Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 A QUEDA DO POSITIVISMO JURÍDICO E O DIREITO CONSTITUCIONAL NO PÓS-GUERRA Rodrigo Silveira Rabello de Azevedo1 RESUMO O presente estudo aborda a queda do positivismo jurídico, tratando suas peculiaridades e diferenças frente ao jusnaturalismo, seu precursor. Faz-se, deste modo, uma contraposição entre o direito natural, onde o homem seria dotado de direitos intrínsecos à sua condição, corrente influenciada pela fé e misticismo preponderantes na idade média, frente aos ideais positivistas donde o direito é visto como uma ciência pura isenta de interferências extrínsecas, e estaria apenas vinculado à legalidade. Posteriormente, é feita uma análise acerca do desenvolvimento do direito constitucional no mundo pós-guerra com a evidente queda do positivismo, esboçando rapidamente um desenho do que viria a ser o pós-positivismo jurídico. Neste norte, ainda, aborda o processo de reconstitucionalização em vários países do ocidente, chegando ao Brasil em 1988, com a promulgação da Constituição Federal. Juntamente com a Lei Maior estavam atrelados os valores vigentes à época, como a dotação de carga normativa aos princípios, positivados como normas abertas, também, os direitos fundamentais e a proteção a dignidade da pessoa humana como princípio norteador do ordenamento jurídico. O problema aqui sugerido teve seu ponto inicial sob a necessidade de precisar as circunstâncias que vieram a resultar na queda da escola jus-filósofica. Para chegar às conclusões práticas foi desenvolvido um estudo com base na doutrina nacional e estrangeira, utilizando os métodos interpretativos, comparativo e dedutivo objetivando, assim, a junção dos conceitos estudados, como um todo, em busca de uma solução para a problemática aqui levantada. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia do Direito; Direito Constitucional; Positivismo Jurídico THE FALL OF THE LEGAL AND CONSTITUTIONAL RIGHT POSITIVISM IN POST-WAR ABSTRACT This paper examines the decline of legal positivism, treating its peculiarities and differences compared to the natural law, its precursor. It is thus a contrast between natural law, where the man is endowed with inherent rights to their condition, current influenced by faith and mysticism prevalent in middle age, compared to positivist ideas of where the law is seen as a pure science , free from extraneous interference and would be bound only to legality. After, an analysis is made about the development of constitutional law in the postwar world with the increasing decline of positivism, quickly sketching a drawing of what would be the post1 Graduando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. [email protected] 20 Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 positivism Legal. In the north, also addresses the process of reconstitucionalização in several Western countries, arriving in Brazil in 1988 with the enactment of the Federal Constitution. Along with the highest law were linked values prevailing at the time, as the appropriation load normative principles, positivized as open standards, too, the fundamental rights and the protection of human dignity as the guiding principle of the legal system. The problem suggested here had its starting point on the need to specify the circumstances that were to result in a drop of jus-school philosophy. To arrive at practical conclusions a study was developed based on national and foreign doctrine, using the methods of interpretation, comparative and deductive aiming thus to merge the concepts studied as a whole, searching for a solution to the issues raised here. KEY-WORDS: Philosophy of Law, Constitutional Law, Legal Positivism INTRODUÇÃO O constante processo de evolução intelectual do ser humano, em termos sócioculturais ou científicos, se vê refletido, também, no mundo jurídico de maneira indissociável desde o surgimento do conceito de lei e do próprio Direito. As concepções jurídico-filosóficas cambiaram progressivamente conforme o passar do tempo e onde antes imperava a lei natural do homem como ser dotado de direitos intrínsecos à sua condição, conforme pregavam os jusnaturalistas, passou-se a conceber a lei e o Direito como objetos científicos dotados de métodos e hermenêutica de fundação racional, semelhantes à metódica inerente às ciências naturais, na escola denominada positivismo. Revelou-se, então, uma total ruptura com os ideais clássicos, no que restou convencionado como Estado moderno. Nos últimos anos e mais precisamente no período pós-guerra, iniciou-se um processo de remodelagem das concepções positivistas tão cegamente defesas pelos tradicionalistas. Fazia-se necessária uma reaproximação entre o Direito e os valores, vestidos na roupagem da ética e da moral. Neste sentido, então, com base na experiência da reconstitucionalização e redemocratização de países cujo sentimento democrático havia sido