0 UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ROBERTO BASÍLIO LEAL TUGENDHAT E UMA MORAL DO RESPEITO UNIVERSAL: IMPLICAÇÕES NA EDUCAÇÃO Ijuí (RS), 2011 1 ROBERTO BASÍLIO LEAL TUGENDHAT E UMA MORAL DO RESPEITO UNIVERSAL: IMPLICAÇÕES NA EDUCAÇÃO Dissertação apresentada ao curso de pósgraduação Stricto Sensu em Educação nas Ciências – Mestrado, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação nas Ciências. Orientador: Doutor Paulo Evaldo Fensterseifer Ijuí (RS), agosto de 2011. 2 A comissão abaixo assinada aprova a presente dissertação: TUGENDHAT E UMA MORAL DO RESPEITO UNIVERSAL: IMPLICAÇÕES NA EDUCAÇÃO elaborada pelo mestrando ROBERTO BASÍLIO LEAL como requisito parcial para obtenção do grau de MESTRE EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS COMISSÃO EXAMINADORA: _______________________________________________ Doutor Paulo Evaldo Fensterseifer (Orientador) ______________________________________________ Doutor Cláudio Boeira Garcia _____________________________________________ Doutor Darlei Dall’Agnol _____________________________________________ Doutor Paulo Rudi Schneider 3 “Um sistema político de igualdade normativa nunca pode ser resultado de um contrato entre desiguais!” Ernst Tugendhat (PBL). 4 AGRADECIMENTOS Ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da Unijuí, por acolher meu projeto de investigação, e à Capes, pelo financiamento parcial desta pesquisa. À Vanessa Neubauer, por ser a “responsável” pela abertura dos caminhos, me apresentando ao curso e, entre tantas outras coisas, compartilhar conhecimentos, formular dicas e sugestões, e construir uma amizade que foi, é e sempre será. Ao professor Paulo Evaldo Fensterseifer, orientador, com quem aprendi muito mais que ética e educação. Agradeço pela convivência, testemunhos, liberdade de pesquisa e de escolhas, intervenções, conhecimento e exemplo de profissional. Também pelo compartilhamento da apreciação musical, o que nos concedeu momentos gratificantes em encontros de parceria e amizade. Ao professor Claudio Boeira Garcia, pela inestimável amizade, conhecimento e exemplo de maestria. Em especial, por me acolher em sua casa desde os primeiros momentos em que estive em Ijuí. Aos professores Paulo Rudi Schneider e Darlei Dall’Agnol, pela leitura e análise qualificada desta dissertação. À Angélica Rorato, por sua excelência na função de secretária do Mestrado, sempre prestativa, inteligente e atenciosa e, para além do profissionalismo, agradeço pela amizade e carinho. Às grandes amizades e parcerias construídas nas salas de aula e fora delas, nos encontros e desencontros, conselhos, conversas, partilhas de ansiedades e alegrias, dentre tantos outros, à Marli Simionato, Sandra Nunes, Rodrigo Moreira, Rafael Lopes, Ivonei Freitas, Ricardo Correa, Rony Silva, Osmar Lottermann, Maristela Moraes, Tiago Brutti, Fernanda Macedo, Sandro Luckmann, Renato Missioneiro, Lao-Tsé, Dulcilene Melo, Mara Welter, Marcelo Sagave, Luiz Goetz, Eduardo Leal, à turma do churrasco, do barzinho e a todos aqueles que de um modo ou outro partilharam um mesmo “mundo” nesses últimos anos. Um agradecimento especial à Simone Gobi, pela amizade, incentivo e imprescindíveis leituras e correções dos escritos da dissertação. À minha família: Lu, pelo apoio e pela essencial retaguarda; César, por suportar o afastamento necessário do pai; Ícaro, pelas boas discussões acadêmicas e pelo carinho de filho; Cirlei, minha querida mãe, por tudo. Agradeço a todos pelo incentivo, apoio, compreensão e suporte. 5 RESUMO Esse estudo é resultado de pesquisa no campo da Filosofia prática e seu vínculo com a Educação. Trata-se da apresentação da proposta de uma ética universalista, cuja justificação não seja dada de forma autoritária e não se apoie em bases supraempíricas. Num primeiro momento é apresentada a proposta e sua fundamentação teórica baseada nos estudos do filósofo Ernst Tugendhat. O estudo revela uma moral baseada na justificação igualitária e recíproca. Diante do relativismo contemporâneo e a necessidade de compreender as representações éticas de nosso tempo o indivíduo pode padecer de incertezas a respeito do que deve fazer. Num segundo momento são discutidas as questões relativas à igualdade, justiça, direitos humanos e aquelas que relacionam estes temas com a ética e com a educação. A partir dessas discussões é explicitada a posição de Tugendhat a favor de uma educação voltada para a autonomia e a responsabilidade de todos os participantes diante dos demais membros da sociedade moral. É ressaltada a importância da reciprocidade, da igualdade e da justiça na construção de uma sociedade melhor. Palavras-chave: Moral. Justificação. Justiça. Tugendhat. Educação. 6 ABSTRACT This study is the result of research in the field of practical philosophy and its link with the education. It deals with presentation of a universalistic ethic whose justification is not given in an authoritarian way and not support supra-empirical bases. First is presented the proposal and its theoric foundation based on studies of the philosopher Ernst Tugendhat. It’s a moral based on an equal and reciprocal justification. In the face of contemporary relativism and the necessity to understand the ethic representations of our time the individual may suffer from the question “what should I do?” In a second time is discussed the equality, justice, human rights questions and the questions that relate this subjects to ethics and the education. From these discussions is set out the view of Tugendhat in favor of an education for autonomy and responsibility of all participants faced of the other members of a moral society. It emphasizes the importance of reciprocity, equality and justice in the organization of a better society. Key words: Moral. Justification. Justice. Tugendhat. Education. 7 QUADRO DE ABREVIATURAS1 PE - Problemas de La Ética LSE - Lições sobre Ética QEF - O que é Filosofia? EP - Ética y Política CEM - Como Devemos Entender a Moral PBL - Problemas DL - Diálogo em Letícia MC - O Livro de Manuel e Camila: Diálogos sobre Moral AR - Não Somos de Arame Rígido: Conferências Apresentadas no Brasil em 2001 NTI - Nietzsche e o Problema da Transcendência Imanente PM - O Problema da Moral FU - A Filosofia como Exercício na Universidade FAL - Lições Introdutórias à Filosofia Analítica da Linguagem PVL - El Problema de la Voluntad Libre PMA - El Problema de una Moral Autónoma AFP - Antropologia como Filosofia Primeira RPC - Réplicas IDM - El Origen de la Igualdad en el Derecho y la Moral 1 Esta lista é composta de abreviaturas das obras de Ernst Tugendhat, as quais foram adotadas ao longo do estudo. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9 1 ÉTICA A PARTIR DE TUGENDHAT ............................................................................. 12 1.1 O que é Ética e o que é Moral? ........................................................................................... 16 1.2 Normas ............................................................................................................................... 25 1.2.1 Regras da razão ................................................................................................................ 27 1.2.2 Normas sociais ................................................................................................................. 28 1.3 O uso das palavras “bom” e “mau” em contexto moral ..................................................... 31 1.4 O problema da justificação da moral .................................................................................. 36 1.5 Justiça e compaixão ............................................................................................................ 54 2 ÉTICA E EDUCAÇÃO, APROXIMAÇÕES A PARTIR DE TUGENDHAT .............. 61 2.1 Considerações de Tugendhat acerca da igualdade e da justiça .......................................... 62 2.2 A respeito dos direitos humanos......................................................................................... 71 2.3 Educação e a abordagem de Tugendhat ............................................................................. 80 2.3.1 Educação, diálogo e reflexão ........................................................................................... 82 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 90 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 96 9 INTRODUÇÃO Atualmente, a humanidade defronta-se com alterações profundas e importantes que estão influenciando a maneira como o homem se relaciona consigo mesmo e com os demais. Uma hipertrofia do individualismo, o predomínio da indústria de tecnologia e a globalização econômica combinados com a velocidade de sua expansão, têm provocado radicais mudanças no âmbito da família, na sociedade, nas organizações, na escola e em todas as esferas da vida humana. Embora estas mudanças sejam significativas, quando os indivíduos necessitam tomar decisões ou enfrentar problemas relacionados com sua vida em comum, sejam políticos, econômicos ou intersubjetivos, necessitam de referenciais éticos que não estejam limitados àqueles que se fundamentam na autoridade ou na religião. Estes devem servir como normatização das relações intersubjetivas e que tenham pretensões de universalidade para dialogar com as mais diferentes culturas. Indubitavelmente que, para o campo educacional, a apresentação da possibilidade de uma ética que tenha aspirações universalistas, sem abdicar das particularidades, é uma opção pós-metafísica que não se limita aos relativismos e pode nortear nas encruzilhadas que atingem o indivíduo. Reabre as possibilidades de garantir ao ser humano a possibilidade de intervir na construção de uma sociedade melhor, mais humana e feliz. Nesse sentido é apresentada a proposta de uma moral do respeito universal e sua fundamentação teórica baseada nos estudos do filósofo Ernst Tugendhat2. Trata-se de uma moral baseada num sistema de exigências recíprocas autonomamente justificáveis e amparada no conceito de justiça. Segundo esta concepção, o indivíduo que se colocar a pergunta: “quero eu fazer parte da comunidade moral?” para respondê-la terá que se perguntar: “Quem afinal eu quero ser? 2 Filósofo contemporâneo que será devidamente apresentado no início do primeiro capítulo deste estudo. 10 Em que reside para mim a vida e o que depende de mim de modo que eu me compreenda como pertencente à comunidade moral?” Desse momento decisionista tudo o que pode ser destacado como motivo é mostrar quanta coisa seria jogada fora junto com o pertencimento a uma comunidade moral. No que se relaciona à educação, o relativismo do “tudo pode” ou do “tanto faz” desconstrucionista, quando se limita ao momento da desconstrução, implode com as possibilidades da educação, dado seu caráter normativo, ou então a envolve na mentalidade predominantemente instrumental em um programa utilitarista. O problema da ética tem se colocado como demanda para a educação sempre que os temas que dizem respeito ao sentido humano da vida se interpõem. Dessa necessidade de adaptação ao contingente, o ser humano é conduzido a refletir os limites da demanda e dos propósitos da educação baseada num referencial teórico que leve em conta a autonomia do indivíduo dentro de uma sociedade democrática livre. Nesse sentido, a proposta da universalidade de Tugendhat ilumina perspectivas afinadas com um referencial de igualdade, justiça, laicidade e aposta numa educação voltada para a autodeterminação e a felicidade humana. Para Tugendhat, uma boa educação consiste em ficar ao lado das crianças e adolescentes enquanto crescem em responsabilidade, inspirando responsabilidade nos indivíduos “para despertar neles a compreensão do espírito da democracia”. O primeiro capítulo está orientado, inicialmente, em compreender a concepção de moral desenvolvida por Tugendhat. Segundo ele, o método da análise semântica que utiliza consiste em abordar o tema da fundamentação da filosofia moral, fazendo a distinção entre o critério de fundamentação segundo as diversas concepções de moral, como a religiosa, fundamentada em Deus; a utilitarista, fundamentada no que é útil; a kantiana, fundamentada na razão prática; etc., e a pergunta que está por detrás de cada um dos critérios em questão. Isto conduz necessariamente a ter que mostrar o sentido do que se quer dizer quando se utilizam palavras como “bom”, “dever” ou “justo”. Por fim, neste capítulo serão apresentados os principais argumentos para uma moral moderna que deve ser justificada frente a todos igualmente, de forma simétrica. No segundo capítulo são abordados os temas entendidos como essenciais para compreender as questões que estão sendo postas para a sociedade e para a educação. Nele são tratadas as questões acerca da igualdade, da justiça e dos direitos humanos, suas relações com 11 a democracia, com a ética e com a educação. Também são apresentadas algumas abordagens de Tugendhat relacionadas com seu entendimento das questões da Educação. Por fim, nas considerações finais, dentro do possível, são apresentadas as contribuições e desdobramentos sob o ponto de vista de uma moral, cujo sistema de justificação leve em conta todos de forma simetricamente igualitária. Centralizando as questões relacionadas com a Educação, esta é uma das mais relevantes enfrentadas pelo ser humano em sociedade e regida por exigências recíprocas. E, se não regidas pelas mesmas normas morais – não compartilhando as mesmas convicções morais – mantêm exigências que uns fazem aos outros e que nem sempre se tornam evidentes. Necessitam, portanto, de pontos de toque onde possam, a partir deles, estabelecer o palco para reflexões que apresentem um norte e uma retomada de rumos, saindo de uma entropia relativista. Importante esclarecer que todos os textos que originalmente foram escritos em espanhol ou editados neste idioma foram traduzidos pelo mestrando diretamente para o português. Cabe esclarecer ainda que foram adotadas abreviaturas das obras de Tugendhat, cuja relação encontra-se na lista de abreviaturas no início do estudo. No desenvolvimento desta investigação não houve a preocupação de filiação às ideias do autor estudado e nem de refutação de aspectos do seu pensamento, pois se acredita que uma investigação acadêmica possa cumprir plenamente sua função, neste caso de uma dissertação de mestrado, trazendo para o debate as posições deste autor, em especial no que se refere ao campo da ética e suas possíveis interfaces com a educação. Analisar seus limites e potencialidades cabe aos eventuais leitores. O mestrando acredita, com isso, ter realizado seu intento. 12 1 ÉTICA A PARTIR DE TUGENDHAT O capítulo que segue é uma exposição da proposta de Ernst Tugendhat com o intento de apresentar uma moral3 moderna que não se apoie em uma propriedade supraempírica do mesmo modo como a moral tradicional, ou como se poderia dizer, “as morais”, baseadas na autoridade, na religião ou na tradição. Inicialmente, Ernst Tugendhat é apresentado a partir de alguns dados biográficos, principais obras e interesses investigativos. Tugendhat, conforme Dall’Agnol (2007), é um dos mais importantes filósofos contemporâneos e o segundo filósofo alemão mais citado da atualidade (o primeiro é Jürgen Habermas). Nasceu no dia 8 de março de 1930, na cidade de Brno, na antiga Tchecoslováquia. Sua mãe é Fret Löw Beer, descendente de industriais judeus, e seu pai Fritz Tugendhat, também um industrial têxtil. Em 1938, abandonou sua mansão de família, construída pelo famoso arquiteto Mies van der Rohe, atualmente tombada como patrimônio cultural da humanidade, e emigrou para a Suíça. Em 1941, devido às crescentes ameaças do Nazismo, foi para Caracas, na Venezuela. Interessou-se muito cedo pela Filosofia após ler História da Filosofia, de Windelband e, ao ler por duas vezes com grande entusiasmo Ser e Tempo decidiu dedicar-se à mesma. Foi então para a Alemanha estudar com o próprio Heidegger. Graduou-se em Filologia Clássica na Stanford University, nos Estados Unidos, entre 1946-1949. A partir de 1949 estudou Filosofia e Línguas Clássicas na Universidade de Freiburg, onde frequentou três seminários que Heidegger ofereceu, entre 1951 e 1952. Nesta mesma universidade concluiu seu doutoramento em Filosofia, em 1956, sob a orientação de Karl Ulmer, com a dissertação TI KATA TINOS: uma investigação dos conceitos fundamentais de Aristóteles, da qual resultou o seu primeiro importante livro. Nesse período é perceptível a forte influência heideggeriana sobre seu pensamento. Tugendhat fez estudos de pós-doutoramento em Münster até 1958 quando, então, assumiu como assistente de Karl Ulmer no Departamento de Filosofia de Tübingen. Em 1965, foi professor visitante na University of Michigan em Ann Arbor, a convite de William Alston, quando passou por uma verdadeira “crise intelectual”, convertendo-se à Filosofia Analítica, impressionado pela clareza e vigor argumentativo da Filosofia Anglo-Americana. Ao voltar à 3 Tugendhat utiliza praticamente “os termos ética e moral como intercambiáveis. Existem, contudo, autores contemporâneos que fazem uma diferença entre ética e moral. Mas também neste caso é preciso ver certamente que não se trata de uma distinção necessária” (LSE, p. 33), conforme explicação a ser apresentada no item 1 deste capítulo. 13 Alemanha, terminou sua tese de livre docência em Tübingen, em 1966, sobre o conceito de verdade em Husserl e Heidegger, na qual faz fortes críticas ao conceito de verdade de Heidegger. Ainda neste ano foi professor catedrático de Filosofia em Heidelberg até 1975. Nesse período participou de movimentos políticos estudantis no final da década de 1960 e, depois, nos anos 1980, passou a interessar-se por problemas éticos e políticos (contra a instalação de mísseis americanos na Alemanha apontados para a antiga URSS e a reforma constitucional que suprimia o direito ao asilo político aos perseguidos pelo regime nazista), tornando-se um homem público. Entre 1975 e 1980, a convite de Habermas, trabalhou no Instituto Max Planck, de Starnberg, num projeto de Sociologia Jurídica sobre o desenvolvimento de formas de fundamentação moral na história do Direito Moderno. A partir de 1980 se dedicou basicamente a temas de Filosofia Prática, atuando na Universidade Livre de Berlim, onde se aposentou em 1992. Desde então tem viajado pela América Latina e pelo restante do mundo. Morou por quatro anos em Santiago do Chile, ministrando aulas em universidades brasileiras e palestrando sobre os mais diversos temas, como ética, direitos humanos, religião, etc. Em 1998 lecionou a convite do Prof. Dr. Ernildo Stein, durante um semestre, no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS e, em abril e maio de 2003, ministrou um curso sobre o Livro Azul, de Wittgenstein, no referido Programa de PósGraduação. O autor tem livros publicados pela Editora da Unijuí e esteve diversas vezes ministrando palestras nesta Universidade, dentre elas, em 2006, quando apresentou no auditório desta instituição a palestra A Antropologia como Filosofia Primeira. Tugendhat é autor de livros que tratam de problemas ligados à Filosofia Teórica (enfoque epistemológico, as filosofias da Linguagem e Analítica), como é o caso das Lições Introdutórias à Filosofia Analítica da Linguagem, e à Filosofia Prática. No que concerne a esta pesquisa, relacionada a esse gênero filosófico, não se pode designar alguma obra como mais importante, sendo que as mais conhecidas são Lições sobre Ética, Diálogo em Letícia, Não Somos de Arame Rígido e Problemas, entre outros. Tugendhat, conforme Dall’Agnol (2007, p. 12), “explicitamente abandona Heidegger e volta-se à filosofia analítica em busca de um instrumental filosófico capaz de dar conta da pergunta fundamental da filosofia tradicional que era a do ser ou, em seus termos, do que significa representar um objeto”. O referido autor também destaca que Tugendhat explicitamente afirma que o método de análise da linguagem tal como concebido segundo Wittgenstein, isto é, de descrição das regras de uso das palavras e sentenças é o “único método filosófico genuíno” capaz de clarificar e resolver todos os problemas da filosofia tradicional. Esse método de descrição de como um 14 tipo de expressão (em particular, o sujeito e o predicado de uma sentença) é usado permitiu tanto realizar o projeto de uma semântica formal [...] quanto tratar de questões sobre o agir humano fundamentado no uso de palavras éticas como “bom”, “dever”, etc. (DALL’AGNOL, 2007, p. 15). Souza (2005, p. 128) afirma em seus comentários sobre a trajetória de Tugendhat que: [...] podemos entender, assim, que Ernesto esteve inicialmente sob a influência do pensamento de Heidegger ou do horizonte filosófico determinado por ele, e, em todo caso, envolvido com questões metafisicas, para em seguida abandonar o que considerou como o “imobilismo” desse tipo de pensamento e passar (mantendo alguma influência de Gadamer) à filosofia analítica da linguagem, da qual pode ser considerado como o introdutor ou precursor na Alemanha [...]. Crítico de tantas coisas erradas e enfático defensor dos direitos humanos, creio que posso dizer que Ernesto tem uma visão de mundo essencialmente liberal, que não deixa de ser otimista com relação ao avanço social até dos países subdesenvolvidos – ao menos em relação a sua situação histórica passada. O autor supracitado também observa, reforçando o já comentado por Dall’Agnol, que a Filosofia Analítica de Tugendhat é de um estilo particularmente aberto e prático, e que possui uma bagagem “mais que substancial” da Filosofia Europeia Continental (não analítica). Sobre as suas influências teóricas informa: Influenciado por Carnap e por Wittgenstein, do qual se tornou um extraordinário conhecedor, ele entende (diferentemente do ‘primeiro Wittgenstein’, ‘positivista’) que cabe, sim, aplicar-se às “grandes perguntas”, que seguem sendo postas, e por muita gente, malgrado a alegada superficialidade de nosso tempo. [...] é, portanto, um desses filósofos analíticos mais recentes que superam em grande medida a dicotomia filosofia analítica – filosofia tradicional ou continental. Para ele, a filosofia analítica da linguagem permite um renovação da tradição filosófica clássica, promovendo uma precisão maior no seu discurso. Por outro lado, a filosofia analítica também ganha com essa aproximação, ao se orientar, no seu trabalho de aclaramento do uso da linguagem e dos conceitos, para as questões mais relevantes (SOUZA, 2005, p. 131-132). Tugendhat procura demonstrar, conforme entrevista concedida na Colômbia (HERNÁNDEZ; PINZÓN, 2007), que os problemas tradicionais podem ser melhor atacados por meio de métodos linguísticos analíticos. E quanto à diferença entre a Filosofia Continental e a Analítica, ele crê que o que caracteriza a primeira é que ela dá muita importância para a história, ao contrário da Filosofia Analítica. Também reforça a importância de estar atento aos perigos que cercam os que trabalham com a Filosofia Analítica, uma vez que se concentram em pequenos problemas e perdem um pouco da perspectiva dos grandes problemas, os quais, para ele, são a moral, os problemas políticos e sociais, e a reflexão sobre problemas como a liberdade humana e a religião. Aqui o papel da Filosofia é clarificar conceitos, pois em geral, se discute os problemas morais, políticos etc., e se usa palavras sem se dar conta de que em 15 geral elas são polivalentes, ambíguas. Tugendhat cita um exemplo, a palavra liberdade tem muitos sentidos e essa é uma tarefa que “a pessoa tem como filósofo: aclarar os diferentes sentidos” (HERNÁNDEZ; PINZÓN, 2007). Diz ele: “se a pessoa não o faz, então é puro blá, blá”. A filosofia, para Tugendhat é, conforme Souza (2005, p. 134): [...] o esclarecimento, reflexivo, de conceitos, isto é, daqueles conceitos indispensáveis à nossa compreensão do que quer que seja. Por meio do exame e clarificação de tais conceitos, a filosofia guarda uma relação com o todo – “com o todo de nossa compreensão”. Sendo assim, afirma Souza, a filosofia (sem se confundir com a linguística) trata de uma explicação conceitual do uso das palavras, mediante a utilização de um método analítico, método que, ele reconhece, tem “um caráter hermenêutico latente”. Dall’Agnol (2007, p. 15) também procura chamar a atenção de que a partir de 1979 Tugendhat voltou-se aos problemas práticos, éticos e políticos na tentativa de esclarecer o que significa justificar uma moral moderna e como defini-la. Também, que ela passa por duas fases, uma denominada por Dall’Agnol de “posição contratualista”, das Três Preleções, de 1981 e, posteriormente, reelabora em seu livro Diálogos em Letícia, de 1996, e aparece de forma acabada na conferência “Como devemos entender a Moral”, de 2002, cuja visão é a que defende até o momento – a visão “quase kantiana”. Por meio das obras de Tugendhat percebe-se que sua posição engloba e procura ultrapassar as limitações do contratualismo e do igualitarismo, posição que o autor denomina “contratualismo simétrico” (sua atual posição), no sentido de justificar universalmente “para todos” (intersubjetivamente) de forma simétrica e igualitária, amparada no conceito de justiça, o que pode ser percebido, principalmente, em suas últimas publicações. O que diferencia o contratualismo simétrico do contratualismo simples “é que neste há apenas a introdução do que é bom para x ou y, enquanto que o contratualismo simétrico apresenta uma concepção substancial daquilo que é bom para todos” (DALL’AGNOL, 2007, p. 15). É importante ressaltar aqui que, para Tugendhat (DL, p. 54) “desde uma perspectiva da justiça, é válida a sua tese do contratualismo como uma quase moral” e, que em momento oportuno no decorrer desta dissertação se trará a argumentação para tal afirmativa, sendo que para o momento entende-se que seja suficiente. 16 A ética é caracterizada como um problema que muitos contemporâneos de Tugendhat, da Filosofia, se debatem para encontrar uma melhor compreensão, ou ao menos, encontrar melhores respostas para as novas perguntas e reflexões trazidas pela técnica e pela biotecnologia. E, também, é claro, as velhas perguntas que não tiveram ainda uma resposta satisfatória e fundamentada. Eis um dos grandes problemas enfrentados atualmente: o da fundamentação da moral. Após esta breve caracterização do autor passa-se à descrição do procedimento da exposição e da metodologia. Este capítulo divide-se no item 1.1, em que é feita uma exposição da base conceitual de como têm sido interpretados os conceitos de Moral e de Ética. O item 1.2 trata da distinção entre os tipos de normas sociais. O item 1.3 é relativo à clarificação do uso das palavras “bom” e “mau”. O item 1.4 se ocupa do complexo problema da justificação da moral e possui foco central na proposta; já o item 1.5 traz uma exposição e conceituação das reflexões sobre justiça e compaixão. Sabe-se que os assuntos desse último item, mesmo não relacionados direta ou exclusivamente à moral, são temas de ordem nas discussões contemporâneas que cercam a Educação e, portanto, altamente relevantes. 