, que simultaneamente atende
interesses opostos”, exigindo assim esforços fincados no conhecimento dos seus
movimentos, tendências e contratendências para que estratégias políticas possam favorecer a
extensão da democracia e da cidadania.
Para analisar o debate acerca da intersetorialidade é necessário não só o entendimento
da sua pertinência para o atual contexto de implementação das políticas públicas, como
também é imperativa a reflexão das abordagens conceituais sobre a referida temática. Esta
discussão é entendida aqui como um processo que extrapola o âmbito da dimensão técnica,
tendo como conjugação as dimensões políticas, ideológicas e culturais.
Importante ressaltar que o termo intersetorialidade tem sido utilizado por distintas
áreas e, por vezes, sem a observância das diferentes interpretações e perspectivas sob as
quais esse tema tem se vinculado, pois conforme Pereira (2011, p.4) é “em meio a essa
imprecisão terminológica que a intersetorialidade nas políticas sociais é definida, revelando
ambivalências e incoerências”.
Portanto, este estudo procurará trazer uma reflexão conceitual sobre o termo
intersetorialidade, pois este tem sido tratado na maioria das vezes, como uma mera
possibilidade de superação da falta de integração entre os setores. Certas limitações têm
perpassado os estudos voltados para essa temática, principalmente em relação ao
entendimento da dimensão histórica e política que este debate exige. Embora a perspectiva
de intersetorialidade seja um elemento recente na agenda das políticas sociais, esta tem sido
considerada como uma possibilidade de enfrentamento das problemáticas estruturais
advindas do isolamento e fragmentação das políticas sociais brasileiras.
2
INTERSETORIALIDADE: O DEBATE CONCEITUAL
Na literatura disponível, a concepção de intersetorialidade tem sido comumente
vinculada à discussão de interdisciplinaridade2, e autores como Pereira (2011), Junqueira
(2000), Monnerat e Souza (2011) entre outros, tem sustentado essa perspectiva. Por essa
razão, é inevitável não enveredar pelo caminho da explicitação dos principais elementos
constituintes deste debate.
Pereira (2011) é uma das autoras que tem se preocupado em estabelecer a discussão
sobre a intersetorialidade no campo das políticas sociais, tendo como referência o acúmulo
teórico sobre a interdisciplinaridade do conhecimento científico. Isto porque, para esta
autora, o termo interdisciplinaridade é o que melhor se presta a um trato dialético. Nesta
direção, a interdisciplinaridade constitui, portanto, referência necessária para a concepção de
intersetorialidade, pois expressa uma primeira característica da relação dialética que qualifica
esses termos ao indicar a unidade e totalidade, bem como reciprocidade e contradição
propiciada pela relação dinâmica e interdependente entre as partes. O trecho abaixo explicita
a visão defendida pela autora mencionada:
O prefixo inter, aqui adotado, que serve tanto para nomear a interdisciplinaridade
quanto a intersetorialidade, remete à relação dialética, isto é, à relação que não
redunda em um amontoado de partes, mas em um todo unido, no qual as partes que
o constituem ligam-se organicamente, dependem umas das outras e condicionam-se
reciprocamente. Trata-se, portanto, de uma relação em que nenhuma das partes
ganha sentido e consistência quando isolada ou separada das demais e das suas
circunstâncias (de suas condições de existência e de seu meio) (PEREIRA, 2011,
p.12 grifo original).
A interdisciplinaridade se apresenta como uma alternativa crítica em oposição aos
desdobramentos originários da expansão da ciência moderna3, que tinha como característica a
2
De acordo com Pereira (2011) a discussão conceitual acerca da interdisciplinaridade serve de referência para
precisar o significado da intersetorialidade.
3
De acordo com Almeida (2000, p. 7), o conhecimento científico após o século XVI se impôs como propiciador
de mudanças e transformações no âmbito do pensamento ocidental, sendo este processo de expansão do
conhecimento identificado como “ciência moderna”, cuja tecnologia era destinada a dar resoluções aos
problemas oriundos do sistema capitalista. A autora destaca que Descartes foi um dos precursores deste
pensamento. Ao sistematizar formas novas de produção do conhecimento através do método cartesiano, este
tratava de conduzir a ciência e gerenciar o mundo através do estabelecimento de normas para o comportamento
científico para a elaboração de teorias, conceitos e projetos.
