UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA RUI CARLOS CORDIOLI A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS COMO GARANTIA NOS FINANCIAMENTOS FORA DO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO Florianópolis 2016 RUI CARLOS CORDIOLI A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS COMO GARANTIA NOS FINANCIAMENTOS FORA DO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito, da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Régis Schneider Ardenghi, Msc. Florianópolis 2016 À minha amada esposa e companheira Rosangela e às minhas filhas Bianca e Amanda, em quem encontrei forças para terminar este trabalho. AGRADECIMENTOS A Deus, por me conceder a graça de chegar até aqui. À minha querida esposa Rosangela e às minhas filhas Bianca e Amanda, pelo apoio e compreensão nos momentos de ausência em virtude da dedicação a este trabalho. Aos meus pais, pelo amor, carinho, dedicação, princípios e valores, que certamente me acompanham hoje e sempre. Ao professor Régis Schneider Ardenghi, pela confiança, disponibilidade e orientação, mesmo antes do início da disciplina. RESUMO Na presente monografia discutem-se inicialmente as garantias reais, sua conceituação, a evolução histórica dos direitos reais, a classificação, as funções e as espécies de garantias reais disponíveis no ordenamento jurídico pátrio. Na sequência, aborda-se a Alienação Fiduciária de Bens Imóveis segundo a Lei n° 9.514/1997, discutindo-se as razões e o contexto histórico da criação da referida norma, suas vantagens e desvantagens em especial quando comparada com a hipoteca. Ainda neste tópico, explana-se sobre os requisitos mínimos previstos na lei para os contratos de alienação fiduciária de bens imóveis, sua constituição, bem como os procedimentos previstos na referida norma nas hipóteses de adimplemento ou inadimplemento. Além disso, trata-se da aplicação da alienação fiduciária de bens imóveis fora do Sistema Financeiro Imobiliário, ou seja, quando o referido instituto não é utilizado em operação de crédito para aquisição ou reforma de imóvel. Ao final, o trabalho dedica-se ao entendimento jurisprudencial da utilização da alienação fiduciária de bens imóveis em financiamentos puramente bancários. Palavras-chave: Garantias reais. Alienação fiduciária. Bens imóveis. Financiamento bancário. LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES AFBI – Alienação Fiduciária de Bens Imóveis Art. – Artigo Arts. – Artigos CC – Código Civil Brasileiro de 2002 CDC – Código Defesa do Consumidor CPC – Código de Processo Civil de 2015 CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 CRI – Cartório de Registro de Imóveis n° – número SFH – Sistema Financeiro Habitacional SFI – Sistema Financeiro Imobiliário STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Supremo Tribunal de Justiça TJSC – Tribunal de Justiça de Santa Catarina TRF – Tribunal Regional Federal SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11 2 GARANTIAS REAIS .............................................................................................. 14 2.1 DIREITOS REAIS ................................................................................................ 14 2.2 CONCEITO DE GARANTIA REAL ...................................................................... 17 2.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS REAIS EM GARANTIA .................... 18 2.4 CLASSIFICAÇÃO DAS GARANTIAS REAIS ...................................................... 21 2.5 FUNÇÃO DAS GARANTIAS REAIS ................................................................... 22 2.6 ESPÉCIES DE GARANTIAS REAIS ................................................................... 23 2.6.1 Hipoteca......................................................................................................... 24 2.6.2 Penhor ........................................................................................................... 27 2.6.3 Anticrese ....................................................................................................... 29 2.6.4 Alienação fiduciária de bens móveis .......................................................... 30 2.6.5 Alienação fiduciária de bens imóveis ......................................................... 32 3 ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS SEGUNDO A LEI N° 9.514/1997 ................................................................................................................ 34 3.1 CONCEITO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL............................ 35 3.2 NATUREZA JURÍDICA........................................................................................ 35 3.3 CARACTERÍSTICAS ........................................................................................... 37 3.4 GARANTIA FIDUCIÁRIA ..................................................................................... 39 3.4.1 Propriedade fiduciária .................................................................................. 39 3.4.2 Propriedade resolúvel .................................................................................. 41 3.4.3 Patrimônio de afetação ................................................................................ 42 3.5 O CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS ................... 43 3.5.1 Sujeitos .......................................................................................................... 44 3.5.2 Objeto ............................................................................................................ 45 3.5.3 Forma ............................................................................................................. 46 3.6 DIREITOS E OBRIGAÇÕES DO FIDUCIANTE E DO FIDUCIÁRIO .................. 48 3.7 PAGAMENTO E SUAS CONSEQUÊNCIAS....................................................... 49 3.7.1 Reversão da propriedade ............................................................................. 50 3.8 INADIMPLEMENTO E SUAS CONSEQUÊNCIAS ............................................. 51 3.8.1 Consolidação da propriedade no fiduciário ............................................... 52 3.8.2 Leilão ............................................................................................................. 53 3.9 HIPOTECA X ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS ........................... 53 4 A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS COMO GARANTIA REAL FORA DO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO .................................................. 56 4.1 APLICABILIDADE DO ARTIGO 53 DO CDC ...................................................... 57 4.2 CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA.............................................................. 59 4.3 FINALIDADE DA CRIAÇÃO DA NORMA ............................................................ 63 4.4 ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL ............................................................. 65 4.4.1 Desvio de finalidade da norma ...................................................................... 66 4.4.2 Os efeitos da recuperação judicial sobre os bens alienados fiduciariamente ........................................................................................................ 69 4.5 EQUILÍBRIO DO PROCEDIMENTO DE EXPROPRIAÇÃO ................................ 70 4.5.1 Procedimentos extrajudiciais ........................................................................ 71 4.5.1.1 A efetiva comunicação ao devedor ............................................................... 71 4.5.1.2 Direito do devedor à purgação da mora em razoável tempo ......................... 71 4.5.1.3 Publicidade e segurança dos leilões ............................................................. 72 4.5.1.4 Valor mínimo para arrematação e extinção da dívida ................................... 73 4.5.2 Procedimentos junto ao Poder Judiciário .................................................... 