devastado por regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da própria legalidade, a queda do positivismo legalista do final do século XIX e início do século XX, que tanto marcou o ideário filosófico da época, foi inevitável. O que resultara em profundas mudanças no Direito, especialmente, no Direito Constitucional, objeto do presente estudo. Para a realização deste trabalho, foi realizada uma pesquisa teórica, com o emprego do método dedutivo de abordagem, partindo de uma apreciação geral do tema, para uma 21 Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 particular, com o objetivo de fornecer um embasamento teórico sobre os aspectos específicos da queda do positivismo e seus reflexos nas concepções acerca da força normativa da Constituição e na validade do Direito Constitucional. 1 POSITIVISMO: BREVE RELATO HISTÓRICO SOBRE SEU SURGIMENTO E DECADÊNCIA O positivismo jurídico pode ser resumido sob a conceituação básica de que esta se trata de uma escola jurídico-filosófica que tem por marco o condicionamento do Direito à posição de ciência, opondo-se aos ideais do jusnaturalismo, escola que pregava o direito como resultado de um conjunto de valores e princípios que seriam, por si, independentes da norma emanada pelo Estado e inerentes ao “ser social” e à sociedade. A fé sustentava os pilares da sociedade e a influência do misticismo e dos dogmas religiosos se viam impregnadas na ciência. O Positivismo jurídico tem sua concretização na Europa ocidental do século XIX, quando, sob influência da escola filosófica homônima, se desenvolve com cristalino reflexo do racionalismo científico pregado pelos filósofos do ideário iluminista, com a defesa à objetividade científica (distinção entre sujeito e objeto), ao método descritivo, e as demais características das ciências naturais, que, para os adeptos da escola, deveriam ser aplicados aos demais campos de conhecimento, refletindo, então, o posicionamento de que conhecimento científico seria o único dotado de validade, plenitude e realidade. O Professor Luis Roberto Barroso se refere ao sentimento vivido pelos pensadores da época como “maioridade racional2”. Assevera, ainda, que com o advento dos ideais positivistas: A lei passa a ser vista como expressão superior da razão. A ciência do Direito – ou, também, teoria geral do Direito, dogmática jurídica – é o domínio asséptico da segurança e da justiça. O Estado é a fonte única do poder e do Direito. O sistema 3 jurídico é completo e autossuficiente. 2 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.239. 3 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.229. 22 Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 Se o jusnaturalismo clássico confundia o direito com a condição do homem e da sociedade, o positivismo passa a confundir o Estado à norma, este por ser controlador do Direito, concepção característica do modelo do modernismo. A visão de que o direito seria proveniente de um juízo de fato e não de juízos de valor, refletira em uma íntima relação com o formalismo em que o direito, segundo Mayra de Sousa Scremin, “é definido em função de sua estrutura formal, sem levar em consideração o conteúdo que [...] estabelece 4”, a validade da norma estaria vinculada apenas ao seu procedimento de criação, independentemente do conteúdo. Sendo esta a principal premissa ideológica do jurista austríaco Hans Kelsen que, já no século XX, mais precisamente no ano de 1934, faz com que o positivismo jurídico atinja sua mais alta expressão com a publicação da obra “Teoria Pura do Direito”. Em que o jurista defende a pureza científica do direito, restando para a ciência jurídica estudar apenas o universo normativo, baseada apenas na legalidade e independente da influência de outras ciências e conceitos como moral e ética. Conforme complementa o professor Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy: A teoria pura do Direito, como teoria, procura descrever seu objeto, tratando o Direito como ele efetivamente é, e não como ele deve ser, isto é, afasta-se de paradigmas políticos. Tem como base metodológica o projeto de eliminar do Direito seus elementos estranhos, de cunho político e sociológico. [...] A teoria pura do direito dirige-se a normas, e não a fatos. Trata-se de percepção teórica radicalmente realista do Direito, da mais elaborada teoria do positivismo jurídico. 5 Restaram consolidados, então, a partir deste momento, todos os princípios do pensamento moderno positivista, onde o direito seria dotado de, como pontuado sinteticamente por Barroso: “a) caráter científico; b) emprego da lógica formal; c) pretensão de completude; d) pureza científica; e) racionalidade da lei e neutralidade do intérprete”. Ainda, é válido mencionar, o caráter coercitivo do direito, onde conforme lembra Scremin, “a sanção passa a ser entendida como elemento da norma, e o Direito é definido como um conjunto de regras que têm por objeto a regulamentação do exercício da força numa 4 SCREMIN, Mayra de Sousa. Do positivismo jurídico à teoria crítica do direito. [artigo científico]. Disponível em http://www.scribd.com/doc/19327512/DO-POSITIVISMO-JURIDICO-A-TEORIA-CRITICA-DODIREITO. 