3
fragmentação da realidade, reduzindo-a e tratando-a como partes e em disciplinas. Essa
fragmentação do saber propicia a especialização do saber científico e, consequentemente, do
próprio pesquisador. Assim, o surgimento da interdisciplinaridade e de outras abordagens
integradoras é justificado pelo “estado de carência no campo do conhecimento, causado pelo
aumento exagerado das especializações e pela rapidez do desenvolvimento autônomo de cada
uma delas” (PEREIRA, 2011, p. 6). Acompanhando esta perspectiva analítica, Monnerat e
Souza (2011) assinalam que é um grande desafio romper com a lógica implantada no campo
do conhecimento pela ciência moderna, bem como intervir sobre as características de
fragmentação do saber e tratamento disciplinar das práticas sociais.
Não obstante, Almeida Filho (2000) constata que, em oposição à perspectiva da
organização da ciência em disciplinas fragmentadas, novas modalidades de “práxis científica”
tendem a se impor, o que significa uma mudança tanto no âmbito do conhecimento como na
ação da esfera social, instaurando formas alternativas à disciplinaridade capazes de lidar com
a realidade e suas complexidades. Todavia, esta realidade se apresenta de forma multifacetada
e contraditória e se torna alvo de diversas percepções que, para o autor, culmina na
apresentação de múltiplos discursos que contrarrestam a disciplinaridade, apresentando assim
perspectivas integradoras com a introdução dos prefixos multi, pluri, trans e inter4.
Almeida Filho (2000) argumenta que os conceitos de pluridisciplinaridade e
interdisciplinaridade apresentam restrições em sua aplicabilidade. Por essa razão aponta para
a incorporação da transdisciplinaridade5 às perspectivas integradoras como possibilidade de
desdobramento da interdisciplinaridade ou, nas palavras do autor, “da radicalização da
interdisciplinaridade”. A transdisciplinaridade seria para este autor a possibilidade do
estabelecimento da comunicação não propriamente entre campos disciplinares, mas entre os
agentes da prática científica, ou seja, entre os sujeitos atuantes em cada campo disciplinar que,
com formação transdisciplinar, seriam capazes de transitar entre dois campos disciplinares,
diferentemente da situação dos especialistas que estariam restritos aos seus respectivos
campos.
Nesta direção, o autor define a transdisciplinaridade como um processo, estratégia de
ação, modalidade de prática, assinalando o seu caráter instrumental propiciador de novos
4
Para aprofundamento ver Almeida Filho (2000).
Este termo foi concebido por Piaget e significa o alcance superior das relações disciplinares, integrado,
compondo um sistema total e sem fronteiras de saberes. Contudo, Piaget apontou para as limitações de sua
aplicabilidade na realidade, considerando a ousadia da sua proposição no que tange à composição de um sistema
totalizado de saberes, de níveis e objetivos múltiplos, em que todas as disciplinas são coordenadas.
5
4
paradigmas no campo científico e de novas estratégias de ação no campo da prática social.
Com base em um entendimento diferente de Almeida Filho (2000), Pereira (2011), por outro
lado, enfatiza que tanto a multi como a pluridisciplinaridade apresentam a mesma tendência
de um “monólogo de especialistas” ou de “diálogos paralelos”, em torno de um assunto de
interesse comum.
Todavia, apesar de atualmente no campo da produção do conhecimento ser possível
perceber um movimento favorável ao uso do termo transdisciplinaridade, principalmente
fundamentado pela teoria da complexidade6 em que este conceito é considerado como melhor
forma de expressar o significado de interdisciplinaridade, para Pereira (2011) “a
interdisciplinaridade sugere uma relação de reciprocidade entre saberes distintos, com suas
contradições específicas e inerentes, tendo em vista à recomposição da unidade segmentada
do conhecimento”. Para esta autora a interdisciplinaridade favorece a apreensão dialética da
realidade social. Afirma, assim, que é por essa visão interdisciplinar que a discussão da
intersetorialidade deve ser tratada.
