da analítica da linguagem à antropologia filosófica abertura

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ABERTURA
DA ANALÍTICA DA LINGUAGEM
À ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
Ernildo Stein1
O que seria, ao menos, tema para um livro, vamos apresentar brevemente, seguindo a vereda de Ernest Tugendhat. Nos dedicamos à antropologia
filosófica como filosofia fundamental, seus estudos de analítica da linguagem e
seus ensaios e conferências atuais.
I
No prefácio do livro Autoconsciência e autodeterminação, Tugendhat remete
à “sistemática concepção de uma disciplina fundamental analítico-linguística”
da qual deveria distinguir-se um “conceito metódico de filosofia analítico-linguística” (1979, p.127). No mesmo prefácio, o autor afirma que este método “é o
genuíno método filosófico” e, portanto, “também o único método adequado
de interpretação de toda a filosofia até hoje”. “As falhas de interpretação devem então ser atribuídas ao autor e não ao método como tal” (TUGENDHAT,
1979, p. 127).
Além de examinar os dois temas contidos no título, a intenção do autor
é mostrar que o modelo s­ ujeito-objeto não pode ser o pressuposto epistemológico
no qual repousa todo o saber empírico imediato e que esse não é a percepção.
1
Professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS). Texto base da conferência realizada por ocasião da celebração
dos 25 anos do IFIBE (Instituto Berthier), em setembro de 2007.
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O autor quer, portanto, romper com o modelo clássico da orientação na
representação do objeto, na relação sujeito-objeto, no ver e na percepção. É na
linguagem, na análise da linguagem, que deve ser procurada a justificação e a
orientação de toda interpretação.
Na sua introdução à filosofia analítica, Tugendhat convertera a ontologia
de Aristóteles em semântica formal. Aristóteles se orientara no objeto porque
não conhecia ainda o significado. Assim também Tugendhat vai desenvolvendo
sua teoria até chegar ao ponto em que o ser humano se define como aquele ser
capaz de produzir enunciados assertóricos predicativos. Portanto, não é apenas
o método que é lingüístico, mas o ser humano se define pela linguagem.
O filósofo leva este pressuposto para dentro de Autoconsciência e autodeterminação afirmando:
Enquanto o organismo pré-simbólico reage de modo imediato a uma realidade no mundo ambiente, o organismo que pensa simbolicamente percebe um estado de coisas em enunciados assertóricos e delibera então em
enunciados práticos como se deve reagir (TUGENDHAT, 1979, p. 157).
Com a substituição da ontologia pela semântica formal, Tugendhat “superou” a metafísica, e não somente a de Aristóteles. Em que direção se movimenta então o autor?
Não na direção de uma nova teoria da totalidade metafísica. Nas suas
Considerações sobre o método da filosofia do ponto de vista analítico Tugendhat diz:
Filosofia sempre lidou, primeiro, com a clarificação da linguagem. Em
segundo lugar, a filosofia sempre tinha a lidar com o “todo” – a totalidade
–, não com a totalidade do ente ou dos objetos, mas com o todo de nosso
compreender (1989, p. 261 – traduz-se Verstehen como entender).
Juntando os dois aspectos, o segundo revela com que conceitos específicos lida a filosofia. Não com conceitos “empíricos”. Ao contrário, lida com
conceitos que fazem parte “do todo do nosso compreender (entender)”. São
“conceitos que determinam nosso compreender (entender) em seu todo, que
são todos a priori”; “que são indispensáveis para nosso compreender (entender)”
(TUGENDHAT, 1989, p. 263).
Com isso, a filosofia não se torna parte da lingüística. A semântica filosófica se distingue da semântica lingüística. A clarificação lingüística filosófica,
segundo o método filosófico, é reflexiva e trata de uma clarificação de conceitos da linguagem que nós falamos, que são expressões lingüísticas que podemos
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criar, “que tematizam a estrutura predicativa de nosso compreender (entender), como ‘sujeito’, ’predicado’, e que formam uma rede interdependente que
devemos clarificar com o método filosófico, rede que se refere ao todo do nosso
compreender (entender)” (TUGENDHAT, 1989, p. 266).
II
Em nossa brevíssima síntese vimos até agora que o autor introduz: a)
a análise da linguagem como único método; b) quer substituir com isso o esquema sujeito-objeto da tradição; c) converte a ontologia de Aristóteles em
semântica formal, substituindo objeto por significado; d) substitui, assim, a metafísica por uma nova forma de totalidade; e) bem de acordo com seu proceder
lingüístico, define o ser humano como o ser capaz de operar com a estrutura de
enunciados assertóricos predicativos.
A seguir à definição do ser que pensa simbolicamente, apresenta uma
noção antropológica central para todo o futuro de sua obra e que aparece de
variadas formas.
O filósofo introduz sua nova totalidade (de nosso compreender). Essa
se baseia numa semântica filosófica onde se produzem análises das expressões
lingüísticas a priori, indispensáveis para nosso compreender e que constituem a
rede do dizer filosófico.