73 4.5.2.1 Defesa do devedor até a expropriação ......................................................... 74 4.5.2.2 Defesa do devedor depois da expropriação .................................................. 74 4.6 O CONCEITO DA GARANTIA IDEAL ................................................................. 75 5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 77 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 80 11 1 INTRODUÇÃO O instituto da alienação fiduciária, tendo por foco os bens imóveis, remonta do direito romano, e entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro em 1997. Naquela época, o Sistema Financeiro Habitacional passava por grandes problemas em virtude da inadimplência e havia grande dificuldade de reaver os recursos imobilizados nos mutuários inadimplentes. Diante desse quadro desestimulador aos investimentos e da necessidade de fomentar o mercado imobiliário, a Lei n° 9.514, de 20 de novembro de 1997, foi sancionada. Com a referida Lei, o governo da época pretendia trazer segurança jurídica e um meio rápido de resolver o inadimplemento no recém-criado Sistema Financeiro Imobiliário. Em seu texto, a referida lei dispôs sobre a criação do Sistema Financeiro Imobiliário, além de instituir a Alienação Fiduciária de Bens Imóveis e dar outras providências. Dessa forma, a mesma ficou organizada em três capítulos: o primeiro destinado ao Sistema Financeiro Imobiliário; o segundo versa sobre o regramento de um novo instituto jurídico, a Alienação Fiduciária de Imóveis; e o terceiro capítulo trata das disposições gerais e finais. Desde então, este tipo de garantia real tem sido largamente utilizado como garantia nos financiamentos dentro e fora do Sistema Financeiro Imobiliário. A Alienação Fiduciária de Bens Imóveis caracteriza-se pelo ato de o devedor transferir ao credor a propriedade de bem imóvel como garantia de um financiamento. Com o passar do tempo, caso o pagamento ocorra conforme o acordado, o devedor retorna a titularidade do imóvel, e em caso de inadimplência, o credor retém em definitivo a propriedade sobre o bem dado em garantia. As instituições financeiras, de modo geral, antes da entrada em vigor da Lei n° 9.514/1997, utilizavam, na grande maioria de seus financiamentos bancários e habitacionais, a hipoteca como garantia real. Porém, com a possibilidade da alienação fiduciária de imóveis, as instituições financeiras passaram a utilizar a Alienação Fiduciária de Bens Imóveis preferencialmente, mesmo fora do Sistema Financeiro Imobiliário, visto que a mesma trouxe segurança e agilidade no procedimento de cobrança de contratos inadimplentes. Vale destacar que as instituições financeiras quantificam os custos de suas operações por meio da exposição ao risco, sendo 12 assim, as garantias relacionadas aos financiamentos são de grande relevância na definição do custo total dos financiamentos concedidos. Assim, a segurança jurídica proporcionada pela utilização da Alienação Fiduciária de Bens Imóveis nos financiamentos fora do Sistema Financeiro Imobiliário é de grande importância para a sociedade, visto que um país em desenvolvimento necessita de um sistema financeiro eficiente e com recursos financeiros com custos acessíveis. Por outro lado, em razão da agilidade no procedimento de expropriação dos imóveis garantidos pela Alienação Fiduciária de Imóveis, as empresas inadimplentes passaram a procurar o Judiciário visando evitar a perda de seus bens, sob a alegação em especial do desvio de finalidade da lei, uma vez que, o crédito adquirido não teve como objeto o financiamento de um imóvel. Diante das ponderações realizadas, destaca-se que o presente trabalho adota em seu desenvolvimento a técnica de pesquisa básica, tendo o método dedutivo em sua abordagem. Tal pesquisa possui característica exploratória, ou seja, utilizará estudos de legislações, livros, sítios, artigos científicos e trabalhos monográficos para obter suas conclusões. Como forma de organizar o estudo, o trabalho está dividido em introdução, três capítulos de desenvolvimento e conclusão. O primeiro capítulo tem por foco as garantias reais de forma geral, dispondo sobre seus conceitos, evolução, funções, espécies de garantias disponíveis e por fim a garantia fiduciária. O segundo capítulo aborda, especificamente, o instituto jurídico objeto deste estudo: a Alienação Fiduciária de Bens Imóveis. Para tanto, apresenta o seu conceito, a natureza jurídica, as características, as cláusulas essenciais aos contratos e, ao final, compara a hipoteca com a alienação, visando evidenciar as vantagens e as desvantagens de cada tipo de garantia real. Já o terceiro capítulo trata da Alienação Fiduciária de Bens Imóveis quando utilizada fora do Sistema Financeiro Imobiliário, ou seja, quando utilizada como garantia real em financiamentos onde o objeto não é um imóvel para moradia. Neste capítulo será abordado também o atendimento dos princípios do devido processo legal, da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório e da ampla defesa, além da finalidade da criação da norma, sempre focando financiamentos puramente bancários. Ainda neste capítulo, discutem-se os efeitos da recuperação judicial sobre os bens alienados, o leilão extrajudicial, assim como os entendimentos jurisprudenciais sobre 13 o tema, procurando verificar se o procedimento de expropriação dos imóveis previsto na Lei n° 9.514/1997 não apresenta qualquer ilegalidade ou se traz maior agilidade e segurança ao credor. Por fim, entende-se que o tema mostra-se atual e relevante, tanto do ponto de vista acadêmico como também prático, pois a Alienação Fiduciária de Bens Imóveis é a garantia real mais utilizada pelas instituições financeiras fora do Sistema Financeiro Imobiliário na atualidade. 14 2 GARANTIAS REAIS Neste capítulo abordam-se os diferentes tipos de garantias reais disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro, traçando conceitos, evolução e características que as diferenciam entre si. Nas instituições financeiras, as garantias reais são muito bem vistas e utilizadas de modo geral, onde destaca-se para este trabalho a hipoteca que apresenta o inconveniente da propriedade e da posse dos bens gravados permanecerem com o devedor. Destaque neste estudo, a garantia real da Alienação Fiduciária de Bens Imóveis desponta na atualidade como a garantia real mais utilizada em razão da segurança proporcionada pela transferência da propriedade. (SILVA, 2014, p. 14-15). Dentro deste contexto, o principal efeito das garantias reais consiste no fato de o bem, que era segurança comum a todos os credores e que foi separado do patrimônio do devedor, ficar afetado ao pagamento prioritário de determinada obrigação. Com sua constituição, a coisa dada em garantia fica sujeita, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação, para proteger o credor da insolvência do devedor. (GONÇALVES, 2016, p. 539). 