Por outro lado, Inojosa (2001) trata a transdisciplinaridade como possibilidade de
enfrentamento do isolamento das disciplinas que perpassam o campo da produção do
conhecimento através da sua integração. Com base neste entendimento, a autora enfatiza que
no
âmbito
das
políticas
púbicas,
organizações
e
instituições,
o
conceito
de
transdisciplinaridade é transposto para o termo intersetorialidade, ou transetorialidade como
prefere, já que considera que o prefixo “trans” denota uma melhor ideia de ultrapassagem da
perspectiva setorializada. A autora justifica a associação da intersetorialidade e
transetorialidade argumentando que na literatura é possível encontrar tais termos denotando o
mesmo sentido, ou seja, “a articulação de saberes e experiências para a solução sinérgica de
problemas complexos” (2001, p. 103).
Nesta discussão sobre a interdisciplinaridade e transdisciplinaridade o que importa
destacar é que ambas as abordagens, embora divergentes, se preocupam com o necessário
debate acerca da integração de saberes para a atuação sobre questões e problemas complexos.
Ao mesmo tempo, o contraponto prático das abordagens acima referidas é a intersetorialidade
ou a transetorialidade, as quais dizem respeito à perspectiva de integração de experiências e
práticas sociais em campos de intervenção das políticas públicas e sociais. O fato é que estas
áreas de políticas são bastante profissionalizadas e, portanto, dependentes de saberes
6
Para aprofundamento ver Pereira (2011)
5
disciplinares que, por sua vez, encontram-se organizados de forma fragmentada,
acompanhando a lógica de forte especialização do conhecimento, própria da ciência moderna.
Assim, considerada como “inter” ou “trans” é certo que o debate da intersetorialidade
tem se revelado na literatura como uma resposta a uma insatisfação aos processos
fragmentários e segmentados, tanto no âmbito filosófico, enquanto crítica aos paradigmas da
modernidade, quanto na prática pela incapacidade do Estado na resolução dos problemas
sociais através da lógica setorizada das políticas sociais.
AS POLÍTICAS SOCIAIS A PARTIR DA DÉCADA DE 1990: O DESAFIO DA
SUA IMPLEMENTAÇÃO NOS MOLDES DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
A política social no cenário brasileiro vem se caracterizando ao longo da história por
sua pouca efetividade social, pela sua fragmentação, subordinação aos interesses econômicos
e por suas funções contraditórias. Contudo, com a adoção do ideário neoliberal a partir da
década de 1990, os processos de reestruturação da produção e o processo de mundialização do
capital sob a égide do capital financeiro, essa década foi marcada pelo desmonte das políticas
sociais e dos direitos, privatização, corrupção e recessão.
O sistema de proteção social brasileiro reflete, portanto, o paradoxo existente na
natureza das políticas sociais no ordenamento social capitalista, na medida em que é
apresentado no processo de implementação das políticas sociais a afirmação da igualdade e a
justiça social, mas impossível de ser alcançado devido à própria natureza do modo de
produção, que tem como pressuposto a acumulação e concentração da riqueza produzida, em
detrimento das necessidades sociais dos produtores de tal riqueza. Embora a busca pela
ampliação da cidadania tenha conseguido a sua universalização, coroada principalmente pela
Constituição Federal de 1988 e pelos demais mecanismos legais que dão legitimidade às
políticas sociais, tal universalização, na prática, é ainda excludente, na medida em que tais
políticas, em geral, são focalizadas na extrema pobreza.
A forma como as políticas sociais foram gestadas, regulamentadas e afirmadas,
principalmente em relação às três áreas pertencentes à Seguridade Social no Brasil, culminou
no seu próprio desdobramento no cenário brasileiro, a partir da implementação de leis
específicas de cada política. Desta forma, ao invés de ter se constituído em políticas
integradoras através de uma legislação regulamentadora do conceito Seguridade Social, o que
6
ocorreu, de fato, foi o distanciamento da idéia de que estas políticas são partes integrantes de
um sistema maior. Neste sentido, Pereira (1998) sinaliza ainda que,
“embora tenha sido criado um orçamento da Seguridade Social para adotar o sistema
de recursos próprios [...], não houve semelhante orientação no que diz respeito ao
arranjo institucional e às práticas administrativas de suas políticas” (PEREIRA,
1998, p.66).
No campo orçamentário houve apenas a intenção de garantir a unidade do conceito de
Seguridade Social, pois, na prática, evidenciou-se uma situação de não integração de recursos,
amparada pelo discurso de que a diversidade de fontes orçamentárias possibilitaria um caráter
mais redistributivo a estas políticas; mas na realidade, os recursos financeiros definidos
constitucionalmente não foram garantidos (MONNERAT; SOUZA, 2011).