1.1 O que é Ética e o que é Moral? O modo de filosofar de Tugendhat situa-se naquela denominada “Filosofia analítica da linguagem”, cuja definição nominal é “uma filosofia que procura resolver os problemas filosóficos mediante uma análise da linguagem” (FAL, p. 25). Importante levar em conta o que Rocha (2007, p. 121-122) apresenta em um de seus textos em que relata o que próprio Tugendhat, em conferência sobre Lições de Ética, ao ser indagado sobre o status metodológico dos principais conceitos utilizados no livro, teria respondido “se vocês me perguntam qual é o status metodológico disso que escrevi sobre ética há muitas resposta que não sei dar”. Rocha afirma apreender disso que, sob certo ponto de vista, pode-se dizer que esse tópico de metodologia em Filosofia Moral não é abordado de forma direta e explícita nas Lições sobre Ética. O autor supracitado faz referência ao que é evidentemente uma das exigências radicais de Tugendhat – “uma filosofia moral deve ser habitável”. Os filósofos expulsaram os motivos 17 e sentimentos da Filosofia Moral e, com isso, “deixam de fazer justiça ao que realmente somos4” (ROCHA, 2007, p. 126). A delimitação conceitual da “Moral” deve ser suficientemente ampla para que possibilite um diálogo histórico sobre as questões morais ao longo das diversas épocas e para que uma tal definição não pré-julgue as questões substantivas sobre quais normas morais são corretas. Por último, deve ser também suficientemente ampla para que possa se compreender por que em diferentes épocas se articularam distinções comparáveis (PE, p. 76). As perguntas sobre: o que é ética? Por que ética? Implicam em que não se pode contentar com uma representação qualquer ou indeterminada e, se por um instante, pressupondo uma compreensão prévia completamente indeterminada, então imediatamente se pode perguntar: por que motivo deve-se ocupar com a ética? Parece que se está diante de um modismo nos currículos escolares e mesmo na Filosofia, sendo que tempos atrás os jovens intelectuais se interessavam mais pelas ditas teorias críticas da sociedade. Ao contrário disto, para Tugendhat (LSE, p. 11) “na ética supõese uma reflexão sobre valores reduzida ao individual e ao inter-humano”. Diante destas questões o autor teme que não seja possível encontrar nada de obrigatório a menos que se referencie a tradições cristãs ou de outras religiões e, inevitavelmente, vem a pergunta: “é o ético, ou então, ao contrário, as relações de poder, que são determinantes na vida social? E, estas não determinam, por sua vez, as representações éticas de seu tempo?” (LSE, p. 11). Não é irrelevante considerar que no âmbito das relações humanas e no político se julgue constantemente de forma moral. Basta observar que o espaço ocupado pelas discussões entre amigos, familiares ou no trabalho abrange os sentimentos daqueles que têm por pressuposto juízos de cunho moral, como rancor e indignação5, sentimentos de culpa e de vergonha. Por outro lado, no âmbito político, o julgar de forma moral é uma constante e Tugendhat instiga a considerar “que aparência teria uma disputa política não conduzida pelo menos por categorias morais” (LSE, p. 12). Existem alguns exemplos de discussões atuais em diversos âmbitos que são de caráter moral: os conceitos de democracia e de direitos humanos que ocupam lugar destacado nas 4 Aqui, Rocha (2007) faz referência às semelhanças de abordagem entre Tugendhat e Iris Murdoch. Na moral, o que distingue a censura da crítica é o afeto de indignação implicitamente existente. Diferente do julgar as demais capacidades de alguém (ser bom cozinheiro, jogador de futebol), nas quais se pode falar de aplauso e crítica, não de aprovação e censura (LSE, p. 58). 5 18 atuais discussões políticas o são, mesmo que não exclusivamente; a questão da justiça social, em esfera nacional e mundial. Ao rejeitar a reivindicação “de um certo conceito de justiça, quase nem o pode fazer sem contrapor-lhe um outro conceito de justiça” (LSE, p. 12). Tugendhat chama a atenção para o fato de que o indivíduo não seja ingênuo a ponto de não se dar conta de que “as relações de poder de fato são determinantes, mas é digno de nota que elas necessitem do revestimento moral” (LSE, p. 12). Algumas discussões políticas devem ser vistas como puramente morais, relativas aos direitos de grupos particulares ou marginalizados. Algumas estão sendo postas devido aos avanços científicos e tecnológicos e, outras já estavam postas desde antigamente e ainda estão presentes, conforme Tugendhat: [...] a questão acerca de uma lei de imigração limitada ou ilimitada, a questão do asilo, os direitos dos estrangeiros, a questão sobre se e em que medida nos deve ser permitida ou proibida, a eutanásia e o aborto; os direitos dos deficientes; a questão de se também temos obrigações morais perante os animais, e quais. Acrescentam-se aqui as questões da ecologia e da nossa responsabilidade moral para com as gerações que nos sucederão. Uma nova dimensão moralmente desconcertante é a da tecnologia genética (LSE, p. 12). Cabe então perguntar se há aqui algumas razões para colocar novamente a questão sobre a ética estar sendo retomada de forma importante? É possível, então, remontar, de forma explícita ou implícita, às tradições religiosas diante destas discussões? Para Tugendhat (LSE, p. 11), “a dificuldade não é a de que estas questões, que podem ser resolvidas com normas fundadas na religião, envelheceram, mas sim a de que se deve por em dúvida a possiblidade de ainda hoje fundamentar, sobretudo religiosamente, as normas morais”. Inicialmente, esta fundamentação pressupõe que se é crente e, seria intelectualmente desonesto às respostas ligadas à religião, porque elas permitem soluções simples. Não seria condizente com a seriedade das questões e nem com a seriedade exigida pela crença religiosa. Ademais, o próprio crente não pode mais fundar suas normas morais em sua crença religiosa diante do não crente, pelo menos se leva a sério o outro que não compartilha sua crença. O indivíduo sob tais circunstâncias de relatividade histórica pode padecer de incertezas sobre o que deve fazer. Não é somente uma possibilidade como uma necessidade de recorrer à fundamentação de seus próprios juízos morais com respeito aos demais, pelo simples fato de que “a moral consiste na recíproca exigência de determinadas ações e omissões” (PE, p. 67, tradução própria). 19 O autor, em sua conferência “Como devemos entender a Moral”? (AR, p. 25), reflete sobre o fato de a palavra “moral” remeter a muitas significações, as quais não podem ser negadas dogmaticamente de modo que se entenda sobre ela. Para ele (AR, p. 25), “moral é apenas uma palavra, e essa palavra se deixa entender de diferentes modos, mas, não obstante isso, ela deve referir-se a apenas uma coisa”. E, mesmo identificando o que há de comum no fato da moral, é inegável que tal fato seja concebido de formas diferentes, o que leva a um relativismo. Pode parecer, por um lado, que [...] a moral parece ser algo já dado, de outro lado temos de poder perguntar: como devemos ou queremos entender a moral? Mas a que podemos recorrer quando assim perguntamos? Parece que, neste caso, também o dever [...] ou o que é desejado [...] são algo já dado (AR, p. 25). Retoma-se, então, o intento inicial de tornar claro uma concepção prévia de moral, ou seja, de um conceito da moral, para que em seguida possa-se tratar da questão central, que é a fundamentação da moral. Pode-se compreender a palavra “moral” de maneira diversa, e de fato ela foi compreendida de modo diferente. “A palavra moral nada tem de sagrado e nem mesmo é muito antiga” (LSE, p. 32). Tugendhat adota a seguinte concepção: Na filosofia devemos sempre ter como ponto de partida que não faz sentido discutir sobre o verdadeiro significado das palavras. O que interessa é distinguir os diversos significados possíveis de uma palavra e ter bem claro para si com que significado se quer empregá-la (LSE, p. 32). É necessário ter o cuidado para que se atinja com as palavras o que realmente é característico e disponível na compreensão humana, sendo indiferente em que termos isto se expressa nas diversas culturas. Não é, portanto, razoável, designar como morais apenas aqueles juízos considerados moralmente corretos, pois isto impediria a discussão com outros sobre os juízos morais corretos. “Precisamos definir a palavra ‘moral’ de tal maneira que possamos distinguir e comparar diversos conceitos de moral” (LSE, p. 33). 20 Chama-se a atenção para o fato de até o momento se empregar os termos “ética” e “moral” como sinônimos. No entanto, alguns autores contemporâneos fazem uma diferença entre estas duas palavras. Sobre isto Tugendhat constata que: [...] neste caso é preciso ver certamente que não se trata de uma distinção necessária. É claro que também então esperamos – ao distinguirmos ética de moral entre si, de uma ou de outra maneira – chegar a uma distinção importante, distinção que já esteja previamente dada na compreensão humana. Estas diferenças então não residem propriamente nestes termos. A pergunta sobre em que consiste em si a diferença entre ética e moral seria absurda. Ela soa como se a gente quisesse perguntar sobre a diferença entre veados e cervos. Realmente, os termos “ética” e “moral” não são particularmente apropriados para nos orientarmos (LSE, p. 33). Tugendhat (LSE) traz uma observação histórica considerada, no mínimo, curiosa, sobre a origem dessas palavras. Remontando a Aristóteles, este designara suas investigações teórico-morais (depois denominadas “éticas”) como investigações “sobre o ethos”, “sobre as propriedades do caráter”, porque estas propriedades, boas e más, virtudes e vícios, eram parte integrante essencial de suas investigações. A procedência do termo “ética”, portanto, nada tem a ver com aquilo que entendemos por “ética”. No latim o termo grego éthicos foi depois traduzido por moralis. Mores significa: usos e costumes. Isto novamente não corresponde, nem à nossa compreensão de ética, nem de moral. Além disso, ocorre aqui um erro de tradução, pois na ética aristotélica não apenas ocorre o termo éthos6 (com e longo), que significa propriedade do caráter, mas também o termo éthos (com e curto) que significa costume, e é para este segundo termo que serve a tradução latina (LSE, p. 33-34). Por consequência disto, na Filosofia escrita em latim a palavra moralis veio então a ser quase um termo técnico, que não permite mais pensar muito em costumes, mas que foi empregado exclusivamente no sentido de “moral” como se compreende hoje. Tugendhat chama a atenção, inclusive, para a forma como o termo foi utilizado por Kant da tradução para o alemão do termo sitten (costumes), em sua Metafísica dos Costumes, que nem teria pensado no sentido usual de costumes (uso), mas simplesmente por ter sido uma pretensa tradução do termo original grego para o latim mores e, com o sentido novo dado pelos 6 Fonte 1: Conforme o Houaiss, a acentuação dos termos gregos é: éthos com acento agudo para o “e” curto e, êthos com acento circunflexo para o “e” longo (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa). Nesse caso ocorreu um erro de impressão na versão brasileira do livro Lições sobre Ética. Fonte 2: “O vocábulo ethos é uma transliteração dos dois termos gregos ethos (çèïò – com eta inicial) e ethos (åèïò – com épsilon inicial). Essas duas grafias de ethos existentes no grego dão origem a duas acepções distintas dessa palavra. O ethos grafado com eta (ç) inicial designa a morada do homem e do animal (zóon) em geral. [...] origina a significação do ethos como costume [...] Por sua vez, o ethos com épsilon (å) inicial refere-se ao comportamento [...] entendido como disposição permanente para agir de acordo com os imperativos de realização do bem [...]” (VAZ, 1988, p. 11-16). 21 filósofos latinos. Atento a isso, Tugendhat (LSE, p. 34) afirma que “somente Hegel então aproveitou-se do sentido original do termo sitten (costumes) para construir, em oposição à moral kantiana, uma forma de moral [...] denominada moralidade, e que se deveria caracterizar como sendo fundada nos usos e nas tradições”. Os termos “moral” e “ética”, analisados a partir de sua origem, não levam a nenhuma conclusão. Tornaram-se termos técnicos que na tradição filosófica foram muito empregados como equivalentes. A palavra “moral”, no entanto, ainda mais em sua forma negativa imoral, foi introduzida no uso normal da linguagem das modernas línguas europeias, enquanto que “ético” não tem emprego preciso na linguagem normal. Este termo, portanto, ficou disponível para outros significados que se procurou dar a ela a partir da Filosofia. Ambos não são bem apropriados para esclarecer aquilo que se quer dizer com moral ou juízo moral. “Moral” estaria vinculada ao uso na linguagem, a um determinado emprego do grupo das palavras “ter de”/“não pode”/“deve” e do grupo de palavras “bom”/“mau”. Tugendhat resume neste parágrafo: Com isso estaria dado agora um critério para “juízos morais”, um critério bem disponível e, pelo visto, profundamente enraizado na linguagem. Todos os enunciados nos quais ocorrem, explícita ou implicitamente, com sentido gramatical absoluto o “ter de” prático, ou uma expressão valorativa (“bom” ou “mau”) expressam juízos morais neste sentido [...], pois não afirmo que não se poderia definir também de outra maneira a palavra “moral”. De fato, este emprego absoluto de “ruim” corresponde de maneira bastante exata ao nosso emprego de “imoral”: “tu não podes fazer isto”, “isto é ruim”, “isto é imoral” – tudo isto parece significar mais ou menos o mesmo (LSE, p. 36-37). “Ética”, para Tugendhat (LSE, p. 37), não pode ser definido como algo mais abrangente que a moral, pois tal questão não existe. O que para o autor é possível é definir a pergunta “como se deve viver?7” – quando a mesma não é compreendida como moral, mas, a título de prudência, referida ao próprio bem estar – como uma pergunta ética. Isto então serve bem para a pergunta “ética” dos antigos filósofos, que se referia às metas mais elevadas da vida humana (Cícero denominou seu livro correspondente a isto De finibus, sobre os fins), consequentemente, à pergunta pelo bem-estar, pela felicidade (Aristóteles: eudaimonia) (LSE, p. 38-39). 7 Referindo-se a uma formulação de Platão, segundo a qual nas indagações socráticas, trata-se da pergunta: como temos de viver (pos bioteon) (LSE, p. 37). 22 Tugendhat (LSE, p. 39) esclarece que “uma outra definição terminológica possível do termo ‘ético’ é, diferenciando-o do moral, compreendê-lo como a reflexão filosófica sobre a ‘Moral’”. É nesse sentido último que Tugendhat entende o termo que dá título ao seu livro “Lições sobre Ética” e, também, neste sentido, empregou o termo em sua obra. A modificação do conceito, portanto, de acordo com as diferentes línguas, deve ser esclarecida caso a caso, como em todos os casos análogos na Filosofia. Inicia-se, então, pela pergunta formulada antes: Como se deve entender a palavra moral? Tugendhat (PBL) entende que é necessariamente inevitável começar apresentando uma proposta e, mais tarde, se perguntar sobre como relacionar a palavra com outras maneiras de compreensão. Ele parte da maneira como se usa a palavra na etnologia8 ao investigar os hábitos de uma sociedade ou grupo étnico, ou seja, “a moral de uma sociedade consiste naquelas regularidades no comportamento de seus membros que estão embasadas na pressão social” (PBL, p. 122, tradução própria). Aqui é importante ressaltar que uma moral é o sistema de normas sociais sob as quais os indivíduos se veem ao longo da vida, distinguindo um tal sistema de normas daqueles outros sistemas normativos que constituem as regras de um jogo. O autor acrescenta que “em um jogo, o indivíduo pode decidir livremente se quer ou não participar”, não carecendo de justificação, e enfatiza que “sob uma moral se está, quer se queira ou não” (PBL, p. 122, tradução própria). A moral é carente de legitimação em contraste com o jogo, pois aquela restringe o espaço de liberdade daqueles que se consideram membros de uma comunidade moral e submetidos a ela. Tugendhat enfatiza o porquê de tal aceitação e observa que “um sistema de regras morais existe somente se aqueles que o aceitam as consideram justificadas” (PBL, p. 123, tradução própria). Para cada moral, neste sentido, há um conceito de boa pessoa, e é assim identificada quando se comporta da maneira como é a exigência recíproca dos membros da sociedade moral, exigência esta que se expressa em orações ou sentenças de dever. Para compreender o 8 Sobre isso é conveniente estudar Rocha (2007, p. 126), o qual faz a seguinte menção: “Em uma nota escrita em 1940 (Cultura e Valor) encontramos a seguinte observação de Wittgenstein (1996, p. 61): ‘Se olhamos as coisas de um ponto de vista etnológico [...], isso quer dizer que consideramos que a filosofia é etnologia? Não, apenas significa que estamos adotando uma posição totalmente exterior, de modo a sermos capazes de ver as coisas com maior objetividade’.” 23 sentido de um dever, o autor sugere que se faça a pergunta: “o que acontece quando alguém que deve agir de uma certa maneira não o faz?” (PBL, p. 123, tradução própria). No caso da moral, quando alguém não atua da maneira como é exigido reciprocamente, surge a pressão social, o que significa que a pessoa se vê exposta à indignação dos demais membros da comunidade moral. E a pessoa, ao considerar-se membro da sociedade moral, também reagirá com indignação quando outros agem assim, implicando que no seu caso pessoal ela internaliza a indignação dos outros, sentindo-se culpada. Nesta perspectiva, como afirma Tugendhat, no tipo de dever que consiste em exigências recíprocas, não se poderia entender que no caso das regras serem violadas não houvesse uma sanção. “Esta sanção consiste nos sentimentos complementares de indignação e culpa” (PBL, p. 123, tradução própria). É importante ressaltar que o autor entende que partir deste conceito de moral que ele propõe só tem sentido se não forem excluídas outras possibilidades de entender a palavra “moral”. Tugendhat apresenta um resumo de seu conceito de moral apresentado até o momento: [...] uma moral neste sentido é um sistema de exigências recíprocas que estão expressas em um tipo de sentenças de dever. A obrigação expressa nestas sentenças estão embasadas nos sentimentos de indignação e culpa. Cada sistema definido assim tem um conceito de boa pessoa. E o sistema tem que ser considerado pelos membros da comunidade como justificado. O que chamo sociedade moral está definido pelo conjunto de pessoas que aceitam estas normas, ou seja, estão dispostas aos sentimentos correspondentes e consideram as normas como justificadas (PBL, p. 123, tradução própria). Agora é possível partir para a distinção entre os diferentes sentidos que a palavra “moral” pode significar. Para Tugendhat (PM, p. 13) é necessário distinguir em particular três sentidos em que se pode entender a palavra “moral”. Num primeiro sentido significa um sistema de obrigações intersubjetivas e, assim, é particularmente óbvio que uma ação seja imoral quando transgride as normas consideradas intersubjetivamente válidas. Num segundo sentido significa comportamento altruísta. Tugendhat (PM, p. 13-14) sugere que esses dois conceitos iniciais sejam denominados de moral “m1” e “m2”, e que está claro que estes “dois conceitos coincidem somente em parte”, o que é demonstrado da seguinte forma: A maioria dos sistemas normativos morais contém só, parcialmente, exigências altruístas, e, por outro lado, existem ações altruístas que não são normativas, como, 24 por exemplo, todas as ações altruístas de outros animais, as quais não têm uma referência normativa. Essa distinção entre m1 e m2 é importante, tanto na discussão da sociobiologia como também para distinguir diferentes motivos de ações humanas. Evidentemente, faz uma grande diferença se uma ação altruísta é condicionada quimicamente ou pelo instinto ou se, como entre os homens, é uma coisa livre e funciona por normas ou por simpatia ou compaixão. Não tem sentido lutar por, se a moral humana é fundada sobre normas, ou [...] sobre a compaixão9, porque são dois conceitos diferentes de moral. [...] veremos que podem combinar-se, mas, para isso, é importante distingui-los [...] como dois conceitos diferentes (PM, p. 14). Para Tugendhat (PM, p. 14), existe um terceiro conceito fundamental, o qual ele denomina “m3” e, que deve ser distinguido dos outros dois já citados, portanto, m3 significa qualquer coisa que uma pessoa que crê dever fazer, como deve viver. “A palavra dever é ambígua, porque pode ter o sentido intersubjetivo de m1, mas pode também simplesmente ter o sentido da pergunta: como é para mim bom viver?, e, neste segundo caso, a palavra dever não tem o sentido de uma obrigação”. Nota-se aqui que este conceito m3, mais geral, trata-se da reflexão filosófica sobre a “moral”, a pergunta aristotélica pelo bem-estar, ou seja, corresponde à definição do termo “ética”. A partir de agora, o conceito que interessa é o m1, e será como se entende a palavra “moral” neste sentido. Como se deve entender a moral neste sentido de m1 equivale a perguntar como se deve entender as palavras dever e ter que, quando usadas moralmente. Tugendhat (PM, p. 15) continua tomando como ponto de partida o sentido em que se usa a moral na etnologia, ou seja, sempre que se pergunta em que consiste a moral de uma sociedade e se diz que ela consiste naquelas regularidades do comportamento que se baseiam na pressão social. Nesse sentido, “uma moral é um sistema de exigências recíprocas” (PM, p. 15). Tugendhat discorda de qualquer concepção de obrigação que venha a entender a obrigação moral sem reciprocidade e que admita que o ter que tenha um sentido absoluto ou fundamente-se em racionalidade. Para ele (PM, p. 15), as “sociedades humanas não podem sobreviver, exceto num sistema de obrigações recíprocas, diferentemente da situação em outras espécies, onde o comportamento altruísta é determinado geneticamente e funciona por instinto”. Destaca-se a consideração de Tugendhat sobre isso quando afirma: 9 Como a defendida por Schopenhauer (PM, p. 14; LSE, p. 177-196). 25 O que nos homens é determinado geneticamente é que eles têm a capacidade de aprender normas. Tanto para o indivíduo como para a sociedade, isso significa uma maior liberdade e flexibilidade, os sistemas de normas podem mudar-se historicamente segundo as condições do meio social. Na evolução biológica isso significa uma vantagem (PM, p. 15). Não há outra maneira de entender esses sistemas normativos a não ser como sistemas de sanção recíproca, ou seja, isso é o que se quer dizer com pressão social – a reação com um afeto negativo quando alguém transgride as normas. Tugendhat (LSE, p. 45) os define como a maneira como aquele que não age conforme uma norma social sofre uma sanção social. 1.2 Normas De posse de um conceito claro de como se pode entender a moral a fim de dialogar com os diversos modos de emprego do conceito, passa-se a tentar compreender “um juízo moral” e “por uma moral”. A pergunta é: como estes juízos devem ser compreendidos? Assim como as palavras “ética” e “moral”, faz-se necessário agora aclarar a compreensão do emprego absoluto dos termos “ter de”, “deve”, “não pode”, bem como do emprego absoluto de “bom” e “ruim”. Está claro, no entanto, que não se dispõe de um significado dos termos nesta maneira de emprego. Com efeito, Tugendhat (LSE, p. 39) afirma que isso ocorre de modo semelhante em todas as palavras filosoficamente importantes. O autor inicialmente explica o emprego incondicional de “ter de” (“não pode”, “deve”) e, para isso, se faz necessário relacionar este “ter de” com os outros modos de emprego deste grupo de palavras e deles apresentar a diferenciação. Tugendhat chama a atenção para o fato de que o esclarecimento de “ter de” ou “deve”, termos contidos nos juízos morais, seja idêntico com o caráter particular de obrigação das normas morais. O que o deixa perplexo está relacionado ao fato de o tema ser negligenciado pela tradição filosófica e contemporânea, conforme segue: Que a moral tem a ver com obrigações específicas, de alguma forma absolutas, isto já sempre foi visto; mas em que exatamente consiste este caráter de obrigação, sobre isto encontramos pouco na tradição filosófica, e, por assim dizer, nada, na ética contemporânea. É estranha esta atitude de reserva da reflexão filosófica face ao caráter do dever; pois, como pode-se tematizar algo na moral, quando não se sabe o que é o moral, e quando ao menos uma parte disto está claramente contida no caráter da obrigação que se expressa no “ter de” [...] (LSE, p. 40). 26 Normas, em termos muito gerais, podem ser entendidas como indicações gerais de ação formuladas em proposições. Diferem das regras de ação que só são reconhecíveis pelo fato de que determinadas ações (por exemplo: passos de dança ou sequências de sons) são valoradas como corretas ou incorretas. Conforme Tugendhat (PE, p. 83), o obrar regido por normas é consequência de um tipo de conduta regulamentada e que deve distinguir-se da conduta meramente conforme as regras. Uma indicação de ação formulada em uma proposição pode ser compreendida como um imperativo geral. Em filosofia costuma-se qualificar com frequência as normas como proposições de dever, porém, “dever” é a palavra normativa débil; a palavra que utilizamos normalmente no discurso normativo da vida real é a palavra normativa forte “ter que” (ou, por negação, “não ter que” ou “não poder”). É constitutivo de todo agir normativo e, em geral, de todo obrar regulamentado, que é avaliado como correto ou incorreto com relação a algo e, em cada caso, segundo aquele em relação ao qual é criticado, se distingue assim o sentido do “deve” (ou “tem que”). O maior perigo de confusão que ameaça a filosofia moral consiste em deixar em estado nebuloso o sentido de “dever” (PE, p. 83-84, tradução própria). Uma regra ou norma sempre é apresentada de acordo com uma maneira de agir, em sentido relativo ou absoluto. Tugendhat esclarece a distinção de regras ou leis práticas de teóricas da seguinte forma: Regras e leis teóricas (por exemplo, “é uma lei que o vidro tem de cair quando tu o soltas”) são construídas a partir de regularidades observadas; falamos, inversamente, no prático, que é preciso seguir a regra; na medida que a gente não o fizer, pode ser criticado em relação a ela. Somente as regras práticas podemos, com sentido, também designar como normas. Frequentemente a palavra “norma” é definida mais restritamente; eu, no entanto, quero empregar como sinônimo de “regra prática” (LSE, p. 41, grifo nosso). Cabe agora distinguir os diversos tipos de regras práticas (sentenças práticas “ter de”). Para Tugendhat (LSE, p. 42) são particularmente importantes aquelas regras que ele designa como da razão e aquelas que designa como normas sociais. Além desses dois grandes grupos, há ainda que distinguir regras de jogo. É importante destacar que essa divisão não tem pretensão de ser completa, mas é suficiente para os objetivos propostos. Note-se que ficam de fora as “regras linguísticas”, por exemplo. 27 1.2.1 Regras da razão Começa-se pelas regras da razão e, para tal, toma-se a explicação tal e qual foi escrita no livro Lições de Ética: Uma norma de razão eu quero definir de tal maneira, que ela seja uma regra que pode ser introduzida, seja com as palavras “é razoável ...” seja com a expressão “é bom (ou: o melhor)...”. Por exemplo, “seria razoável (ou bom) partir agora, se tu quiseres alcançar o último trem” ou “seria razoável (ou bom – bom pra ti) se parasses de fumar”. No primeiro exemplo uma ação é vista como praticamente necessária para alcançar uma meta estabelecida (neste caso: pegar o último trem); no segundo exemplo o ponto de referência é o bem-estar da pessoa (LSE, p. 42). Em ambos os casos pode-se dizer que, quando a pessoa não age conforme o sentido do “deve”/“tem de” agir, estaria então agindo irracionalmente. Por esta razão parece ter sentido designar este tipo de regras de ação como regras de razão. Daí pode-se deduzir, ao mesmo tempo, uma máxima de como geralmente se deve perguntar pelo sentido de uma respectiva necessidade prática. Visto que a expressão “tem de”, em seu uso prático, poderia primeiro parecer propriamente inconcebível em seu significado, no entanto, ao reduzi-la agora ao que acontece quando a pessoa não age assim, tem-se então uma sentença que se refere a algo empiricamente disponível. Tugendhat (LSE, p. 42) enfatiza que se pode agora, ao mesmo tempo, “antecipar que a cada sentença ‘tem de’ pertencer uma sanção, algo que seria negativo para aquele que age, caso ele não agisse assim”. Para ele não tem sentido falar de uma necessidade prática (do “ter de” ou do “deve”), a menos que se tenha por pressuposto em sua base esta sanção, neste sentido amplo. Por consequência disto pode-se esperar que o “ter de” das normas morais, gramaticalmente absolutos, é relativo no sentido de ser “relativo a uma sanção”. Para Kant, as regras da razão são denominadas imperativos. O primeiro, denominado imperativo hipotético, está relacionado com o exemplo (vide acima) em que uma ação é vista como praticamente necessária para alcançar a meta estabelecida; e, o segundo, imperativo assertórico, com o exemplo relativo ao ponto de referência situado no bem-estar da pessoa. Kant pensou em distinguir destes dois tipos um terceiro imperativo de normas da razão, os assim denominados categóricos. A tese era que as normas morais fossem imperativos categóricos. 