2.1 DIREITOS REAIS Ao estudar os direitos reais, observa-se na doutrina, o cuidado dos autores em relacionar os direitos reais com o direito das coisas e explicar esta relação e diferenciação. No tocante ao assunto, Gonçalves (2016, p. 26) ensina que o “direito das coisas, como visto, trata das relações jurídicas concernentes aos bens corpóreos suscetíveis de apropriação pelo homem. Incluem-se no seu âmbito somente os direitos reais”. No mesmo sentido, Venosa (2016, p. 2) explica que “o Código, tanto o antigo como o atual, trata do que denomina Direito das Coisas, dedicando-se exclusivamente à propriedade, direito real mais amplo, e respectivos direitos derivados, todos eles de extensão menos ampla do que a propriedade”. Diante das ponderações dos autores, percebe-se que os direitos reais derivam de uma relação do titular com uma coisa, sendo este um direito de caráter patrimonial. Seguindo este raciocínio, Gonçalves (2016, p. 26) destaca: 15 Segundo a concepção clássica, o direito real consiste no poder jurídico, direto e imediato, do titular sobre a coisa, com exclusividade e contra todos. No pólo passivo incluem-se os membros da coletividade, pois todos devem abster-se de qualquer atitude que possa turbar o direito do titular. No instante em que alguém viola esse dever, o sujeito passivo, que era indeterminado, torna-se determinado. Em complemento, Ascensão (1987, p. 59 apud VENOSA, 2016, p. 12) ressalta que o “direito real é um direito absoluto, por oposição aos direitos relativos. A sua tutela funda-se em razões absolutas, e não na demonstração de que o sujeito passivo está individualmente vinculado por uma relação constitutiva de direito”. Para compreender as relações obrigacionais em casos concretos, faz-se necessário o correto entendimento das características dos direitos reais, já que a partir delas pode-se distinguir uma obrigação real de uma obrigação pessoal. Neste sentido, Gonçalves (2016, p. 29) afirma que “Não há critério preciso para distinguir o direito real do direito pessoal. Costumam os autores destacar alguns traços característicos dos direitos reais, com o objetivo de compará-los e diferenciá-los dos direitos pessoais”. Diante do exposto, Farias e Rosenvald (2016, p. 45) comparam os direitos reais e os obrigacionais, conforme segue: Quadro 1: Direitos Reais x Direitos Obrigacionais Direitos Reais Absoluto (eficácia erga omnes1) Atributivo (um só sujeito) Imediatividade Permanente Direito de sequela2 Numerus Clausus3 Jus in re4 (direito à coisa) Objeto: a coisa Direitos Obrigacionais Relativo (eficácia inter partes) Cooperativo (conjunto de sujeitos) Mediatividade Transitório Apenas o patrimônio do devedor como garantia Numerus Apertus Jus ad rem (direito a uma coisa) Objeto: a prestação Fonte: Farias e Rosenvald (2016, p. 45, grifo do autor) 1 Erga omnes: erga omnes os direitos reais, perante todos, em face de todos, não no sentido de que podem ser impostos contra qualquer pessoa, mas no sentido de que podem ser opostos ou apostos perante quem os ameace ou deles se aproprie. (VENOSA, 2016, p. 22, grifo do autor). 2 Sequela: A inerência do direito real ao objeto afetado é tão substancial, a ponto de fazer com que o seu titular possa persegui-lo em poder de terceiros onde quer que se encontre. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 37). 3 Numerus Clausus: de enumeração taxativa, localizados no rol pormenorizado do art. 1.225 do Código Civil e em leis especiais diversas (v.g., Lei n° 9.514/97 - alienação fiduciária de imóveis). (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 37, grifo do autor). 4 Jus in re: o titular age direta e imediatamente sobre o bem, satisfazendo as suas necessidades econômicas sem o auxílio ou intervenção de terceiros. Há um direito sobre a coisa. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 35, grifo do autor). 16 Pelo quadro comparativo exposto, observa-se uma ligação estreita entre direitos reais e obrigacionais, sendo que Farias e Rosenvald (2016, p. 45) ainda afirmam que “alguns direitos reais são apenas criados para ampliar a eficácia das relações obrigacionais (v.g., os direitos reais de garantia)”. Destaca-se ainda, segundo a doutrina, a existência de algumas figuras híbridas ou intermédias, que se situam entre o direito pessoal e o direito real. Tais institutos são conhecidos como obrigações propter rem 5 e os ônus reais 6 . (GONÇALVES, 2016, p. 39). A distinção entre tais institutos é discutida por vários doutrinadores, porém, Venosa (2016, p. 17) condensa tais diferenças de forma singular: Apontamos, contudo, que no ônus real a responsabilidade é limitada ao bem onerado, ao valor deste, enquanto na obrigação propter rem o devedor responde com seu patrimônio em geral, sem limite. O ônus desaparece, esvaindo-se seu objeto. Por outro lado, os efeitos da obrigação reipersecutória podem permanecer, enquanto não satisfeita, ainda que desaparecida a coisa. Apontamos também como diferença que o ônus real se apresenta sempre como obrigação positiva, enquanto a obrigação real pode surgir como obrigação negativa. Os direitos reais regulam as relações jurídicas relativas às coisas apropriáveis pelos sujeitos de direito. Essa noção necessita de regulamentação jurídica para adequar a sociedade aos anseios e necessidades individuais (VENOSA, 2016, p. 4). Diante do acima exposto, no ordenamento jurídico pátrio somente a lei pode criar direitos reais, dessa forma entende-se que apenas os institutos previstos no Código Civil, bem como todos aqueles que guardarem a mesma natureza em outros diplomas legais podem ser considerados como direitos reais (GOLÇALVES, 2016, p. 24). Neste momento, elegendo-se os direitos reais que possuem relevância para o presente estudo, destacam-se o penhor, a anticrese, a hipoteca e a alienação fiduciária de bens imóveis. Os três primeiros encontram-se elencados no Artigo 1.2257 do Código Civil e o último na Lei n° 9.514/1997. (BRASIL, 1997). 5 propter rem: é a que recai sobre uma pessoa, por força de determinado direito real. Só existe em razão da situação jurídica do obrigado, de titular do domínio ou de detentor de determinada coisa. (GONÇALVES, 2016, p. 39, grifo do autor). 6 Ônus reais: são obrigações que limitam o uso e gozo da propriedade, constituindo gravames ou direitos oponíveis erga omnes. (GONÇALVES, 2016, p. 41). 7 Art. 1.225. São direitos reais: I - a propriedade; II - a superfície; III - as servidões; IV - o usufruto; V o uso; VI - a habitação; VII - o direito do promitente comprador do imóvel; VIII - o penhor; IX - a hipoteca; X - a anticrese; XI - a concessão de uso especial para fins de moradia; XII - a concessão de direito real de uso. (BRASIL, 2002). 17 Desta forma, depreende-se que todos os direitos reais são autorizados por lei de forma taxativa, inclusive os direitos reais de garantia. Assim, dos direitos reais disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro, este trabalho aborda especificamente os direitos reais firmados para garantia de obrigações, onde Gomes (2012, p. 20) contribui por meio de seus ensinamentos: Constituído o direito real de garantia, a responsabilidade da obrigação se concentra sobre determinado bem do patrimônio do devedor. Para o caso de inadimplemento, tem o credor o direito de se satisfazer sobre o valor desse bem, afastando outros credores que tenham apenas direito pessoal contra o devedor, ou mesmo direito real de inscrição posterior. Ao observar os conteúdos abordados, percebe-se que os direitos reais passam por constante adaptação, recebendo melhorias e inovações para atender às necessidades de uma sociedade em contínua transformação. 2.2 CONCEITO DE GARANTIA REAL As garantias reais aplicáveis aos contratos são de extrema importância para a compreensão deste estudo, assim, passa-se a discorrer sobre o conceito deste instituto jurídico. Gomes (2012, p. 349) define que o “direito real de garantia é o que confere ao credor a pretensão de obter o pagamento da dívida com o valor de bem aplicado exclusivamente à sua satisfação” e afirma que “a garantia real atribui ao credor direito a promover a venda judicial da coisa para, do preço apurado, receber a quantia devida, de preferência a qualquer credor comum”. No mesmo sentido, Miranda (1971, p. 15 apud VENOSA, 2016, p. 570, grifo do autor) conceitua a garantia real como: “O direito real de garantia, em sua estrutura, é direito real limitado sobre o valor do bem; a função de garantia é ‘externa’, porque alude ao negócio jurídico entre o titular do direito real limitado e ‘alguém’”. Coelho (2016, p. 214), por sua vez, afirma que: As garantias reais, ao contrário das pessoais, vinculam o produto da venda de determinado bem (ou bens) do patrimônio do devedor à satisfação da obrigação garantida. Essa vinculação aumenta a eficiência na execução da obrigação, ao possibilitar ao credor maiores chances de recuperação de seu crédito, mesmo na hipótese de insolvência do devedor. 