Neste ponto, vale lembrar que tais fatores rebateram na constituição destas políticas
enquanto composição da Seguridade Social. Como conseqüência as políticas de Saúde,
Assistência Social e Previdência Social não foram agregadas a uma mesma instituição, ou a
um mesmo campo administrativo e, muito menos passaram a compartilhar de planos e
projetos comuns, fortalecendo a sua fragmentação e transgredindo preceitos constitucionais
em relação à concepção de Seguridade Social, sofrendo assim severas restrições no que tange
ao seu conceito (PEREIRA, 1998, p.66).
Assim, apesar da Carta Constitucional de 1988 representar um ganho para a sociedade
brasileira ao consagrar direitos sociais, e lançar as bases para a criação de um eficiente
sistema de proteção social, sua efetivação se dá no mesmo momento em que o projeto
neoliberal7 ganha força como projeto político nacional8. Tal contexto desencadeou um
processo de desmonte da Seguridade Social e a inviabilização das políticas sociais de caráter
universal, democrático e preventivo previstas nesta Constituição, com a redução de uma
estrutura de proteção social (baseada na noção de direitos) que, basicamente, nunca chegou a
se desenvolver, de fato, no cenário brasileiro.
7
A ideologia neoliberal opõe-se à plena consecução dos direitos sociais e políticos conquistados historicamente
pela classe trabalhadora, e esses direitos tem se revelado potencialmente uma ameaça ao capitalismo, uma vez
que a explicitação desses contrapõe-se aos interesses das classes dominantes, pois sua ideologia reforça a
submissão dos trabalhadores à lógica da subordinação. No entanto, as conquistas dos direitos sociais são
instrumentos de seu reconhecimento pelo capital como cidadãos, e, evidentemente, de minimização dos impactos
da exploração capitalista.
8
De acordo com Netto (1999) ao lado dessa conquista social, que só foi possível pela amplitude da mobilização
de setores populares na agonia do regime ditatorial e na transição à democracia política, no mesmo momento em
que no plano internacional múltiplos processos concorriam para colocar em questão o Estado de bem-estar social
(processos que incluem, dentre outros componentes, a reestruturação do capitalismo mundial e a crise do
chamado socialismo real).
7
Paralelamente a esse processo de desmonte e precarização do “ineficiente” sistema de
proteção social brasileiro a partir da década de 1990, é possível visualizar o fortalecimento de
uma tendência à privatização dos serviços historicamente considerados de responsabilidade
do Estado, como a Previdência9, a Saúde, a Educação, a Assistência Social, seguindo uma
lógica de repasse de responsabilidades para a sociedade civil.
Desta forma, Behring e Boschetti (2008) ressaltam que os princípios constitucionais
norteadores da composição do sistema de Seguridade Social que deveriam provocar
mudanças profundas na estrutura histórica das políticas de Saúde, Assistência Social e
Previdência Social não se efetivou. Desta forma, as autoras Monnerat e Souza (2011) afirmam
que a abdicação do conceito de Seguridade Social, conforme fora aprovada na Constituição e
sua conseqüente desarticulação, propiciou o impedimento do “desenvolvimento de uma
cultura do diálogo e da promoção de ações intersetoriais no campo das políticas sociais com
consequências marcantes no contexto atual” (MONNERAT; SOUZA, 2011, p. 43).
É importante mencionar que apenas a busca pela agregação das políticas que
compõem a Seguridade Social em uma mesma instituição ou campo administrativo não
significa o enfrentamento da fragmentação que as perpassam historicamente. Isso porque essa
abordagem não pode ocorrer simplesmente no campo técnico, administrativo ou gerencial,
mas, como enfatiza Pereira (2011), deve ser solidificada pelos processos políticos,
reconhecendo que estes são permeados de conflitos e contradições.
Por isso, a partir dos anos 1990, a discussão da relação entre intersetorialidade e
políticas sociais tem se revelado, apesar das imprecisões e usos difusos do termo
intersetorialidade, como uma alternativa aos traços tradicionais que tem marcado
historicamente as políticas sociais, constituindo-se, portanto, como possibilidades de
mudanças nos “[...] conceitos, valores, culturas, institucionalidades, ações e formas de
prestação de serviços, além de um novo tipo de relação entre Estado e cidadão” (PEREIRA,
2011, p. 4). São estas características, aqui apresentadas, com ênfase na fragmentação das
políticas sociais, que nos conduzem à necessidade de discutir de maneira mais aprofundada a
intersetorialidade e suas nuances técnicas e conceituais.
