LÍNGUA E REPRODUÇÃO CULTURAL: FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EQUIDADE SOCIAL Cristiano Guedes Pinheiro (UFPel) Priscila Monteiro Chaves (UFPel) Linha Temática: Variação Linguística, Identidades e Ensino: Reflexões Resumo: Uma das características que comprime a realidade da escola pública e de baixa renda é a sua diversidade, no que compete a diferentes culturas e percursos de vida, fazendo distinções entre condições mais ou menos favoráveis também no ensino de língua materna. As classes menos favorecidas acompanham uma cultura e juntamente com esta seus costumes, crenças e linguagens variantes do rotineiro meio urbano. A compreensão e o manejo da língua constituem o escopo de atenção principal no julgamento dos professores, “mostrando que a influência do capital linguístico não cessa nunca de se” cumprir e que “o estilo permanece sempre levado em conta, implícita ou explicitamente, em todos os níveis do ensino” (BOURDIEU; PASSERON, 2012). Assim, o presente trabalho objetiva refletir acerca das relações de poder na formação e no ensino de língua materna de estudantes e futuros docentes, a partir dos conceitos de “reprodução cultural”, de Bourdieu e Passeron (2012), e de "contra-hegemonia", de Henry Giroux e Peter McLaren (1997). A fim de compreender a necessidade de uma formação docente que consiga estabelecer relações entre o político e o pedagógico; que seja capaz de articular, na ação e na teoria, práticas de uma democracia radical; que possam ser educados enquanto intelectuais transformadores, assumindo um papel central na luta por democracia e justiça social. Palavras-chave: Língua; Reprodução Cultural, Formação Docente. Introdução Muito se tem produzido sobre os conceitos de cultura e educação. Sobre o conceito de educação, seria possível mesmo remontar à Antiguidade Clássica, passando por Sócrates, Platão e Aristóteles; Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, na Idade Média; Montaigne e Comênio na Idade Moderna. Porém, é a partir do pensamento Iluminista, com nomes como Montesquieu e Rousseau e a proposta de Lepelletier de um Plano Nacional de Educação, aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte, em plena Revolução Francesa, em 1793, que a escola moderna começa a ganhar os contornos que possui atualmente. Desde este último período o pensamento pedagógico ocidental avançou substancialmente, muitos foram os autores e teóricos a pensarem sobre o assunto. Não cumpre nenhum papel aqui, tentar listar os principais pensadores e escolas pedagógicas surgidas nesse período, basta pontuar que muitos continuam a influenciar o pensamento educacional na contemporaneidade. Não é coincidência, de outra forma, que o conceito de cultura comece a ser amplamente discutido e que ganhe a atenção de sociólogos e antropólogos a partir de meados do século XIX, tanto um como outro conceito, são fundamentais para a consolidação dos Estados Nacionais burgueses (GADOTTI, 2003; GEERTZ, 1980, 2008). No presente trabalho, será abordado o conceito de “reprodução cultural” de Bourdieu e Passeron (2012), a fim de refletir acerca das relações de poder na formação e no ensino de língua materna de estudantes e futuros docentes. A partir dessa reflexão, e da ideia destes autores, sobre a reprodução social a partir da reprodução do sistema de ensino, dialogar-se-á também com o conceito de "contra-hegemonia", de Henry Giroux e Peter McLaren (1997), no intuito de apontar para a necessidade de uma formação docente que consiga estabelecer relações entre o político e o pedagógico; que seja capaz de articular, na ação e na teoria, práticas de uma democracia radical; que possam ser educados enquanto intelectuais transformadores, assumindo um papel central na luta por democracia e justiça social. Reprodução Cultural Desde o surgimento da escola moderna, no contexto das revoluções burguesas, que o ensino institucionalizado tem sido visto, e se tornado mesmo, numa das principais formas de diminuição da desigualdade social e cultural entre os homens. Para além disso, e a partir da massificação escolar no século passado, a ideia de uma ampla democratização do conhecimento, tendo a escola como local de promoção dessa democratização e da educação como vetor primeiro da transformação social, tem assumido a primazia nas pautas e discursos políticos e nas reivindicações sociais. Esse entendimento, da escola como local de exercício da democratização do acesso ao conhecimento, no entanto, é densamente criticado e desmistificado por Bourdieu e Passeron (2012), através do