5 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O positivismo jurídico [artigo científico]. 2007. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/10060>. Acesso em 10 nov. 2010. 23 Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 sociedade6”. Os conceitos e instrumentos suficientes para a solução de qualquer caso estariam inseridos no próprio ordenamento jurídico. Até a primeira metade do século XX, o positivismo jurídico é reconhecido como sistema de validade indubitável e se espalha pelo ocidente com as premissas basilares. O sentimento de segurança jurídica causado pela noção de força imperativa e coatora de leis, baseadas em juízos de fato, independentes de quaisquer ponderações de valor é necessário ao Estado moderno. Segundo Müller, para os adeptos do positivismo legalista “[...]o direito é idêntico às leis provenientes do Estado, elaboradas de modo correto. Questões de conteúdo não podem desempenhar nenhum papel para esse conceito de direito positivo, normas naturais ou éticas não tem nenhum interesse para ele7”. Notoriamente que a ciência jurídica moldada pelo positivismo demonstrou-se, com o passar do tempo, um sistema ineficaz e falho frente à perfeição científica longinquamente almejada. Evidenciado restou que é impossível, pois, transpor à ciência jurídica os métodos das ciências naturais de forma satisfatória, tendo como primeiro óbice, para tal, a diferença lógica entre os objetos de estudo. Ora, ilógico pensar a ciência jurídica como um estudo plenamente descritivo da realidade quando o direito tem o viés de escrever um juízo de dever ser e fazê-lo adequar-se às situações fáticas e concretas que vierem a incidir sobre sua regência. Frise-se, também, a intensa relação entre a norma, seu criador e a quem se destinam, sendo, com base nesta relação, a objetividade científica, a neutralidade e o desapego às questões de moral e ética incabíveis no plano de eficácia do direito. Sob estes argumentos, em um futuro não muito distante, que viera a ocorrer a queda (ou renovação) do positivismo, com a difusão do pós-positivismo jurídico. Contudo, ainda acerca do objeto do presente estudo, Thomas Kuhn, físico norte-americano estudioso da revolução das ciências, escreveu: [...]se um dia o positivismo jurídico mostrou-se como arsenal imprescindível na luta contra o autoritarismo, o absolutismo e a intransigência clerical, o desdobramento das relações econômicas e sociais na tradição ocidental fez com que a tradição positivista se esgotasse na própria seiva 8. 6 SCREMIN, Mayra de Sousa. Do positivismo jurídico à teoria crítica do direito. [artigo científico]. Disponível em http://www.scribd.com/doc/19327512/DO-POSITIVISMO-JURIDICO-A-TEORIA-CRITICA-DODIREITO. 7 MULLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3ªed. Rio de Janeiro: Renovar. 2005. p.155. 8 KUHN, Thomas S. A estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1996. APUD GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O positivismo jurídico [artigo científico]. 2007. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/10060>. Acesso em 10 nov. 2010. 24 Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 A ponderação do retro mencionado cientista tem seu embasamento nos fatos que levaram ao início da decadência do positivismo: a derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, movimentos políticos e militares que, conforme Barroso: [...]ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Até mesmo a segregação da comunidade judaica, na Alemanha, teve início com as chamadas leis raciais, regularmente editadas e publicadas. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o positivismo jurídico marcado pela indiferença e desapego do ordenamento às questões morais e éticas da sociedade, cujo reflexo seria a lei tomada como uma premissa genérica válida em qualquer que fosse o caso concreto, quedou-se deveras fragilizado, havendo, então, aos poucos desencadeado os movimentos que resultariam em uma nova concepção difusa do ordenamento jurídico, ciência jurídica e uma nova conceituação do próprio Direito. Ilustra o professor Luis Roberto Barroso: O positivismo pretendeu ser uma teoria do Direito, na qual o estudioso assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízos de fato. Mas resultou sendo uma ideologia, movida por juízos de valor, por ter se tornado não apenas um modo de entender o Direito, como também de querer o Direito. O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A idéia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem. Seriam essas as premissas utilizadas alguns anos depois para a elaboração e embasamento da chamada Teoria Crítica do