18 Corroborando com o autor, Gonçalves (2016, p. 530-531) reconhece que: A garantia real é mais eficaz, visto que vincula determinado bem do devedor ao pagamento da dívida. Em vez de ter-se, como garantia, o patrimônio do devedor, no estado em que se acha ao se iniciar a execução, obtém-se, como garantia, uma coisa, que fica vinculada à satisfação do crédito. Neste contexto, para Coelho (2016, p. 214) as garantias reais podem ser divididas em duas espécies: “direitos reais de garantia (que integra a categoria dos direitos sobre coisa alheia) e direitos reais em garantia (um dos direitos sobre a própria coisa)”. Pelos conceitos anteriormente elencados, pode-se inferir que as garantias reais estão ligadas à oferta de um patrimônio, para garantir a recuperação do crédito do credor em caso de inadimplemento do devedor. Apesar da aparente semelhança, os direitos reais “de garantia” estão definidos no Código Civil, no Art. 1.225 e representam um rol taxativo das garantias tradicionais, enquanto os direitos reais “em garantia” estão definidos em leis especificas, sendo a Lei n° 9.514/1997 o foco central do presente trabalho. (BRASIL, 1997, 2002). Esta diferenciação faz-se importante, pois, neste momento passa-se a estudar a evolução histórica dos direitos reais utilizados como garantia no Brasil de forma especial. 2.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS REAIS EM GARANTIA Na antiguidade, em Roma, na época da Lei das XII Tábuas, que representou a primeira codificação de seu direito, podia o devedor inadimplente ser encarcerado pelo credor, que tinha o direito de vendê-lo e até matá-lo. Se houvesse mais de um credor, instaurava-se sobre o seu corpo um estranho concurso creditório, levando-o além do Tibre, onde se lhe tirava a vida, repartindo-se o cadáver. Posteriormente, já numa fase mais avançada, com o progresso da civilização e da ordem jurídica, a Lex Poetelia Papiria aboliu a execução contra a pessoa do devedor, instituindo a responsabilidade sobre seus bens, se a dívida não procedia de delito. Desde então tem sido adotado, nas diversas legislações, o princípio da responsabilidade patrimonial, segundo o qual o patrimônio do devedor responde por suas obrigações. (GOLÇALVES, 2016, p. 592). 19 Passa-se agora a discutir sobre a evolução histórica da fidúcia8, pois tratase da essência da alienação fiduciária e, segundo a doutrina, a mesma pode ser encontrada desde a Roma antiga. Enfatiza-se também que a partir do entendimento da evolução histórica do instituto jurídico, torna-se mais fácil a compreensão do mesmo. A origem da alienação fiduciária em garantia não é tratada de forma unânime pela doutrina, neste sentido, Saad (2001, p. 44) afirma que: [...] para alguns autores a alienação fiduciária advém da fidúcia romana, para outros, do negócio fiduciário germânico, para a terceira linha, do trust receipt e para uma quarta corrente de pensamento, da mortgage, sendo as duas últimas figuras utilizadas pelo direito anglo-americano. Diante das diferentes correntes de pensamento sobre a origem da alienação fiduciária, este estudo abordará cada uma delas, iniciando pela fidúcia no direito romano. Assim, Saad (2001, p. 45) afirma que a “fidúcia, como negócio jurídico, nasceu no direito romano, ainda que o momento histórico de sua criação naquela sociedade seja de grande dificuldade precisar”. No mesmo sentido, Chalhub (2009, p. 10, grifo do autor) explana: A fidúcia tem origem mais remota no direito romano, com a concepção de venda fictícia, ou provisória: era a convenção pela qual uma das partes (o fiduciário), tendo recebido de outra (o fiduciante) a propriedade sobre a coisa, obrigava-se a restituí-la uma vez alcançado determinado fim, estipulado em pacto adjeto (pactum fiduciae). A fidúcia no direito romano tinha duas espécies, a fidúcia cum creditore e a fidúcia cum amico. A fiducia cum creditore tinha conteúdo assecuratório, destinandose a garantir o credor; nessa modalidade, o devedor vendia o bem ao credor sob a condição de recuperá-lo se, dentro do prazo convencionado, resgatasse a dívida. Enquanto a fiducia cum amico não tinha a finalidade de garantir um crédito, mas a de preservar certos bens de uma pessoa, que eventualmente pudessem estar ameaçados por alguma circunstância; nessa modalidade, o proprietário de determinado bem alienava-o com a condição de o adquirente lhe restituir quando cessassem as circunstâncias que tiverem justificado o receio do proprietário 8 Fidúcia: como garantia, exerce função correspondente às garantias reais em geral, sendo, porém, dotada de mais eficácia, pois, enquanto nos contratos de garantia em geral (por exemplo, a hipoteca) o devedor grava um bem ou direito para garantia, mas o mantém em seu patrimônio, na fidúcia, diferentemente, o devedor transmite ao credor a propriedade ou titularidade do bem ou direito, que, então permanecerá no patrimônio do credor como propriedade fiduciária, até que seja satisfeito o crédito. (CHALHUB, 2009, p. 9). 20 (fiduciante), como por exemplo, o risco de perder o bem por razão de algum fato político, o risco de perecer na guerra, uma viagem, etc. (CHALHUB, 2009, p. 11, grifo nosso). Naquele tempo, conforme Alves (1995, p. 143 apud CHALHUB, 2009, p. 13, grifo do autor), o fiduciante tinha que confiar apenas na fides do fiduciário, pois não dispunha de ação para compeli-lo a restituir a coisa ou dar-lhe a destinação pactuada. Diante da matéria controvertida, surgem duas ações, a “actio fiduciae directa e actio fudicia9”. Com base no exposto, conclui-se que o instituto da fidúcia teve grande aplicação na era clássica Romana, mas seu declínio acelerou ao mesmo tempo em que o penhor e a hipoteca foram surgindo no direito romano, com objetivo de abrandar exatamente os inconvenientes da fiducia cum creditore que despojava o devedor de seu bem, apesar do seu desaparecimento ser atribuído ao desuso da mancipatio e da in iure cessio (transferência da propriedade). (SAAD, 2001, p. 53, grifo nosso). Outra experiência do uso da fidúcia encontra-se no direito germânico, muito embora, conforme acima exposto, sua origem foi no direito romano, sendo que este diferia quanto à natureza e aos limites do poder jurídico do fiduciário sobre a coisa objeto da fidúcia. (CHALHUB, 2009, p. 14). Ainda sobre o direito germânico, Pereira (2008, p. 28-29, grifo do autor) afirma que o negócio fiduciário ressurgiu no século XIX, dando origem à modalidade germânica: Nessa nova hipótese, houve mitigação do poder de disponibilidade por parte do credor. Ali, a propriedade transmitida era restringida por uma condição resolutória oponível erga omnes. De tal sorte, o devedor ficava protegido, pois em caso de indevida a alienação a terceiro, havia possibilidade de exercício do direito de sequela, independente do atual detentor da coisa. Na sequência, destaca-se a terceira corrente de pensamento, representada pelo instituto do trust receipt, sendo sua origem provável segundo a doutrina nos Estados Unidos e na Inglaterra, objetivando tornar mais fácil o financiamento entre o vendedor da mercadoria e o financiador dos produtos. 9 Actio fiduciae directa, facultada ao fiduciante na hipótese de o fiduciário deixar de cumprir as obrigações que eventualmente tenha contraído. Actio fudiciae contraria, facultada ao fiduciário na hipótese de o fiduciante deixar de cumprir as obrigações que eventualmente tenha contraído. (ALVES, 1995, p. 143 apud CHALHUB, 2009, p. 13, grifo do autor). 21 O instituto do trust receipt, para Saad (2001, p. 58, grifo do autor), pode ser explicado da seguinte forma: Neste negócio jurídico, forma-se a relação jurídica a partir do instante em que o financiador recebe do vendedor um bem e o entrega ao financiadocomprador, que, por sua vez, emite recibo (trust receipt) onde infirma ser possuidor da coisa em nome do financiador e que irá aliená-la posteriormente para pagar o financiamento. Representando a última corrente de pensamento em relação à origem da fidúcia, encontra-se o mortgage do antigo direito inglês. Segundo Chalhub (2009, p. 15, grifo do autor), “o antigo direito inglês contemplava a figura do mortgage, que consistia na transmissão da propriedade com escopo de garantia”. Ainda na mesma obra, encontra-se o relato da semelhança, na estrutura, nas características e na finalidade entre o mortgage e a fiducia cum creditore romana, apesar dos institutos terem sido desenvolvidos de forma autônoma e distanciados no tempo e espaço. Assim, entende-se que a fidúcia, nos diferentes séculos e regiões onde foi utilizada, tratava-se de uma garantia real, onde em sua essência estava a transferência da propriedade do bem ao credor por certo tempo, até que o devedor cumprisse com as suas obrigações assumidas. 