9
Conforme nos aponta Salvador (2010), as conquistas da Constituição de 1988 não foram capazes de romper
definitivamente com o conceito de previdência enquanto seguro, nem eliminá-lo, mesmo no plano da lei, com as
práticas atrasadas nele introjetadas.
8
O DEBATE DA INTERSETORIALIDADE E AS POLÍTICAS SOCIAIS:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É envolta à sua indefinição terminológica que Pereira (2011) afirma que a
intersetorialidade vem se afirmando nas políticas sociais. Para a autora, isto tem contribuído
para a apresentação de inúmeras imprecisões e confusões, uma vez que, conforme concepções
trabalhadas em seu estudo, a intersetorialidade tem sido entendida como um fator meramente
promotor da superação da setorialidade e como elemento definidor de articulação entre
diferentes setores, compreendendo procedimentos gerenciais da esfera pública, com vistas a
uma solução para os problemas complexos. Não obstante, a autora assinala o entendimento
acerca da intersetorialidade enquanto procedimento que evoca o rompimento com a
tradicional fragmentação das políticas sociais. Nesta perspectiva a intersetorialidade é
concebida como fomentadora de mudanças significativas referentes a “conceitos, valores,
culturas, institucionalidades, ações e formas de prestação de serviços, além de um novo tipo
de relação entre Estado e cidadão” (PEREIRA, 2011, p. 4).
A autora destaca ainda que, aparentemente, esta mudança poderia ser considerada a
partir de sua relação dialética, pois tanto o Estado como a sociedade e os cidadãos são
concebidos como sujeitos das políticas com papéis ativos, assumidos na proposição de
soluções para os problemas identificados. Contudo, tal perspectiva não consegue ainda
perceber a relação entre estrutura e história, colocando em xeque conceitos totalizantes que
são substituídos por outros em sua forma mais restrita, como exemplifica a seguir,
[...] como quando, em lugar de espaço público, isto é de todos, que está na base das
políticas universais, fala-se de territorialização como lócus biofísico com o qual um
coletivo social se identifica e por ele se responsabiliza (por exemplo, a escola)
(PEREIRA, 2011, p. 5 grifo original).
A autora reforça que, além destas perspectivas, é possível perceber que a
intersetorialidade tem sido apreendida como “possibilidade de substituição de necessidades
por direitos” (Ibid., p. 5), o que seria uma discrepância, já que a concretização de direitos é o
principal objetivo das políticas sociais. Por último, a autora destaca seu posicionamento
dialético em relação à concepção de intersetorialidade, pois considera a presença de
contradições e conflitos no âmbito das relações intersetoriais das políticas públicas, devendo,
portanto, tal temática ser desenvolvida e apreendida a partir de uma “abordagem analítica
mais complexa, dinâmica e relacional, o que pode ser melhor explicitada a partir do exame da
9
contribuição que o conceito de interdisciplinaridade fornece à compreensão da
intersetorialidade” (ibid. p. 5).
É importante sinalizar que no debate acerca da intersetorialidade, além das
contribuições de Pereira (2011), é necessário fazer referência aos estudos de Junqueira (1997,
2000, 2004) e Inojosa (2001), pois tem sido autores destacados na discussão dessa temática no
cenário brasileiro. Tais autores vem trazendo consideráveis contribuições em relação à análise
do conceito de intersetorialidade, bem como a exemplificação de sua operacionalização no
âmbito dos setores das políticas públicas e sociais.
Destaca-se que Junqueira (1997) é um dos autores pioneiros na abordagem da
intersetorialidade no cenário brasileiro. Ele traz como novidade a associação do conceito de
intersetorialidade à descentralização. A partir daí estes termos passaram a ser discutidos como
elementos constitutivos da gestão pública municipal, possibilitadores de melhoria da
qualidade de vida dos munícipes. O autor definiu a intersetorialidade como a integração de
saberes e experiências das políticas setoriais, constituindo em uma inovação no âmbito da
gestão da política pública, pois possibilita a articulação das diversas organizações que atuam
no âmbito das políticas sociais.