Direito. Esta, consistente em um conjunto de idéias e movimentos questionadores à teoria jurídica tradicionalmente positivista. Sob forte influência Marxista, os adeptos desta corrente tratavam o Direito como instrumento político de controle social, conclamando os juristas a reconstruir o direito de maneira que objetivassem valores humanos e de bem comum. O movimento teve como principais defensores, conforme memora Barroso, a Critique Du Droit da França, os Critical Legal Studies dos Estados Unidos e a Escola de Frankfurt na Alemanha, tendo sido esta última responsável pelo lançamento das bases da teoria citada. Ainda sobre a teoria crítica, conforme o doutrinador retro citado: Uma das teses fundamentais do pensamento crítico é a admissão de que o Direito possa não estar integralmente contido na lei, tendo condição de existir 25 Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 independentemente da bênção estatal, da positivação, do reconhecimento, expresso pela estrutura do poder.[...]A teoria crítica resiste, também, à idéia de completude, de autossuficiência e de pureza, condenando a cisão do discurso jurídico, que dele afasta os outros conhecimentos teóricos.[...] A interdisciplinaridade, que colhe elementos em outras áreas do saber – inclusive os menos óbvios como a psicanálise ou a lingüística – tem uma fecunda colaboração a prestar ao universo jurídico.9 Inegável, pois, o valor da teoria crítica na renovação do direito ocorrida no período pós-guerra. A construção de uma ciência jurídica menos dogmática e mais próxima à realidade e contexto social ao qual visa incidir, bem como sua aproximação com outras ciências sem o temor de perda de sua força como ciência autônoma, mostrou-se progressivamente mais evidentes. 2 O PÓS-GUERRA E O DIREITO CONSTITUCIONAL Inúmeras foram as transformações vividas pelo conceito de Estado de Direito desde a antiguidade, passando pela modernidade, chegando até o período contemporâneo. Mudanças estas que afetaram e afetam diretamente o indivíduo submetido à sua tutela, esteja o mesmo ciente ou não de tais câmbios. Barroso10 teoriza que nos últimos quinhentos anos foram vividos três tipos distintos de Estado de Direito. Um primeiro Estado ao qual o doutrinador classifica como pré-moderno, onde vigorava a noção e filosofia do direito natural em um sistema de notória pluralidade de fontes normativas, como doutrina e jurisprudência, desempenhando papéis e funções normativas. Um modelo imediatamente posterior denominado Estado legislativo do direito, em que já restaria consolidada a valoração da legalidade, sob influência do racionalismo iluminista e do positivismo jurídico, como já abordado e, por fim, o modelo do Estado Constitucional de Direito cujo advento teve início no período pós-guerra e intensificou-se no último quarto do século XX. O Estado Constitucional de Direito, como dito supra, teve seu início com o fim da Segunda Guerra, havendo sido marcado pela vinculação entre a legalidade e a estrutura rígida do texto normativo da Constituição. As leis não seriam válidas levando-se em consideração apenas a forma e procedimento de sua produção, mas deveriam estar de acordo com as normas previstas na Carta Magna em vigor no território de sua aplicação. O legislador passa a 9 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.231. 10 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.244. 26 Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 ter seus limites impostos por uma Lei Maior e o administrador vê-se com imperativos de deveres de atuação. Foi a reconstitucionalização da Europa, neste último período, que, conforme o professor retro citado, “[...]redefiniu o lugar da constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições contemporâneas. A aproximação das idéias de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de organização política[...]11”. Seguindo o caminho inverso à queda do positivismo jurídico, o modelo de Estado Constitucional de Direito teve como seu primeiro referencial teórico de aplicabilidade na Lei Federal de Bohn (Constituição alemã) promulgada em 1949, bem como na posterior instalação do Tribunal Constitucional Federal alemão, em 1951, inovações que deram início ao processo de ascensão científica do direito constitucional nos países do ocidente influenciados pela tradição do direito romanístico. Como um segundo referencial teórico, por sua vez, a Itália teve sua Lex Mater promulgada em 1947 e a instalação da sua Corte Constitucional que ocorrera em 1956. De acordo com Barroso, os posteriores movimentos de: [...] redemocratização e reconstitucionalização de Portugal (1976) e da Espanha (1978) agregaram valor e volume ao debate sobre o novo direito constitucional. Esse novo constitucionalismo europeu caracterizou-se pelo reconhecimento de forma normativa às normas constitucionais, rompendo com a tradição de se tomar a Constituição como documento antes