28 Tugendhat considera uma contradição de Kant, que justifica: Entende-se por imperativo categórico uma regra da razão sem ponto de referência; seria então racional fazer algo, não com referência a um determinado objetivo e também não em vista do bem-estar de quem age (ou faz) ou de um outro ser, mas em si mesmo. Kant aproveita-se nisto do fato de normas morais poderem ser formuladas como juízos de valor absolutos (“é bom/mau fazer x”), e assim pensa em poder reformular estes, de maneira bem análoga aos imperativos hipotéticos e assertóricos: “É racional/irracional fazer x” (LSE, p. 43). A contradição a que Tugendhat (LSE, p. 43) se refere é o fato de que, para a compreensão normal, aquele que se comporta de maneira imoral também é irracional. Além dessa, isto também parece contradizer o sentido de racionalidade em geral, designar certas ações como em e por si racionais, sendo indiferente se isto então ainda é compreendido como moral. O ser humano é irracional na medida em que é inconsistente em seus pensamentos e metas, ou quando não pode fundamentar; é, portanto, praticamente irracional quando é inconsistente em suas metas ou quando não pode justificar suas ações com relação as suas metas. “Não é possível ver o que deve ser uma ação que seja em si e por si racional”, para Tugendhat, esta maneira de falar parece um contrassenso10. “Este conceito de razão, que não se orienta mais pelo sentido comum de racionalidade, seria então uma invenção filosófica”, afirma Tugendhat (LSE, p. 44), denominando isto de razão com maiúsculas. Em segundo lugar, o que então também estaria ganho, se realmente se mostrasse que a moral seria em e por si racional? O filósofo afirma que os adeptos desta concepção acreditam, desta maneira, ter a moral comprovada e, particularmente, bem fundamentada. Pergunta-se: seria isso num sentido prático? A irracionalidade seria (nesse sentido) uma sanção? A abordagem de Tugendhat considera como já provado definitivamente que este é um beco sem saída (LSE, p. 45). 1.2.2 Normas sociais Volta-se agora àquelas regras práticas que Tugendhat chama de “normas sociais”, cujo termo ele define do seguinte modo: 10 Tugendhat discute à exaustão essa questão e as contraposições que poderiam ser feitas a suas afirmativas na sexta e na sétima lições de seu livro Lições sobre ética (LSE). 29 [...] aquele que não age conforme uma norma social sofre uma sanção social. Contra a distinção de normas sociais e normas da razão pode-se objetar que aquele que – mediante uma sanção social – age conforme uma determinada regra também tem um determinado objetivo (negativo), e conquanto estas normas sejam, por sua vez, regras hipotéticas da razão. Isto é correto, mas há aspectos complementares tão importantes ligados ao fato de que o objetivo a ser evitado é uma sanção, que faz sentido distingui-las como uma espécie própria de regras. Regras de jogo também podem ser compreendidas formalmente como imperativos hipotéticos (LSE, p. 45). Tugendhat distingue três tipos de normas sociais. O primeiro tipo deve ser compreendido como o mais simples: são as normas do direito penal, cuja sanção é um castigo externo estabelecido no interior de uma jurisdição. O critério para que exista uma norma deste tipo e, por consequência, exista certa lei em um país, é que ações do tipo especificado no critério são castigadas. Tugendhat (LSE, p. 45-46) distingue das normas legais aquelas sociais, cuja sanção consiste numa pressão social difusa, pois as normas morais são hoje de fato definidas em grande parte nas ciências sociais (social pressure), enquanto que filósofos costumam passar simplesmente adiante nesta concepção. Ao comentar sobre isto, ele afirma que tem a ver com o fato da ética filosófica ainda não ter compreendido até aqui a importância da problemática do conceito formal de uma moralidade (ou, no plural, moralidades). Eis um argumento favorável à concepção sociológica e que é significativo que ela dê uma resposta (ainda que não satisfatória) à pergunta: como deve ser compreendido o dever específico em juízos morais? Nesse sentido, Tugendhat aponta que reside aí a razão decisiva, porque não basta considerar como incluído nos imperativos hipotéticos; não se atingiria, desta maneira, o específico da sanção social. O ponto fraco importante da concepção sociológica indiferenciada é a não distinção entre convenções e normas morais, e que até podem estar justificadas no fato de algumas culturas não fazerem tal distinção. Para as culturas próximas de nós, no entanto, a distinção é dada tanto entre as regras convencionais e morais, quanto entre essas duas de um lado e, as normas legais, de outro. Normas do direito penal podem ser julgadas moralmente boas e ruins, no entanto, as normas jurídicas são independentes de tal julgamento. A diferença entre o convencional e o moral se dá, por exemplo, no fato de alguém se apresentar nu diante de um auditório. Além de as pessoas acharem estranho também veem o 30 fato como inadequado. Pode-se perguntar: por que reagem dessa maneira? e se poderia ter como resposta: “isto não se faz” ou “conosco, nesta cultura, isto não é costume”. Já no caso de uma atitude que humilhe alguém, diriam: “isto é mau”. Tugendhat apresenta uma explicação desta distinção: Numa convenção social a rejeição de uma conduta pelo grupo é a última instância. Que entre nós não se age desta maneira (isto é, não se deve, não se pode agir assim), isto simplesmente está fundamentado no fato desta conduta ser rejeitada por nós. Esta rejeição já é a fundamentação, e não tem a pretensão de, por sua vez, ainda ser fundamentada. A rejeição na infração de uma norma moral, ao contrário, fundamenta-se obviamente, por sua vez, no fato de acharmos mau um modo semelhante de agir (LSE, p. 47). O convencional tem relação com o moral no limite em que implica um “ter de” absoluto. Esse caráter absoluto, no entanto, será retido ao se relativizar sua pretensão à rejeição de determinados grupos, na afirmação “nós rejeitamos isto” (somente em sua jurisdição). Na medida em que o “ter de” prático, como tal não é pensável sem sanção, já se pode afirmar que na moral a forma gramaticalmente absoluta está contida na sanção, um ponto de vista relativizador. A análise do sentido definido que tem o “ter de”, gramaticalmente absoluto, requer agora, por si mesmo, também a explicação do sentido definido do emprego gramaticalmente absoluto do outro grupo de palavras – “bom” e “mau” –, e é o que segue. Antes de seguir em frente, porém, são estabelecidas de forma sucinta, as regras de jogo, que também estão incluídas nas hipóteses levantadas. E que necessitam de uma diferenciação em relação às regras da razão e das normas sociais. As sentenças de “ter de” que se referem a regras de jogo, distinguem-se essencialmente das normas de razão devido ao fato de que se pode desejar jogar, por exemplo, xadrez e mover as peças da maneira como se quiser, diferentemente das regras oficiais. Não se pode dizer, no entanto, que isto é irracional apesar de contradizer as regras do jogo. Até se poderia imaginar outro jogo, ou o mesmo jogo, sob outras regras, mas não seria mais o jogo de xadrez tal e qual como é conhecido por suas regras. E, portanto, se diria àquele que deseja jogar desta forma diferente que “assim tu não podes”, “por que não?”, “porque então tu não jogas este jogo; este jogo é definido por estas regras, estes movimentos possíveis”. 31 O objetivo do autor é, a partir da concepção da palavra “moral” apresentada até o momento, encontrar uma justificação frente a todos da moral autônoma e, que seja dada reciprocamente de forma universalista. O tema da justificação será tratado mais tarde no item 1.4, ainda neste estudo. 1.3 O uso das palavras “bom” e “mau” em contexto moral Inicia-se com o que se denomina “juízo de valor” e, portanto, pela palavra “bom”. Podese, inicialmente, pensar no uso desta palavra em contexto explicitamente extramoral. A palavra raramente ocorre como predicado simples, ao se dizer pura e simplesmente que algo é “bom” ou “ruim”. Pode-se, juntamente com Tugendhat, afirmar antes de tudo que, de um modo geral, ao empregar a palavra “bom”, de algum modo é dado a entender que se está a favor. “A palavra ‘bom’ já foi denominada uma ‘palavra pró’” (LSE, p. 48). Também, se entende de forma generalizada que esta palavra, em quase todos os seus empregos, implica uma pretensão objetiva, universalmente válida. É o caso quando se diz “vai-me bem”, isto é, “vou bem”. Ainda que pareça relativo, é somente em relação a que indica [a] quem vai bem, mas o juízo permanece intacto. Quando se pergunta se algo como uma planta “vai bem?”, os sentimentos não desempenham papel algum. Caso a pergunta se dirija a um ser humano, no entanto, depende (ainda que não exclusivamente) em boa parte do fato de ele se sentir bem, ou seja, como está seu estado emocional. É algo dado objetivamente e, portanto, sobre o que se pode julgar correta ou incorretamente. Também tem seu uso quando se diz que alguma coisa é boa para algo ou para alguém: “lhe fará bem casar-se”, “seria bom um pouco de adubo para as flores”. Tugendhat (PE, p. 77) ressalta que significa o mesmo que “conveniente” e “ruim”, ou mesmo que “prejudicial”. Este uso da palavra “bom” está essencialmente ligado ao uso adverbial de “bom”, no qual se diz de algo que isso “lhe faz bem”. É conveniente não aquilo que propicia uma finalidade qualquer de alguém, mas o seu próprio bem-estar. A exceção de emprego sem pretensão objetiva da palavra “bom” se dá em dois casos, como afirma Tugendhat: 32 [...] em primeiro lugar, quando dizemos “agrada-me”; aqui a palavra “bom” está inserida em um contexto linguístico subjetivo; em segundo lugar, especialmente quando usamos a palavra isoladamente como resposta a um convite. Alguém me diz, por exemplo: “Vamos hoje à noite ao cinema”, e respondo “está bem”. Neste emprego isolado, a palavra é simplesmente entendida como a expressão “com prazer” ou como o “sim”, entendido em sentido prático, e expressa apenas uma atitude pró-subjetiva: “sou a favor”. Para a negação não empregamos neste caso nenhuma palavra análoga (“mau”), mas dizemos simplesmente “não” (LSE, p. 49). No primeiro caso é indicada de forma expressa a referência subjetiva e, no segundo, ela constitui o contexto. Não se trata de uma situação objetiva que se possa discutir se o julgamento é correto ou incorreto. Tugendhat (LSE, p. 49) enfatiza que de forma complementar, a palavra é entendida objetivamente tanto nos empregos que expressam normas racionais (“é bom...” = “é racional...”), como em suas distintas aplicações atributivas. Leva-se em conta, ainda, outro ângulo de todos os usos de “bom”, mesmo os subjetivos. Quando se fala de “bom”, está se confrontando uma escolha, e quase sempre que se está frente a uma escolha, não se trata de uma resposta do tipo “sim-ou-não”, mas de uma escala. Do mesmo modo que se mede por uma escala o grau ou nível de objetos dispostos, sendo um maior outro menor, mais longo ou mais curto, também se pode ordenar em situações de escolha as possibilidades, segundo uma escala de “melhor” e “pior”, ao que Tugendhat sugere chamar de “escala de preferência”. “Quando a palavra ‘bom’ é empregada objetivamente, na escala de preferenciabilidade: o melhor é o que se deve preferir, o que é preferido de modo fundamentado” (LSE, p. 50). Excelência já implica objetividade, mas se pode dar ênfase por meio de palavras precisas a tal objetividade, dizendo que “bom” é uma palavra para a excelência objetiva, ou seja, excelência dos propósitos. Tugendhat (LSE, p. 50) explica que [...] por excelência objetiva deve ser entendido que o designado como melhor não é apenas de fato preferido (como quando diante da pergunta se quero ir ao cinema hoje à noite, respondo “melhor amanhã” – aqui “melhor” significa o mesmo que “gostaria mais”), mas que é digno de preferência, que há fundamentos objetivos para preferi-lo. Nas Três Preleções que fazem parte do livro Problemas de la Ética, Tugendhat faz a distinção entre expressões de preferência11 subjetiva e objetiva, como segue: 11 Preferência, aqui, no sentido de escolha. 33 Quando digo “eu gosto desta faca”, expresso uma preferência subjetiva. É característico das expressões de preferência subjetiva que se tem de designar um sujeito, que é quem prefere. Quando, ao contrário, dizemos “essa faca é boa” ou “melhor que aquele”, não se apresenta nenhum sujeito de sua preferência. O caráter preferencial parece referir-se ao objeto enquanto tal. Como nós entendemos isso? Por meio de que se compõe uma característica de preferência objetiva? Uma preferência é objetiva quando não é o sentimento de uma pessoa o que decide sobre a preferência, mas, por assim dizer, a mesma coisa é a que reclama que seja preferida, com o que se postula a preferência para todas as pessoas igualmente. Na maioria dos casos isso assume um modo no qual a preferência pode ser fundamentada. Com os motivos se justificam as expressões valorativas e, assim, a preferência (PE, p. 78, tradução própria). Do mesmo modo que Kant, deve-se dizer que fundamentos objetivos são sempre racionais. Depõe em favor desta concepção o fato de que seguir pontos de vista, considerados como objetivamente fundamentados, constitui, segundo o seu sentido, o que se entende por agir racional. Tugendhat (LSE, p. 51) chama a atenção para que o emprego de modo absoluto no sentido de uma fundamentação racional absoluta, conforme Kant, seja passível de fundamentação de uma ação, não somente de modo relativo a alguma outra coisa. O que fica claro é que, o que aqui deve ser fundamentado é algo absolutamente digno de preferência, ou seja, relativo a um querer. Os empregos atributivos de “bom” já apontam nesta direção: No caso do emprego atributivo, trata-se sempre de ordenar objetos a que um predicado se aplica em uma escala de “melhor” e “pior”, de tal modo que, se alguém tem um X a escolher, preferirá baseado em fundamentos objetivos, o X melhor frente ao pior. Poderá, naturalmente, preferir b, embora julgue a melhor, mas então não prefere baseando em fundamentos objetivos (LSE, p. 51, grifos do autor). De acordo com Tugendhat, na tradição aristotélica é possível distinguir dois usos para “excelência”: Primeiro, o emprego instrumental, onde julgamos a excelência de um objeto que é útil para algo, isto é, que tem uma função, como um relógio. Em segundo, a excelência técnica, com o que se tem em mira o sentido grego antigo de “técnico”, de técnica, portanto, no sentido de uma arte, e aqui se trata de excelências humanas, como a de um esquiador ou de um músico. Excelência esta que é constatada através de um concurso. No primeiro caso só podemos ordenar inequivocamente em uma escala de excelência se a perspectiva for fixada. Porém, em ambos os aspectos, a questão de como se pesa a excelência das diferentes perspectivas, acrescenta-se um aspecto subjetivo irredutível [seja na qualidade do relógio ou, na avalição da execução de músico ao violino, ou seja, numa escala de quem/qual é o melhor] (LSE, p. 51). O mesmo ocorre no sentido do julgamento estético kantiano, de igualdade do subjetivo, do “tomar como agradável” no preferir. Atente-se para o fato de que “não 34 significava para Kant que todos julgam igualmente no domínio estético, mas que o que julga sustenta a pretensão de que todos deveriam julgar igualmente” (LSE, p. 52). Este “deveriam”, entende Tugendhat, não pode ser apoiado em fundamentos, o que significa para Kant que todos têm uma receptividade, igual em princípio, para o esteticamente satisfatório. “Este modo de explicar uma igualdade no juízo corresponde aproximadamente ao que disse antes quanto ao julgamento das excelências humanas: o que dá o padrão é o que os experimentados preferem” (LSE, p. 52). O autor (PE, p. 77) afirma que, para seus propósitos, não é preciso mais explicações detalhadas das subclasses, pois as mais importantes são aquelas nas quais se trata do grau de idoneidade de algo na realização de sua função característica (como no caso de uma boa faca e de um bom jogador de futebol). Também as que podem designar-se como de uso estético (como com relação a um bom vinho e uma boa peça musical). Aonde se chega com estes casos de aclaração geral dos sentidos da palavra “bom”? Em todos estes casos, “bom” parece referir-se a uma eleição (escolha) e uma preferência. O comparativo “melhor” parece ter prioridade com relação ao adjetivo positivo “bom”. É um caso semelhante de adjetivos como “longo” e “quente”. Sempre se trata de coisas que se ordena em uma escala. Algo é mais longo que outra coisa quando é maior na escala de comprimento, e algo é “melhor” que outra coisa quando está mais elevado na escala de preferência, e é bom quando está bastante elevado nesta escala ou acima da média. O essencial, afirma Tugendhat, é que parece destacar-se uma significação central da palavra “bom” que esta palavra tem (não em todos) em muitas de suas formas de uso. “Como resultado deste significado central, chamamos de ‘bom’ a algo, quando acreditamos poder fundamentar que é o preferível. Esta significação central corresponde assim, sempre a um tipo de enunciado de dever, e isto quer dizer uma norma” (LSE, p. 78-79). Dever, aqui, no sentido exato de “seria irracional não preferi-lo”, o que é valido para todos os casos citados, exceto para os de uso estético. Tugendhat acrescenta: No caso em que “bom” se utiliza atributivamente e se entende de modo funcional, entendemos por “bom” que, quando se quer escolher algo desta categoria, por exemplo, uma faca [“boa”], seria irracional não escolher esta. No modo de uso hipotético, dizemos explicitamente: “se se quer alcançar X, é bom...” – isto é, “se deve”, ou seja, “é racional” – escolher Y. Algo similar acontece quando se considera algo bom para alguém. Se supõe, então, que seria irracional que essa pessoa não o escolhesse. Em todos estes casos, com o uso da palavra “bom”, se pretende que existam razões para a escolha [preferência] (LSE, p. 79). 35 No presente contexto, Tugendhat (LSE, p. 79) deixa em aberto a questão do que consiste a fundamentação em cada um dos diferentes casos, até onde chega, e só afirma, dogmaticamente, que acredita, em primeiro lugar, “que a fundamentação não é nunca perfeita, que sempre permanece um pouco de subjetividade” e, em segundo lugar, “alcance até onde alcançar a fundamentação, sempre pode ser reduzida a expressões empíricas”. Tugendhat (LSE, p. 79) enfatiza que se deve lembrar que todo enunciado valorativo deste tipo, no qual o valor de algo exprime uma pretensa fundamentação, se pode traduzir em um enunciado normativo, um correspondente enunciado de dever. Para diferenciar uma norma de outras, ela deve estar relacionada com as “normas de razão” ou “normas racionais”, tratadas anteriormente, pois tem o sentido descrito: “se não agir assim, ages irracionalmente”. Em réplica a uma crítica realizada por Adriano Naves de Brito, em artigo publicado no livro Verdade e Respeito (DALL’AGNOL, 2007, p. 181-214), aproveita-se um esclarecimento bastante útil do assunto que se acaba de abordar e, para ilustrar, segue: Ele [Adriano] diz que “há duas maneiras de se tratar a questão moral: uma descritiva e outra normativa” (p. 183) e que eu “transito inadvertidamente entre” os dois “territórios” do naturalismo humano e do transcendentalismo kantiano (p. 189). A verdade, na minha maneira de vê-la, é a seguinte: em todos os usos da palavra “bom” – moral, estético, prudencial, técnico, instrumental – a tarefa do filósofo consiste, em primeiro lugar, em descrever em que consiste cada um destes usos: em nenhum caso se trata de uma mera “preferência subjetiva” (que se expressaria nas palavras “gosto de”), pois a palavra “bom” sempre remete a um sentido “objetivo” (de “justificação”), ainda quando este só consista numa concordância intersubjetiva. Em todos os casos de “bom”, a descrição consiste em esclarecer o tipo normativo em questão, e em alguns casos, notadamente na moral, o filósofo terá, em segundo lugar, que tomar posição e se perguntar, na primeira pessoa, quais as opiniões morais que ele considera ser, com efeito, justificadas. Na moral, por conseguinte, a tarefa descritiva leva por si mesma a uma tarefa normativa. Isso significa que as preferências, que num sentido amplo são sempre subjetivas, distinguem-se em simplesmente subjetivas (sensitivas), onde uma justificação não faz sentido nem se pretende, e naquelas que têm uma pretensão de justificação. Só no caso destas últimas usamos a palavra “bom” [...]. Mas o bom sempre permanece no “círculo do querer” [...]. Em nenhum caso, o que é bom é “transcendente”. [...] Brito pensa que falar de “justificação” por si só leva ao transcendentalismo. Como, então, entender a deliberação e a justificação que tem a ver com (1) os melhores meios para um fim, (2) com o bem prudencial, (3), no caso de asserções sobre fatos, com a verdade? [...] Creio que um dos erros que Brito está fazendo consiste em pensar que a minha insistência na deliberação significasse que nós humanos estivéssemos o tempo todo deliberando e justificando. Não, a distinção com as outras espécies consiste na possibilidade de deliberar, e isso significa na moral que cada um pode se perguntar se as normas do grupo são boas para ele12 (RPC, p. 409-410). 12 Cf. Aristóteles, Política, 1253a, p. 14. 36 Não sem demora, é importante ressaltar que, para o autor, “bom é o que é bom em igual medida para todos” e “somente então todos podem consentir com igual autonomia em um conceito comum de bom” (PBL, p. 130, tradução própria). No próximo item que trata da justificação é explicitado como o autor demonstra essa sua concepção ao discutir com outras formas de negociação do acordo moral. 1.4 O problema da justificação da moral A partir deste ponto apresenta-se a discussão fundamental da proposta de uma “moral”, ou seja, a questão da justificação. Isso permitirá notar as diferenças e similaridades entre as diferentes formas e propostas de uma moral e, dessa maneira, fundamentar os argumentos que favorecem ou não a normatização. A partir daí, esclarecer como pode se dar uma moral que não esteja legitimada na força, poder e autoridade. O motivo principal do aclaramento dos conceitos apresentados nos itens anteriores, dos significados de palavras como moral, ética, bom, deve, melhor, pior, etc., se dá na justificação, na qual elas passarão a ter relevância, ou seja, elas adquirem significado enquanto fundamentação. No ser humano, diferentemente dos outros animais, o que está determinado geneticamente é que ele tem a capacidade de aprender normas, significando uma maior liberdade e flexibilidade tanto ao indivíduo como à sociedade, permitindo que historicamente os sistemas de normas possam mudar segundo as condições do meio social. Os sistemas normativos não podem ser entendidos senão como sistemas de sanção recíproca, ou seja, de pressão social. A reação com afeto negativo quando alguém transgride a norma (indignação13) é sentida pelo transgressor14, e antecipa a indignação dos outros. O transgressor passa a sentir culpa ou, em outras palavras, indigna-se consigo mesmo. Isso ocorre devido ao fato de que é o afeto de qualquer pessoa da sociedade para com qualquer outra que as move. Essas normas são internalizadas, e são chamadas consciência. “O conjunto de indignação e sentimento de culpa constitui”, conforme Tugendhat (PM, p. 16), “o que é sanção [afetiva] em relação às normas morais”. A justificativa para uma sanção afetiva na concepção de Tugendhat é, conforme seu ponto de vista: 13 A indignação é uma tendência à excomunhão (AR, p. 26). “Caso não se veja como marginal ao grupo, mas sim como membro dessa comunidade moral (isto é, ele ‘aceita’ suas normas)” (AR, p. 26-27). 14 37 Um tipo de dever ou obrigação só se pode entender, em se podendo dizer o que é o que vai suceder, se não se faz o que se deve fazer, e isso é, no caso especial da moral, que os outros e a própria pessoa tem estes afetos (PM, p. 16). Como a sanção é recíproca, se faz necessário um conceito de pessoa boa e, para Tugendhat (PM), moralmente bom é o integrante de uma sociedade moral, quando ele se comporta como os demais integrantes exigem mutuamente uns dos outros. Não há a concepção de “bom” com um emprego gramaticalmente absoluto, “mas que este remete a um emprego atributivo preeminente em que se diz que alguém é bom não como violinista ou cozinheiro, mas como homem ou membro da comunidade, como parceiro social ou parceiro cooperador” (LSE, p. 55). Segundo Tugendhat (LSE, p. 57), “normas morais de uma sociedade são exatamente aquelas que fixam tais padrões15, isto é, que definem o que significa ser um bom ente cooperador”, e nos juízos emitidos e onde se afirma que pessoas e ações são boas ou más, “julgamos as pessoas não relativamente a capacidades especiais [cozinheiro, violinista, etc.], mas com respeito a esta capacidade central”. Conectam-se, assim, os conceitos de louvor e repreensão. Louvor, quando o comportamento é digno de aprovação pelos demais integrantes e, funcionando como uma recompensa. Repreensão contém o afeto negativo de indignação em relação a uma transgressão. Uma característica de toda comunidade moral é que: Quem age de acordo com o sistema normativo é considerado bom pelos outros. Ele é louvado e nisso se baseia que o sistema moral – e também o sistema moral autônomo – gere ele próprio uma motivação que não estava lá antes, qual seja: a motivação de desejar ser moralmente estimado e de não ser desprezado moralmente. Ser estimado e desprezado são circunstâncias que, assim como a indignação, se deixam internalizar. Quem se considera membro de uma comunidade moral deseja não apenas não ser desprezado, mas deseja também não agir de tal modo que ele próprio se ache desprezível (digno de desprezo). Por certo que, até aqui, isso é apenas o que está de fato internalizado, e internalizado na consciência que se orienta em normas dadas de antemão (AR, p. 40). Tugendhat (LSE) une a concepção de Hume, para quem “bom é o que todos os homens de fato preferem e nesta medida aprovam; mau o que, de modo correspondente, censuram”, com a concepção de Aristóteles, para quem “bom”, ou melhor, uma ação é boa 15 “[...] capacidade de ser um ente socialmente tratável, cooperador, ou, em uma sociedade primitiva, corresponder ao padrão para ser membro desta sociedade [...]” (LSE, p. 57). 38 quando é a ação de homem bom. Afirma, então, Tugendhat (LSE, p. 55) que “com o conceito de homem bom tem-se o que faltava em Hume, um ponto de vista de fundamentação para aprovar ou censurar, que é, contudo, suficientemente formal para estar aberto a diferentes conceitos de moral”. Com efeito, Tugendhat (PM, p. 16) considera que “moral está sempre relacionada a um nós”, primeira pessoa do plural representando eu e outro(s), ou seja, no coletivo. “Pode-se chamar isso de sociedade moral, e, se hoje tendemos a entender a moral como algo universal, temos de falar de uma sociedade universal”. A moral é um sistema que delimita, restringe, coíbe a liberdade dos membros da sociedade pelo fato de ser um peso que o ser humano impõe a si mutuamente. Dali, assinala Tugendhat (PM, p. 16), “se tem que entender que normas morais só são aceitas pelos membros da sociedade se eles acreditam que as normas são justificadas”. E mais, os indivíduos somente “se integram ao sistema porque o consideram justificado” (AR, p. 27). Para alguns, o sistema normativo teria que ser justificado como tal; para outros, não necessita justificação. Para Tugendhat (PM, p. 16), “normas não podem ser justificadas como tais, mas sim a alguém, e, como devem ser recíprocas, elas têm que ser justificadas reciprocamente”. Duas coisas precisam ser justificadas: o “ter de” agir de certa maneira, mas também que devem ser aceitas as normas. Norma é um imperativo geral e, uma norma moral é um imperativo geral recíproco. “Um imperativo não tem qualquer pretensão de verdade, daí não ser justificável”, porém, “pode-se justificá-lo frente àquele a quem está dirigido, no sentido de mostrar-lhe que ele tem uma razão para submeter-se ao imperativo” (AR, p. 30), ou seja, à norma. Além disso, se é “um imperativo recíproco, então os indivíduos [membros] têm, no sentido exposto, de poder justificá-lo reciprocamente” (AR, p. 30). Aceitar uma norma significa aprovar e repreender-se mutuamente (reciprocamente) em relação a ela e, isso implica que se tem o sentimento de indignação quando alguém as infringe (PM). O que se tem que justificar é precisamente ter esses sentimentos em relação com essas normas. O aspecto de justificação também esclarece o que significa ser autônomo no seu juízo moral, quer dizer independentemente do que os outros dizem. O que julga e age moralmente de uma maneira autônoma julga e age só assim, como ele mesmo considera ser justificável reciprocamente (PM, p. 17). 