A TRADUÇÃO DA COMPREENSÃO EM LINGUAGEM ARTÍSTICA

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A TRADUÇÃO DA COMPREENSÃO EM LINGUAGEM ARTÍSTICA
Beatrice Bonami Rosa
Roberta Maira de Melo Araújo
[email protected]
Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia
Comunicação – Relato de Pesquisa
Resumo
O presente artigo trata do relato de pesquisa sobre a relação entre a surdez e a percepção
imagética do sujeito surdo. A investigação faz-se meritória, pois é contemplado o
exercício de leitura de imagens através da contextualização. Tal atividade requer
comunicação e linguagem, quesitos essenciais na formação do indivíduo e na
compreensão da representação visual. Esse entendimento é o marco inicial da
construção de um repertório visual baseado em outras imagens, principalmente obras de
arte. O exercício proposto se torna fundamental, uma vez que se comprova a validez da
relação entre a comunicação e o processo de apreensão imagética, pois no ato de
perceber há a tentativa de interpretação e nessa, se cria.
Introdução
A linguagem é essencial na formação do individuo, pois constrói o repertório
necessário para que haja comunicação1. Essa bagagem o auxilia a se relacionar com os
elementos componentes de seu contexto. Assim, o espaço é constituído de um
bombardeio de estímulos sensoriais.
Quando se pensa nesses estímulos, é importante deixar claro que apesar de
serem cinco sentidos passíveis de apreensão, são dois deles que mais se discute nessa
pesquisa: o auditivo e o visual. É fundamental explicitar que ao falar da audição, a
referência principal é a sua ausência colocando, como alvo de estudo, as pessoas surdas.
1
Ver mais em OSTROWER, 1988.
Já ao falar de visão, é o contrário que se deve valorizar, pois já que não se tem o outro,
esse se torna o principal canal de comunicação.
Uma vez que há a surdez há uma “compensação que facilita a percepção do
meio e a memória visual, auxiliando na representação gráfica.” (OLEQUES, 2010, p.
60). Deste modo, todos os surdos adquirem certa intensificação da sensibilidade visual e
passam a apresentar uma orientação mais visual no mundo2. Assim, é natural que esse
meio de comunicação seja mais trabalhado com essas pessoas.
Vista essa afinidade com o canal visual, é interessante a relação entre este e as
Artes Visuais. Segundo Ostrower (1988, p. 172) “na arte existe uma linguagem que é
acessível a todos. É uma metalinguagem que serve de referencial a todos os modelos de
comunicação humana: é a linguagem de formas do espaço”. É explicito, portanto, que é
propício o vínculo entre o ensino especial de surdos e o ensino de arte.
Por conseguinte, o presente trabalho tem como viés principal a investigação
sobre o processo de leitura de imagem por alunos surdos dentro da prática de ensino de
arte, a fim de estabelecer como se dá a manifestação da comunicação visual durante a
análise imagética e quais referências eles trazem durante esse exercício.
A tradução da compreensão em linguagem artística
Nesta pesquisa o exercício mais oportuno dentro do ensino de arte é a leitura de
imagens. O estudo de imagens e obras de arte é importante para o desenvolvimento,
pois segundo Barbosa (1999) “a leitura social, cultural e estética do ambiente dá sentido
à leitura visual” (p.28). Ainda segundo a autora
O mundo cotidiano está cada vez mais dominado pela imagem. [...]
Temos de alfabetizar para a leitura de imagem, e através da leitura das
obras de artes plásticas prepararemos pessoas para a decodificação da
gramática visual, da imagem fixa [...] (BARBOSA, 1999, p. 34).
Para trabalhar com essa leitura, é apropriado recorrer à Abordagem Triangular3,
elaborada por Barbosa, que consiste em Contextualização, Apreciação e Fazer Artístico.
Neste trabalho, essa tríade é eleita a melhor maneira de abordar a imagem, pois trilha o
caminho desde à análise até o processo criativo. No entanto, a ênfase da atividade é na
2
SACKS apud OLEQUES, 2010.
Ver mais em BARBOSA, Ana Mae. A importância da imagem no ensino da arte: diferentes
metodologias. In:________. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1999.
3
leitura, pois possibilita reconhecer quais imagens compõem o cotidiano surdo e como é
essa percepção visual.
A profundidade dessa análise depende da afinidade que o espectador apresenta.
Logo, torna-se importante a familiaridade dos surdos com as imagens apresentadas pelo
professor, para que a partir dessas se insira um novo repertório ampliando sua bagagem
imagética. Para tal fim é necessário examinar quais são as referências que os surdos
trazem como repertório visual e como são veiculadas.