Para o autor, a proposta da intersetorialidade traz consigo uma forma diferenciada de
abordar os problemas sociais através da superação da fragmentação das políticas públicas,
devendo resultar em uma “gestão integrada, capaz de responder com eficácia à solução dos
problemas da população de um determinado território” (2004, p. 27), bem como a otimização
dos recursos escassos. Contudo, afirma que para a implementação desta nova forma de
atuação cujos princípios se baseiam na descentralização e intersetorialidade é necessário a
implementação de reforma administrativa para o seu desenvolvimento.
O aparato a ser criado deveria dar uma nova dinâmica, respondendo de maneira
integrada aos cidadãos das várias regiões da cidade sobre suas necessidades de
saúde, educação, habitação, emprego e renda e infra-estrutura urbana. Com esse
novo aparato, criado de forma descentralizada e intersetorial, distribuído pelo
território, pretende-se que os munícipes resolvam seus problemas urbanos perto da
sua casa e tenham acesso garantido e diferenciado aos equipamentos sociais
(JUNQUEIRA, 1997, p. 39).
Portanto, parte da ideia de que a descentralização associada à intersetorialidade pode
possibilitar mudanças no âmbito das estruturas governamentais, pois “transfere o poder dos
que utilizam dos serviços prestados e integra a gestão das políticas públicas” (JUNQUEIRA,
1997, p. 43). Nesta perspectiva, o autor considera que a associação destes dois termos é
imprescindível e se complementam no processo de gestão das políticas públicas, pois visam
10
garantir a transferência de decisão de poder para os níveis periféricos da cidade e a resolução
dos problemas da população de um determinado território de forma integrada.
Não obstante, o autor entende que a intersetorialidade não abrange apenas as políticas
sociais, mas mantém interface com outras dimensões da cidade, “como sua infra-estrutura e
ambiente, que também determinam sua organização e regulam a maneira como se dão as
relações entre os diversos segmentos sociais” (JUNQUEIRA, 1998, p. 15). Desta forma,
afirma que essa nova lógica de gestão, busca superar a fragmentação das políticas sociais,
compreendendo o cidadão em sua totalidade, necessidades individuais e coletivas.
Nesta perspectiva, os problemas sociais devem ser enfrentados a partir da dependência
da ação de mais uma política, pois são parte de um complexo que demandam a visão
integrada para a sua resolução. Contudo, o autor afirma que para o alcance de mudanças nas
práticas organizacionais é necessário a transformação de valores e da cultura organizacional.
Outra autora que tem se destacado na literatura em relação ao debate sobre
intersetorialidade é Inojosa que juntamente com Junqueira tem trazido contribuições
significativas sobre essa temática no cenário brasileiro. A autora entende que a
intersetorialidade ou a transetorialidade significa a “articulação de saberes e experiências com
vistas ao planejamento, para a realização e a avaliação de políticas, programas e projetos, com
o objetivo de alcançar resultados integrados sinérgicos em situações complexas” (2001,
p.105). Nesta perspectiva, a intersetorialidade transpõe a ideia de transdisciplinaridade para o
campo das organizações, pois vai além do mero ajuntamento de setores, propiciando e
fomentando uma nova dinâmica para a organização governamental, considerando,
principalmente, o território e a população no processo de desenvolvimento das políticas
públicas.
A autora entende que o aparato governamental não reconhece os cidadãos a partir de
uma perspectiva de totalidade, isto porque sua atuação reflete “as clausuras das disciplinas”,
pois é fragmentado por conhecimento, saberes e corporações. Além disso, a autora destaca a
“herança verticalizada, piramidal, em que os processos percorrem vários escalões, mas as
decisões são tomadas apenas no topo, não na base, próximo à população” (INOJOSA, 2001,
p. 103).
Tal compreensão implica, portanto, a noção de que a intersetorialidade é capaz de
trazer mudanças no campo da administração governamental, gerando possivelmente o alcance
de resultados sinérgicos, que culminem na resolução dos problemas sociais tratados em suas
complexidades. Esse entendimento é acompanhado por duas condições consideradas
11
fundamentais para a autora no processo do estabelecimento da formulação, realização e
avaliação das ações intersetoriais: “a focalização, com base na regionalização, em segmentos
da população; e a preocupação com resultados e impactos” (2001, p.105). Com vistas a
resultados, a autora chama a atenção para a necessidade do acompanhamento, monitoramento
e avaliação das ações desenvolvidas através de planos e programas.