39 Antes de seguir nessa linha de justificação de uma moral moderna intersubjetiva reciprocamente justificada, no entanto, é necessário entender quais as outras possibilidades de justificação da moral. Na opinião de Tugendhat (PM, p. 17) existem [se olharmos a história da moral] somente dois tipos de justificação recíproca de normas, sendo: “o religioso [tradicional] e o relacionado aos interesses dos membros da sociedade. O primeiro pode ser denominado de justificação vertical (ou autoritária), e o segundo de justificação horizontal”, este último, autônomo e recíproco. Em ambos os casos equivale a que seja mostrado que cada indivíduo tem razão de se sujeitar ao sistema de normas e de segui-lo. “Mas enquanto que para uma moral autoritária essa razão consiste em que o indivíduo considere uma autoridade como determinante em si, no outro caso os indivíduos, por si mesmos, julgam ter uma razão para considerar o imperativo do sistema como reciprocamente válido” (AR, p. 30). “Tradicional”, afirma Tugendhat (LSE, p. 65), “irá sempre significar onde a tradição, ou a determinante autoridade nela inerente, serve como fundamentação última”. Tugendhat entende que é importante fazer-se a seguinte pergunta: “como se pode entender que, no sentido que entendo a palavra moral, haja tantas morais quantas foram as comunidades morais havidas na história da humanidade e que, não obstante, faça sentido perguntar por uma moral?” (PM, p. 124; AR, p. 29). Para responder a essa pergunta, o autor dá o seguinte esclarecimento: A resposta se deveria descobrir na exigência [necessidade] de justificação. Cada moral está de alguma forma justificada, mas uma justificação pode ser melhor do que a outra, e por isso é pensável que todas as justificações convirjam para uma só. Será, portanto, esse aspecto da justificação que nos guiará [...] (PM, p. 124; AR, p. 29). Incluídas no conceito de moral tradicional ou religiosa, ou seja, vertical, toma-se por exemplo, o cristianismo e, por derivação, as demais formas de justificação da moral de forma religiosa e autoritária. Tugendhat, em suas Lições sobre Ética, sugere o diálogo de uma criança com seus pais, onde aquela pergunta o porquê das reações afetivas negativas [indignação] diante das ações da criança, ao que os pais respondem: “Porque nós somos filhos de Deus e porque Deus nos proibiu agir desta maneira”. Para Tugendhat este: 40 [...] que nós somos filhos de Deus constitui em síntese a identidade da comunidade cristã. É desta maneira que se compreende aqui o bem. Mal é o que não agrada a Deus. Por isso [...] todos exigem de todos – todos os cristãos – que sejam assim, e “nós nos indignamos quando se age contra a vontade de Deus” (LSE, p. 16). No caso de a criança insistir, perguntando como se sabe que são filhos de Deus e, se este existe, a resposta é que isso “é uma blasfêmia”. “Com isso está caracterizado o alcance da fundamentação na moral tradicionalista. A própria tradição (a palavra de Deus) é o fundamento último, não mais questionável” (LSE, p. 66). Para o autor (LSE, p. 66), é por este motivo que uma moral religiosa é, em princípio, também incapaz de discutir com outros conceitos morais; ele somente pode afirmar a sua própria superioridade a partir da fé, portanto, dogmaticamente, ou fechando-se para os outros. A delimitação se dá no caráter da fundamentação e, também, na delimitação de uma compreensão da preferência objetiva, implicando numa delimitação do conceito de “bom”. Com isso, a pretensão de validade universal presente nesta tradição [e não em muitas outras, como o judaísmo] é delimitada pela identidade desta comunidade, ou seja, o conceito de bom só pode ser justificado para aqueles que “creem” que “são filhos de Deus” e, portanto, não é como ser preferível na perspectiva de todos os seres humanos, mas como ser preferível na perspectiva desta fé, de todos os cristãos. A mesma perspectiva é válida para todas as religiões que têm por base a fé, pois as “normas” da fé e o autor das mesmas (Deus) são os delimitadores e condicionadores do conceito de “bom” dentro daquela comunidade [não universalista]. Segundo Tugendhat: [...] o exemplo do cristianismo, na perspectiva do universalismo, sugerido pelo próprio conceito de bom, é ainda dos mais favoráveis. Na visão cristã, aquilo que no recurso à filiação divina aparece como bom, é bom para todos os seres humanos, nisto, porém, está implicado que todos têm que acreditar em Deus (LSE, p. 66). Para o autor (LSE), se houvesse um fundamento comum a todas as crenças, isto seria decisivo, e não a mesma fé, pois para uma fé ser essencial para a moral, ela excluiria qualquer outro acesso religioso ou não religioso. Outra pergunta importante aqui é aquela que enfatiza até que ponto é feita, nas diversas morais tradicionalisticamente fundamentadas, “uma distinção entre normas válidas para todos os seres humanos e aquelas que somente valem para a própria comunidade?”. Para 41 Tugendhat, existe aqui um problema conceitual sobre o qual se deveria deter, ou seja, “que critério de justificação tem uma moral tradicional para aquelas normas que extrapolam da comunidade?” (LSE, p. 67). A resposta que o autor indica é que, talvez, por fim, apenas seja um critério empírico. Pode ser observado empiricamente no caráter particular das normas das mais diversas culturas e suas particularidades, que por “este fato empírico, poderia levar os que meditam nas tradições religiosas a procurar por uma justificação independente da identidade religiosa” (LSE, p. 67). A semelhança entre os sistemas morais religiosos que já existiram se deve a que todas as morais religiosas têm um núcleo não autoritário (AR, p. 31). A regra de ouro16 aparece como núcleo comum em todos os conceitos morais e, para Tugendhat (LSE, p. 67), o contratualismo fornece, em parte, uma justificação independente em relação às normas que resultam desta regra. Tugendhat (AR, p. 31) entende que a fraqueza fundamental da justificação religiosa da moral consiste não apenas em que ela pressupõe um ato de fé, mas se for perguntado se “o sistema moral é bom porque Deus o ordena ou Deus o ordena porque ele é bom?”: Se for respondido que o ser bom está definido porque Deus o ordena, Deus será visto como um tirano. As normas são, neste caso, mandamentos obrigatórios. Se, ao contrário, for respondido que Deus ordena apenas o que é bom, então isso significará que aquilo em que consiste uma boa pessoa tem de poder ser justificado independentemente da autoridade divina. A concepção religiosa aponta, pois, por si mesma, para a justificação autônoma (AR, p. 31). A justificação autoritária auxilia a entender porque na história houve um número tão grande de morais diversas. Se a convicção de ser justificado é relativa a uma autoridade, tudo o que a autoridade manda é obrigatório. Os diversos sistemas morais que estão justificados desta maneira não são contraditórios entre si porque não possuem uma referência em comum. O fato de muitos ainda pensarem hoje que uma moral só pode ser fundamentada pela religião pode provir de que boa parte das pessoas foi socializada desta maneira e, sobretudo, da circunstância de até hoje não existir uma fundamentação não religiosa da moral que tenha encontrado um reconhecimento universal (LSE, p. 68). 16 “Conforme J.L.J. Mackie, [...] todos os homens, na medida em que estão interessados na cooperação com outros, têm nisto um interesse, que todos se entendam com todos em observar certo sistema de normas [...], estas, que resultam em grande parte da chamada regra de ouro, as quais encontramos em diversas culturas, entre outras também na Bíblia: comporte-se de tal maneira em relação aos outros como tu desejas que eles se comportem em relação a ti” (LSE, p. 73). 42 “Nossa situação histórica – uma situação na qual vivemos, mais ou menos conscientes, já há mais de duzentos anos – é determinada de tal maneira, que temos que colocar na nossa mira uma moral que não seja mais justificada de forma transcendente” (LSE, p. 68). Isto também pelo fato de muitos hoje não terem uma crença religiosa e porque cada vez mais é formada uma comunidade mundial na qual é preciso se entender moralmente para além dos limites religiosos. Tugendhat aponta uma pergunta que vai guiar a questão da justificação a partir daqui, ou seja, “de como a moral pode estar justificada reciprocamente, ou seja, de uma maneira não autoritária [não religiosa]?” (PBL, p. 125, tradução própria; PM, p. 18, grifo nosso). O autor afirma que sobre esta pergunta fundamental, sobre como a moral autônoma deve ser justificada ou simplesmente entendida, hoje, não existe acordo ou qualquer unidade (PBL, p. 125; AR, p. 32). Seria possível responder a esta pergunta? Pode-se até mesmo duvidar dessa possibilidade, afirmando juntamente com Nietzsche, “que a moral desaparece, quando não a justificamos religiosamente” (PM, p. 18). Pode-se exemplificar isto com a pergunta do filho aos pais, exemplo que Tugendhat tem recorrido em suas palestras: “Por que tenho que ater-me às normas? ou formulado de outra maneira: por que os outros reagem com indignação quando as infrinjo?” (PM, p. 18). Como deve ser a resposta a esta pergunta na cultura moderna, na qual não se pode mais recorrer à autoridade religiosa? Parece que o interesse próprio pode trazer algumas respostas a esta questão, pois os pais da criança poderiam responder perguntando para a criança: O que tu mesmo queres? [...] não queres tu mesmo que exista uma norma que proíbe aos outros enganarem-te, machucar-te, etc.? Isso é um fundamento do qual para quase todos os homens surge a disposição de aceitar normas que lhes impedem de ser desconsiderados, se os outros também aceitam essas normas. Pode-se falar de uma justificação baseada sobre os interesses egoístas (PM, p. 18-19, grifo nosso). Dito de outra forma, explica Tugendhat: [...] a moral tem duas fontes não religiosas: em primeiro lugar, o interesse próprio e, em segundo, a simpatia e a compaixão; mas a primeira – o interesse próprio – tem a prioridade, não só porque se pode pressupor mais geralmente que todos a têm igualmente, mas também porque só a partir dela se pode entender a geração de um sistema normativo. Por isso, inicialmente, vou ater-me só a essa primeira fonte e perguntar até onde se chega assim e, posteriormente, recorrerei ao aspecto da simpatia e da compaixão (PM, p. 18-19). 43 A justificação baseada sobre interesses será abordada mais adiante, por enquanto me deterei nas concepções de moral vigentes. No Iluminismo moderno foram trilhados, sobretudo dois caminhos da moral: a escola empirista escocesa do século XVIII, sobretudo de Hume, e a kantiana. A primeira, com a preparação do utilitarismo, “tinha a concepção de que a filosofia apenas precisa reunir sistematicamente aquilo que supostamente todos aprovam e criticam” e, com isto, “se abandonava a pretensão de justificação” (LSE, p. 69-70). Já a segunda, que [...] crê que somente existe uma consciência moral [...] só que para ele, aquela pode ser justificada. [...] caminho [que] consiste em procurar uma fundamentação [...] não transcendental [não religiosa] teria que, de alguma forma, recorrer à natureza do ser humano ou a uma parte dela. Devia-se obviamente dizer: se uma parte da natureza do ser humano deve fornecer a justificação para a moral, então isto não pode ser uma parte qualquer, mas ela precisa, por sua vez, ser algo melhor, uma parte que indique a direção; e, aqui o recurso a uma razão com “R” maiúsculo é o mais plausível (LSE, p. 69-70). Ao lado destas duas que não possuem um conceito de justificação recíproca, consideradas por muitos como as tradições mais importantes da Filosofia moral moderna, está o contratualismo. Neste, a justificação da moral “é uma que cada indivíduo tem que fazer por sua própria conta, de modo que aqui tampouco há uma justificação recíproca” (PBL, p. 125, tradução própria; AR, p. 32). Tugendhat (AR, p. 32) considera que “Kant pertence, de fato, ao âmbito do contratualismo, como uma tentativa que busca superar o ponto fraco dessa concepção mediante um conceito forte de razão”. “Se eu tentasse uma justificação própria independentemente dessas justificações disponíveis, isso não faria sentido”, afirma Tugendhat (AR, p. 32), em alusão ao fato de que delas é possível aproveitar seus pensamentos convincentes que lhes deram sustentação por longo tempo e, “que tenham obstinado em algum aspecto particular de modo unilateral”, daí suas deficiências. O autor se propõe a investigá-las, destacando que têm uma vantagem que nenhuma outra daquelas posições tinha, que é ter na retaguarda o esclarecimento da palavra “moral”, que foi de onde ele partiu (AR, p. 32). Aqui são expostos apenas os pontos considerados essenciais, de forma breve, sem aprofundar o debate minucioso que se encontra nas obras de Tugendhat. 44 Inicia-se pelo utilitarismo que, segundo o qual, “uma ação é correta [moral] quando aumenta a quantidade de bem no mundo mais do que qualquer outra alternativa” (PBL, p. 126, tradução própria). No utilitarismo, este princípio não é justificado para além desse ponto, mas visto como evidente, o que, sem maiores esclarecimentos, parece estranho a quem está fora desta tradição (PBL, p. 126; AR, p. 32). Segundo o ponto de partida do conceito de moral de Tugendhat, “o mandamento moral é o que exigimos reciprocamente” (AR, p. 32), razão porque se pode entender melhor esse princípio do igualitarismo. “Pode-se perguntar”, salienta Tugendhat, “se existe alguma coisa que sempre exigimos reciprocamente?”, ao que, no sentido do utilitarismo, pode-se dizer: “nós sempre queremos uns dos outros que não nos prejudiquemos” (AR, p. 32-33). Uma característica singular do utilitarismo é que não diferencie “não causar dano17” e “causar bem18”. Sobre isto, esclarece Tugendhat (PBL, p. 126, tradução própria): “Eu poderia me aproximar da posição utilitarista se digo: de qualquer maneira tem que ser exigido reciprocamente que não causemos dano um ao outro, porém, o utilitarismo diz: causar bem”. O utilitarismo insiste que na ação moral nunca se confronte com somente uma pessoa. A ideia da qual partiu Hume, ou seja, de “uma concepção formal [...] parte da pergunta de quando aprovamos a uma pessoa, ou seja, quando dizemos que é boa [...] e daí chegou a manter que uma pessoa é boa quando é útil19” (PBL, p. 126, tradução própria). Daí que Hutcheson20 acrescentou: “sempre e quando temos uma alternativa da qual podemos causar mais ou menos mal ou bem, se requer escolher aquela ação que conduz ao maior bem ou menor mal” (PBL, p. 126, tradução própria). A partir deste pensamento resultou o princípio de maximização. Poderia se colocar objeção, perguntando se este princípio não seria apenas para casos limites, ao que se poderia responder: “na ética individual sim, na política não, e o utilitarismo entende-se sempre e, sobretudo como moral política” (AR, p. 33) e levar em conta que para o utilitarismo “uma pessoa nunca tem a frente apenas outra pessoa, mas um grande número delas” (AR, p. 33). 17 Prejudicar. Ajudar. 19 “Hume propõe a seguinte tese: se desconsiderarmos todo o espólio das normas religiosas de justificação, constata-se empiricamente que denominamos uma pessoa de boa se ela é útil para si, para os outros e para a sociedade, e de má se ela causa prejuízos” (AR, p. 33). 20 Francis Hutcheson, conforme Tugendhat, foi um dos precursores do utilitarismo, juntamente com Hume. 18 45 Ainda assim, complementa Tugendhat (PBL, p. 126, tradução própria; AR, p. 33), “duvidaríamos de que uma pessoa possa cumprir suas obrigações para com outra pessoa corretamente se pode perceber o que lhe deve sempre e apenas como uma parte do bem estar geral”, tão logo muitas pessoas estejam envolvidas. “Trata-se então apenas do conjunto total de benefícios, mas não de como ele pode ser dividido entre elas?”, pergunta Tugendhat, portanto, não se tratando de justiça. Ao que o autor afirma: “não concordaremos com ele [Hutcheson] se o bem não for dividido justamente” (AR, p. 33), pois este aspecto é importante quando se quer justificar a moral reciprocamente. Tugendhat enfatiza que “já na formulação original do princípio utilitarista, poder-se-ia muito bem ter sugerido a tônica na justiça e não na mera maximização” (AR, p. 33) e que “nenhum desses defeitos teriam ocorrido se a pergunta houvesse sido o que é o que exigimos um do outro?” (PBL, p. 126, tradução própria). O utilitarismo apresenta uma série de pontos fracos já conhecidos. Tugendhat aponta algumas debilidades que lhe são importantes: “[...] primeiro, ele não distingue21 entre fazer o bem e não fazer o mal; segundo, que o utilitarismo não parece dar uma resposta22 justa a nossas obrigações interpessoais; e, que não considera satisfatoriamente o aspecto da justiça” (PBL, p. 126, tradução própria; AR, p. 33). Importa ressaltar, juntamente com Tugendhat, que não existe nem um “nós” único, do qual se poderia partir, nem um “para nós” igualmente único, ao qual o fazer o bem se refira: O objeto de nossa obrigação moral não é, como já censurara Adam Smith, aluno de Hume, uma sociedade amorfa, mas os indivíduos; e o sujeito do julgamento não é, do mesmo modo, um “nós” amorfo, mas, novamente, os indivíduos que têm de entrar livremente em concordância. Por conseguinte, a questão23: “como se comporta uma pessoa que consideramos boa?” tem de ser compreendida como o resultado da pergunta por aquilo que nos exigimos uns dos outros (AR, p. 34). Aqui é levado em conta que a pergunta já não pode mais ser formulada do modo “quando de fato consideramos uma pessoa boa, ou ainda, o que de fato nos exigimos reciprocamente”, baseada em Hume, pois com o fim da moral autoritária, está em aberto “se ainda queremos fazer exigências uns aos outros e quais seriam elas” (AR, p. 34). Tugendhat chama a atenção para a diferença entre moral fática e moral desejada que estão relacionadas 21 Coloca ambos na mesma escala. Não dê conta da obrigação interpessoal. 23 Refere-se aqui à pergunta inicial de Hume, já citada anteriormente, segundo a qual o critério dado pela questão de quando consideramos boa uma pessoa (AR, 2002c, p. 34). 22 46 com a terceira proposição de Tugendhat, ou seja, “de um lado a moral parece ser algo já dado, de outro lado temos de poder perguntar: como devemos ou queremos entender a moral?” (AR, p. 25). Quando a questão é colocada deste modo: “depois da queda da moral autoritária, existe ainda algo que nos queiramos exigir reciprocamente? [...] está claro que ela é feita por indivíduos” (AR, p. 35), “é uma pergunta em relação a indivíduos” (PBL, p. 127, tradução própria) e, quando é colocada desta maneira os indivíduos são conduzidos ao ponto de partida do contratualismo “e ao mesmo tempo, para a vizinhança imediata com o imperativo categórico de Kant” (PBL, p. 127, tradução própria; AR, p. 35). Sem deixar de dar reconhecimento à importância de Kant, para Tugendhat (LSE, AR, PM, DL, PBL, PMA) não é possível aceitar a abordagem que assente suas bases numa fundamentação racional, absoluta e, a priori da moral, em um conceito de razão com maiúscula. Os pressupostos metafísicos que estão envolvidos em uma fundamentação deste tipo são inadmissíveis: uma concepção de moralidade que recorre a ter que assumir ao ser humano como pertencente a dois mundos distintos. Esta teoria de dois mundos aplicada à concepção de ser humano como um ser fenomênico regido por leis causais e simultaneamente como racionais, onde a liberdade de atuar segundo máximas que de forma autônoma dita a si mesmo lhe permitem separar-se do determinismo causal (natural), é validamente questionada. [...] o imperativo categórico de Kant. [...] a concepção de Kant – é moralmente repreensível toda máxima da qual não posso desejar que todos atuem assim24 – é infeliz porque expressa somente uma condição necessária e não, como acredita Kant, suficiente para a moral. Existem máximas das quais não podemos querer que todos as sigam e que certamente não são imorais. O que é então que tem de ser adicionado ao que é só uma condição necessária? Obviamente temos que nos colocar na posição dos indivíduos empíricos e perguntar quais são as máximas das quais todos queremos que os outros atuem segundo elas. Porém, isto requer um passo inevitável até o empírico25 e, isto é justamente o que Kant queria evitar (PBL, p. 127, tradução própria). Tugendhat (AR, p. 35) enfatiza que é fácil ver que a derivação que ele [Kant] apresentou não funciona, ainda que isso seja negado pelos kantianos. “[...] Mas mesmo que ela funcionasse, o resultado seria insuficiente e isso é inevitável, pois já a ideia de uma derivação a partir da razão era falsa, dado que se deveria perguntar empiricamente: o que é, pois, que de fato querem os homens uns dos outros?” 24 A fórmula da Lei Universal de Kant: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1986, p. 52). 25 Kant queria derivar o imperativo categórico da mera ideia de razão prática (AR, p. 35). 47 Mais plausível parece a segunda fórmula do imperativo categórico de Kant, a fórmula que se refere a meios e fins: Porém, o fato de que esta fórmula parece agradar a todos à primeira vista, não parece ter muito que ver com o conceito de razão pura, senão que se baseia no fato que ninguém quer ser tratado como um mero meio. Isto é um fato empírico, e é isto o que nos conduz à norma de que todos exigimos uns dos outros [reciprocamente] que atuemos assim (PBL, p. 127, tradução própria; AR, p. 35). É certo que se pode responder com o apoio desta fórmula: “os homens, visto do ponto de vista empírico, não querem nunca ser tratados como simples meios, mas sempre e ao mesmo tempo como fins” (AR, p. 35) e, “que, desse modo, os indivíduos, mediante as exigências recíprocas, sejam a origem das normas morais, é a concepção do contratualismo” (AR, p. 36). O interesse próprio, mencionado anteriormente, tem prioridade sobre a simpatia e a compaixão “não só porque se pode pressupor mais geralmente que todos a tem igualmente, mas também porque só a partir dele se pode entender a geração de um sistema normativo” (PM, p. 19). Pensando em uma moral autônoma e recíproca, Tugendhat constata que: Considerando que uma moral consiste em um sistema de exigências recíprocas, uma moral autônoma justificada é pensável somente na medida em que os indivíduos se perguntem quais exigências recíprocas eles podem justificar um frente ao outro. Para a justificação não se pode recorrer a qualquer instância fora da vontade dos indivíduos, nem a uma autoridade, nem a uma suposta razão pura e nem tampouco se pode usar de um recurso como, por exemplo, a uma natureza humana desde sempre determinada, ou mesmo aos genes. E, naturalmente, autonomia não pode ser aqui, como em Kant, autonomia do indivíduo, mas somente autonomia recíproca, quer dizer, que cada um dá a vontade de todos os outros um peso tão grande quanto dá à sua própria (AR, p. 36). Depois que as normas autoritárias têm se mostrado injustificadas, só é possível recorrer à vontade dos indivíduos e a estes poderia ser perguntado “se dependesse de você, então não deveria existir mais qualquer exigência recíproca ou você desejaria que determinadas regras valessem?” (AR, p. 36). Isso é o mesmo que querem todos os outros, e não se pode esperar deles que se submetam às exigências dos outros se estes também não se submetermos às deles. Ao se querer que estas normas desejadas sejam válidas deve-se construir uma comunidade moral que se traduza em um conjunto de normas mantidas “mediante nossa 48 disposição para a indignação e a culpa, e mediante um conceito de boa pessoa determinado por essas disposições” (AR, p. 37). Pode-se, juntamente com Tugendhat (PM, p. 19) “falar de uma justificação baseada sobre os interesses egoístas”. O contratualismo puro poderia ser diferenciado do seguinte modo: Os contratualista são da opinião de que cada um de nós iria preferir aceitar um sistema que fosse o mais desequilibrado possível a nosso favor, e na medida em que ainda assim se produz um equilíbrio, este ocorre somente porque os outros unicamente aceitam as propostas daquele se ele renuncia a sua própria pretensão de desequilíbrio e vice-versa. Outros muitos, não participantes do contrato, têm que ser assim totalmente excluídos (PBL, p. 116, tradução própria). É, portanto, uma concepção exclusivista porque no contrato somente são incluídos aqueles que trazem consigo o suficiente para que se torne interessante aos demais, ou seja, que se baseie no interesse dos demais. Por outro lado é excludente por se tratar de um contrato entre partes que estão preocupadas com seu interesse individualista sem levar em conta a reciprocidade e justificados na autonomia individual. Essa posição é particularista porque se baseia na identificação com uma determinada comunidade, onde o coletivo não são todos, mas apenas aqueles “todos” que são os membros, ou seja, não universalista. Observe-se que se está refletindo aqui a situação moral do tempo atual e se pode constatar a tensão entre três concepções de moral: universalista, particularista e contratualista. A primeira entende a moral num sentido da autonomia coletiva recíproca, enquanto que as demais num sentido de pertencimento a um grupo para as quais a moral pode ser especialmente útil, independente dos demais não participantes, o que também demonstra que existem várias possibilidades de justificação além da universalista. Se a opção for pelo modo de justificação mais fácil tem-se então o particularista. Ou o contratualismo por ser mais vantajoso (caso se esteja do lado dos favorecidos), porém, ainda assim, afirma Tugendhat, “se optamos por uma moral, optamos por um sistema de exigências recíprocas” e isso significa “justificá-las de maneira recíproca” (PBL, p. 117, tradução própria). O específico da justificação que se refere aos interesses egoístas é que “tem que ser recíproca também no sentido de que cada um está disposto a respeitar os interesses dos outros sob a condição de os outros respeitarem os interesses dele” (PM, p. 19). 49 Pressupondo, no entanto, que já não se justifica a moral de modo transcendente e sim, somente de modo imanente, e se a moral deve ser justificada para cada pessoa, então não resultaria plausível que pareça justificada aquela moral em que se tem em conta o sentimento de pertencimento a um grupo ou a aqueles outros que para eles possa ser especialmente útil e, porque não dizer, perigoso se não produzem um contrato? O problema aqui é como justificar frente aos demais que é mais vantajoso para uns que para outros, que ficam em desvantagem. Parece evidente que para estes “[...] uma norma não resulta atrativa se coloca a ele ou ao seu grupo em desvantagem ou [...] o declara como marginalizado [excluído]. Não poderia fazer seu um tal sistema moral, e se apesar de tudo o faz, somente o fará por falta de esclarecimento” (PBL, p. 116, tradução própria). Esse argumento é favorável a todas as formas de desequilíbrio e o indivíduo, ainda assim, poderia se perguntar “porque não deveria estar de acordo com um sistema desiquilibrado, se este desequilíbrio não fosse desvantajoso pra ele mesmo ou inclusive se fosse vantajoso?” (PBL, p. 116, tradução própria). Tugendhat (PBL, p. 118) exemplifica a resposta de um contratualista que poderia argumentar que aqui, qualquer indivíduo deve ter primeiro uma razão para entrar realmente em uma comunidade moral. O critério decisivo tem que ser a sua própria vantagem, ou seja, se a entrada é boa para ele. “Não podemos supor que o indivíduo, antes de entrar, já tenha um interesse pelo bem comum, porque isto poderia dar lugar a uma argumentação circular” (PBL, p. 118, tradução própria). Apontaria, porém, que o indivíduo, uma vez que se entende como membro de uma comunidade moral, está comprometido com um modo de justificação cujo sentido implica que é uma justificação dentro de uma comunidade e para a qual o decisivo já não é perguntar “é melhor para mim?”, mas “é justo?” Este predicado, contudo, se refere ao equilíbrio entre os indivíduos estabelecido pelo sistema e da questão de se é bom para todos por igual, pelo que, no contratualismo que vê o contrato moral como um contrato usual, não pode se dar o conceito de justiça. Esses três casos analisados brevemente, no entendimento de Tugendhat (PBL, p. 118) tratam de um estar justificado “para” e se distinguem entre si segundo aquilo que se coloca depois deste “para”, ou seja: na concepção universalista será “para todos”; na particularista será “para todos que pertencem à comunidade X”; e na concepção contratualista será “para mim”. 