Com o objetivo de versar um conjunto de imagens que fazem parte do cotidiano
dos surdos, é valido o encontro com as pessoas com tal deficiência, para que elas
manifestem as imagens que lhes servem de referência. Por conseguinte, elas afirmam os
critérios de escolhas desse repertório visual.
Primeiramente, é necessário salientar que a sociedade e os cidadãos participantes
desta, são influenciados pela mídia, em especial a mídia televisiva. Há um bombardeio
de estímulos, resultantes das imagens e dos ruídos do aparelho televisor, eficaz na
transmissão de mensagens e informação. É apropriado, então, afirmar que os indivíduos
se valem desse meio de comunicação como fonte de captação de imagens.
Ao tratar de surdos, essa perspectiva não varia. Por mais que a emissão de sons
da televisão seja um fator importante e inteligível das informações, é possível, segundo
eles, abstrair da imagem a mensagem que ela pretende passar. Reichert (2006) em uma
extensa pesquisa sobre a mídia e a comunicação no cotidiano surdo afirma que “a
televisão possui imagens que os possibilitam, mesmo sem legendas ou intérpretes de
Língua de Sinais, acompanhar e fazer inferências sobre o que está sendo transmitido”
(p. 39).
Emissoras televisivas também disponibilizam o recurso de closed caption4. Por
mais que esse recurso tenha uma qualidade visual prejudicada em consequência à sua
formatação, ele auxilia aqueles que não desfrutam do recurso sonoro. Esse meio é
apontado pelas pessoas com esta deficiência como mais um caminho de acesso à
informação.
Em conversa com uma adolescente surda, ela aponta que a maior parte das
imagens é oriunda da programação da televisão, e que com o recurso de closed caption
4
Closed caption ou legenda oculta, também conhecida pela sigla CC, é um sistema de transmissão de
legendas via sinal de televisão. Essas legendas podem ser reproduzidas por um televisor que possua
função para tal, e tem como objetivo permitir que os deficientes auditivos possam acompanhar os
programas transmitidos. As legendas ficam ocultas até que o usuário do aparelho acione a função na
televisão.
é possível acompanhar as mensagens transmitidas. Ela ainda ressalta que através desse
meio de comunicação é possível que ela conheça mais sobre a Língua Portuguesa, pois
segundo ela:
as frases são diferentes das frases em LIBRAS e eu vejo pelo
contexto da imagem que isso acontece. Nós temos nossas
palavras, mas é interessante ver as gírias que estão usando no
momento, pois podemos transmiti-las a nossa linguagem 5
Fica evidente, portanto, que a aquisição imagética é intrínseca à linguagem e ao
próprio processo de comunicação. Assim, eles captam o recurso visual que lhes é
possível entender, seja com o recurso escrito ou na ausência dele.
A inexistência de qualquer meio explicativo da imagem muitas vezes não
interfere na compreensão da mensagem transmitida, como por exemplo, nos desenhos
animados. Em conversa com um adulto surdo ele revela que lhe agrada muito os
desenhos animados, pois a sequência de imagens e a expressão das personagens
dispensam o recurso textual.
Segundo ele os desenhos animados o acompanham desde criança e argumenta
que “pelos desenhos é possível entender expressões cotidianas das pessoas” 6. Em
outro momento ele declara, ainda, que, durante sua infância, era oportuno saber que ele
assistia o mesmo que outras crianças de sua idade, pois “as mochilas, estojos, canetas e
camisetas tinham muito o ‘Tom e o Jerry’”.
A afinidade com a imagem se dá, portanto, dentro do viés da compreensão da
mesma, para que os indivíduos surdos tenham autonomia na própria leitura. Logo, há a
necessidade de que a imagem, além de bem elaborada para a transmissão da mensagem,
seja de boa resolução e qualidade. É essencial que sua apresentação não tenha ruídos
visuais que interfiram no entendimento do espectador. Tal necessidade vale, tanto para
surdos quanto para ouvintes.
O adolescente R., também surdo, manifestou que imagens de boa resolução são
interessantes, pois é possível “ver detalhes pequenos como se fosse na vida real”. Ele
apontou os livros didáticos de Biologia que contêm fotografias de seres marinhos, corais
e flores exóticos “com cores muito fortes e bonitas”. Ele salienta ainda que “quando a
5
L. Entrevista concedida em 16 de Abril de 2012, 05’ 27’’.
6
D. Entrevista concedida em 09 de Abril de 2012, 08’ 43’’.
‘figura’ é boa e bonita é fácil de entender a matéria. Me distraio muito vendo os corais,
parece pintado com tinta” 7.
É possível, por conseguinte, projetar que a construção do repertório visual
depende dos meios que o individuo está em contato, e como estes lhe são apresentados.