político que jurídico, subordinado às circunstâncias do Parlamento e da Administração.12 Tem-se, então, o início do Estado chamado pós-moderno, modelo onde a constituição se faz imperativa, a proteção dos direitos fundamentais do homem é objetivo positivado, intenta-se preservar e manter os sistemas político e econômico, além do modelo de Estado. O Constitucionalismo da segunda metade do século XX inicia seu processo de expansão pelo ocidente com a incumbência de assegurar princípios e garantias há muito esquecidos. Além disso, pontua Andre Ramos Tavares, que tal modelo caracteriza-se: a) Pela publicidade, permitindo o amplo conhecimento da estrutura do poder e garantia de direitos; b) pela clareza, por ser um documento unificado, que afasta as incertezas e dúvidas sobre os direitos e os limites do poder; c) pela segurança, justamente por proporcionar a clareza necessária à compreensão do poder 13 11 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.245. 12 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.245. 13 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva. 2010. 27 Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 Contudo, ainda acerca da validade da Constituição frente ao Estado, imperioso ressaltar que tal ponderação fora objeto de longas ponderações científicas ao longo da história democrática moderna. Memorável, então, a discussão “atemporal” entre Ferdinand Lassale e Konrad Hesse acerca do tema. O primeiro tivera publicado em 1863, com base em uma conferência que proferira em Berlim, a obra - O que é uma Constituição? 14- em que tratava as questões constitucionais como questões políticas, que refletiam as relações de poder existentes em um determinado Estado. Para o nobre jurista, as referidas relações seriam os fatores reais do poder ou a Constituição Real do País, que por sua vez seria, também, dotado de uma Constituição Jurídica tida como mero documento limitado à sua compatibilidade com a Constituição Real. Lassale estabelece ao final de sua obra: Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas de poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar. 15 Contrapondo-se aos ideais acima expostos, por sua vez, o jurista alemão Konrad Hesse, publica sua marcante obra do direito constitucional pós-moderno, embasada em uma aula inaugural proferida em 1959 na Universidade de Freiburg – Alemanha, intitulada: A Força Normativa da Constituição16. O aclamado jurista estabelece que a Constituição não deva ser tida como o lado mais fraco da relação político-jurídica do Estado para com o povo, como defendia seu par retro mencionado, mas, sim, considerada força ativa para orientar as condutas do povo a quem se direciona, existindo uma relação de coordenação entre os conceitos de Lassale de Constituição Real e a Constituição Jurídica. Assevera, também, tomando a força normativa por vontade da Constituição que se baseia: [...] na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso de vontade humana.[...] Todos os interesses momentâneos – ainda 14 LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. 3ª ed. Campinas: Russel Editores. 2009. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. 3ª ed. Campinas: Russel Editores. 2009. p.50. 16 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1991. 15 28 Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 quando realizados – não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição.17 (grifo nosso) Para o renomado jurista, seria função do direito constitucional “[...] realçar, despertar e preservar essa vontade da Constituição18” resultando, assim, em uma maior garantia da sua força normativa. Os ideais de Hesse são, indubitavelmente, reflexos do pensamento jurídico predominante e vanguardista de seu tempo. A alusão freqüente, durante o decorrer da obra, ao trabalho do Lassale demonstra o caráter critico e inovador das idéias ali contidas, rompendo com as conceituações e pré-conceituações clássicas acerca do valor da Constituição, do Direito Constitucional e do próprio Estado de direito. Notório, que a auto-afirmação do Estado constitucional de direito foi lenta e gradual. No Brasil, apenas na década de 80 que surgiram os primeiros movimentos a este respeito. Frisando a semelhança com a reconstitucionalização na Europa, o País estava chegando ao final de uma longa ditadura e clamava pelos “novos” conceitos de liberdade e dignidade inerentes ao pensamento constitucional da época. Em 1988, após as inúmeras discussões prévias, convocação de uma constituinte e elaboração do texto legal, fora promulgada a Constituição de República Federativa do Brasil. Também conhecida por Constituição Cidadã, a Carta Magna de 1988 viera com o condão de criar uma estabilidade institucional em um País devastado por um regime autoritário e, passados 22 anos de sua promulgação, evidenciase o êxito. Além do mais, pontua Barroso que “[...]a Constituição foi capaz de promover, de maneira bem sucedida, a travessia de um regime autoritário, intolerante e, por vezes, violento para um Estado Democrático de Direito19”. Por fim, ainda acerca dos avanços do direito constitucional no Brasil, completa, com maestria, poeticamente: Sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração. Uma Constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços. O surgimento de um sentimento constitucional no país é algo que merece ser celebrado. Trata-se de um sentimento, ainda tímido, mas real e sincero, de maior respeito pela Lei Maior, a despeito da volubilidade de seu texto. É um grande progresso. Superamos a crônica 17 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1991. p.19.21. 