50 Entre as concepções vistas, o que Tugendhat (AR) pretende é, ao demonstrar que modificando o modo de ver utilitarista, ou seja, a partir da autonomia recíproca e que leva em conta a justiça, ele conduziu o indivíduo ao contratualismo. Este, por sua vez, carece de uma correção pelo utilitarismo, que o autor se propõe a apresentar por meio de suas próximas análises. Uma dificuldade que o contratualismo carrega intrinsecamente se refere à questão de como se deve imaginar o assim chamado contrato moral, o acordo moral e, se por acaso poderia ser análogo ao modelo de um contrato usual (PBL, p. 129; AR, p. 40-41). Primeiro: um contrato normal é um ato único, ao passo que o acordo moral é algo que persiste como implícito ao longo de nossa vida intersubjetiva. [...] Segundo: um contrato normal tem a estrutura de uma promessa recíproca e o que se conserva aberto é aquilo que faz com que as partes contratantes cumpram sua promessa. Entrar numa sociedade moral é mais como fazer uma promessa de segunda ordem, porque consiste em concordar a ter sentimentos morais. Terceiro: um contrato normal se negocia, o acordo moral não. Esta é a diferença principal. A razão pela qual um contrato normal tem que ser negociado é que o acordo se baseia no que cada um pensa no que lhe está sendo oferecido pelo outro e se é suficiente para consentir com o contrato [acordo]26. Em contraste, no acordo moral as partes não se colocam de acordo em algo que é bom para A e bom para B, etc., mas em algo que todos concordam que é bom simplesmente e o qual, por consequência, podem aprovar e ter assim os mesmos sentimentos morais (PBL, p. 130, tradução própria). Tugendhat (AR, p. 41) chama especial atenção para o que aqui se apresenta, ou seja, diante do fenômeno que havia sido o ponto de partida do utilitarismo: a aprovação coletiva27. Obviamente que é preciso diferenciar o conceito de bom para X e o conceito de bom simplesmente. Conforme Tugendhat (PBL, p. 130, tradução própria), “os sentimentos morais, sendo sentimentos que compartilhamos, só podem se dirigir ao segundo”. O utilitarismo tinha um conceito de bom, porém, o que eles não percebiam é que a aprovação comum tem que ser entendida como algo que os indivíduos chegam por um acordo [contratualmente], de modo que se tem de perguntar: “o que podemos aprovar juntos de modo que todos possam consentir individualmente?” O Contratualismo está diante do perigo oposto, que consiste em construir um acordo moral de uma maneira que só se percebe o consentimento individual e não a aprovação conjunta [coletiva]. Venha-se de um ou de outro lado, ambos os fatores devem ser levados em conta. Primeiro, que uma comunidade moral tem de partilhar um conceito comum de boa pessoa (isso, com efeito, é uma exigência do conceito formal de moral) e, segundo, que tem que ser bom para todos (em consonância com a exigência de autonomia da moral) (PBL, p. 130, tradução própria; AR, p. 41-42). 26 “Isto é, se A acha que o que B lhe oferece é para ele bom o suficiente e vice versa” (AR, p. 41). Para Hume, o precursor do utilitarismo, seu conceito de aprovação tinha como objeto a boa pessoa (PBL, p. 130). 27 51 Tugendhat (PBL, p. 130-131; AR, p. 42) afirma que se pode reunir e combinar estes dois fatores somente se se disser “que bom é o que é bom para todos igualmente28”. Somente a partir disso, todos podem concordar, com igual autonomia, com um conceito de bom. No contrato usual não existe este aspecto do “bom” comum e que se tem de justificar reciprocamente, porque nele as partes não estão se colocando em acordo com algo que tiveram que aprovar coletivamente. Na fórmula “bom é o que é bom para todos por igual”, o conceito de bom se baseia no que é bom para, porém, não é redutível a ele em virtude do termo “por igual” (PBL, p. 131). A moral autônoma, portanto, tem de conter os dois conceitos, quais sejam: “bom” e “bom para”. Tugendhat entende que: [...] o modo como os dois conceitos se tem de mutuamente se referir só pode estar contido na formulação: “bom deve ser o que é bom em igual medida para A, B, etc.”, isto é, “igualmente bom para todos”, pois somente então podem todos justificar-se mútua e igualmente o sistema moral – ou seja, aquilo que deve ser considerado bom. É isso que foi exigido da ideia de uma justificação coletiva autônoma (AR, p. 42). Ora, “o conceito de bom no sentido do que é bom para todos por igual, é naturalmente um conceito de justiça” (PBL, p. 131, tradução própria, grifo nosso). De um modo geral, incluso no caso das morais autoritárias29, a palavra justo está para aquele aspecto da justificação de normas ou ações que estão relacionadas com o equilíbrio entre os indivíduos. “Se a moral está autônoma e reciprocamente justificada, então o parâmetro para o equilíbrio somente pode ser a igualdade, pois, de acordo com o princípio da autonomia coletiva, na justificação cada um conta em igual medida” (AR, p. 43, grifo nosso). Deste modo, enfatiza Tugendhat (AR, p. 43) que “o conceito de justiça da moral autônoma é, portanto, igualitário. Isso se segue obrigatoriamente da autonomia coletiva [...]”. É importante enfatizar que não se ignoram as normas da desigualdade, denominada proporcionalidades, e que estas não possam ser justificadas como justas, mas somente, seguindo o mesmo princípio: “se mediante tais normas forem compensadas desigualdades nas condições é que elas poderão ser justificadas” (AR, p. 44). Isso só pode ser decidido através da justificação em igual medida para todos. 28 Na mesma medida (AR, p. 42). “Em uma moral autoritária, o que deve ser considerado equilibrado é determinado pela autoridade e pode, pois, ser, do ponto de vista do conteúdo, qualquer coisa” (AR, p. 43). 29 52 “A ideia de uma justiça proporcional, segundo um critério, é secundária, porque alguém tem que decidir quais são os critérios decisivos” (PM, p. 25). Não se nega, também, o fato de haverem contratos no sentido usual que não apenas são de fato fechados, mas que são também aprovados e avaliados como bons e justos, contudo, “é uma avaliação moral que é exterior ao contrato como tal” (AR, p. 44). No sentido deste contratualismo que tenta igualar a moral a um contrato usual “não surge nenhum conceito de bom, nele não há nenhuma justificação comum a todos para um sistema normativo, mas deve valer o que seja tão bom para A, para B, etc., que eles aceitem fechar o contrato” (AR, p. 43). Segundo Tugendhat (AR, p. 43; PBL, p. 131), Kant teria sido motivado por esta entre outras deficiências de um contratualismo simples para colocar no lugar da justificação contratual, uma justificação fictícia baseada na razão pura30. Nesta perspectiva, é importante destacar que: Não é um acidente que o conceito de justiça não aparece nem no utilitarismo, pelo menos não em seu fundamento, nem tampouco naquele contratualismo que entende a moral como um contrato normal. O acordo que se entende como justificação recíproca é, na minha opinião, a única concepção de uma moral não autoritária em que a perspectiva de justiça está presente desde o princípio, nas outras não se pode entender nem porque surge a perspectiva da justiça (PBL, p. 131, tradução própria). Cabe afirmar, portanto, juntamente com Tugendhat (AR, p. 43), “que o conceito de justiça da moral autônoma é, portanto, igualitário” e que o “contratualismo construído sobre a autonomia recíproca é o único conceito de moral que torna de algum modo compreensível a perspectiva da justiça”. É a posição de Gauthier, que entende que: [...] uma moral ilustrada só pode ser racional e que não seria racional para um indivíduo consentir em um acordo que para ele não fosse racional no grau máximo. Portanto, seria irracional fazer concessões aos fracos31, e os deficientes não poderiam ser admitidos ao contrato moral (apud TUGENDHAT, PBL, p. 132-133; AR, p. 45). Tugendhat, no entanto, o contrapõe, considerando que: 30 31 Comumente denominada “Razão com R maiúsculo”. Aos que têm menos poder. 53 [...] se o acordo há de ser tal que tem que ser justificável para todos por igual, então é a estrutura do objeto do acordo que requer igualdade. É certo que tem que ser racional para cada indivíduo ao entrar no contrato moral. Tem que ser melhor para ele entrar que não entrar [se ele se considera onipotente, não vai querer entrar], porém, uma vez que entrar, então terá que aceitar a simetria que pertence ao mecanismo deste acordo (PBL, p. 132, tradução própria). Importante ressaltar que não se deve substituir ou interpretar simetria como racional, pois a primeira não é entendida adequadamente se for substituída por outra palavra já carregada de valor (AR, p. 45). Importa pensar agora se uma moral assim é universal e se o igualitarismo estende-se a todos e, com Tugendhat (AR, p. 45) perguntar-se: “O que impede um grupo de limitar o acordo a si mesmo e de excluir os outros?” Tugendhat (PBL, p. 132, tradução própria) contrapõe, afirmando que “parece que do mesmo modo que uma oligarquia não pode justificar as normas aos prejudicados, da mesma maneira o grupo não pode justificar aos que estão de fora o porquê de eles serem excluídos”. Ainda assim se pode afirmar que se isso não pode ser justificado frente aos prejudicados, então isso não é para eles justificável e pronto. Tugendhat afirma (AR, p. 45), no entanto, que esta “mesma atitude se poderia tomar frente aos prejudicados no interior do próprio grupo, e assim se poderia ir adiante até que se chegasse a um conceito que [...] correspondesse a um contrato usual”. Tal retirada teria limites pragmáticos, mas também do ponto de vista pragmático ela é em parte sempre possível (AR, p. 46). Com certeza seria necessário aceitar, neste caso, que os excluídos ou prejudicados têm que ser obrigados pela força, levando em conta que não podem aceitar a falta de justificação. Poderiam submeter-se às normas de acordo com as circunstâncias e, isso se dá do mesmo modo como quando se adere a um contrato normal, mesmo não o aprovando, mas por necessidade. É importante ressaltar, no entanto, que nesses casos o sistema normativo é injusto. Um sistema puramente contratual que não é moral, como o defendido por Gauthier, poderia ter lugar em certos comportamentos humanos. Por exemplo, o comportamento entre as nações é, em grande medida, um comportamento puramente contratual e, por isso, determinado pelo poder dos mais fortes. De acordo com Tugendhat: 54 A igualdade que contém a moral é para os mais fortes, por um lado, uma desvantagem, mas, por outro, o poder contar com a internalização das normas e o ter sentimentos compartilhados conduzem a uma maior coesão social. Por isso, ainda é vantajoso para os mais fortes ser igualitários, pelo menos verbalmente (PM, p. 24). Cabe ressaltar aqui que o fato de pertencer a uma comunidade moral não significa, em última análise, que se possa saber se alguém tem de fato sentimentos morais (indignação, culpa) ou se apenas finge, pois essa possibilidade, “a de alguém ser um parasita moral32, tem, contudo, de permanecer aberta” (PM, p. 39). Daí que a posição contratualista permanece naturalmente sempre possível e necessária, uma vez que ela não pressupõe uma consciência (LSE, p. 77). Dizendo isso de outro modo, a posição contratualista pura “é a moral daquele que não tem um sentido moral” (LSE, p. 77). 1.5 Justiça e compaixão A discussão contemporânea sobre justiça parece infeliz para Tugendhat (PM), porque é relacionada unilateralmente à pergunta da distribuição de bens materiais, o que poderia conduzir à estranha opinião de que o justo consiste na desigualdade. Tugendhat aponta que o conceito de justiça não pode ser esclarecido partindo-se do problema da distribuição de bens materiais, mas que o lugar primário da justiça [...] consiste na distribuição de direitos morais, e ninguém hoje tem dúvida sobre se os direitos fundamentais devem ser distribuídos igualmente, por isso se chamam direitos humanos. No caso de uma distribuição de bens materiais, é verdade que a distribuição vai ser proporcional segundo algum critério, mas a pergunta sobre quem decide sobre o critério é uma vez mais uma pergunta igualitária (PM, p. 25). O motivo pelo qual o conceito de justiça desapareceu na concepção contratualista é que esta passa por cima dos sentimentos morais e do conceito de boa pessoa e, assim, do apreço e desprezo moral (PM, p. 25). Numa sociedade moral não só se repreende mas se louva também, e são essas duas valorações, a negativa e a positiva, que todos os membros da sociedade moral exercem 32 Tugendhat também usa a expressão “lack of moral sense” no sentido de “falta de sentimento ou sentido moral”, seja por motivos patológicos ou por decisão própria (LSE, p. 77) e que não é uma característica apenas da moral autônoma, mas pertence também a toda moral autoritária (AR, p. 39). 55 reciprocamente, pelas quais se gera uma sociedade moral (PM, p. 26). A pessoa se encontra numa rede de avaliações negativas e positivas. É importante ressaltar que dentro de uma sociedade, a maneira como cada um se relaciona com os outros não se reduz a exigências, mas contém igualmente a disposição ao reconhecimento, ao apreço moral e, igualmente, ao desprezo. Sem este aspecto reforçante, assinala Tugendhat (PM, p. 26), “não se pode entender como o tecido normativo de uma sociedade moral se faz”. Nesse tecido entram, numa moral relacionada aos interesses, não só os motivos egoístas de cada ator, senão também os interesses altruístas dos espectadores; e esses interesses altruístas dos espectadores conduzem o ator a uma motivação egoísta de um segundo nível de ser apreciado moralmente. A motivação do espectador é naturalmente diferente da motivação do ator: como espectador, a gente não tem um motivo egoísta contrário à ação moral, a gente em seu papel de espectador simplesmente tem o interesse em que os outros ajam moralmente bem. Isso significa que, no tecido de uma moral contratualista, essa atitude de cada um como espectador também entra. E sem esse fator, não se pode explicar a geração do tecido de normas de uma sociedade moral (PM, p. 26-27). O altruísmo e a moral podem vir a combinar-se, mas antes é importante fazer a distinção como conceitos diferentes. Tugendhat (AR, p. 29) enfatiza que “altruísmo e sistemas normativos de exigências recíprocas são dois diferentes conceitos, que estão em uma relação de parcial sobreposição”. Em sua crítica a Schopenhauer, que se dá na nona lição (LSE), Tugendhat examina a questão do altruísmo: “Se julgamos como moral uma ação boa ou a abstenção de uma má, somente quando ela ocorre por compaixão, então parece resultar daí que somente podem ser morais, quanto ao conteúdo, aqueles tipos de ações que ocorrem por este motivo” (LSE, p. 181). Uma moral como sistema normativo que carece de justificação pode ter conteúdos muito diferentes, exigir modos de comportamentos muito diferentes, não apenas altruísta e nem mesmo só aqueles que se referem a outras pessoas. De modo inverso, há comportamento altruísta que não é normativamente motivado e que, por isso, não carece justificação (AR, p. 29). Senão, veja-se um exemplo: alguém ajuda uma senhora que caiu no meio da rua a levantar-se, é motivado pela compaixão, ainda que a norma não o obrigue a agir assim (por dever), não existe um “ter de”, o faz por consideração espontânea e motivado pela compaixão pelo outro. Neste caso, portanto, o comportamento altruísta não é normativamente motivado. 56 Anteriormente foi explicitado que uma moral não religiosa tem duas fontes, ou seja, o interesse egoísta, por um lado, e a simpatia e a compaixão, por outro. Passa-se a analisar agora, portanto, esse segundo aspecto. Conforme Tugendhat, o problema com a compaixão é que: [...] ela só pode ser moralmente relevante, se for generalizada. Mas, de qualquer maneira, para a compaixão ser um elemento na moral, necessita-se de um fator que, se não a gera, pelo menos a reforça, e isso me parecem ser precisamente os membros da sociedade moral em seu papel como espectadores. Todos, como espectadores, temos o interesse de reforçar o agir moral dos outros. Louvamos os outros no grau em que agem altruisticamente; e, como a compaixão é um motivo para o comportamento altruísta, ela é incluída no louvor moral e é, além disso, generalizada na maneira que tem que ser no contexto moral (PM, p. 27). É natural que nem todas, mas a maioria das ações morais podem se referir ao sofrimento ou possível sofrimento dos outros. “Consideramos uma pessoa que observa as normas contratuais, não só por motivos contratuais33, senão também por compaixão, como moralmente melhor” (PM, p. 27). Tugendhat assevera que aqui [...] podemos acrescentar tudo o que Schopenhauer disse em favor da compaixão. Mas Schopenhauer não viu o entrelaçamento entre compaixão e moral contratualista (e nenhuma outra pessoa viu). Ser compassivo, intensificar e generalizar a própria disposição para a compaixão se faz uma obrigação moral (PM, p. 27). A compaixão quando incluída na moral contratualista conduz a que [...] uma vez que a compaixão é generalizada de tal maneira que funciona como base adicional para a moral, essa generalização não se pode conter nos limites do contratual. Uma vez que a capacidade de compaixão é reconhecida como qualidade de um bom caráter moral, isso constitui um potencial de generalização que tem que ampliar a moral relacionada aos interesses além dos limites estreitos do contratual (PM, p. 28). Se faz mister enfatizar junto com Tugendhat (PM, p. 28) que isso tem que ser visto em dois passos, sendo que o primeiro diz respeito à ampliação da moral contratual a todos os que podem e querem participar dela. Não é tão simples ver a moral contratual igualitária como universal. Estar disposto a ampliar a moral para além do próprio grupo é, no entanto, uma obrigação moral. 33 Egoístas. 57 Poderia se argumentar que para entrar em uma sociedade moral com outros só é racional quando eles têm o poder de prejudicar, o que Tugendhat (PM) reconhece que não é fácil rechaçar sendo a moral apenas contratualista. As consequências dessa concepção, no entanto, podem ser vistas mais claramente: Se fosse assim, não seria imoral atacar um país frágil, e a mesma coisa se aplicaria nas relações individuais. Parece que uma moral contratualista só pode ser entendida como uma moral geral quando se combina com aquela generalidade que está contida na simpatia generalizada. Seria a generalidade da simpatia que impediria limitar a generalidade contratual arbitrariamente e que assim conduziria à universalidade da moral (PM, p. 28). Parece ilusório, também, pensar que jamais pode ser prudencialmente necessário entrar numa moral, não importa quão estreitamente concebida. Este primeiro passo se refere somente àquela universalização que contém todos os que podem e querem participar na sociedade moral, mas a compaixão, uma vez generalizada, se estende além dos limites da sociedade moral com suas exigências recíprocas: Uma vez que se vê a compaixão generalizada como virtude moral, esta virtude pode estender-se a todos os que são possíveis objetos de compaixão, quer dizer a todos os homens que não são – ou ainda não são – capazes de entrar num consenso moral, e não só aos homens, senão a todos os seres que podem sofrer, quer dizer também aos animais (PM, p. 28-29). Hoje é preciso poder escolher, de forma autônoma, entre a moral como é dada e a moral como se quer ou se deve tê-la. Propõe-se de imediato perguntar, recorrendo a Tugendhat (PBL, p. 133, tradução própria), “por que devemos ou por que queremos aceitar uma moral de autonomia recíproca? Qual é o sentido deste dever?”. No entendimento de Tugendhat, não se pode remeter nem à palavra ou conceito de moral e nem à consciência de moral fática34. Esta última, largamente aceita na atual ética anglo-saxã, a qual é tendencialmente igualitária e universalista, e que seria a substituta ideal para a moral reciprocamente autônoma para responder a pergunta sobre o que impede o indivíduo de aderir a uma moral “entre aspas”, cujo sistema normativo fosse somente parcialmente justificado, conservando normas de caráter coercitivo, ou seja, injusto. 34 Também conhecida como “consciência moral contemporânea” (PBL, p. 132). 58 O motivo pelo qual Tugendhat (AR, p. 46-47) a exclui como instância de apelação para responder a essa pergunta, é que essa consciência moral é de uma época histórica determinada e que, com certeza, é melhor ou pior justificada. Por isso, coincide melhor ou pior com a ideia de uma moral autônoma e, sendo histórica, não pode ela própria servir de parâmetro. A moral que se deve entender dessa maneira só pode fazer sentido de que, se assim for feito, seria necessário admitir que não se pode justificar para os outros ou alguns outros. Mais uma vez se poderia perguntar “o que importa a justificação diante dos demais?”, ao que se poderia dizer: “só então podemos viver com outros em uma relação de simetria” (PBL, p. 133, tradução própria). Na perspectiva da simetria, Tugendhat considera que: A simetria parece ser um ideal na relação entre duas pessoas e, igualmente, parece ser um ideal que queremos desejar para toda a coexistência humana. Nos vemos confrontados aqui com o que pode parecer a bifurcação fundamental de como entender as relações humanas: ou se respeitam os interesses dos outros, ou se exploram as possibilidades para a vantagem própria. Ou seja, moral e poder. Essa mesma bifurcação, frente a qual sempre nos vemos confrontados no interior da moral, parece se repetir quando perguntamos como entender a própria moralidade (PBL, p. 133, tradução própria; AR, p. 47-48). Segundo Tugendhat (PBL, p. 133), a conclusão seria que não se deve dizer que o conceito de moral requer simetria, mas ao contrário, que é preciso entender a moral desta maneira para se querer simetria. Pode-se considerar, então, o quão fraca é a base humana. Somente se pode apelar a um entendimento da vida, a um “como” de um modo de vida. De acordo com Tugendhat, o próximo passo seria então esclarecer melhor o peso que esta ideia de simetria possui: Aqui seja destacado pelo menos um aspecto. A propósito da pergunta pela motivação para agir moralmente, apontei para o fato de que não faz nenhum sentido dizer que nosso motivo é simplesmente a moralidade como tal ou dizer que se age assim porque assim é correto, mas apenas que agimos assim porque de outro modo nós nos teríamos de desprezar. No entanto, se o sentido da moralidade constitui-se na simetria, então o moralmente correto ganha um sentido pelo qual fica compreensível que uma pessoa, mesmo independente de um sistema de sanção e elogio, pode ser motivada a agir moralmente simplesmente porque ela não quer que sua ação seja assimétrica, como a exploração de uma vantagem unilateral de poder; e faz sentido então dizer: um homem não se quer entender assim (AR, p. 49). 59 Reduzir a moral a um contrato já não supre as necessidades de uma sociedade moral e o contratualismo moral já inclui a compaixão generalizada por necessidade de justificação. Para Tugendhat (PM, p. 30), lhe parece natural que não se possa definir duma maneira unívoca o âmbito da moral. Em seu entendimento, o único elemento determinante aqui é a capacidade humana, fundada geneticamente, de entrar, com base na sua disposição para os sentimentos morais, em sistemas de exigências recíprocas que têm que ser justificados reciprocamente. Tal justificação não pode ser pendurada na razão e, quando se prescinde de justificações religiosas, nem pode ser pendurada no céu, e assim parece natural que os homens sempre vão brigar sobre o âmbito da moral (PM, p. 30). Essa disputa tem certos pontos de apoio, mas se deixaria de ser homens se essa disputa se pudesse decidir de maneira definitiva. A capacidade à compaixão nos homens não é igual, sempre haverá o conflito entre aqueles que William James designou como os duros, e aqueles que designou como os brandos (PM, p. 30). Sem o contratualismo simétrico parece que um sistema de exigências recíprocas autonomamente justificáveis não é pensável. Uma vez, porém, que ele tenha sido posto em movimento (vendo apenas como uma perspectiva), admite em si também outros motivos que agora, mediante a avaliação moral recíproca, podem ser fortalecidos. O altruísmo espontâneo rompe os limites do contratual e do normativo, mas ele também se deixa integrar neles. Ele não é algo que se pode exigir, mas se deixa incorporar pelo conceito do moralmente bom, e sem tal conceito parece difícil pensar que se poderia esclarecer problemas morais que hoje em dia atormentam (PM, p. 49). Quem se coloca a pergunta “quero eu fazer parte da comunidade moral?, tem de perguntar-se: “quem afinal eu quero ser, em que reside para mim a vida e o que depende para mim disto, que eu me compreenda como pertencente à comunidade moral”? (LSE, p. 97). Por isso, o momento decisionista tem que ser simplesmente destacado “[...] tudo que podemos nomear em motivos para nosso interlocutor e para nós mesmos [...] apenas baseado em nosso saber antropológico”, mostrar “quanta coisa seria jogada fora junto com nosso pertencimento a uma comunidade moral” (LSE, p. 97, grifo nosso). A reflexão sobre o “eu quero”, que está na base do “eu tenho que”, conduz-nos no sentido de assumir a autonomia que faz parte do ser humano adulto. A vida talvez fosse mais simples, mas também menos séria, se a moral fosse uma 60 parte de mim, assim como meu coração ou minha coluna. Pensar para si a moral de maneira tão heterônoma é prova de uma falta de confiança na congruência dos conceitos morais, que resultam para mim e para os outros (LSE, p. 98). O que quer que seja aquilo que se deseje, porém, “sua base é muito frágil – e na história se mostrou, muitas vezes, que nenhuma tentativa de tornar essa base mais forte por meios artificiais levou os seres humanos a se tornarem melhores do ponto de vista moral” (LSE, p. 98). No capítulo que segue serão apresentadas as posições de Tugendhat relacionadas às questões da justiça, igualdade, direitos humanos e a relação destes temas com a moral e a relevância dos mesmos para o campo educacional. Com isso se estará contemplando a proposta de contribuir com a temática da ética e da educação num momento em que esse tema se torna relevante. Tais desdobramentos se tornam possíveis a partir da perspectiva do que foi apresentado no primeiro capítulo e sua relação com aqueles temas que serão apresentados a seguir. 61 2 ÉTICA E EDUCAÇÃO, APROXIMAÇÕES A PARTIR DE TUGENDHAT No primeiro capítulo deste estudo teve-se a oportunidade de manter contato com os exaustivos argumentos de Tugendhat a favor de uma ética moderna, igualitária, universal e pós-metafísica. Isto permite perceber as dificuldades enfrentadas para se chegar a uma posição na qual se possa colocar alguns dos problemas contemporâneos e, a partir daí, refletir que tipo de sociedade, indivíduo e educação se almeja. No capítulo que segue a abordagem de Tugendhat se dá por meio da discussão da igualdade e da justiça e essas inevitavelmente levam à questão dos direitos humanos que, apesar de tão discutidos, pouco se tem implementado de fato. Temas esses que estão intimamente relacionados com a questão da moral proposta e que são de alta relevância para o campo educacional. Quando o assunto trata de educação, Tugendhat leva em conta essencialmente a sua importância para o encaminhamento do educando para a maioridade e a responsabilidade moral. Do mesmo modo que, com a proposta de uma moral, para ele o atuar do professor está relacionado com um esforçar-se por ativar a preparação do aluno para que alcance sua autonomia. E isso só é possível numa concepção de “educação contrária a qualquer justificação autoritária” (EP, p. 34, tradução própria). Sua abordagem está inserida no pressuposto de uma sociedade e uma escola com uma concepção liberal e democrática que “se destina a promover o processo de autodeterminação e a felicidade das crianças” (EP, p. 29, tradução própria). Este capítulo está divido em três pontos essenciais para entender as questões que estão sendo postas para a sociedade e para a educação. No item 2.1 apresenta-se uma abordagem acerca da igualdade e da justiça; o item 2.2 traz a discussão inerente àquelas e se relaciona com a questão dos direitos humanos; em seguida, no item 2.3, estão relacionados alguns apontamentos que se pode aduzir dos escritos de Tugendhat em relação ao que se dá de importante relacionado à educação. Diante desta, tem-se o quadro de uma ética universal nos moldes apresentados no primeiro capítulo deste estudo e a íntima relação entre ética, direitos humanos e educação. A partir do exposto serão apresentadas considerações finais, aduzindo as contribuições que se tornaram possíveis vislumbrar no aspecto da ética e da educação. E, também, aquelas 62 questões que se abrem como possibilidades de serem contempladas com discussões mais profundas e que não se esgotam neste estudo, abrindo perspectivas futuras de novas abordagens e desdobramentos enriquecidos pelo esclarecimento conceitual apresentado por Tugendhat e que se relacionam de forma íntima com a condição humana e as relações intersubjetivas a elas relacionadas, entre elas a educação. 