2.4 CLASSIFICAÇÃO DAS GARANTIAS REAIS As garantias reais inserem-se no ordenamento jurídico pátrio como parte dos direitos reais, assim, para classificar as garantias reais faz-se necessário contextualizar a classificação dos direitos reais e onde elas estão inseridas. Ao abordar sobre os direitos reais, Venosa (2016, p. 24, grifo do autor) explana sobre as classificações doutrinárias e afirma que a “primeira e mais importante distingue os direitos reais sobre a própria coisa e sobre coisa alheia”. Neste sentido, Coelho (2016, p. 26, grifo nosso) classifica e distingue os direitos reais: São direitos reais sobre coisa própria a propriedade e os direitos reais em garantia. A propriedade é o mais importante dos direitos reais, à qual correspondem os mais amplos poderes de sujeição da coisa ao ser humano. Já os direitos reais em garantia importam a propriedade resolúvel sobre a coisa; isto é, que deixa de existir quando implementada a condição resolutiva a que se encontrava ligada. Esses direitos visam garantir, de modo mais eficiente do ponto de vista jurídico, obrigações ativas do seu titular, isto é, a satisfação de créditos em seu favor. Quando cumprida a obrigação, a garantia 22 não tem mais serventia, e a propriedade se resolve. São direitos reais em garantia os relacionados à propriedade fiduciária. Por sua vez, os direitos reais sobre coisa alheia se subdividem em três categorias: direitos de gozo, de garantia e à aquisição. Os direitos reais de garantia (atente para a preposição) têm a mesma finalidade dos em garantia: assegurar o cumprimento eficiente da obrigação garantida. Por recaírem os direitos reais de garantia sobre coisa alheia, porém, não importam a titularidade de propriedade sobre o bem onerado, nem mesmo a resolúvel. Nessa categoria estão a hipoteca, o penhor e a anticrese. Nos dois primeiros, o titular tem o direito de ver o seu crédito satisfeito preferencialmente com o produto da venda judicial do bem onerado. Com base no acima exposto, os direitos reais de garantia são o penhor, a hipoteca e a anticrese; e os direitos reais em garantia, por sua vez, são a alienação fiduciária em garantia e a cessão fiduciária de direitos creditórios. (COELHO, 2016, p. 214). Diante das classificações apresentadas, observa-se o agrupamento dos institutos pela natureza da relação da coisa com a obrigação. Assim, nos direitos reais de garantia, a propriedade da coisa continua com o devedor, existindo um ônus real sobre a coisa até o cumprimento da obrigação; enquanto que nos direitos reais em garantia, a propriedade da coisa é transferida ao credor até o cumprimento da obrigação pelo devedor. 2.5 FUNÇÃO DAS GARANTIAS REAIS As instituições financeiras, ao concederem crédito, avaliam a capacidade empresarial ou laboral do solicitante; seu fluxo de caixa, para estimar a sua capacidade de pagamento; e por fim, as garantias ofertadas. Os dois primeiros itens visam estimar a probabilidade de o tomador do crédito cumprir com a obrigação pela forma normal, ou seja, pelo pagamento da obrigação conforme o acordado. Por sua vez, as garantias ofertadas visam assegurar o cumprimento da obrigação independente do sucesso do projeto ou da capacidade de pagamento dos tomadores. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 863-867). Sobre as garantias reais, Gomes (2012, p. 350, grifo do autor) explica que “sua função é garantir ao credor o recebimento da dívida, por estar vinculado determinado bem ao seu pagamento. O direito do credor ‘concentra-se sobre determinado elemento patrimonial do devedor’”. Neste diapasão, Venosa (2016, p. 569) afirma que a função das garantias reais é “assegurar o cumprimento de obrigação, mas com ela não se confundem”. 23 Coelho (2016, p. 213), por sua vez, afirma que “a garantia do credor é o patrimônio do devedor. Na verdade, é quase isso: os bens do ativo do patrimônio do devedor configuram a garantia do credor”. Para Gonçalves (2016, p. 529), a função da garantia real está também ligada ao princípio da responsabilidade pelo qual o patrimônio do devedor responde pelas obrigações e complementa: [...] o patrimônio do devedor constitui a garantia geral dos credores. Efetivase pelos diversos modos de constrição judicial (penhora, arresto, sequestro), pelos quais se apreendem os bens do devedor inadimplente para vendê-los em hasta pública, aplicando-se o produto da arrematação na satisfação do crédito do exequente. Em relação à função das garantias reais, entende-se que o patrimônio do devedor responde pelo cumprimento da obrigação, pois, o bem dado em garantia deve satisfazer a obrigação de adimplemento da dívida conforme pactuado. 2.6 ESPÉCIES DE GARANTIAS REAIS Neste subcapítulo apresentam-se as espécies de garantias reais aplicáveis aos contratos de concessão de crédito bancário, sendo estas o objetivo central do presente estudo. O Código Civil traz em seu artigo 1.225 três espécies de direitos reais de garantia: o penhor, a hipoteca e a anticrese. Ainda no Código Civil, encontra-se nos artigos 1.361 a 1.368 a propriedade fiduciária, tal disposição regulamenta o uso da alienação fiduciária dada em garantia. Sendo que em todos os casos, sua principal finalidade é garantir ao credor o recebimento da dívida, caso o devedor torne-se inadimplente. (BRASIL, 2002). Neste contexto, a distinção fundamental entre a propriedade fiduciária e os demais direitos reais de garantia (hipoteca, penhor e anticrese) reside na verdadeira transmissão de propriedade que se verifica naquela, enquanto nos demais direitos de garantia o que se constitui é apenas um ônus real em coisa alheia. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 537). Ainda em relação aos direitos reais de garantia, o penhor, hipoteca e anticrese são direitos reais limitados de garantia, utilizados para assegurar o 24 cumprimento de obrigação, assim, conforme previsto no Artigo 1.419 10 do Código Civil, só haverá garantia se houver o que garantir, isto é, uma dívida, uma obrigação. (VENOSA, 2016, p. 569). Em complemento aos pontos abordados, destacam-se a Lei n° 9.514/1997 que institui a AFBI e a Lei n° 4.728/1965, posteriormente alterada pelo Decreto-Lei n° 911/1969 e pela Lei n° 10.931/2004, que instituem a Alienação Fiduciária de Bens Móveis. Dessa forma, percebe-se que o ordenamento jurídico pátrio apresenta algumas opções de garantias reais para assegurar às instituições financeiras o recebimento de seus créditos, conforme se apresenta a seguir. 2.6.1 Hipoteca A hipoteca sem dúvida continua sendo um dos institutos jurídicos mais utilizados pelas instituições financeiras como garantia real, especialmente nas operações de financiamento fora do Sistema Financeiro Imobiliário. A continuação de sua utilização baseia-se na dificuldade de operacionalização da AFBI, especialmente quando comparada com a hipoteca que realiza-se pela simples averbação do ônus real junto à matrícula do imóvel. A regulamentação da hipoteca como direito real de garantia, encontra-se disciplinada, para Farias e Rosenvald (2016, p. 863), de forma “bifronte: em seus aspectos substanciais é regida pelo Código Civil (Arts. 1.473 a 1.505); já em seu aspecto procedimental, na Lei de Registros Públicos (Lei n° 6.015/1973)”. Destaca-se que o Código Civil disciplinou unicamente a hipoteca de bens imóveis ou direitos a eles relativos. Quando o gravame recai sobre navios (hipoteca naval) ou aeronaves (hipoteca aérea), aplica-se a legislação específica (CC, Art. 1.473, parágrafo primeiro11). (COELHO, 2016, p. 208). Diante do exposto acima, o presente trabalho limita-se ao estudo da hipoteca sobre bens imóveis, pois, trata-se no direito do instituto equivalente ao da AFBI, tema central deste estudo. 10 Art. 1.419. Nas dívidas garantidas por penhor, anticrese ou hipoteca, o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação. (BRASIL, 2002). 