conceito de “reprodução cultural”. A partir dessa categoria de análise (e, digase de passagem, que outras categorias, como a de “violência simbólica”, complementam seu pensamento) os autores desconstroem o entendimento de que na escola o conhecimento é transmitido de forma democrática, igualmente para todos os alunos, segundo Bourdieu e Passeron o que os sistemas de ensino fazem, na realidade, é reproduzir o sistema social e cultural da classe social dominante: [...] pode-se dizer que um sistema de ensino seja tanto mais capaz de dissimular sua função social de legitimação das diferenças de classe sob sua função técnica de produção das qualificações quanto menos lhe é possível ignorar as exigências incomprimíveis do mercado de trabalho: sem dúvida as sociedades modernas conseguem cada vez mais obter da Escola que ela produza e garanta como tais cada vez mais indivíduos qualificados, isto é, cada vez mais bem adaptados às exigências da economia (BOURDIEU; PASSERON, 2012, p. 202, grifo dos autores). Essa desigualdade entre o acesso ao conhecimento ocorre devido aos diferentes níveis de capital cultural encontrados entre as classes sociais existentes sob o capitalismo: classes populares, classes médias e as elites. Espera-se, durante o processo de aprendizagem, que todos os alunos atinjam um nível de conhecimento estabelecido pela escola, conhecimento, que por sua vez, está referenciado na cultura da classe dominante, ou seja, das elites. Dessa forma, os alunos oriundos das classes mais favorecidas são beneficiados quanto ao entendimento e compreensão do conhecimento transmitido, pois trazem de berço um capital cultural que é o mesmo exigido pela escola: A noção de capital cultural impôs-se, primeiramente, como uma hipótese indispensável para dar conta da desigualdade de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais, relacionando o "sucesso escolar", ou seja, os benefícios específicos que as crianças das diferentes classes e frações de classe podem obter no mercado escolar, à distribuição do capital cultural entre as classes e frações de classe. Este ponto de partida implica em uma ruptura com os pressupostos inerentes, tanto à visão comum que considera o sucesso ou fracasso escolar como efeito das "aptidões" naturais, quanto às teorias do "capital humano" (BOURDIEU, 2007, p.73, grifo do autor). Quanto à questão da língua materna e seu domínio, ela não é menos um instrumento nesse processo de reprodução, ao contrário: [...] ela fornece, além de um vocabulário mais ou menos rico, um sistema de categorias mais ou menos complexo, de sorte que a aptidão à decifração e à manipulação de estruturas complexas, quer elas sejam lógicas ou estéticas, depende em certa parte da complexidade da língua transmitida pela família. Segue-se logicamente que a mortalidade escolar só pode crescer à medida que se vai às classes mais afastadas da língua escolar (BOURDIEU; PASSERON, 2012, p. 97). Assim, os estudantes das classes populares e médias que ascendem ao ensino superior, necessariamente, devem ter conseguido êxito no processo de aculturação e inculcação da linguagem materna enquanto exigência escolar. A competência linguística configura-se enquanto um dos principais critérios de seleção universitária; para além, inclusive, do conteúdo, a forma ganha precedência nesse processo: “[...] os examinadores frequentemente [são] constrangidos [...] a diminuir suas exigências em matéria de conhecimento e de habilidades para prender-se às exigências de forma” (BOURDIEU; PASSERON, 2012, p. 96-97). O mais importante é que o aluno universitário saiba expressar-se bem, que saiba escrever bem, ou seja, que saiba compor e expor um bom texto. O que reforça ainda mais a cultura hegemônica dominate, a qual terá uma proposta de contraposição no próximo item. Contra-hegemonia Numa abordagem mais vinculada à prática docente, encontra-se no texto A Educação de Professores e a Política de Reforma Democrática, de Henry Giroux e Peter McLaren, uma discussão sobre o conceito de resistência e de "contra-hegemonia". Analisando a política de formação docente nos EUA e fazendo uma crítica à postura das teorias da resistência, os autores propõem uma distinção entre o termo resistência e o termo contrahegemonia. Advogando que a opção pelo termo contra-hegemonia auxiliaria na melhor caracterização da proposta de um projeto político de “esferas públicas alternativas”1; sendo um dos objetivos dos autores (no texto), propor que as instituições que formam professores sejam “reconcebidas” enquanto esferas públicas. Essas