2.1 Considerações de Tugendhat acerca da igualdade e da justiça Neste item será abordado o ponto de vista de Tugendhat sobre os direitos humanos e a igualdade como conceitos fundamentais para qualquer tentativa de entendimento intersubjetivo e, principalmente, o aclaramento dos conceitos envolvidos que propiciam desvios e confusões interpretativas. De antemão fica claro que temas envolvendo a concepção de justo já estão, de fato, vinculados a um julgamento moral. Tugendhat (IDM) enfatiza que a questão dos direitos humanos e da justiça social, talvez seja o maior problema ligado à realidade atual, e a dificuldade que se apresenta em como fazer justiça em um mundo capitalista é um problema grave que deve ser enfrentado. Desde a Revolução Francesa e da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América do Norte parece evidente que um Estado político só pode ser considerado legítimo quando contém em sua constituição uma garantia de direitos humanos. Assim argumenta Tugendhat (IDM) ao tratar da questão da igualdade no direito e na moral. De acordo com a declaração dos direitos humanos das Nações Unidas de 1948, pressupõe-se que todos os seres humanos sejam iguais em dignidade e direitos. Segundo Tugendhat (IDM, p. 19, grifo do autor, tradução própria), “a crença nos direitos humanos como única base de legitimidade pressupõe, por conseguinte, a igualdade normativa entre todos os seres humanos. [...] o que se pode chamar igualitarismo”. A base de tal convicção na igualdade dos direitos dos seres humanos enquanto direitos fundamentais tem que ser compreendida a partir do entendimento do que é igualdade e justiça. Para Tugendhat (IDM, p. 19, tradução própria), a corrente filosófica que mantém a ênfase dada ao termo “igualdade” tem feito a confusão entre igualdade e generalidade, donde nas listas de direitos humanos se repete a expressão “todos”, ou seja, “todos os cidadãos ou todos os seres humanos têm esses direitos”, fazendo simplesmente uma referência ao geral e 63 não ao igual. Tugendhat afirma enfaticamente que se trata de uma alegação falsa, pois, “quando se diz que ‘todos’ têm estes direitos, isso sempre tem tido o sentido de que já não serão alguns, como fora na época do feudalismo35” (IDM, p. 19, tradução própria). A base desse argumento, Tugendhat encontra no artigo 2º da dita Declaração, onde diz “que todos têm estes direitos sem distinção de qualquer tipo, como raça, cor, sexo, linguagem, religião, opinião política, origem nacional ou social”. Para ele, são justamente estas distinções que estão sendo rechaçadas, significando “precisamente que se está proclamando a igualdade de todos em relação a esses direitos fundamentais e por isso se chamam direitos humanos” (IDM, p. 19, grifo nosso, tradução própria). Desde o slogan da Revolução Francesa e da Declaração de Independência dos Estados Unidos, inclusive, “quase todas as declarações de direitos humanos desde então referem-se explicitamente ao termo igualdade” (IDM, p. 20, grifo do autor, tradução própria). Esse igualitarismo tem sofrido a crítica de que o sentido da igualdade consistiria na distribuição igual dos recursos materiais. O que Tugendhat entende por um mal entendido, pois “a questão da distribuição dos recursos econômicos dentro de uma sociedade, ou também dentro da sociedade mundial é uma temática muito especial e seria um erro pensar que o igualitarismo consistiria nisso” e sim, consiste o igualitarismo “na convicção de que num Estado legítimo todos os cidadãos têm iguais direitos fundamentais” (IDM, p. 20, tradução própria). Disso resulta óbvio que “o conceito de igualdade ocupe dentro de nosso pensamento normativo um lugar central [...], e este conceito está estreitamente conectado ao conceito de justiça” (IDM, p. 20, tradução própria), Na Declaração de Independência dos Estados Unidos se lê que “consideramos estas verdades evidentes em si mesmas [...] todos os homens foram criados iguais”, no entendimento de Tugendhat: [...] esta formulação parece fazer caso omisso de que os seres humanos são de fato desiguais em muitos aspectos e que a ideia do igualitarismo não é a de que sejam de fato iguais, senão que, apesar das suas desigualdades (como sexo, raça, cor, etc..), devem ser considerados normativamente como iguais (IDM, p. 21, tradução própria). 35 E porque não dizer, entre os gregos (nota nossa). 64 A maneira formulada pela Constituição Francesa de 1791 resolve esta dificuldade, que no seu artigo primeiro diz que os homens “são iguais em seus direitos” (IDM, p. 21, tradução própria). No entendimento de Tugendhat, é ainda mais grave um segundo ponto, qual seja, a Declaração de Independência dos Estados Unidos declara que se trata de uma verdade evidente em si mesma, e isto simplesmente significa que não sabe como explicá-la e justificála. Isto não tem sido mudado até hoje: [...] sendo que muitos ao se darem conta do lugar central que ocupa para nós a ideia normativa de igualdade, se contentam em dizer que para nós, para nossa cultura ocidental ou para a moral moderna, este pensamento é constitutivo. Outros tem realizado tentativas de explicar esta ideia historicamente e, alguns outros a veem como concomitante do capitalismo. Mais ainda, seria a explicação que se refere à tradição cristã [...] todos são descendentes de Adão, a quem Deus criou a sua imagem e, por conseguinte, Deus nos ama a todos igualmente (IDM, p. 21, tradução própria). Parece haver uma linha direta entre a ideia de igualdade a partir de Deus e que se deve ter em relação aos outros da cristandade, e a concepção moderna de que se deve respeito igual a todos os seres humanos. Parece certo que no Cristianismo e no Judaísmo tardio surgiu esta ideia normativa igualitária, cabendo a pergunta: pode-se explicar as convicções humanas modernas a partir daí? (IDM, p. 22). No entendimento de Tugendhat (IDM, p. 22, tradução própria) “parece muito mais plausível supor que a ideia de igualdade tem uma validade em si e que foi por isso que chegou a ter importância dentro do cristianismo”. Na tentativa de descobrir em que consiste e quais são as bases dessa validade é que Tugendhat se pergunta: “qual é então a origem da nossa convicção de que não há legitimidade sem igualdade?” (IDM, p. 23, tradução própria). Este autor já havia feito uma tentativa de resposta em seu livro Diálogos em Letícia, que resulta em que “de toda moral se pode dizer, do mesmo modo que do direito de um Estado, que só é legitima quando se pode justificar para todos os membros desta sociedade moral” (IDM, p. 23, tradução própria). E aqui é relevante o fato de que parece não ter havido entre as culturas humanas uma moral que não tenha sido vista como justificada para os que a ela se submetiam, ou seja, justificada para todos os membros da sociedade moral. 65 Como já foi visto no primeiro capítulo deste estudo, para Tugendhat existem dois tipos de justificação, ou seja, tradicionalista e autoritária de um lado e, de outro, os interesses dos membros da sociedade, sendo deste segundo que parte toda a abordagem do autor. É importante ressaltar que, mesmo numa sociedade moral que entende suas normas como justificadas na autoridade, a fé na autoridade substitui a referência aos interesses (como no contratualismo), porém, também se trata de uma igualdade, pois todos têm a mesma fé (IDM, p. 24). Para uma moral moderna nos moldes propostos por Tugendhat, a origem da ideia de igualdade está, como o próprio autor se dá conta, no conceito fundamental normativo. Isso leva a certa circularidade, pois o mesmo conceito de igualdade que se encontra no conteúdo da moral, reaparece na maneira de sua justificação (IDM, p. 24). O importante da abordagem que o autor tem por certo é que “o conceito de moral é oposto ao conceito de poder [...]”, pois quando a moral não é definida de maneira que o sistema normativo resulte igualmente justificável para todos, uma parte dos membros da sociedade moral, por poder, tem que se submeter forçadamente a esta moral (IDM, p. 24-25). No intento de resolver o que se encontra na base da alternativa entre moral e poder, Tugendhat (IDM, p. 25) encontra numa estrutura antropológica fundamental dentro da teoria da ação, uma solução que não contém nenhuma referência à moral e ao específico da justificação da moral: Os seres humanos podem atuar sozinhos e também juntamente com outros. No caso das outras espécies não me parece que haja uma clara distinção entre agir sozinho e ação conjunta. Naturalmente, ocorrem as duas coisas normalmente também em outras espécies, porém um animal simplesmente atua como tem que agir conforme seu sistema genético, enquanto que as ações de um ser humano dependem de sua vontade. Isto tem como consequência que quando vários seres humanos fazem algo juntos, quando têm um fim comum ou se embarcam em um empreendimento comum, tal ação social sempre depende da vontade deles (IDM, p. 25, tradução própria). Cabe a pergunta sobre como se integram as vontades, as quais levam a duas possibilidades ou soluções intermediárias, que são: uma delas é a que decide e determina a vontade dos outros e, é a isto que se chama poder (a vontade dos demais não é autônoma e sim forçada); a outra possibilidade é que não haja determinação e submissão unilateral, mas em termos de submissão e a determinação haja simetria entre todos. “Não é um quem decide, senão que todos decidem juntos e isto significa que todos contribuem por igual a como se vai agir” (IDM, p. 25-26, tradução própria). 66 Levando em conta que “todos contribuem por igual”, isso conduz ao que Tugendhat entende pela origem do conceito de igualdade: Se isso é correto, então a igualdade teria sua origem no fato de que se uma ação comum não é decidida por poder, ou seja, determinada por um do grupo ou por uma parte do grupo, então a única alternativa é que seja decidida por todos. O qualificativo “por igual” entra aqui por necessidade, pois se a ação não é determinada por igual por todos, então, no grau em que não contribuem por igual são forçados, sua vontade depende da vontade dos outros, se tratando de poder (IDM, p. 26, tradução própria). No primeiro caso citado, um decide e o(s) outro(s) se submete(m), seja por vontade própria ou pela força. A alternativa é que ambos se encontrem em simetria em relação ao poder e à submissão, caracterizando a simetria de modo que haja um equilíbrio de poder e submissão entre os envolvidos, ou que não seja uma relação de poder. Vendo de outro modo, poder unilateral (assimétrico) de um lado, simetria de outro e, naturalmente que pode haver casos intermediários. É preciso considerar que, quando se distribui um bem entre diversas pessoas, isto pode ser incluído sob o conceito de uma ação em comum e toda distribuição de bens ou de encargos é uma ação comum ou parte de uma atividade em comum. Para melhor compreender isto, Tugendhat apresenta alguns exemplos e se transcreve um deles a seguir: Não se trata da distribuição dos bens e encargos de toda uma sociedade, mas dos bens ou encargos que se apresentam em uma atividade concreta como é comum [...] Ou um grupo de pessoas que vivem juntas como grupo de amigos, ou os filhos de uma família que recebem algo, por exemplo, um bolo. Agora não se trata de levar a cabo uma ação, mas de distribuir este bem, porém, fundamentalmente se trata do mesmo fenômeno. Quando se reparte dois pedaços de um bolo, a forma de repartir depende se a ação em que o grupo se encontra é determinada por poder ou se entende-se como simétrica (IDM, p. 27, tradução própria). A intenção de Tugendhat é de que se possa dar conta de que, junto com o conceito de igualdade, nasce também o conceito de justiça, em que a distinção entre os dois conceitos somente se dará quando se falar de justiça proporcional. Considerando assim, no seu fundamento, a perspectiva até o justo é idêntica à perspectiva até o igual, sendo ambas alternativas ao poder na questão de como as vontades dos participantes de uma ação comum se relacionam entre si. Se é uma pessoa, que podemos chamar de Tirano, a que decide sobre como atuar e como distribuir, a pergunta por justiça não tem lugar, exceto na cabeça dos súditos, os quais podem dizer “temos que agir assim ainda que não seja justo”. Porém, se não é um o que tem o poder, então se entra na dimensão da simetria e com ela, na questão da justiça (IDM, p. 27-28, tradução própria). 67 Disso resulta que se chegaria a uma explicação da origem da perspectiva de igualdade a partir da estrutura de uma ação comum, ao invés de dizer que igualdade e justiça derivam do conceito de moral36. Tugendhat afirma que isso quer dizer: [...] que teríamos que entender o conceito de justo (ou pelo menos o de igualdade) como anterior ao conceito de uma moral. Ao invés de dizer que a participação igual nos direitos fundamentais estaria fundada no fato de que a justificação é igual para todos, teríamos que dizer que tal justificação igualitária da moral está fundada no fato de que a moral é a sua vez um empreendimento em comum, que se entende como oposta ao poder unilateral (IDM, p. 28, tradução própria). A justiça como anterior à moral quer dizer que descrever a situação entre várias pessoas como justa ou injusta (simétrica ou assimétrica), pode ser um primeiro passo, como algo descritivo, ainda que, uma vez que os indivíduos entendam sua situação, é praticamente inevitável que exijam reciprocamente atuar de maneira justa, ou seja, que a interpretação moral (prescritiva) parece sobrevir imediatamente (IDM, p. 28). Tugendhat destaca que é importante ver que o justo tem esta origem descritiva, no entanto, está atento que terminologicamente seria mais correto falar em nível primário (descritivo) simplesmente de igualdade e simetria e, falar do justo somente num segundo nível, no da dimensão prescritiva (IDM, p. 28, grifo nosso). Nessa perspectiva, Tugendhat percebe a relação e implicação disso com a infância do ser humano. Também no desenvolvimento infantil o problema do justo parece apresentar-se cedo e independente do resto do que entendemos por moral (isto está entre parênteses: suponho que na primeira aparição do justo na consciência das crianças, o injusto é sempre simplesmente o desigual, e que a justiça proporcional só aparece mais tarde) (IDM, p. 29, tradução própria). O autor trata aqui do caso de crianças que pouco ou nada sabem de moral e se queixam quando lhes é dado tratamento de maneira desigual dos seus irmãos ou companheiros. Pode-se ver nestas queixas uma distribuição na participação de uma ação comum e que o repartir dos bens não é justo, se usa uma linguagem moral, como se pode ver nas expressões: “por que eu ou por que não eu?” 36 Anteriormente o autor entendia que a origem da igualdade e também da justiça derivava do conceito de moral, ou seja, do que significa justificação de uma moral (vide primeiro capítulo deste estudo). 68 Um exemplo apresentado pelo autor para tornar mais claro é o que segue: Quando em uma excursão de família o pai pede a um dos filhos para ir recolher lenha para fazer o fogo, o filho poderia perguntar: “e por que eu?”, ou seja, por que não igualmente os outros? Ou quando se repartem os pedaços de um bolo arbitrariamente, os que ficam em desvantagem perguntarão: “por que para nós nada ou menos?”. Esse “por que” obviamente não pergunta simplesmente pela causa ou motivo, mas é um por que carregado de indignação e que pede uma razão normativa (IDM, p. 29-30, tradução livre). Desse entendimento da origem da igualdade e da justiça anteriores à moral resulta, também, que a distribuição normativa autoritária como possibilidade de uma justiça desigual, ou seja, a moral baseada na autoridade surge depois do conceito de justiça igualitária, sobreposta a esta e contém um elemento de poder. Toda moral autoritária baseia-se sobre um poder dissimulado, e este aspecto do poder sai à luz quando se pergunta pela justificação da autoridade (IDM, p. 31). Outra possibilidade de uma justiça desigual é a que está na base das justiças proporcionais dentro de uma moral não autoritária. Tugendhat (IDM, p. 31) vê como um erro daqueles que acreditam que a justiça sempre é proporcional a certos padrões, que não se perguntam como se pode justificar esses padrões e, não os podendo justificar, o justo seria algo relativo e convencional. Assim, estaria em contradição com o conceito de justo, pois “o justo sempre tem uma pretensão objetiva”, pois se afirma “assim é justo”. Para aclarar as possibilidades que derivam da justiça proporcional no entendimento de Tugendhat, destaca-se o que segue: [...] creio que quando perguntamos pela justificação de um padrão de justiça, isso nos leva geralmente mais uma vez à igualdade. [...] Em toda justiça proporcional existe um aspecto igualitário que se manifesta em diversos pontos. Primeiro, quando, por exemplo, se repartem pedaços de um bolo ou de carne mais ou menos grandes, segundo certas razões, se não existem razões, então a distribuição por partes iguais continua sendo a única que não é arbitrária. Ou seja, se fizermos um repartir desigual e não se pode dar uma razão para isso, a queixa e o correspondente sentimento de indignação irão surgir. Segundo, quando se fazem tais distinções proporcionais, todo os que se encontram na mesma classe dentro da escala desta série proporcional tem, uma vez mais, igualdade de direitos entre si em termos de distribuição. Terceiro, e este é mais importante, toda justiça proporcional válida parece reduzir-se à igualdade e, quando não se deixa reduzir assim é inválida (IDM, p. 31-32, tradução própria). Tugendhat distingue discriminação primária de secundária. A discriminação primária consiste na convicção de que certas qualidades com que alguém nasce valem menos do que 69 outras37, e aqui se depara com as mesmas distinções que se encontram nos direitos humanos que dizem que elas não são válidas. Tugendhat (IDM, p. 32, tradução própria) aproveita para demonstrar porque essas distinções não têm validade, afirmando que “são invalidadas porque não se pode justificar diante daqueles dos quais se diz que tem menor valor”. Em suma, discriminações primárias são, consequentemente, normas que são impostas pelo poder unilateral daqueles que simplesmente declaram a si mesmos como valiosos, daí que Tugendhat faz a distinção dessas discriminações com aquelas formas de justiça proporcional que podem ser válidas: Essas formas válidas de justiça desigual nunca podem referir-se às qualidades que simplesmente um indivíduo possua, senão quanto a regras que podem referir ou que acontece a alguém, ou a maneira como o indivíduo se comporta. Tugendhat apresenta exemplos práticos: Acontece a um indivíduo, seja por nascimento ou durante sua vida, uma deficiência ou mutilação, por exemplo, estar cego. Neste caso, suas necessidades são maiores que as dos outros e, por isto é justo que receba mais recursos. O igual respeito a ele como aos demais conduz a um tratamento desigual. A divisão por igual seria injusta. Outro exemplo seria que em uma ação comum, uma pessoa se esforçará mais que outra. Também aqui parece que seria injusto recompensar aquele que se esforçou mais, de forma igual àquele que se esforçou menos (o mesmo ocorre quando uma pessoa contribui com capital maior que outra no início de uma empresa) (IDM, p. 32-33, tradução própria). No entendimento de Tugendhat (IDM, p. 33), estas parecem ser regras que não são impostas unilateralmente, como é o caso das discriminações primárias, mas que concordam com a intuição de todos, também com a daqueles que, como consequência desta regra, receberiam menos e, antecipando a pergunta do porquê seria justo compensar o lesionado ou ao mais esforçado, responderia que se trata de “uma compensação”. Portanto, “a divisão desigual é razoável porque se recompensa uma desigualdade anterior, e isto significa que a distribuição desigual é justa precisamente por restituir a igualdade”. É importante frisar que nem todos os casos podem ser avaliados ou explicados de forma simples ou de forma intuitiva, pois esta última pode ser mera convenção social, portanto, deve-se refletir sobre qual pode ser a razão para cada caso. 37 Exemplo: os homens têm mais valor que as mulheres; os negros têm menos valor que os brancos; os de origem nobre têm mais valor que as pessoas comuns; os que pertencem a nossa nação são de maior valor que os de outras; etc. 70 Tugendhat traz um exemplo de distribuição desigual comum hoje em dia, e que quase todos pensam ser justa: Chama-se distribuição por mérito38, no sentido de que os que contribuem mais ao bem estar social devem receber mais, me parece errada. Tal distribuição, em realidade, não é justa, mas simplesmente útil dentro do capitalismo, e ao invés disso seria justa uma divisão de salários segundo a qual os que fazem trabalhos satisfatórios em relação ao exigido pelo trabalho, ganhem menos, enquanto aqueles que fazem trabalho sujo ganhem mais. Poderíamos escolher livremente entre trabalho sujo combinado com renda maior, ou trabalho agradável combinado com renda menor. Uma vez mais teríamos um resultado igual na soma: o que tem mais de um, terá menos de outro (IDM, p. 34, tradução própria). Na questão da educação o autor traz também um exemplo, no qual entende que não se pode adotar a mesma medida, ou seja, explicar da mesma maneira, conforme exemplo a seguir: Pensemos nas avaliações que se fazem em uma escola ou em qualquer nível de instrução. Nisso todos concordamos que seria injusto não avaliar com uma nota mais alta um trabalho melhor. Isso não se pode reduzir à igualdade. Aqui não se trata de compensação. Creio que estes casos não são de justiça distributiva, mas do que na tradição aristotélica se chamava justiça corretiva. [...] Aqui se trata somente de um juízo imparcial e não de uma distribuição (IDM, p. 34, tradução própria). Importante ressaltar que isso mostra que o conceito de justiça é mais complexo que o tratado nestas linhas, ou seja, justiça distributiva. Como afirma Tugendhat, o justo é o simétrico (o igual), exceto se há razões para considerar justa uma distribuição desigual, porém, ao contrário do caso da igualdade, sempre requer justificação. O tipo de justificação que se faz, de qualquer maneira, tem características de uma justificação moral, ou seja, recorre a um consenso. De modo inverso, a base da justiça como simetria parece ser anterior a da moral (IDM, p. 35). Por fim, Tugendhat (IDM, p. 35, tradução própria) destaca que “a justiça não é consequência da razão39, mas da simetria, e esta não é uma invenção, mas aquilo que realmente é a alternativa ao poder unilateral”. 38 Meritocracia. Numa crítica a Kant que, tendo uma posição próxima ao contratualismo, e percebendo as deficiências desse último teria errado em seu conceito de Razão Pura por não ter percebido a questão da simetria como única alternativa ao poder unilateral, inventando o conceito artificial de uma razão pura. “A ideia do que Kant expressa em seu imperativo categórico, em suas formulações, se podem clarificar a partir da opção por simetria, enquanto que ele tentou deduzir seu imperativo da razão e fracassou” (IDM, p. 35, tradução própria). Vide também toda a crítica realizada ao intento kantiano no livro Lições sobre Ética. 39 71 Fica uma pergunta, baseada na afirmação de alguns filósofos que expressam que o interesse por detrás de comparações interpessoais é com toda a dimensão da justiça como sendo produto da inveja, qual seja, “que motivos pode ter uma pessoa para preferir o simétrico ao poder unilateral?”: Creio que pode haver diversos motivos para preferir a simetria. Quem está em desvantagem sempre vai preferir o justo pela simples razão de que está em seu interesse. O que está em desvantagem na realidade não tem uma opção, prefere o justo porque não pode optar pelo poder. E se poderá dizer que a maioria de nós, de um modo geral, se encontra nessa situação e, por isso, a grande maioria está a favor dos direitos humanos (IDM, p. 36, tradução própria). Talvez a única pergunta que possa vir a ser importante aqui é: por que uma pessoa que poderia optar pelo poder unilateral possa preferir o simétrico? Ao que Tugendhat (IDM, p. 3637, grifo nosso) apresenta duas possibilidades: porque teme o ódio social, ou seja, o rechaço moral contra aqueles que agem de forma injusta (podendo traduzir justiça por dissimulação ou medo e continuar agindo clandestinamente de forma injusta); ou porque a vida simétrica lhe parece mais gratificante que o exercício do poder unilateral, então, a justiça seria para ele parte do que se chama vida boa. Neste último caso, o querer viver simetricamente não tem um motivo moral. 2.2 A respeito dos direitos humanos Quando se aborda os direitos humanos, logo vem a pergunta sobre o que são, se existem e se podem ser universais? Também suscita a pergunta sobre seu conteúdo e quais são? (PBL, p. 32). É assim que Tugendhat começa seu artigo La controvérsia sobre los derechos humanos, constante de seu livro Problemas: linguagem, moral y transcendência. Neste item, traz-se parte da abordagem sobre a questão para que se possa vislumbrar seu entendimento, posicionamento e relações com a proposta de uma ética de respeito universal justificada recíproca e igualitariamente. O texto também abrirá perspectivas para melhor compreender seu pensamento e ampliar as possibilidades de levar sua abordagem para o campo da educação. Fala-se dos direitos humanos como direitos naturais, inclusive se diz que o homem nasce com eles, porém, isto é uma metáfora, porque um direito só existe se é outorgado. Tugendhat destaca que em certo sentido, em um país não existem os direitos humanos se não foram outorgados por lei, se não formam parte da Constituição (PBL, p. 32). 72 Ao afirmar que são assim mesmo naturais, pretende-se dizer que esses direitos existem em certo sentido com anterioridade à lei, porém, também neste caso são outorgados pela moral e pela ideia de legitimidade que ela contém. É nesse sentido que se pode dizer que existem universalmente40 (PBL, p. 32), ao passo que, dizer que dependem da Constituição de um Estado, poderia levar a um relativismo e que os direitos humanos poderiam pertencer a uma cultura política particular, como a europeia. Entendendo os direitos humanos como um componente necessário da legitimidade, sempre que alguns homens exercem o poder político sobre outros carecem de legitimidade diante dos súditos, a menos que estes sejam submetidos à força pelo governo, ou que consideram o poder legítimo, ou seja, justificado. “O poder do Estado é legítimo se se baseia em certa maneira nos interesses de todos, e esta “certa medida” deve remeter aos direitos humanos se se mantém que são legítimos. [...] Esta justificação sempre é concebida como procedente de uma fonte moral” (PBL, p. 32-33, tradução própria). A posição que Tugendhat defende é que o desenvolvimento dos direitos humanos é um componente necessário da legitimidade que resulta quando a legitimidade tradicionalista desaparece. O fato de ter havido acidentes na história dos direitos humanos continua sendo aceita, porém, precisamente isto permitirá que identifiquemos certas inconsistências e assim possamos envolver a um representante dos direitos humanos liberais em uma discussão que leve a um conceito mais amplo dos direitos humanos e que se possa reivindicar como uma concepção universal (PBL, p. 33, tradução própria). O que se pretende com essa argumentação é eliminar a distorção do entendimento provocada pela visão histórica de que os direitos humanos seriam uma série de acontecimentos e fatos acidentais, uma idiossincrasia de um povo – os europeus. Isso tem levado a crer que não são universais e carregam interesses ideológicos de grupos nacionais. Na transição dos governos autoritários dos reis que, legitimados de forma tradicionalista, governavam e eram aceitos, os direitos concedidos eram os que se lhes forçava conceder, como no século XIII o direito a não ser preso arbitrariamente, como garantia de segurança contra a arbitrariedade do poder real (PBL, p. 33). O passo para a democracia deve ser considerado como decisivo, em que a legitimidade do poder político deixa de ter uma base tradicionalista para fundamentar-se sobre a vontade do povo. Deste modo, o poder político já não é algo contraposto ao povo (PBL, p. 33). 