Neste sentido, para Inojosa (2001) a proposta de intersetorialidade tem implicações
tanto no âmbito do planejamento como no estabelecimento do orçamento. Apesar de perceber
o movimento contrário neste processo, ou seja, a determinação do orçamento em detrimento
do planejamento, a autora sinaliza que de forma diferenciada do modo como estes têm sido
operacionalizados atualmente, a intersetorialidade requer novas posturas que culminem em
mudanças nos processos de planejamento e na própria lógica do estabelecimento do
orçamento. Significa, portanto, a necessidade de um “processo de planejamento diferente, em
que o plano faz parte de um processo permanente, que começa com a análise de situação,
passa por escolhas estratégicas e faz acordos” (INOJOSA, 2001, p. 107).
Tanto Inojosa quanto Junqueira compreendem a importância e alcance dos processos
avaliativos através dos princípios baseados na eficiência e eficácia das ações intersetoriais.
Apesar de apontarem que a intersetorialidade por si só não é capaz de provocar tais mudanças,
a abordagem destes autores é direcionada para uma leitura presa às dimensões técnicas da
administração pública, e ancorada, sobretudo, em uma racionalidade vaga em relação à sua
apreensão política. Isso não significa desconsiderar a pertinência de seus estudos em relação
ao trato da intersetorialidade no cenário brasileiro, muito menos a dimensão técnica e
instrumental que perpassa a intersetorialidade. Pelo contrário, a apreensão destes estudos
deve ocorrer a partir de um olhar crítico que procure estar além da aparência deste debate, que
vem se apresentando repleto de intencionalidades ideológicas historicamente determinadas, e
insistem em não levar em conta as multideterminações sociais e as contradições que assolam
os processos sociais.
Neste sentido, baseado nos estudos de Abreu e Garcia (2011), Almeida (2010) e
Pereira (2011), apontamos alguns elementos que devem ser pensados em relação ao debate da
intersetorialidade apresentado pelos autores Junqueira e Inojosa, contribuindo assim para o
desnudamento das perspectivas que perpassam à análise destes autores. Segundo Abreu e
Garcia (2011), o discurso assumido pelos autores Junqueira e Inojosa partem da apreensão do
conceito de intersetorialidade presente na literatura internacional, que trata tal discussão como
articulação coordenada entre setores e instituições na abordagem integradas dos problemas,
12
ou como a articulação entre saberes e experiências no âmbito do processo de planejamento,
execução, monitoramento e avaliação de ações, mediante decisão política.
Para Abreu e Garcia está presente no discurso de articulação entre os diversos setores
a dimensão instrumental-técnica, desconsiderando a existência de inúmeras distinções nas
“estruturas institucionais, competências, recursos humanos e materiais que ostentam
peculiaridades e diferenças” (ABREU; GARCIA, 2011 p. 2). Tal situação é agravada pela
ideia de que a implementação da intersetorialidade, ou seja, a superação da setorialização e da
fragmentação presente nas políticas públicas, ocorreria apenas por uma decisão política, não
levando em conta o próprio processo contraditório que permeia as relações presentes no
processo de implementação destas políticas no cenário brasileiro.
De acordo com as autoras, ao considerar apenas a dimensão política como
protagonista e propiciadora de mudanças na realidade, ou seja, uma visão unilateral deste
processo desconsidera-se elementos cruciais que determinam a própria relação estabelecida
entre o Estado e sociedade10, as dimensões econômica, social, cultural e ideológica. Portanto,
nesta visão, “captar apenas uma dimensão perde-se a totalidade dos processos sociais aos
quais a intersetorialidade está vinculada (ABREU; GARCIA, 2011 p. 7). Neste sentido, as
autoras afirmam que é um problema considerar a intersetorialidade atrelada a reformas
administrativas e de gestão das políticas sociais, guiada por uma perspectiva unicamente
direcionada pela administração pública, como se fosse possível resolver os problemas que
perpassam o campo social apenas pela sua gestão administrativa. Conforme destacam as
autoras,
[...] é preciso desvelar que essa retórica de entender os problemas sociais ou a
ausência de políticas sociais meramente pela lógica de uma má administração
pública retira a dimensão política dos fenômenos sociais, e restringe os mesmos a
sua condição técnica e operativa. Esconde a sua essência como favorecedor dos
processos de reprodução material em prol de uma determinada ideologia que é a
neoliberal que em nada preconiza a expansão dos direitos sociais (ABREU;
GARCIA, 2011, p. 5).