18 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1991. p.27. 19 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.247. 29 Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 indiferença que, historicamente, se mantinha em relação à Constituição. E para os que sabem, é a indiferença, não o ódio, o contrário do amor. 20 A nova expressão do direito constitucional e da força normativa da Constituição, também chamada de neoconstitucionalismo, notoriamente, não fora influenciada apenas por eventos históricos e sentimentos inflados pelo clamor popular, despidos de estudo e conotação científica. O marco filosófico da reconstitucionalização que aqui tratamos foi a construção de uma “doutrina” que, parafraseando Hesse, tivesse por objetivo “[...] encontrar, portanto, um caminho entre o abandono da normatividade em favor do domínio das relações fáticas, de um lado, e a normatividade despida de qualquer elemento da realidade, de outro21” ou, ainda, nas palavras do ilustre professor Willis Santiago Guerra Filho, “a possibilidade de lidar com valores no direito de forma racional e intersubjetivamente controlável, que é própria da ciência[...]22”. Encaramos, neste sentido, a construção de um conjunto de conceitos jusfilosóficos difusos que figura dentre a doutrina sob a denominação de pós-positivismo jurídico, realidade plena em nosso estado pós-moderno. CONCLUSÃO É inegável a contribuição legada pelo positivismo ao ordenamento jurídico do modo como é entendido hoje. A sustentação da tese de que a ciência jurídica para ser considerada efetivamente ciência deveria ser “pura”, isenta da interferência de outras ciências, com método próprio, foi de fundamental importância para o desenvolvimento do Direito em todas as suas características básicas, como a imperatividade e coercibilidade da lei. Contudo, não mais era possível utilizar-se dessas premissas tradicionais, frente ao mundo contemporâneo, onde a sociedade necessitava, evidentemente, da proteção do Estado revestido do caráter democrático. Conforme fora abordado no presente trabalho, restou estabelecido o momento inicial em que o Estado passa de sua fase liberal para a fase Social ou Constitucional, quando surge a Lei Fundamental de 1949 na Alemanha, marco do constitucionalismo pós-moderno, que depois acabara resultando em um conjunto de conhecimentos difusos residentes sob a denominação de pós-positivismo jurídico. 20 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.247. 21 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1991. p.14. 22 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p.138. 30 Orbis: Revista Científica Volume 2, n.1 ISSN 2178-4809 Latindex Folio 19391 Assim, a noção de Constituição fora, notoriamente, modificada também. Onde o que antes era tido como documento meramente político passou a apresentar-se como documento central dos ordenamentos jurídicos, revestido de poder hierárquico superior. Neste sentido, foi fundamental para a sua efetividade a aclamação dos povos tutelados pela mesma, cujos direitos necessitavam ser protegidos pelo ordenamento jurídico em todos os seus âmbitos e níveis, fossem objetivos ou subjetivos. O estudo das condições da queda do positivismo e desenvolvimento do constitucionalismo no pós-guerra são fundamentais para a compreensão da realidade jurídica atual, sendo puro reflexo do movimento transformador ocorrido em todo o mundo na segunda metade do século XX. REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O positivismo jurídico [artigo científico]. 2007. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/10060>. Acesso em 10 nov. 2010. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1991. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. 3ª ed. Campinas: Russel Editores. 2009. MULLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3ªed. Rio de Janeiro: Renovar. 2005. SCREMIN, Mayra de Sousa. Do positivismo jurídico à teoria crítica do direito. [artigo científico]. Disponível em http://www.scribd.com/doc/19327512/DO-POSITIVISMOJURIDICO-A-TEORIA-CRITICA-DO-DIREITO. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva. 2010. Artigo recebido em: 10/03/2011 Artigo aprovado em: 15/04/2011 31