40 Ver no item 2.3 deste capítulo a abordagem sobre a origem da igualdade e da justiça como anteriores à moral. 73 Um dos problemas da democracia é o seu conceito: Democracia tem o sentido de autonomia coletiva, porém ao caracterizá-la assim a pessoa esquece facilmente que neste caso os indivíduos como tais perdem sua autonomia individual. Falar da autonomia de uma coletividade implica uma ambiguidade perigosa. Tal como o percebe Rousseau41, os indivíduos se convertem praticamente em meras partes do Estado. [...] Problema que foi percebido claramente nos debates na convenção constitucional dos Estados Unidos da América do Norte. O que nele se considerou como o perigo dentro de um sistema democrático foi chamado de tirania da maioria. Se a maioria pode decidir o que quer, poderia, por exemplo, aniquilar com a minoria. [...] Mas o que importa aqui não são os detalhes que preocuparam os pais da Constituição norte-americana, mas o problema de princípio do qual se deram conta, que foi o possível totalitarismo de um sistema democrático (PBL, p. 33-34, grifo do autor, tradução própria). Tugendhat resume isso da seguinte forma: se a ordem política deve ser legítima, uma condição necessária, mas não suficiente, é que seja democrática. O procedimento democrático deve ter, também, garantias contra os abusos aos que o sistema democrático está exposto; porém, mas também e ainda se o democrático funcionasse da forma mais perfeita imaginável, todos os indivíduos devem dispor de espaços próprios nos quais possam desenvolver-se; estes espaços devem estar preservados das decisões políticas majoritárias. É um contrapeso necessário dos interesses individuais, já não o é ao poder político autoritário senão ao poder político como tal. É importante sublinhar que esta concepção não é só uma opinião possível, mas uma concepção necessária se a ordem política pretende ser legítima e se a legitimidade está baseada sobre os interesses dos cidadãos (PBL, p. 34, tradução própria). Tugendhat enfatiza que o dito até o momento poderia se resumir sob os títulos de democracia e liberalismo. Tem-se entendido direitos humanos como se fosse uma parte integral da democracia, no entanto, conforme exposto anteriormente, a palavra “democracia” não é entendida simplesmente como poder baseado no povo, mas como poder suplementado pelos direitos humanos. Apesar de usual, não se deve esquecer que se trata de dois fatores complementares: o fator democrático em sentido estreito e o fator liberal (PBL, p. 34). Tugendhat chama a atenção para o fato de que há duas formas de criticar a concepção liberalista: uma é a que se opõe ao critério de que os interesses dos indivíduos devem ser a fonte última de legitimidade, e a proteção desses interesses é o único fim do Estado. [...] Esta crítica se dirige contra a base mesma da ideia moderna de legitimidade. Os que criticam pretendem sustentar que o individualismo como tal é errôneo e que faz 41 Representante clássico de uma concepção de democracia sem liberalismo, segundo o qual o indivíduo transfere toda sua liberdade à vontade geral. 74 caso omisso do fato de que nunca somos puros indivíduos, mas já desde sempre seres sociais42. No entanto, [...] o que se deve criticar nesta concepção hipotética se situa em outra parte. O que importa aqui é que o recurso aos indivíduos não equivale a uma negação de seu ser social, mas que significa somente que deve ser assunto da autonomia do indivíduo decidir em que grau se quer identificar com sua condição de ser social (PBL, p. 35, tradução própria). Tugendhat (PBL, p. 35) diz que, se os indivíduos e seus interesses não forem a única fonte de legitimidade, teriam que sê-lo os entes supraindividuais, como o Estado de Hegel ou os costumes que ele evoca. Importa destacar que a única coisa que o individualismo bem entendido exclui é que se imponham certas estruturas sociais como tradicional ou divinamente dadas. Digno de registro é que o individualismo não propõe o egoísmo e tampouco o exclui. A ideia é simplesmente partir de uma determinada concepção de vida, de converter o social em algo autonomamente desejado e, o único que fica excluído, a priori, é prejudicar aos outros indivíduos (PBL, p. 36). A outra crítica ao liberalismo que Tugendhat faz é com relação àquele que não toma em consideração o interesse de todos: Esta crítica insiste em que a maneira como o liberal descreve os espaços que se devem garantir ao indivíduo está considerando de fato os interesses particulares de um grupo social e que está passando por alto ou ainda prejudicando os direitos dos outros grupos. [...] dentro do âmbito dos direitos dos indivíduos [...] simplesmente chama a atenção sobre o fato de que a maneira liberalista de definir os direitos implica violar os direitos de outros grupos. Podemos aclarar a diferença entre as duas críticas em relação ao egoísmo aquisitivo. [...] para a crítica conservadora, este é em si condenável como forma de vida43 [...]; para a outra crítica, esta atitude é permitida e só deve ser limitada na medida em que viola os interesses dos demais (PBL, p. 36, tradução própria). Do ponto de vista de Tugendhat (PBL, p. 36), esta segunda crítica é a única que lhe parece justificada, levando a uma revisão dos direitos humanos que na tradição liberal se consideravam como únicos. O ponto mais óbvio da crítica é o que se refere ao direito irrestrito à propriedade desigual, com a simultânea proteção estatal desta propriedade contra os despossuídos. 42 Crítica fundamental encontrada em Hegel e também em Marx. Os liberais têm atraído esta crítica por sua hipótese de um estado de natureza de puros indivíduos sem Estado e da criação do estado por contrato. 43 Inclusive Marx aqui é considerado conservador. 75 A polêmica fundamental sobre a concepção liberal, no entanto, deve tomar um ponto de partida mais básico, e este tem de ser o conceito de liberdade, ou seja, aquele exposto no item 2.3 deste estudo, onde Tugendhat aproxima o conceito de liberdade ao de justiça. O conceito de liberdade [negativa] do liberalismo, porém, prega que “ninguém impede o pobre se fazer rico com meios legais”, cujo conceito de liberdade é contraposto pelo que se tem chamado de liberdade positiva, pelo qual “alguém só é livre a fazer algo não só se não lhe impedem, mas também se têm primeiramente a capacidade, e segundo, as condições materiais para isso” (PBL, p. 36, tradução própria). Este segundo conceito de liberdade já é uma crítica ao liberalismo, porque só conhece a liberdade negativa, ou seja, está livre de coação. O conceito de liberdade positiva, no entanto, não é suficiente para tomar em consideração o interesse de todos, que é o objetivo de Tugendhat. Um traço que demonstra o peso da tradição liberal é que o conceito de liberdade quase sempre é considerado o conceito fundamental incontestável da legitimidade política. Tugendhat (PBL, p. 37, tradução própria) chama a atenção que “é certo que ser livre, a autonomia, o poder fazer ou não fazer o que a pessoa mesmo quer é um interesse fundamental dos homens, mas isto não significa que esteja na base de todos seus interesses”. Aliás, faz-se aqui um aparte para destacar essa característica do liberalismo que parece ter influenciado o egoísmo típico que conduziu ao capitalismo atual, ou seja, a liberdade irrestrita, intocável, livre de coação pelo Estado e pelos demais. Veja-se, pois, o direito à vida ou o direito à segurança física, que sempre tem aparecido como direito fundamental no próprio liberalismo, e que de fato, historicamente, foi o primeiro, mas não é direito a uma ação, a uma liberdade (PBL, p. 37). Para que se faça uso da liberdade, de espaços de ação, somente se são satisfeitas certas condições, portanto interesses ainda mais fundamentais. O fato de que a tradição liberal pode ver a liberdade negativa como fundamental e suficiente para os direitos humanos tem suas razões em que esta tradição sempre havia pressuposto um grupo privilegiado para o qual aquelas condições prévias já estão cumpridas, com exceção da segurança física. As outras condições prévias são que a pessoa já tenha tanto a capacidade como o acesso aos recursos materiais necessários para o exercício daquela liberdade que é a condição para poder manter a própria vida (PBL, p. 37, tradução própria). Crianças, velhos, doentes e deficientes não têm nem a necessária capacidade para isso e, aqueles que não possuem nada, em geral, não podem adquirir propriedades, porque estas já 76 estão repartidas entre os privilegiados. Ou seja, os que não têm propriedades, ainda que tenham a capacidade, não têm as condições materiais para obtê-las. Tugendhat (PBL, p. 37, tradução própria) ressalta que “os despossuídos estão em condições de ganhar a vida somente se trabalharem para os proprietários e se tornam assim, dependentes de seu poder”. Neste ponto, Tugendhat concorda com o que dizia Marx. “Considerando o sistema liberal de direitos humanos como autossuficiente, é um sistema ilegítimo porque, primeiro não toma em consideração várias partes da população e porque, além do mais, produz novas relações de poder a favor da classe privilegiada” (PBL, p. 38, tradução própria). Supondo que os liberais, não tendo negado os direitos ao interesse dos demais grupos, mas passado por alto estes temas, Tugendhat pretende contrapor com uma concepção legítima mais ampla dos direitos humanos e, ainda assim mostrar-lhes o parcialmente legítimo de sua concepção. Isso tem consequências para a base sobre a qual se deve apoiar a questão da legitimidade sociopolítica. Com isto refere-se à ideia de um hipotético estado natural, e à ideia de um hipotético contrato como base da sociedade e do Estado. O que faz parecer inadmissível esta base não é, como o era para a crítica conservadora, o individualismo como tal. Mas o fato de que esta base seria um ponto de partida somente para a classe privilegiada do liberalismo, ou seja, para os varões adultos e sadios que em princípio poderiam sustentar sua própria vida e que foram iguais para negociar o contrato. Não sem razão, os teóricos do estado de natureza partiam sempre do pressuposto duvidoso de que todos tiveram mais ou menos as mesmas forças44 (PBL, p. 38). Tugendhat (PBL, p. 38, tradução própria) afirma que “um sistema político de igualdade normativa nunca pode ser o resultado de um contrato entre desiguais”. A ideia do contrato sempre foi a construção ideológica daqueles que podiam acreditar estar em condições de estabelecer um contrato mais ou menos simétrico. O sistema sociopolítico é colocado em questão e até não deveria vir em primeiro lugar, mas colocado assim, se remetia unicamente ao político e não ao social, resultando que as relações sociais de poder e as políticas se conservavam e as reforçavam (PBL, p. 38). 44 Das mulheres, naturalmente, não se falava e muito menos dos deficientes. 77 Tugendhat (PBL, p. 38, tradução própria) chama a atenção para “a perspectiva do interesse igual de todos, segundo a qual, só podemos levantar a questão de como deve ser o sistema político se por sua vez, levantamos a questão de como deve ser o sistema social”. Uma parte da população como as crianças e os velhos, por princípio, não podem prescindir de ajuda e a ideia de um contrato entre iguais é impensável para eles, de modo que a base da questão acerca da legitimidade deve ser, não um estado de natureza, mas o fato real de que todos nos encontramos de diversas formas em uma relação de dependência mútua e a questão é, como podemos mudar a definição destas formas de dependência de tal maneira que possam considerar-se legítimas? (PBL, p. 38, tradução própria). A ideia é, ao invés do conceito de liberdade da tradição liberal, ou seja, de liberdade negativa, introduzir um conceito fundamental diferente. Ofereceu-se para isto o conceito de liberdade positiva e a maioria dos que reclamam direitos socioeconômicos o utilizam, no entanto, ele é insuficiente para as crianças, velhos e enfermos pelo fato deles não só necessitarem que se estabeleçam condições materiais para agir, mas também precisarem de uma ajuda direta. Por que esta ajuda? Tugendhat responde: [...] para que possam prosperar e desenvolverem-se dentro do possível. Os espaços de direito que um sistema político legítimo teria que outorgar a todo indivíduo, não são somente espaços de liberdade, mas espaços próprios para construir sua vida a fim de poder prosperar e desenvolver-se. Com isto não devemos desprestigiar o conceito de liberdade positiva e nem tampouco o de liberdade negativa; ambos são, com efeito, centrais, só que não são suficientes. O conceito de liberdade negativa, ou seja, que os indivíduos devem ser livres de coação e violência é indubitavelmente fundamental para qualquer conceito de direitos humanos. E é correto que o passo seguinte deve consistir na introdução do conceito de liberdade positiva. Este passo fundamental para a primeira ampliação dos direitos humanos para além dos direitos a liberdades negativas. Primeiro, porque a autonomia é uma necessidade fundamental humana; e, segundo, porque somente assim se pode aliviar a deficiência central do sistema capitalista, que consiste em que muitos homens e mulheres querem e poderiam ganhar seu sustento próprio, porém não podem fazê-lo (PBL, p. 39, grifos do autor, tradução própria). Resulta disso, primeiro, o dever do sistema político, se ele quer ser legítimo e criar condições de trabalho adequadas para todos os que são capazes de trabalhar, reconhecendo muitas declarações de direitos humanos, apesar de não ser realizado por nenhum país capitalista. Disso deriva, elenca Tugendhat, uma série de obrigações de criar condições iguais de oportunidade, como a abolição dos colégios particulares e pagos para a elite e a abolição do direito à herança. 78 Sem dúvida, o conceito de liberdade positiva é limitado. O que faz falta às crianças desamparadas, velhos e deficientes, além das condições materiais de sustentar suas próprias vidas é a capacidade para tal. Eles precisam ser ajudados de maneira direta, e esta ajuda deve ser prestada de forma que sua autonomia seja fomentada dentro do possível. Nesse sentido, Tugendhat (PBL, p. 40) propõe direitos tais como os da provisão médica e o cuidado dos velhos, os quais não podem ser fundados no fomento a essa liberdade exclusivamente. Adotando uma posição não contratualista [ou seja, diferente da concepção liberal] e concebendo a partir daquilo que tem sido simplesmente a realidade, as pessoas excluídas devem ser consideradas igualmente como parte da sociedade e, portanto, seus interesses têm o mesmo valor, ou seja, cada pessoa vale igual. “Por isso, seus direitos de serem ajudados tem que ser reconhecidos como direitos humanos”, pois sendo direitos e “o sistema político que deve ser considerado legítimo, tem uma obrigação para com eles, não sendo um ato de misericórdia ajudá-los, mas um direito” (PBL, p. 40, tradução própria). Mesmo sendo difícil reconhecer a injustiça do sistema de direitos humanos vigente, em que se pode dizer que “a riqueza deve ser restringida, porque ela mesma tem causado pobreza”, muitos liberais, no entanto, ainda pensam que seu contrato não fez isso com “essa gente marginal”, levando-os a crer que podem se sentir exteriores ao sistema e, portanto, fora das suas responsabilidades. Pensam, inclusive, o mesmo que os capacitados para trabalhar, mas que “sobram”. Afirmam que não é consequência do sistema, mas do incremento da natalidade o fato de haver mais pessoas que trabalho, e que não se trata de justiça e sim de má sorte (PBL, p. 40, tradução própria). Deve-se mencionar, assinala Tugendhat (PBL, p. 40-41, tradução própria) que “a inclusão dos direitos socioeconômicos no sistema dos direitos humanos não constitui somente uma ampliação de conteúdo, mas que implica também em uma mudança no sentido formal desses direitos”. Havia-se entendido classicamente esses direitos como exigências dirigidas somente ao Governo, o qual estava obrigado a restringir o seu próprio poder. Porém, “hoje começamos a entender que o perigo para o indivíduo não é somente o poder do Estado, mas o poder econômico dos outros indivíduos”. A obrigação de “um Estado legítimo, portanto, não consiste somente em respeitar ele mesmo os espaços dos indivíduos, mas em protegê-los das invasões do poder de outras pessoas ou instituições” (PBL, p. 41, tradução própria). 79 Um exemplo disso é que se reconhece que um monopólio de imprensa infringe o direito à liberdade de expressão de maneira inconstitucional. A resistência à inclusão dos direitos socioeconômicos como verdadeiros direitos humanos, além de apoiar-se no conceito restrito de liberdade, se baseia em dois argumentos: que são vagos e que custam dinheiro. Tugendhat (PBL, p. 41) aponta a pesquisa de Henry Shue, em seu livro Basic Rights, onde ambas as coisas podem ser ditas igualmente dos direitos clássicos. É preciso admitir, juntamente com Tugendhat: [...] que estamos diante de graves problemas, porém não deveria confundir-se a questão da dificuldade de instalação de certos direitos humanos, como o direito ao trabalho, com a questão da legitimidade. A perspectiva de legitimidade parece exigir a instalação destes direitos (PBL, p. 41, tradução própria). A título de complemento e de informação, Tugendhat chama a atenção para o fato de que hoje está na moda falar de direitos humanos de terceira-geração, sendo os dois primeiros: os clássicos e os socioeconômicos. Estes novos direitos seriam, por exemplo, os direitos de coletividade (uma nação ou uma etnia ser autônoma) e os direitos ecológicos. Havendo direitos de uma coletividade, não só seria uma nova geração de direitos humanos, como também um conceito totalmente novo, porque os direitos humanos são essencialmente direitos dos indivíduos. No entendimento de Tugendhat (PBL, p. 42, tradução própria) “o direito à autonomia de uma coletividade é em realidade redutível aos direitos dos indivíduos que compõe esta coletividade, a autodeterminar-se coletivamente”. Quanto aos supostos direitos ecológicos, A primeira pergunta é: Quem os tem? A natureza? Não creio que tenha sentido falar da natureza como sujeito de direitos. Ou são os seres humanos os que teriam estes direito, por exemplo, o ar e água puros? Esta maneira de falar, mais uma vez se presta a uma inflação de coisas as quais teríamos direito e isto também acabaria com o sentido do conceito de direitos humanos. [...] No melhor dos casos, se convertem assim em supostos direitos humanos alguns fatos que caem ou deveria cair sob a lei penal (PBL, p. 42, tradução própria). No entendimento de Tugendhat (PBL, p. 42), a maneira correta de formular o que se quer dizer com o direito ao ar limpo é que aquelas pessoas, instituições ou empresas que são as causadoras de um efeito danoso, deveriam ser castigadas, como igualmente deveriam ser nos casos em que não são ecológicos. 80 2.3 Educação e a abordagem de Tugendhat Tugendhat tem se dedicado profundamente às questões relativas à moral, como foi possível constatar por meio do exposto no primeiro capítulo deste estudo. Também neste segundo capítulo ele demonstra o quanto a questão moral e temas como direitos humanos, igualdade e justiça são interdependentes. Especialmente interessante é saber que o autor também demonstra preocupação com as implicações da moral nas questões da educação e de como se dá a formação moral das crianças. A centralidade de sua postura em relação à educação se dá com o conceito kantiano de “maioridade” e a busca da felicidade, guardando um vínculo íntimo com sua filosofia moral na perspectiva da reciprocidade, igualdade e justiça. Tugendhat (EP, p. 24-25) ressalta que em termos pedagógicos, supor que a tarefa da escola é a de educar na adaptação e acomodação ao existente contraria a ideia de maioridade kantiana, da qual não se pode mais discutir seu sentido. “Maioridade” é definida por Kant como a capacidade de “fazer uso da própria inteligência sem ser guiado por outros45”. O emprego de tal inteligência implica que até mesmo as ‘relações vitais condicionadas pelo entorno familiar’ sejam examinadas em relação a sua razoabilidade e isso significa, ao mesmo tempo, relação com a justiça. “Somente na medida em que as relações mencionadas não satisfaçam este critério deve o homem que alcançou a maioridade exigir uma transformação” (EP, p. 24-25, tradução própria). Em outras palavras, por meio da educação ocorre o processo de inserção em uma sociedade moral já estabelecida e é no interior desta que se gera a possibilidade de crítica, de intervenção. Obviamente que não é de imediato sair questionando as normas estabelecidas, mas reconhecendo o caráter de construção das mesmas nas relações intersubjetivas. Nessa perspectiva, uma educação liberal defendida pelo autor está “voltada para alcançar a felicidade do homem”, pois “a ideia de uma escola democrática se destina a promover o processo de autodeterminação e a felicidade das crianças” (EP, p. 29, tradução própria). 45 “Não se deve considerar tampouco a maioridade mesma como um estado, mas sim como um processo que nunca se alcança” (EP, p. 27, tradução própria), ou seja, entendida como um constante aperfeiçoamento de si mesmo no sentido da perfectibilidade em Rousseau. 81 “Uma educação contrária a qualquer justificação autoritária inspira valores, fantasias, simpatia e responsabilidade nos indivíduos para despertar neles a compreensão do espírito da democracia” (EP, p. 34, tradução própria). Neste espírito contrário a qualquer forma de autoritarismo que, como demonstrado na questão da moral não mais é possível justificar diante de todos, “[...] a concepção liberal segundo a qual somente uma educação inclinada a fomentar a capacidade de juízo próprio pode apresentar resistência frente às ideias políticas pouco fundadas, procedam estas da direita ou da esquerda” (EP, p. 28, tradução própria). Tugendhat (EP, p. 30) entende que numa concepção democrática como a manifestada acima os indivíduos “são a última instância” e não as instituições. Sendo assim, salienta a necessidade da existência de direitos fundamentais e da democracia, e ressalta a importância da declaração francesa dos direitos humanos e da Declaração de Independência NorteAmericana, pois é neste contexto que se situa uma escola onde se educam cidadãos. Eu creio que os direitos humanos são um concomitante essencial a um Estado democrático e o ponto importante é ver que um Estado, ou seja, um estado com “E” maiúscula, sempre tem desejado ter legitimidade e, então estamos confrontados com a mesma coisa que com a moral. De um lado temos uma justificação do político que é autoritária, tradicionalista, religiosa; e de outro, temos uma justificação que tem que ser uma justificação para cada um. Quando temos um Estado deste último tipo, então os direitos humanos formam parte essencial de dito Estado (HERNANDEZ; PINZÓN, 2007, p. 9). Dito de outra maneira, o poder do Estado somente está legitimado se baseado no interesse de todos em certa maneira. Esta certa maneira é a justificação com base nos direitos humanos como um componente da legitimidade46. É diante de tal perspectiva que as instituições educacionais são estabelecidas e amparadas pelo Estado, devendo ser obrigatórias, laicas e gratuitas. E, conforme Tugendhat (EP, p. 23-34), juntamente com Kant, seu propósito deve ser a autonomia que, em última instância, conduz à maioridade. Somente então o indivíduo adulto esclarecido estará habilitado a emitir juízos e fazer escolhas racionais sem ser guiado por outros. Para Tugendhat, se faz necessária uma reforma educativa da qual deve fazer parte a inclusão da nivelação referente à promoção de igualdade de oportunidades educativas sem supor erroneamente que esta já se encontre realizada entre os indivíduos (EP, p. 32). 46 Citado no item 2.2. 82 2.3.1 Educação, diálogo e reflexão Diante do quadro explicitado no primeiro capítulo deste estudo pode-se, sem dúvida, inferir que no que se relaciona à educação, Tugendhat concordaria que, ao educar, deve-se estimular aos poucos as crianças a “perguntar pelas razões” de tudo o que lhes tem sido ensinado desde a infância. Por exemplo, do porquê “sob uma moral se está, quer queira ou não” (PBL, p. 123). Isso implica diretamente na pergunta pelas razões de tais normas, porque devem ser aceitas ou não. Um dos motivos que permite perceber essa essencialidade a partir de Tugendhat é que o mesmo enfatiza que “a moral é carente de legitimação [...], pois restringe o espaço de liberdade daqueles que se consideram membros de uma comunidade moral e submetidos a ela”. Tal aceitação somente se dá porque “um sistema de regras morais existe somente se aqueles que o aceitam as consideram justificadas” (PBL, p. 123, tradução própria). As preocupações de Tugendhat com a educação e a moral remetem a seu livro denominado O Livro de Manuel e Camila, que está dirigido especialmente ao público adolescente em idade escolar para ser utilizado na escola e despertar a reflexão de problemas éticos. Diante da percepção e do contato com os adolescentes é possível perceber as angústias das cabeças juvenis diante de perguntas inquietantes sobre si e sobre o mundo que os cerca, e que o futuro é incerto e precisa de respostas. Neste sentido, Tugendhat (MC) entende que a Filosofia tem muito a ver com a juventude e não pretende fazer transformações ou trazer respostas prontas ou verdades, mas abrir um diálogo em que diga algo, e que ouça também. Em comentário à versão brasileira, Adriano Naves de Brito diz em nota publicada na orelha do livro, que [...] filosofia e jovem têm muito a dizer um ao outro. Mas ele é modesto. Não quer tratar de tudo o que há para esses dois falarem. Não fala sobre a beleza, a verdade, a natureza e tantos outros temas sobre os quais haveria tanto a conversar. Ele é um convite ao diálogo sobre o dever, as obrigações, a culpa, a admiração e a indignação. Sobre a autonomia, a reciprocidade e também sobre o sentido da vida (MC). No prefácio da versão brasileira deste livro, Tugendhat explica as motivações que o levaram, assim como os demais colaboradores, a desenvolver esse livro: 83 Tínhamos experiência com o ensino de filosofia nas escolas com o método e os livros de Matthew Lipman e, no caso especial da ética, com o seu livro Elisa. Decidimo-nos por escrever um texto próprio porque Elisa nos pareceu demasiadamente vinculado ao ambiente norte-americano, e também porque não queríamos deixar as questões éticas tão em aberto como estavam no livro de Lipman [...]. Tínhamos pensado em aulas para jovens entre treze e quinze anos. A experiência dirá se isso também se aplica à Europa e ao Brasil (MC, p. 7). “Em contraste com tudo o que escrevi até então”, comenta Tugendhat (EXTRACLASSE, 2003), “não é um livro filosófico, mas pedagógico para que todos possam usar nas escolas, porque hoje se quer falar em moral nas escolas”. A ideia central do livro está limitada às questões centrais da moral de forma universal. Tugendhat (MC, p. 7) aponta que “no Chile, muitos ainda pensam que a moral perde as suas bases se não está fundada na religião”. Devido a isso se pensou em mostrar de maneira “compreensível para os estudantes do nível médio que uma moral construída sobre a autonomia recíproca permite encontrar respostas claras, pelo menos no que diz respeito aos temas centrais da moral”. O autor abriu mão neste livro de temas e questões importantes, como o aborto e a atitude frente aos animais, “questões sobre as quais talvez não seja possível um consenso” (MC, p. 8), ainda que, em seus textos em livros e artigos, tenha abordado e se posicionado, inclusive sobre a questão da eutanásia, religião e da mística. No livro, um grupo de alunos debate alguns temas que lhes despertam curiosidade e questionamentos, levando-os a procurar respostas aos problemas apresentados. Pela dificuldade e amplitude de alguns temas, são conduzidos a profundos questionamentos, fazendo, inclusive, perguntas para seus pais, amigos e ao bibliotecário atencioso na tentativa de solucionar os dilemas. Alguns temas/perguntas são tratados no livro em forma de diálogo: qual é o pior crime? Todos os roubos causam o mesmo dano? Nunca é permitido causar sofrimento aos outros; promessas e enganos; a regra de ouro e o respeito; solidariedade; castigo e responsabilidade; virtude e autonomia, etc. (MC). Este livro não apresenta solução para os problemas da educação moral e nem traz respostas para os problemas complexos da atualidade, mas demonstra o quanto as preocupações humanas relativas ao dia a dia, desde a mais tenra infância e no decorrer da vida, estão envolvidas em questões morais e contingenciais que exigem respostas adequadas. 