novas esferas públicas se caracterizariam por formarem professores que consigam estabelecer relações entre o político e o pedagógico; que sejam capazes de articular, na ação e na teoria, práticas de uma democracia radical; enfim, que possam ser educados enquanto intelectuais transformadores, assumindo um papel central na luta por democracia e justiça social, como percebem os autores: Sentimos que o termo "contra-hegemonia", em distinção ao termo "resistência", especifica melhor o projeto político que definimos como a criação de esferas públicas alternativas. Como usado com freqüência na literatura educacional, o termo resistência refere-se a um tipo de "lacuna" autônoma entre as inelutáveis forças de dominação em todas as partes e a condição de ser dominado. [...] Vista deste modo, a resistência funciona como um tipo de negação ou afirmação colocada diante de práticas e discursos governantes. (GIROUX;MCLAREN; 1997, p. 199). 1 As esferas públicas (clássicas), existentes nos séculos XVIII e XIX, na Europa, eram locais onde o pensamento reflexivo era comumente desenvolvido, esses locais eram agremiações políticas, periódicos, cafés, associações de bairro e casas de publicação. Esses locais: “ofereciam redes através das quais indivíduos particulares reuniam-se para debater, dialogar e trocar opiniões. Esferas públicas deste tipo muitas vezes transformavam-se em uma força política coesa”. (GIROUX; MCLAREN, 1997, p. 195). O conceito de contra-hegemonia, de outra forma, cumpriria uma função mais política, teórica e crítica: A contra-hegemonia, por sua vez, implica uma compreensão mais política, teórica e crítica tanto da natureza da dominação quanto do tipo de oposição ativa que engendra. Ainda mais importante, o conceito não apenas afirma a lógica da crítica como também refere-se à criação de novas relações sociais e espaços públicos que incorporam formas alternativas de luta e experiência. Como domínio reflexivo da ação política, a contra-hegemonia transfere a natureza característica da luta do terreno da crítica para o terreno coletivamente construído da esfera contrapública. (1997, p. 199). O que pode ser percebido é que os autores propõem uma politização da luta social, uma “qualificação” da resistência. Uma práxis educativa que constitua um “lugar” de resistência: a esfera pública, a esfera contrapública, recriada, reconcebida. Sim, uma práxis, pois há o entendimento de que só o discurso é insuficiente para a mudança e a transformação social: “A reforma não pode existir como possibilidade prática fora da dinâmica vivida dos movimentos sociais”. Mais do que isso, compreende-se que um projeto coerente de transformação da sociedade vai além das novas esferas públicas: “No final, reformas mais amplas exigem não apenas que os professores se engajem em novos movimentos sociais, mas que [...] redefinam a natureza de por que e como eles funcionam na sociedade”. (1997, p. 203-210, grifo dos autores). Considerações Finais Objetivamos, neste trabalho, lançar algumas reflexões sobre as relações de poder e o processo de reprodução social e cultural, ocorridos na e a partir da escola. Parra isso buscamos no pensamento de Bourdieu e Passeron a discussão sobre reprodução cultural e capital cultural, buscamos, a partir daí desenvolver uma discussão utilizando o conceito de "contrahegemonia", de Henry Giroux e Peter McLaren, no intuito de apontar a necessidade de uma formação docente que consiga estabelecer relações entre o político e o pedagógico; que seja capaz de articular, na ação e na teoria, práticas de uma democracia radical; que possam ser educados enquanto intelectuais transformadores, assumindo um papel central na luta por democracia e justiça social. Referências BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação / Maria Alice e Afrânio Catani (Org.). 9 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. GADOTTI, Moacir. Historia das idéias pedagógicas. 8 ed. Editora Ática: São Paulo, 2003. GEERTZ, Clifford. Transição para a humanidade. In: ENGELS, Friedrich; et. al. O Papel da cultura nas ciências sociais. Editorial Villa Martha: Porto Alegre, 1980, p. 21-36. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. GIROUX, Henry, MCLAREN, Peter. A Educação de professores e a política de reforma democrática. In: GIROUX, Henry. Os Professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 195-212. GIROUX, Henry. Os Professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 195-212. MCLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. 2ª. ed. São Paulo: Cortez, 1999.