Ainda, a leitura está subordinada à percepção do espectador, já que:
A vivência do olhar é extremamente necessária para a construção dos
sentidos, pois é a partir dela que o leitor da imagem fará as pontes com
suas experiências [...] procurando dar um sentido e um significado que
variam de acordo com o contexto (CALDAS, 2006, p. 49).
Segundo as conversas registradas é possível perceber que os entrevistados se
sentem confortáveis e seguros a discorrer sobre as imagens que eles conhecem, que
fazem parte de seu contexto. Assim, observa-se que a leitura imagética é significante e
dinâmica, pois “é de fundamental importância entender o objeto. A cognição em arte
emerge do envolvimento existencial e total do aluno, e deve haver emoção e afetividade
envolvidas” (BARBOSA, 1999, p. 36).
Esse envolvimento do espectador pressupõe a compreensão da imagem.
Segundo Barbosa (1999) o desenvolvimento da capacidade criadora também se dá no
ato do entendimento, da decodificação das significações. Por essa razão é necessário
que se entenda a imagem, pois assim é possível que se avance o exercício de leitura até
o processo criativo.
Ainda, através da análise de imagens provindas do contexto dos alunos, é viável
a apresentação de obras de arte, para que se familiarizem com as linguagens das Artes
Visuais. Essa exposição é oportuna, pois, segundo Barbosa, para que a obra seja de fato
saboreada é requerida uma concentração de significados, que advêm da complexidade
da leitura do sujeito envolvido. Essa complexidade é oriunda do exercício de análise,
proporcionado primeiramente pelas imagens cotidianas.
Portanto, esse processo de apreensão da imagem através de sua contextualização
é válido, uma vez que essa atividade tem desdobramentos como o pensamento crítico e
o processo criativo. É necessário que, durante esse exercício, o educador tenha em
mente que,
7
R. Entrevista concedida em 16 de Abril de 2012, 14’ 14’’.
O importante não é ensinar estética, história e crítica da arte,
mas, desenvolver a capacidade de formular hipóteses, julgar,
justificar e contextualizar julgamentos acerca de imagens e de
arte (BARBOSA, 1999, p. 64).
Considerações Finais
Os olhos humanos são suscetíveis à imagem, e seu processo de significação
depende de seu entendimento e envolvimento, ações intrínsecas à comunicação do
indivíduo. Na ausência da audição, a captação do olhar se torna o próprio processo
comunicativo, pois é através do canal visual que se apreende a linguagem.
Faz-se necessário trabalhar com esse canal, mais especificamente o expondo à
representação visual. É de igual necessidade trabalhar com pessoas surdas com este
poder de expressão que lhes é familiar. Portanto, através da formulação de um exercício
de leitura de imagens pode-se ativar o potencial criativo e crítico do indivíduo, uma vez
que a atividade envolve a estruturação de hipóteses, julgamentos e justificativas.
No entanto, para que esse conjunto de estruturas seja aplicado, é preciso haver
compreensão e significação no processo de leitura. Ambos os procedimentos não se
justificam a qualquer imagem, pois é preciso uma intimidade com essa para que
ocorram. Para tanto, é essencial que haja contextualização através de representações
visuais oriundas do cotidiano surdo. Portanto, é pertinente o acréscimo de uma parcela
à atividade de leitura imagética, correspondente à prévia investigação sobre imagens do
cotidiano surdo, já que, a partir desta é viável o enriquecimento do repertório visual do
sujeito.
Sumarizando, para que se suceda na análise de imagens é necessário esclarecer,
quais são elas e em que medida elas atingem seus espectadores. Dessa maneira, é
possível estabelecê-las como o marco inicial da construção de um repertório visual
baseado em outras imagens, principalmente obras de arte. Tal exercício se torna
fundamental, uma vez que se comprova a validez da relação entre a comunicação e o
processo de apreensão da imagem, pois no ato de perceber há a tentativa de
interpretação e nessa, ele já cria. Não existe um momento de compreensão que não se
traduza em linguagem artística.
Referências
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no Ensino da Arte. São Paulo: Editora Perspectiva.
1999.
CALDAS, Ana Luiza P. O filosofar na arte da criança surda: construções e saberes.
Dissertação de Mestrado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre:
Editora UFRS, 2006.
OLEQUES, Liane Carvalho. Imagem e palavra: um estudo do desenho infantil em
um caso de surdez profunda. Universidade do Estado de Santa Catarina,
Florianópolis: Editora UFSC, 2010.
OSTROWER, Fayga. A construção do olhar. In: NOVAES, Adauto. O olhar. São
Paulo: Schwarcz, 1988.
REICHERT, André Ribeiro. Mídia televisiva sem som. Dissertação de Mestrado da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Editora UFRS, 2006.
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