84 Essas necessidades envolvem um mundo globalizado economicamente e contrariam a tese de que “tudo é líquido” e a insistente tendência ao relativismo do discurso contemporâneo. Também, e exatamente por isso, demandam um posicionamento. O que segue são excertos extraídos dos diálogos constantes deste livro e que permitem vislumbrar como pode se dar a justificação da moral envolvendo o ambiente escolar, os círculos de amigos e a família. Dessa maneira, pode-se proporcionar condições de entendimento do mundo que cerca o ser humano em crescimento e que necessita de uma educação na autonomia com perspectivas na maioridade e na justiça. Não estão diretamente ligados à educação como teoria ou método pedagógico, mas estão presentes na proposição educacional. O sentido é de uma escola que pretende propiciar condições para a compreensão do mundo e das regras a que o indivíduo está sujeito e a justificação de sua manutenção ou aprimoramentos necessários nas relações intersubjetivas do indivíduo em sociedade. Ao se pensar por um instante nos direitos humanos, e dentre eles aquele em que “todo ser humano tem direito à vida”, depreende-se que a pena de morte é ilegítima, mesmo quando atinge um criminoso que matou. Todo ser humano tem direito à integridade de seu corpo. Como se viu no item 2.3 deste estudo, todos têm direitos sem distinção de qualquer tipo, e que todos são iguais em relação a esses direitos fundamentais. Voltando, então, a um dos contos da “novela” Manoel e Camila, de Tugendhat, onde o tema do direito à vida é debatido entre os personagens ao tratarem de um assalto seguido de assassinato, tem-se que “[...] algo assim não deveria ocorrer, as pessoas deveriam aprender a amar-se e a respeitar-se” (MC, p. 10). Há, aqui, um diálogo que pode explicitar como Tugendhat entende a educação em sua essência e através deste tema também se aplica um exemplo de como se dá a justificação da moral e da educação inserida no contexto de uma moral do respeito igualitário e universal sob a perspectiva de Tugendhat. Disso segue toda uma argumentação da qual se poderia extrair algumas questões colocadas pelo autor do livro no diálogo, como segue: [...] Porque é mau matar alguém? [...] é algo tão mau porque todos queremos viver. No meu modo de ver, a vida é o maior bem. Tudo mais é menos importante do que poder viver. [...] Mas porque todos queremos viver? [...] é um fato que, para nós, viver é o mais importante. [...] Por isso, sempre procuramos evitar a morte. [...] Mas o que acontece com as pessoas que se suicidam? São exceções [...] mas isto se dá 85 porque estão gravemente enfermas ou totalmente desesperadas. [...] até uma pessoa que esteja pensando seriamente em suicidar-se se assustaria terrivelmente se fosse ameaçada com um revolver e faria todo o possível pra salvar-se [...] Porque achas que isso acontece? Sem dúvida, porque o desejo de sobreviver é o sentimento mais forte que temos (MC, p. 12-15). Por que existe uma lei proibindo ações que causem dano a outros, como por exemplo, o roubo? Qual sua justificação? O que levaria a alguém aceitar tal lei? E se agem somente por causa da lei, o que se poderia pensar dela? Inicialmente poderia se afirmar que num primeiro momento o medo do castigo (prisão). Ainda assim isso não a impede de agir assim quando não há ninguém vendo e nesse caso, se descoberto, creio que a resposta é que não teríamos confiança nela e, portanto não seria uma “boa pessoa” para termos na convivência como membro de nossa comunidade (MC, p. 25-27). Por este motivo “também não é suficiente que a educação se apoie somente sobre o castigo. É preciso conseguir que as crianças não se comportem com os outros do modo como não gostariam que os outros se comportassem com elas”. E como é possível conseguir esse comportamento? “Tens de aprender a ser capaz de te colocares no lugar de outra pessoa”, pois não basta pensar que ninguém quer ser roubado (MC, p. 25-27). “É a consciência da pessoa e não o castigo que vai evitar o roubo”, portanto, ou a ação que venha a prejudicar os outros. Ao se perguntar, ainda, sobre o que aconteceria se houvesse pessoas que não tivessem consciência moral? Daí que as más pessoas não têm nenhum respeito pelos outros e seu comportamento deixa a todos indignados (MC, p. 25-27). Não se pode excluir as possibilidades de dilemas morais em situações onde alguns direitos como a vida são essencialmente mais importantes que outros instituídos socialmente. Também “[...] não se podem forçar sentimentos”, pois fazem parte de coisas “que as pessoas só podem viver com liberdade” (MC, p. 49), ainda que seu comportamento deixe a todos indignados. “Às vezes é inevitável que a ação de uma pessoa faça outra sofrer, mesmo sem a intenção de causar esse sofrimento e também sem agir com negligência. É a outra pessoa que sofre pelo que fazes; mas então, em princípio, é um problema dela” (MC, p. 50). “Logo não pode existir uma regra geral determinando que todos devam comportar-se da maneira [...] conforme a expectativa” (MC, p. 51) de outra pessoa, censurando-a, pois “uma relação assimétrica não é boa para” nenhuma das partes envolvidas. 86 Talvez daqui se possa aduzir que nem todos irão desenvolver a consciência moral, ou seja, além de ser capaz de se colocar no lugar dos outros também ser capaz de sentir indignação ou culpa. Parece que é preciso se contentar com o mínimo de que as pessoas aceitem conviver sob a norma de uma comunidade moral e não esperar que todos tenham sentimentos morais em relação aos outros, propiciando assim espaço para aqueles que se submetem simplesmente à lei e a cumprem por conveniência ou medo de serem punidos. Claro que a aceitação de participar de uma comunidade moral equivale a uma promessa, a assumir um compromisso. Se não a cumprir “abusa da confiança que despertou no outro” (MC, p. 57), comprometendo com isso a relação de reciprocidade pressuposta na moral da comunidade. O que no mínimo, ainda assim, é uma possibilidade plausível (PBL). Em outra situação, Tugendhat aborda a questão da confiança recíproca: Na convivência humana a confiança é sempre essencial (MC, p. 61). Quando se faz uma promessa é esperado que seja cumprida e, se é possível supor que quando prometes alguma coisa, ela não significa nada pra ti, pois, de todo modo, depois, farás o que tiveres vontade, então, não devo confiar em ti (MC, p. 59). As promessas são um meio importante para coordenar as ações e os sentimentos das mais diferentes pessoas entre si, mas essa fina rede pode ser desfeita por causa da desconfiança (MC, p. 59). O mesmo se dá com os pais em relação aos filhos e, com os professores em relação aos alunos. Nesse sentido, as crianças ou alunos têm o direito de exigir que promessas (tratados) sejam cumpridas. “Se os pais decepcionam muitas vezes os filhos nesse sentido, com promessas que não cumprem, as crianças depois terão dificuldade em criar laços íntimos com outras pessoas [...] se as crianças crescem sem confiança, rapidamente se tornam grandes egoístas” (MC, p. 61). É como nos jogos [...] se alguém usa sempre as regras a seu favor, logo ninguém mais vai querer jogar com ele. O comportamento na convivência social tem muita semelhança com os jogos. Há regras não ditas que devem ser respeitadas e não são permitidos truques e manobras enganosas. Mas no jogo também se treina o comportamento social. Imagina que alguém [...] ganhe no jogo através da trapaça [...]. [...] Podes ver que também no jogo sempre é necessária a confiança, e que realmente todos respeitem as regras. Se falta confiança, o jogo perde o seu sentido (MC, p. 6263). A verdade é que as crianças, como os adultos, têm mais disposição para colaborar com quem as trata com gentileza, respeito, compreensão e dignidade. 87 No sentido da relação professor-aluno, Tugendhat (MC, p. 128) aborda a importância de ter como referência a “regra de ouro”47 da tradição ocidental e pondera que uma das tarefas mais importantes da educação consiste em ensinar os jovens a bem comportar-se, dentro de uma compreensão ampla da palavra “comportamento”. Só seria considerada qualquer ideia de punição em casos de muita gravidade. Quanto às questões relacionadas à ideia de punição, Tugendhat (MC, p. 128) pondera que “no caso específico das crianças, não só devemos punir ações que prejudicam os outros, também precisamos nos preocupar com o comportamento prejudicial a elas mesmas". A justificação para tal reflexão se dá pela pergunta: “Não achas evidente que as crianças ainda não possuem visão suficiente para cuidarem de seu próprio bem? Esta é a razão pela qual se encontram sob a tutela de seus pais e sob a supervisão de seus professores” (MC, p. 126-127). Questões como essas, porém, não podem ser explicitadas e entendidas tão à risca e sim, devem buscar sua justificação última. A punição mencionada acima, portanto, é entendida não no sentido de um castigo como retribuição ou vingança e sim como método de dissuasão. Ou seja, através de uma advertência “influenciar as pessoas de modo que aprendam a comportar-se bem” (MC, p. 126-127). Entenda-se o comportar-se bem no sentido de mostrar à criança como pode desenvolver o autocontrole. Aqueles que defendem a postura de que necessitam castigo entendem que “o castigo restabelece um equilíbrio que foi perturbado” pela ação negativa. Mas entendida sob o prisma dessa teoria, que chamam retribuição, “o castigo restabelece um equilíbrio que foi perturbado com o crime [...] ideia que leva a pensar que é permitido fazer mal a uma pessoa toda vez que ela faz um mal a outra”, ou seja, “seria bom acrescentar um mal a outro mal” (MC, p. 126127). No caso dos delitos dos adultos, é única e somente o Estado possui o poder de punição. Se o Estado renunciasse ao monopólio da pena, logo se teria de volta ao país a lei da selva. Parte-se do pressuposto de que os adultos atingiram plena responsabilidade, o que aparece na expressão “maioridade”. Significa que se considera que o adulto possui a capacidade de pensar e decidir por si mesmo, de modo independente. A liberdade de poder 47 “Tudo o que vós quereis que os homens lhes façam, devem fazer também vós a eles” (Mt, 7,12) citado por Tugendhat (MC, p. 78). 88 cuidar de seu próprio bem está relacionada com a responsabilidade perante a lei estabelecida pelo Estado (MC, p. 129). Não se deve confundir a maioridade perante a lei concedida pelo Estado com a maioridade de fato que é uma questão de autodeterminação individual e cujo processo de aprendizagem dura a vida toda (MC, p. 130-132). Tugendhat (MC, p. 133, grifo nosso) é bastante enfático ao afirmar que “Uma boa educação consiste em ficar ao lado das crianças e adolescentes enquanto crescem na responsabilidade”, no processo de passagem para a vida adulta e suas responsabilidades. A diferença fundamental que falta às crianças e que reside nos adultos, enfatiza Tugendhat (MC, p. 134), é que “na verdade deveriam ter aprendido a controlar os seus sentimentos, assumindo suas responsabilidades diante de todos. [...] Por natureza, temos mais emotividade do que o necessário. Por esse motivo, precisamos nós mesmos encontrar a cada vez a mistura certa, o justo meio, e essa capacidade de autocontrole precisamos exercitar no decorrer de nossa educação. Esse processo de educação, aliás, não termina com a infância. Pode-se bem observar como pessoas adultas se comportam de modo bem infantil quando temem ser diminuídas em algum aspecto. Se pensarmos bem, a capacidade para o autodomínio é praticamente o mesmo que a responsabilidade; uma pessoa consciente da responsabilidade está em condição de escolher como quer viver. Esta capacidade [...] se chama “autonomia”. [...] as crianças pequenas ainda não a possuem [...] e se as possuem, será, no máximo, em forma rudimentar, pois ainda não tem suficiente consciência do futuro. E o que o futuro tem a ver com isto? Quero dizer que ainda não alcançaram a capacidade de renunciar a coisas agradáveis que, no futuro, forçosamente se mostrarão prejudiciais [...] ou de substituí-las por outras coisas que, mesmo numa perspectiva mais longa, permanecerão benéficas. [...] As crianças estão, na maioria das vezes, demasiado imersas nos divertimentos ou emoções do momento [...]. Talvez saibam que, em algum momento do futuro, tal comportamento poderá ter consequências negativas, mas essa consciência ainda não desenvolveu a força necessária para exercer influência sobre o presente. Esta é, exatamente, a razão para que os professores e os pais tenham uma função de controle (MC, p. 138-139, grifo nosso). Ressalta-se aqui que essa função de controle está muito bem delimitada pelo motivo da própria educação para a maioridade e responsabilidade: Todo educador sabe – e falo aqui também por experiência própria, a de minha segunda profissão como professor de Ética em um instituto de ensino secundário da Baviera – que é muito mais fácil ensinar de forma autoritária que esforçar-se por ativar a preparação do aluno para que alcance sua autonomia (EP, p. 26, tradução própria). Mas é responsabilidade e obrigação do professor propiciar os meios para a preparação psíquica e intelectual do estudante no sentido de conquistar a sua autonomia. 89 É preciso lembrar que se está diante da ideia de uma sociedade moral que pressupõe a autonomia como condição de poder decidir o que é bom para o indivíduo e que esse bom pressupõe que é bom para todos igualmente. Uma educação no mesmo sentido da moral proposta por Tugendhat deixa entrever condições essenciais que só são possíveis vivenciar em uma sociedade democrática onde o sujeito exerce sua autonomia de forma livre, sem coação e com responsabilidade. Daí que pressupõe uma educação que desde as bases propicie os elementos indispensáveis para a tomada de decisões livre de coação e que leve em conta toda a comunidade moral. Uma educação que não exclua a formação da consciência moral e os sentimentos de indignação e culpa. Da consideração para com os outros de forma autônoma, igualitária e justa e a busca intersubjetiva de consensos, em que a responsabilidade diante de si mesmo e de todos os outros conduza a um comprometimento com a justiça de forma universal. Por fim, é importante destacar que em nenhum momento o que aqui é apresentado deve ser tomado como prescrição ou regra definitiva. São reflexões que são compartilhadas para que se possa refletir juntos que tipo de educação, que tipo de pessoa e de sociedade se deseja para todos. Que estas reflexões levem ao diálogo entre iguais, esclarecido e comprometido com a construção de um mundo melhor, mais justo e mais humano. Diálogo que não abra mão de parceiros sociais cooperadores, indivíduos capazes de se indignar, de cumprir promessas, de solidariedade e que estejam dispostos a fazer escolhas que levem em conta os interesses de todos os membros da comunidade. Entre os fins educativos positivos a serem alcançados estão as virtudes da diligência (interesse, investigação), a disciplina e a ordem com fins pedagógicos. Ainda entre os desejáveis estão a maioridade, a autonomia, a autodeterminação e o exercício do direito. Mais ainda, os pontos obrigatórios que não podem ser “deixados de lado como a ‘razão’ e a ‘felicidade’, pontos de referência pra toda moral herdeira da modernidade” (EP, p. 30-32, tradução própria) para todo fim humano. 90 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo da proposta de uma moral universal a partir das obras de Ernest Tugendhat permite uma abertura de perspectivas quanto à possibilidade real de uma ética que sirva de parâmetro para as mais diversas culturas, laicizando e universalizando a discussão e o palco onde possa haver acordos mútuos de um mundo melhor. Como o próprio Tugendhat enfatiza, “sob uma moral se está, quer queira ou não”. Resta, portanto, abrir possibilidades de diálogo e entendimento para que humanamente se possa refletir e entrar em acordos de convivência onde prevaleçam a igualdade e a justiça. A proposta demonstra que é possível fundamentar a moral sem recorrer à religião, ainda que boa parte dos indivíduos tenha sido socializada desta maneira (sob os preceitos religiosos), tornando viável o reconhecimento universal desta fundamentação. Ainda que Tugendhat diferencie os conceitos de moral e de ética, entende que não é uma distinção necessária e que isso não vem a se tornar um problema, embora compreenda que o termo “ético” pode ser tomado como a reflexão sobre a moral, ou seja, para diferenciálo do conceito de moral. A moral entendida como um sistema de exigências recíprocas exclui qualquer obrigação moral sem reciprocidade e os sistemas normativos não podem ser entendidos senão como sistemas de sanção recíprocos, ou seja, de pressão social. O ser humano está sujeito e se coloca com o direito a reações, sejam elas de afeto negativo (indignação e culpa) ou positivo (louvor e recompensa). A moral é carente de legitimação devido ao fato de restringir o espaço de liberdade daqueles que se consideram membros de uma comunidade moral e submetidos a ela. Um sistema de regras morais, portanto, somente existirá se for considerado justificado pelos membros da comunidade. 91 A restrição de espaços de liberdade se dá por meio da sentença “ter de”, algo negativo para aquele que não age de acordo com esta determinação. Num contexto moral o indivíduo é confrontado com escolhas, não do tipo sim/não, mas no sentido de uma escala de preferências, de prioridade, de escolha entre o que é “pior” e o que é “melhor” em relação a um querer fundamentado, sendo que na escala de preferência o melhor é o que deve ser escolhido. Nesse sentido chega-se a um conceito de bom segundo o qual “bom é o que é bom em igual medida para todos e somente então todos podem consentir com igual autonomia em um conceito de bom” (PBL, p. 130). A questão da validade da justificação moral se dá entre a autoritária (vertical) e a autônoma e recíproca (horizontal). A necessidade de justificação dos juízos morais se dá devido à carência de legitimidade. Para que a comunidade contemple com a legitimação é essencial que o juízo moral leve em conta a justiça e, no caso da proposta de Tugendhat, de forma igualitária estendida a todos os membros. Diante do julgamento moral da sociedade se faz necessário que o transgressor sofra uma sanção para que a comunidade indignada considere saciado seu desejo de justiça causado pela má ação de um de seus membros. Devido à sanção ser recíproca, necessita-se de um conceito de pessoa boa e, para Tugendhat, moralmente bom é o integrante de uma sociedade moral que se comporta como os demais integrantes o exigem mutuamente. A concepção de “bom” é aqui referida não no sentido gramaticalmente absoluto, no atributivo superiormente distinto àquele que designa um bom técnico em um instrumento musical ou precisão de um piloto de corridas, mas como homem ou membro parceiro cooperador. Sempre advém a pergunta: por que seguir normas? A justificação que cabe aqui, segundo Tugendhat, é simples, ou seja, porque se deseja que o poder que os demais indivíduos têm de causar dano ou mal deve ser restringido, o que gera a motivação ou disposição necessária para aceitar seguir normas sociais. Em sentido contrário, as relações intersubjetivas estariam sujeitas às relações de poder. Somente partindo da justificação horizontal que exclui a relação de autoridade entre os indivíduos surge a ideia de que “bom é o que é bom para todos igualmente”. Isso implica claramente que todos os membros da comunidade podem concordar com “igual autonomia” e com “um conceito de bom” em comum. 92 É possível resumir o que resulta do projeto de uma moral a partir de Tugendhat da seguinte forma: se o ser humano quiser construir uma “sociedade moral” traduzida em um conjunto de normas, estas devem ser mantidas pela disposição para sentimentos de indignação e culpa, ou seja, pressão social. Deve, portanto, ser regido por um conceito de “boa pessoa”, o qual é entendido como bom parceiro cooperador. A ação se justifica de forma autônoma e recíproca, na escolha em uma escala de pior/melhor, de forma imanente diante de “todos” os humanos. Isso se complementa com o conceito de “justiça”, referido ao equilíbrio entre os indivíduos e estabelecido pelo sistema, ou seja, aceito “somente se é bom para todos por igual”. Disso resulta que todo aquele que se coloca a pergunta “quero eu fazer parte da comunidade moral” tem de perguntar-se: “quem afinal eu quero ser? Em que reside para mim a vida e o que depende para mim disto, que eu me compreenda como pertencente à comunidade moral?” Eis o momento que se destaca: o da decisão. Tal concepção de moral está inserida no pressuposto de uma sociedade e de uma escola com uma concepção liberal e democrática que “se destina a promover o processo de autodeterminação e felicidade” para seus membros. A questão da igualdade e da justiça são fatores essenciais que remetem ao debate sobre os direitos fundamentais do ser humano, sem os quais não há qualquer possibilidade de entendimento. Quando se diz, em relação a esses direitos, que “todos” os possuem, já está implícito o sentido de que já não serão alguns, como fora outrora. Na declaração dos direitos humanos já está escrito que “todos têm estes direitos sem distinção de qualquer tipo”, portanto, se está proclamando a igualdade de todos perante estes direitos. Tugendhat entende igualdade como alternativa ao poder unilateral e é sempre uma questão de justiça, conectando estreitamente estes dois conceitos. A legitimidade do igualitarismo se dá na proposta de uma moral quando afirma que, da mesma forma como no direito de um Estado, toda moral é um empreendimento em comum, e só será legítima se “todos” os membros da sociedade a considerarem justificada. De outra forma, a legitimidade do sistema normativo se dá por poder, por autoridade e aos demais cabe somente submeter-se forçadamente. Necessita-se de uma sociedade justa e igualitária na qual todos decidem juntos, todos contribuem por igual, não havendo espaço para decisões por poder. O que há, então, é simetria entre poder e submissão, ou seja, equilíbrio entre os envolvidos. 93 Tugendhat entende que simetria não é uma invenção e sim uma alternativa ao poder unilateral, e que a justiça não decorre da razão e sim que é consequência da simetria, do equilíbrio. A simetria se dá, portanto, pela igualdade de direitos. Não havendo determinação e submissão unilaterais, haverá simetria entre todos, as decisões serão tomadas em conjunto e todos contribuirão por igual para construir a norma que define a forma coletiva de agir. Essa concepção moral, de direitos fundamentais, de igualdade e justiça remete ao espaço democrático, sem o qual não há liberdade de escolha. A democracia, portanto, não é entendida somente como poder baseado no povo, mas possui esse poder suplementado pelos direitos humanos, resguardados dos abusos ao que o sistema democrático puro está exposto, principalmente aquele em que a maioria decide pelas minorias. Para se levantar a questão do sistema político é preciso antes levantar a questão de como deve ser o sistema social e, para isso, um sistema de igualdade normativa nunca pode ser o resultado de um contrato entre desiguais. Esta questão suscita que os espaços de direito que um sistema político legítimo teria que outorgar a todo indivíduo estão além daqueles de liberdade, necessitando espaços próprios para que possa construir sua vida a fim de poder prosperar e desenvolver-se. Na questão dos direitos humanos, numa crítica ao liberalismo e na interpretação do conceito de liberdade como direito fundamental, Tugendhat apresenta a proposta baseada na ideia liberal de “liberdade negativa”, na qual o indivíduo deve ser livre de coação e violência, agora acrescida da ideia de “liberdade positiva”, ou seja, de direitos socioeconômicos. Essa ideia justifica-se na necessidade de autonomia, que é fundamental ao ser humano, e também para aliviar a deficiência central do sistema capitalista, que consiste em que muitos homens e mulheres querem e poderiam ganhar seu sustento próprio, porém não podem fazêlo. As pessoas excluídas devem, nesse sentido, ser consideradas igualmente como parte da sociedade e, a partir disso, seus interesses têm o mesmo valor, pois cada pessoa vale por igual. Em que pese a questão da educação foi possível aduzir dos escritos de Tugendhat que sua preocupação central está diretamente relacionada com a ideia de “maioridade” no sentido kantiano e na busca da felicidade. Seus estudos guardam um vínculo íntimo com sua filosofia moral na perspectiva da reciprocidade, igualdade e justiça e em tudo que isso possa representar diante das questões relativas à educação. É por meio da educação que ocorre o processo de inserção do indivíduo em uma sociedade moral já estabelecida, e no interior desta se gera a possibilidade de crítica e de 94 intervenção, sempre reconhecendo o caráter de construção desta sociedade nas relações intersubjetivas. Nessa perspectiva, uma educação liberal defendida pelo autor está “voltada para alcançar a felicidade do homem, pois a ideia de uma escola democrática se destina a promover o processo de autodeterminação e a felicidade da criança” (EP, p. 29, tradução própria). Uma educação contrária a qualquer justificação autoritária deve despertar neles a compreensão do espírito da democracia. Numa concepção democrática como a manifestada acima os “indivíduos são a última instância” e não as instituições. Sendo assim, salienta-se a necessidade da existência de direitos humanos fundamentais e da democracia, pois é no contexto da declaração dos direitos humanos francesa, do século XVIII, e da Declaração de Independência norte-americana que se situa uma escola onde se educam cidadãos. As instituições educacionais são estabelecidas e amparadas pelo Estado, devendo ser obrigatórias, laicas e gratuitas. O propósito deve ser a autonomia que, em última instância, conduz à maioridade e somente então o indivíduo adulto esclarecido estará habilitado a emitir juízos e fazer escolhas racionais sem ser guiado por outros. A responsabilidade e a obrigação do professor não autoritário, como afirma Tugendhat, é propiciar os meios para a preparação intelectual e psíquica do aluno, municiando-o para que conquiste por si mesmo a sua autonomia. A passagem para a fase adulta é o crescimento em responsabilidade e capacidade de pensar e decidir por si mesmo, de modo independente. Esta autonomia é condição-base para o indivíduo autônomo poder decidir sobre o que é bom para si. E, esse “bom” tem por pressuposto a justiça, ou seja, o que é bom para todos igualmente. Estamos cientes da falta de resposta para muitas questões, e nem é possível tal pretensão, pois elas perpassam a educação e a dificuldade de contemplar aquelas que possam vir a ser as essenciais. Mas, com certeza, foram lançados problemas persistentes que necessitam de reflexão e posterior atitude diante dos posicionamentos teóricos e práticos que envolvem a docência, a aprendizagem, a autonomia e a intersubjetividade nesse estado de perplexidade da vida contemporânea que não deve impedir o indivíduo de seguir em frente. 95 Encarar a fragilidade das normas sociais, dos sistemas políticos e dos resultados de uma educação para a autonomia, que não garantem qualquer resultado prático, é sinal de maturidade e de confiança na pertinência dos conceitos morais. Flexibilidade nessas questões resulta em não mais se contentar em justificar normas “penduradas na razão” ou “penduradas no céu”. Diante de perspectivas frágeis das negociações e da contingência da vida humana, o indivíduo ainda é contemplado pela capacidade de compaixão, altruísmo espontâneo que rompe os limites do contratual e normativo e que o remete inevitavelmente à solidariedade. 96 REFERÊNCIAS Obras de Ernst Tugendhat TUGENDHAT, Ernst. Problemas de la ética. Traducción castellana de Jorge Vigil. Barcelona, España: Editorial Crítica, 1988. ______. Lições sobre ética. Tradução grupo de doutorandos do curso de pós-graduação em Filosofia da URGS; revisão e organização da tradução Ernildo Stein. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996a. ______. O que é filosofia? In: DIAS, Maria Clara (Org.). O que é filosofia? Ouro Preto, MG: IFAC/UFOP, 1996b. p. 7-33. ______. Ética y política. Conferencias y Compromisos 1978-1991. Traducción de Elisa Lucena. Madrid, España: Tecnos, 1998. ______. Como devemos entender a moral. Philosofos Revista de Filosofia. 2001a, v. 6, n. 1/2, p. 59-84, 2001a. 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