11 Artigo 1.473, § 1° A hipoteca dos navios e das aeronaves reger-se-á pelo disposto em lei especial. (BRASIL, 2002). 25 De forma geral, o conceito de hipoteca está de maneira harmônica com os dispositivos legais. Neste sentido, Gonçalves (2016, p. 595) explica que a “Hipoteca é o direito real de garantia que tem por objeto bens imóveis, navio ou avião pertencentes ao devedor ou a terceiro e que, embora não entregues ao credor, asseguram-lhe, preferencialmente, o recebimento de seu crédito”. Sobre o tema, Farias e Rosenvald (2016, p. 863) afirmam: Não obstante a omissão do Código Civil no sentido de definir esse complexo modelo jurídico, a hipoteca pode ser conceituada como direito real de garantia, em virtude do qual um bem imóvel (exceto navios e aeronaves) remanesce na posse do devedor ou de terceiro, assegurando preferencialmente ao credor o pagamento de uma dívida. Um ou mais bens específicos do patrimônio imobiliário do devedor ou do terceiro garantidor são afetados como caução específica de uma obrigação. Além de conceituar a hipoteca, Loureiro (2008, p. 1.591 apud FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 864), estabelece as características principais deste instituto jurídico: a) é direito real de garantia, de modo que adere ao bem e é dotada de oponibilidade geral; b) é acessória, pois não se concebe garantia sem uma obrigação a ser garantida, a qual segue a sorte; c) tem por objeto coisa imóvel, navios e aeronaves. Como direito real imobiliário, é em si mesma classificada como bem imóvel: d) tem como objeto coisa do devedor ou de terceiro - nada impede que o hipotecante seja pessoa diversa do devedor; e) a posse da coisa hipotecada permanece com o proprietário, seja devedor ou terceiro, sem transferência ao credor; f) é indivisível, porque enquanto não satisfeita integralmente a dívida, subsiste por inteiro sobre a totalidade dos bens gravados; g) é temporária, tendo como uma das causas de extinção a perempção, ou usucapião da liberdade, com cancelamento do registro, após o prazo de trinta anos. A hipoteca admite várias formas e Venosa (2016, p. 622-623, grifo nosso) as classifica, conforme sua origem, em convencional, legal ou judicial: A hipoteca convencional é aquela derivada de acordo de vontades. As partes têm a faculdade, de garantir obrigações de dar, fazer ou não fazer com hipoteca. É modalidade mais comum, devendo obedecer aos requisitos dos direitos de garantia em geral e aos específicos de sua natureza. Pode, em tese, como na antiguidade, ser determinada por testamento, mas se torna problemática a possibilidade de concretização. A hipoteca legal decorre de certas situações em que a lei exige garantia de pessoas colocadas sob determinadas condições. Sua finalidade é preventiva e acautelatória de eventuais prejuízos, como veremos. A hipoteca judicial é determinada em sentença, conferindo ao exequente prosseguir em execução contra adquirentes de bens do executado. As hipotecas sobre navios e aeronaves, bem como sobre vias férreas, devem ser classificadas, dadas suas peculiaridades, como hipotecas especiais, embora também sejam modalidades convencionais. No mesmo sentido se coloca a hipoteca sobre minas e pedreiras. O regime jurídico, principalmente o registrário, estrutura-se tendo em mira a hipoteca convencional. 26 A hipoteca abrange o solo e todas as acessões, melhoramentos ou construções feitos nele. Essa a ideia descrita no art. 1.47412 do Código Civil. Importante também a discussão sobre a pluralidade de hipotecas, visto que esta é uma diferença relevante em relação à AFBI, traduzindo-se em grande diferencial para a continuidade da utilização da hipoteca na atualidade. Assim, a respeito da possibilidade de onerar o mesmo imóvel com várias hipotecas, Gonçalves (2016, p. 620, grifo do autor) afirma: Admite-se a efetivação de novas hipotecas sobre o imóvel anteriormente hipotecado, desde que com novo título constitutivo, em favor do mesmo ou de outro credor. Nesse sentido dispõe o artigo 1.476 do Código Civil: “O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor”. É possível, assim, seja o imóvel gravado de várias hipotecas, a menos que o título constitutivo anterior vede isso expressamente. Se o valor do prédio excede o da obrigação garantida com hipoteca, a ponto de a sobra bastar para assegurar outra obrigação, poderá o credor oferecê-la para garantir novo negócio. Pois bem, estabelecida a possibilidade da hipoteca em graus diferentes sobre o mesmo imóvel, Coelho (2016, p. 208) explica que “o que interessa, em princípio, para o estabelecimento da ordem de preferência entre as hipotecas incidentes sobre o mesmo bem é a data dos respectivos protocolos no Cartório de Registro de Imóveis”. Assim, a hipoteca de segundo grau não poderá ser executada, mesmo depois de seu vencimento, enquanto ainda não for exigível a de primeiro grau, isto em razão do Art. 1.477 do Código Civil que assim dispõe: “Salvo o caso de insolvência do devedor, o credor da segunda hipoteca, embora vencida, não poderá executar o imóvel antes de vencida a primeira”. Por fim, a extinção da hipoteca pode se dar pela satisfação da obrigação principal, pelo perecimento da coisa, pela resolução da propriedade do outorgante ou pela renúncia do credor hipotecário. Também são causas extintivas a remição (ato pelo qual o legitimado paga ao credor o valor da obrigação garantida, liberando o bem do ônus), arrematação (aquisição do bem hipotecado em hasta judicial por quem oferece o maior lance) ou adjudicação (entrega judicial do bem onerado ao credor, como forma de satisfação do seu crédito). Finalmente, a averbação de cancelamento do registro, feita a pedido do devedor, com a anuência expressa do credor hipotecário 12 Art. 1.474. A hipoteca abrange todas as acessões, melhoramentos ou construções do imóvel. Subsistem os ônus reais constituídos e registrados, anteriormente à hipoteca, sobre o mesmo imóvel. (BRASIL, 2002). 27 ou a prova da quitação da obrigação garantida, também importa a extinção da garantia real (CC, Arts. 1.499 e 1.500). (COELHO, 2016, p. 208). Além das hipóteses anteriores, entende-se que não há prazo limitado para a existência da hipoteca. A Lei n° 10.931/2004, porém, alterou o Art. 1.485 do Código Civil para fazer retomar o prazo de 30 anos para prorrogação da hipoteca, mas nada se alterou quanto ao artigo 1.498 do CC, que se reporta à nova especialização em 20 anos. Portanto, esses prazos não coincidem. (VENOSA, 2016, p. 627). Em complemento à extinção da hipoteca, entende-se que a perempção pelo decurso do prazo atinge somente a hipoteca convencional, visto que a hipoteca legal prolonga-se indefinidamente, enquanto perdurar a situação jurídica que ela visa resguardar, mas a especialização, em completando vinte anos, deve ser renovada (CC, Art. 1.498). (GONÇALVES, 2016, p. 611). 2.6.2 Penhor A regulamentação do penhor encontra-se no Código Civil, nos artigos 1.431 a 1.472, sendo sua aplicação semelhante ao da hipoteca, porém neste caso a garantia real trata-se de um bem móvel. No direito brasileiro atualmente, o penhor é o direito real de garantia sobre bens móveis e a hipoteca, sobre imóveis. A rigor, no entanto, o penhor pode recair sobre todos os bens e direitos que a lei expressamente não reservar à hipoteca. (COELHO, 2016, p. 224) Para Mamede (2003, p. 128 apud VENOSA, 2016, p. 585), o penhor pode ser conceituado como “um contrato de mútuo, com constituição acessória de penhor; ou seja, de garantia real”. No mesmo sentido, Pereira (2004, p. 338 apud GONÇALVES, 2016, p. 555) define o penhor como “o direito real que consiste na tradição de uma coisa móvel, suscetível de alienação, realizada pelo devedor ou por terceiro ao credor, em garantia do débito”. A tradição ou transferência da coisa é condição essencial para o penhor. Neste sentido, Venosa (2016, p. 588) afirma que a tradição está para os bens móveis tal como o registro para os imóveis, sendo que a tradição confere a necessária publicidade ao penhor. 