Isso significa que, embora a intersetorialidade na perspectiva dos autores Junqueira e
Inojosa apontem para mudanças no âmbito da gestão administrativa, nos processos de
construção do planejamento, monitoramento e avaliação, bem como nas formas de
enfrentamento dos problemas sociais, elementos conjunturais e estruturais circunscritos neste
debate devem ser considerados para que tais mudanças sejam consistentes e impliquem na
garantia da democracia e da cidadania. Portanto, de acordo Almeida (2010, p. 118) com este
10
Discussão que nos remete à reflexão sobre o papel do Estado e sua relação com as classes sociais.
13
autor mudanças impulsionadas por essa nova forma de atuação “depende decisivamente do
alcance das correlações de forças existentes em cada instância governamental”, no lastro dos
pactos envoltos às questões político-partidárias e acordos entre as instâncias administrativas.
Nesta perspectiva, deve-se compreender que os problemas sociais são multidimensionais e,
por essa razão, sua resolutividade não está restrita a um único setor ou a mudanças meramente
técnicas e administrativas na gestão pública, mas na superação da configuração fragmentada e
desarticulada em que se encontram as políticas públicas.
14
REFERÊNCIAS
ABREU, Cassiane C.; GARCIA, Maria Lúcia T. Intersetorialidade: uma revisão conceitual de um
tema presente nas políticas sociais. In: Anais do 6º Encontro Nacional de Política Social. Vitória,
2011.
ALMEIDA, Gláucia E. S. Pra que somar se a gente pode dividir? Estratégias de integração
disciplinares: saúde, trabalho e ambiente. Dissertação de mestrado. Escola Nacional de Saúde Pública.
ENSP/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2000, 178pp.
ALMEIDA FILHO, Naomar de. Intersetorialidade, Transdisciplinaridade e Saúde Coletiva. RAP Rio
de Janeiro, Nov. /Dez. 2000.
ALMEIDA, Ney Luiz T. Educação e infância na cidade: dimensões instituintes da experiência de
intersetorialidade em Niterói. Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2010.
BEHRING, Elaine Rossetti ; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história. 5. ed.
São Paulo: Cortez, 2008. (Biblioteca básica de Serviço Social, v.2)
INOJOSA, R. M. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com
intersetorialidade. Cadernos FUNDAP, São Paulo, n. 22, 2001.
JUNQUEIRA, Luciano A. Prates. Novas formas de gestão na saúde:descentralização e
intersetorialidade. Saude soc. [online]. 1997, vol.6, n.2, p. 31-46
______. A gestão intersetorial das políticas sociais e o terceiro setor. Saude soc. [online]. 2004,
vol.13, n.1, p. 25-36.
______. Intesetorialidade, transetorialidade e redes sociais na saúde. Rev. Adm. Pública, v. 34,
n.espec., 2000.
______. Descentralização e Intersetorialidade: a construção de um modelo de gestão municipal. RAP,
Rio de Janeiro, mar./abr. 1998
MONNERAT, Giselle Lavinas; SOUZA, Rosimary Gonçalves de. Da seguridade social à
intersetorialidade: reflexões sobre a integração das políticas sociais no Brasil. Rev. katálysis [online].
2011, vol.14, n.1, p. 41-49.
NETTO, José Paulo. FHC e a política social: um desastre para as massas trabalhadoras. In:
LESBAUPIN, Ivo (org.). O desmonte da nação: balanço do Governo FHC. 3.ed. Petrópolis:Vozes,
1999.
PEREIRA, Potyara A. P. A intersetorialidade das políticas sociais numa perspectiva dialética.
Mimeo, 2011.
______. A política social no contexto da seguridade social e do Welfare state: a particularidade da
assistência social. Serviço Social & Sociedade. São Paulo, ano 19, n. 56, p. 60-76, mar. 1998.
SALVADOR, Evilásio. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.
15
Download