Após esses procedimentos analíticos, já começa a aparecer a presença
de análises onde o centro é constituído pelos modos de ser do ser humano.
Como esse homem se constitui pela linguagem, é a partir dele que vão surgir os
primeiros traços de uma totalidade que, mais adiante, vão fazer da antropologia
uma filosofia fundamental pela via do surgimento do compreender (entender)
e da linguagem assertórico-predicativa. É do conceito antropológico-linguístico
que serão geradas as expressões de caráter a priori com que a filosofia opera.
Temos, assim, uma nova forma de apresentar um campo teórico que vem
substituir a totalidade metafísica. Nesse campo, que é produzido pela análise da
linguagem, surge a linguagem como o resultado da totalidade do compreender
humano (entender, Verstehen).
Para mostrar melhor o que visamos com nosso texto, passamos a explorar alguns modos como Tugendhat apresenta resultados e conseqüências de suas análises.
No livro Egocentricidade e mística, que vem com o subtítulo estudo antropológico, encontramos um resultado notável dos pressupostos de seu pensamenFilosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 11-17.
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to aplicado ao relacionar-se consigo e ao recuar diante de si, as duas partes que
analisam a questão do eu e da renúncia ao eu, na mística.
Como deve hoje ser compreendido o fato de que, no século 20, a fórmula da admiração sobre o mundo tenha passado a ocupar o lugar da
admiração sobre o ser do ente enquanto ente? No modo historicizador
de hoje, de falar do “fim da metafísica” dir-se-ia: a metafísica está no fim
e que, portanto, agora não mais se pode utilizar sua fórmula fundamental
(TUGENDHAT, 2003, p. 151).
Sem querer renunciar à tradição da totalidade da metafísica e, contudo,
recusando seu caráter objetivista, o autor desenvolveu os elementos que conciliem a totalidade do compreender (entender) e a não-aceitação do esquema
sujeito-objeto como estrutura fundante das teorias da consciência e da representação. O método analítico-lingüístico possui peculiaridades que atravessam
a obra de Tugendhat e a tornam única entre os autores da filosofia analítica em
geral. Mesmo que não aceitemos alguns dos resultados e das posições de suas
interpretações de autores e obras, seu método traz sempre mais clareza para as
questões nucleares da filosofia, porque ele não se abandona a simples formalismos e sempre procura manter o caráter filosófico, a priori, do mundo conceitual
e da totalidade que atravessa os temas de suas análises.
Numa outra passagem do livro o filósofo diz:
A compartimentalização em disciplinas isoladas, porém, não nos convence. Dever-se-iam compreender questões filosóficas novamente a partir de uma questão primeira (fundamental). E, desde que a abrangência
pela ontologia e filosofia transcendental não mais convence, impõe-se a
pergunta de como nos devemos compreender como homens (seres humanos).
A filosofia social não é capaz de assumir esta função, porque ela não está
na base de todas as disciplinas filosóficas particulares e porque ela mesma
possui um fundamento antropológico que pode ser especificado (TUGENDHAT, 2003, p. 163, grifo nosso).
O filósofo está, portanto, à procura, ou já encontrou, uma alternativa
para os modos de fundamentar da tradição que não podem ser mais aceitos
como vigentes.
Se o autor fala “de como nos devemos compreender como homens” ou
de “fundamento antropológico que pode ser especificado”, ele tem em mente
aquilo que apresentamos no início. Ele pretende encontrar uma nova totalidade, um novo elemento filosófico abrangente não simplesmente no método analítico-lingüístico, mas nos resultados da aplicação do método para encontrar no
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ser humano que compreende, delibera, fala, escolhe, sabe usar razões, é livre,
o ponto de partida para o novo fundamento, o novo pressuposto do filosofar.
Passemos para a terceira passagem do mesmo livro:
O universal do humano alcança tão longe como o compreender (entender)
[grifo meu], e isso quer dizer (nisso me diferencio de Gadamer) o compreender (entender) como dar razões (Gründen). O que isso quer dizer,
em seu conteúdo, pode e deve ser corrigido empiricamente, mas correções implicam que sempre era uma compreensão geral do humano que nós
visávamos [grifo meu] (TUGENDHAT, 2003, p. 170).
Nessa passagem, o autor expõe sem rodeios os dois aspectos centrais que
mais lhe interessam na tentativa de encontrar a totalidade abrangente que é o
objetivo de suas investigações da “dimensão de profundidade”. O ser humano
possui uma universalidade que se comensura com a totalidade do compreender
(entender) enquanto se constitui em dar razões.
No fim da metafísica temos, então, o modelo ou paradigma lingüístico
ou analítico-lingüístico que se constitui pelo método novo e único e por aquilo
que esse método traz como inovação: a superação do esquema sujeito-objeto
ou o fim da representação como “dimensão de profundidade metafísica” ou
fundamento.
É, portanto, do homem e do seu compreender (entender) que devemos
agora partir e deles surge a possibilidade da deliberação do falar, do dar razões,
da liberdade.