28 Na relação obrigacional do penhor, denomina-se credor pignoratício o sujeito da obrigação principal, enquanto o sujeito passivo da obrigação é chamado de devedor pignoratício. O devedor pode ser um terceiro que oferece a garantia, porém necessariamente, deve ser proprietário da coisa dada em penhor. (GOMES, 2012, 365). Para Gomes (2012, p. 367), o penhor constitui-se mediante contrato ou por determinação da lei, podendo ser penhor convencional e penhor legal: Penhor convencional: credor e devedor estipulam, em instrumento particular ou público, a garantia pignoratícia. Esse contrato é acessório de outro, geralmente o de mútuo. Mas não precisa ser celebrado pelo devedor do contrato principal. Terceiro pode oferecer bem seu em garantia do débito, tomando-se, em consequência, sujeito passivo da relação jurídica do penhor. O penhor legal constitui-se independentemente de convenção. Para a proteção de certos credores, a lei lhes confere, sobre determinados bens, o direito de tomá-los em garantia até o valor da dívida. Observa-se que a extinção do penhor está prevista no artigo 1.436 do Código Civil, que relaciona os diversos modos de extinção do penhor: Art. 1.436. Extingue-se o penhor: I - extinguindo-se a obrigação; II - perecendo a coisa; III - renunciando o credor; IV - confundindo-se na mesma pessoa as qualidades de credor e de dono da coisa; V - dando-se a adjudicação judicial, a remissão ou a venda da coisa empenhada, feita pelo credor ou por ele autorizada. (BRASIL, 2002). Diante do disposto no artigo, têm-se hipóteses de extinção que se prendem à obrigação principal (incisos I e V) e outras que concernem ao penhor de forma imediata (II, III e IV). Tal dispositivo não é exaustivo, pois outras causas extinguem o penhor, como: a remição, a resolução da propriedade do bem empenhado e a usucapião do bem empenhado. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 841). Por derradeiro, uma vez extinto o penhor por qualquer das causas mencionadas, o credor deverá restituir o objeto empenhado. Porém, a extinção somente produzirá efeitos “depois de averbado o cancelamento do registro, à vista da respectiva prova” (CC, Art. 1.437). Assim, o cancelamento do penhor se faz por averbação à margem do respectivo registro. (GONÇALVES, 2016, p. 594). 29 2.6.3 Anticrese A anticrese encontra-se prevista dos artigos 1.506 a 1.510 do Código Civil, sendo para alguns autores a instituição paralela ao penhor e à hipoteca, ficando a meio caminho entre ambos. (VENOSA, 2016, p. 655). Apesar do pouco uso segundo a doutrina, Gonçalves (2016, p. 944) assim define o instituto: “A anticrese é direito real sobre coisa alheia, em que o credor recebe a posse de coisa frugífera, ficando autorizado a perceber-lhe os frutos e imputá-los no pagamento da dívida”. Farias e Rosenvald (2016, p. 891) conceituam a anticrese como: [...] direito real de garantia em que o devedor transmite ao seu credor a posse direta de imóvel de sua propriedade, a fim de que este último pague-se com os frutos oriundos da exploração econômica da coisa, paulatinamente abatendo os juros e o débito principal. Nesta relação obrigacional, o credor chama-se de credor anticrético, enquanto o devedor de devedor anticrético. O devedor é o proprietário do imóvel que deverá produzir frutos para pagar a obrigação assumida. Neste contexto, o proprietário do imóvel (devedor na relação jurídica de anticrese) não fica privado do direito de aliená-lo a terceiro, mas, se o exerce, o credor anticrético pode vindicar os seus direitos contra o adquirente. Assim, como titular de direito real, tem direito a sequela. (GOMES, 2012, p. 378). A anticrese é um direito real imobiliário, pois somente os bens imóveis podem ser objeto de garantia anticrética. Necessário ainda que sejam frugíferos, visto que o credor deve perceber os frutos naturais ou civis da coisa, pois, caso contrário a anticrese perde sua razão de existir. (GOMES, 2012, p. 378). A constituição da anticrese gera direitos e obrigações para o devedor e para o credor, sendo estas elencadas por Gonçalves (2016, p. 646, grifo nosso): São direitos do credor anticrético: a) possuir o bem dado em garantia; b) perceber-lhe os frutos e rendimentos; c) retê-lo em seu poder até que a dívida seja saldada; d) reivindicar seus direitos contra o terceiro que adquira o imóvel; e) reivindicá-los contra os credores quirografários e os hipotecários posteriores à transcrição da anticrese; f) haver do produto da venda do bem anticrético, no caso de falência do devedor, o valor atual dos rendimentos que pudesse obter em compensação da dívida, à taxa de juros legal. São obrigações do credor anticrético: a) guardar a coisa como se fosse sua; b) responder pelas deteriorações que o imóvel sofrer por culpa sua; c) responder pelos frutos que deixar de perceber por sua negligência; d) prestar contas ao proprietário da coisa. 30 São direitos do devedor anticrético: a) reaver o imóvel tanto que paga a dívida; b) ser indenizado do dano oriundo de deterioração do imóvel por culpa do credor; c) ressarcir-se do valor dos frutos que o credor tenha negligentemente deixado de perceber; d) pedir contas ao credor. São obrigações do devedor anticrético: a) entregar o imóvel ao credor; b) pagar a dívida; c) ceder ao credor o direito de perceber os frutos e rendimentos da coisa. Da mesma maneira que os demais direitos reais de garantia, a primeira causa de extinção da anticrese é a eliminação integral da dívida, extinguindo a anticrese, situação na qual o devedor pode exigir a devolução da coisa. A posse do credor transforma-se em injusta após o desaparecimento da obrigação. (VENOSA, 2016, p. 660). As demais causas de extinção da anticrese podem ser associadas àquelas especificamente estudadas na hipoteca e elencadas no Art. 1.499, do Código Civil. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 841). Ademais, Venosa (2016, p. 660) salienta que “diferentemente dos outros direitos da mesma natureza, a lei impõe a extinção da anticrese decorridos 15 anos de seu registro imobiliário, prazo de caducidade (Art. 1.423)”. O mesmo autor ainda enfatiza, que nem sempre a extinção da anticrese induzirá extinção da obrigação, permanecendo o credor como quirografário. Apesar do óbvio desuso desse instituto na atualidade, ainda há doutrinadores, conforme Mamede (2003, p. 470 apud VENOSA, 2016, p. 660), que sustentam: “acredito que a anticrese, não obstante em desuso, é opção negocial, mais do que mera garantia real, que oferece possibilidades comerciais interessantes, para as quais o mercado não atentou, infelizmente”. Diante das ponderações realizadas, finaliza-se a discussão sobre os direitos reais de garantia (penhor, hipoteca e anticrese) e passa-se a discutir os direitos reais em garantia (alienação fiduciária neste trabalho), em suas duas formas, sobre bens móveis e imóveis. 2.6.4 Alienação fiduciária de bens móveis A alienação fiduciária de bens móveis foi regulamentada inicialmente no Brasil pela Lei n° 4.728, de 14 de julho de 1965, tendo como objeto em garantia apenas os bens móveis. (BRASIL, 1965). 