III
Ao longo de trinta anos de trabalhos teóricos e principalmente de ensaios e conferências sobre questões de moral, dos mais diversos pontos de vista,
Tugendhat expõe de maneira direta o que já estava na raiz dos conceitos de moral que vinha desenvolvendo: grande parte das estruturas em que se apoiavam
seus conceitos práticos estava ligada a uma visão antropológica.
É então que o filósofo apresenta, em 2006, uma surpreendente e longa
conferência com o título A antropologia como “filosofia primeira”. Sem podermos
explorar a riqueza de idéias ordenadas e novas do trabalho, convém, entretanto, olhar este trabalho como a explicitação de um longo desenvolvimento.
Refere-se a um trabalho anterior em que afirmava “que a antropologia
filosófica deveria passar a ocupar o lugar da metafísica como philosophia prima
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e que a pergunta: quem somos nós como homens? é aquela questão na qual têm
seu fundamento todas as outras questões e disciplinas filosóficas” (texto inédito).
Depois de analisar os múltiplos aspectos desta questão, desta revolucionária proposta, o filósofo conclui que, no fim da metafísica, a antropologia filosófica torna-se não apenas uma disciplina entre outras da filosofia, mas a disciplina fundamental. “Somente na antropologia filosófica se trata da pergunta
pelo modo como nós nos compreendemos e nosso mundo”.
Tugendhat diz que podemos descrever as outras espécies apenas do exterior. E ainda que possamos descrever também o homem desde fora, “na medida
em que a antropologia é uma disciplina fundamental para as outras disciplinas,
trata-se, sem dúvida, exclusivamente do compreender (entender, Verstehen)”
[texto inédito].
Esse compreender (entender) não é apenas o núcleo do ser humano, mas
liga os homens entre si num espaço intersubjetivo. Compartilhamos o Verstehen
intersubjetivamente e nele tratamos também do compreender objetivo.
O núcleo da antropologia filosófica se constitui pela pergunta: em que consiste nosso compreender ou a estrutura desse compreender (entender) humano?
Tugendhat remete então a seu livro de introdução à filosofia analítica
e diz que já aí, em 1976, dizia que “se se compreender a questão fundamental
da metafísica como ontologia, portanto a pergunta pelo ser, efetivamente ela
remete à questão: em que consiste a estrutura do compreender (entender) humano” (texto inédito).
E o autor ainda se refere ao livro citado acima sobre filosofia analíticolingüística dizendo que aí mostrou que a linguagem predicativo-proposicional
tinha seu fundamento nisso que ela, através dos termos singulares, podia referir-se a conteúdos que não estão simplesmente presentes: “Com isso – diz o autor –, o falar e o compreender (entender), ao contrário das linguagens animais,
é independente de situação.”
“Em lugar de apenas reagir (acrescento eu, como o animal pré-simbólico), o ouvinte pode responder ao que o locutor diz, com sim e não ou com
atitudes que implicam perguntar ou duvidar e com isso a linguagem recebe uma
função que não é apenas independente de situação, mas independente de comunicação: Surge agora aquilo que denominamos pensar, por em dúvida. Surge
assim o fenômeno da deliberação tão característico para seres humanos.”
Temos, então, as duas formas lingüísticas: a do enunciado e a da forma
imperativo-optativa. Isto tem como conseqüência que existe, de um lado, uma
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deliberação teorética que se refere ao verdadeiro e, de outro lado, uma deliberação prática cuja meta é o que é bom, continua o autor.
E então vem a afirmação central: “Quem delibera, pergunta por razões,
que falam a favor ou contra o que ele diz ou pensa. E esta capacidade, de perguntar por razões (rationes) e agir segundo elas, é o que denominamos racionalidade.” De seu uso tornam-se possíveis a responsabilidade e a liberdade da
vontade.
Assim, Tugendhat, partindo da nova disciplina fundamental, recupera
as análises do passado, a que nos referimos acima, e desemboca na explícita
afirmação de que a metafísica está substituída pela linguagem, através do núcleo
fundamental do ser humano, que é o compreender (entender, Verstehen).
Desse modo, a antropologia filosófica como nova disciplina fundamental
que parte da questão de “quem somos nós seres humanos” foi encontrada no
caminho da analítica da linguagem e tornou-se, ao mesmo tempo, o lugar de
nascimento da linguagem através da questão nuclear do ser humano que reside
no compreender (entender, Verstehen).
Referências bibliográficas
TUGENDHAT, Ernst. Vorlesungen zur Einführung in der sprachanalytische
Philosophie. Frankfurt: Suhrkamp, 1979.
______. Selbstbewussstsein und Selbstbestimmung. Frankfurt: Suhrkamp, 1979.
______. Egozentrizität und Mysthik. München: Verlag C. H. Beck OHG, 2003.
______. Philosophische Aufsätze. Frankfurt: Suhrkamp, 1992.
______. Die Anthropologie als erste Philosophie, 2006. Mimeo.
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