31 Alguns autores tratam o contrato de alienação fiduciária de bens móveis, como título constitutivo da propriedade fiduciária, que foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro, segundo Venosa (2016, p. 437), da seguinte forma: [...] a alienação fiduciária em garantia, introduzida originalmente em nossa legislação para dar substrato aos contratos de financiamento precipuamente de bens móveis e duráveis, inseriu em nosso ordenamento mais um direito real de garantia, que se agrega ao rol já existente, com características próprias. De fato, a Lei n° 4.728/65, estruturadora do mercado de capitais, criou o instituto, que ganhou contornos materiais e processuais definitivos com o Decreto-lei n° 911/69, que alterou a redação do art. 66 da referida lei e em seus nove artigos disciplinou a garantia fiduciária cuja experiência demonstrou ser muito útil no mundo negocial. Posteriormente a matéria foi inserida no Código Civil de 2002, que regulamentou a propriedade fiduciária de bens móveis em garantia, nos Arts. 1.361 a 1.368, revogando as disposições do Art. 66 da Lei n° 4.728/1965, com redação dada pelo Decreto-lei n° 911/69, exceto as normas de natureza processual, que continuaram em vigor. Mais tarde, o instituto sofreu nova configuração por força da Lei n° 10.931/2004, que derrogou os Arts. 66 e 66A da Lei 4.728/1965 e nela introduziu o Art. 66B, definindo algumas características especiais para constituição da propriedade fiduciária em garantia no âmbito do mercado financeiros e de capitais. Além disso, o § 3° do mesmo Art. 66B criou a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre bens móveis. (CHALHUB, 2009, p. 154). Logo acima, explanou-se sobre os dispositivos legais que autorizam o uso da alienação fiduciária de bens móveis no orçamento jurídico pátrio. Neste momento passa-se a conceituar o instituto, para entender a sua aplicação. Assim, Gomes (2012, p. 357) define a alienação fiduciária como: [...] o negócio jurídico pelo qual uma das partes adquire, em confiança, a propriedade de um bem, obrigando-se a devolvê-la quando se verifique o acontecimento a que se tenha subordinado tal obrigação, ou lhe seja pedida a restituição. Venosa (2016, p. 438) contribui para o tema conceituando a alienação fiduciária conforme segue: A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tomando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal. 32 Destaca-se ainda que o objeto da alienação fiduciária de bens móveis deve ser uma coisa infungível, pois é da essência desse negócio a obrigação de restituir a própria coisa. A infungibilidade é requisito estabelecido pelo Art. 1.361 do Código Civil. A fungibilidade, portanto, é incompatível com a natureza do contrato de alienação fiduciária. (CHALHUB, 2009, p. 165). 2.6.5 Alienação fiduciária de bens imóveis Foram necessários mais de 30 anos para que a garantia fiduciária pudesse ser empregada também à propriedade imobiliária, já que antes da Lei n° 9.514/1997, a instituição do gravame fiduciário sobre imóveis não contava com o apoio da doutrina, sendo sua aplicabilidade restrita e controvertida, não tendo ultrapassado o campo da especulação acadêmica. (SAAD, 2001, p. 117). De fato, somente com o advento da Lei n° 9.514/1997, ao disciplinar a AFBI, importante lacuna do sistema de garantias do direito brasileiro foi suprida, dotando o ordenamento jurídico de instrumento que permite em situações de mora, nas operações de crédito com garantia imobiliária, recompor o crédito em prazos compatíveis com as necessidades da economia moderna, a exemplo do que há muito se verificava no âmbito dos financiamentos de bens móveis. (CHALHUB, 2009, p. 220). A AFBI é um direito real em garantia estudado pelo ramo dos direitos reais, sendo seu conceito de extrema importância para a compreensão do presente assunto. Para Lima (2011, p.59), a conceituação da AFBI tem como espelho a definição efetuada para a garantia real mobiliária, de acordo com redação dada pelo Decreto-lei 911/1967. Com base nesta afirmação, a Lei n° 9.514/1997, em seu artigo 22, estabelece o conceito do instituto: “A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”. Com base nos conceitos apresentados, extrai-se que a AFBI fica caracterizada quando o devedor (fiduciante), sendo proprietário de um imóvel, alienao ao credor (fiduciário) a título de garantia. Assim, a propriedade adquirida deste modo tem caráter resolúvel, pois está intimamente vinculada ao pagamento da dívida, já que ocorrendo o pagamento desta em sua integralidade, ocorrerá a revogação automática 33 da fidúcia, com o consequente retorno da propriedade plena ao patrimônio do devedor fiduciante. Por outro lado, se acontecer o inadimplemento contratual do devedor, opera-se a consolidação da propriedade plena em nome do credor fiduciário. (DANTZGER, 2010, p. 49). Dado o exposto, sobre os direitos reais de garantia (hipoteca, penhor e anticrese), como também sobre os direitos reais em garantia (alienação fiduciária de bens móveis e imóveis), na sequência abordam-se especificamente as particularidades da Lei n° 9.514/1997, pois se trata do objetivo do presente estudo. 34 3 ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS SEGUNDO A LEI N° 9.514/1997 Neste capítulo discute-se a alienação fiduciária em garantia segundo a Lei n° 9.514/1997, visto que a mesma tem sido utilizada largamente pelas instituições financeiras em seus financiamentos dentro e fora do SFI. Com a entrada em vigor da referida lei, introduziu-se mais uma possibilidade de se dar um bem imóvel em garantia. Com esta ação o legislador tentou criar meios mais céleres para o credor fiduciário recuperar o seu crédito, em substituição ao Sistema Financeiro de Habitação (Lei n° 4.380/64), no qual preponderava a execução da garantia hipotecária, que perdeu a credibilidade em razão de gerar um processo judicial extremamente demorado e oneroso, que inviabilizava a própria concessão do crédito habitacional. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 558). Para Chalhub (2009, p. 85), a transferência da propriedade do bem ao credor mediante transmissão fiduciária constitui importante traço distintivo entre a alienação fiduciária e a hipoteca, o penhor e a anticrese, já que nestas modalidades de garantia, ao credor é conferido apenas direito real de garantia constituído sobre coisa alheia, e a propriedade permanece sob a titularidade do devedor. Sendo assim, enquanto na alienação fiduciária o credor é titular de direito real sobre coisa própria, nas outras espécies de garantia ele tem apenas direito real sobre coisa alheia. A grande vantagem deste tipo de garantia, em comparação à hipoteca (garantia até então mais utilizada no mercado imobiliário) é a agilidade na execução do bem, pois todo o procedimento se desenrola perante o Cartório Imobiliário (Registro de Imóveis), sendo desnecessária a ida ao Judiciário. Pelo procedimento previsto na lei, o agente notarial é quem notifica o devedor, constituindo-o em mora, e, persistindo a inadimplência pelo prazo de 15 dias, consolida a propriedade do bem em prol do credor. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 559). Infelizmente, a Alienação Fiduciária apresenta algumas limitações de operacionalização, especialmente quando comparada com a hipoteca. Diante do exposto, passa-se a discutir as características relevantes da utilização deste instituto pelas instituições financeiras fora do SFI. 35 3.1 CONCEITO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL Para Coelho (2016, p. 237), o conceito de Alienação fiduciária de bem imóvel pode ser extraído com facilidade do artigo 22 da Lei n° 9.514/1997, conforme segue: “A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência o credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”. Ainda dentro do conceito, Saad (2001, p. 82) assim contribui: [...] contrato de efeitos reais que visa à constituição de direito real acessório de garantia, segundo o qual se transferem ao fiduciário (credor) a propriedade resolúvel e a posse indireta de uma coisa, com a finalidade de assegurar o cumprimento da obrigação principal pelo fiduciante (devedor) que se tornará possuidor indireto do aludido bem. Pela dinâmica da lei, segundo Chalhub (2009, p. 225), a AFBI opera-se da seguinte forma: [...] o devedor (fiduciante), sendo proprietário de um imóvel, aliena-o ao credor (fiduciário) a título de garantia; a propriedade assim adquirida tem caráter resolúvel, vinculada ao pagamento da dívida, pelo que, uma vez verificado o pagamento, opera-se a automática extinção da propriedade do credor, com a consequente reversão da propriedade plena ao devedorfiduciante, enquanto, ao contrário, se verificado o inadimplemento contratual do devedor-fiduciante, opera-se a consolidação da propriedade plena no patrimônio do credor-fiduciário. Feitas tais considerações gerais, passa-se a expor as principais características previstas na referida lei sobre a alienação fiduciária em garantia. 3.2 NATUREZA JURÍDICA O contrato de alienação fiduciária em garantia se dá pela celebração de um contrato acessório de garantia. Como o próprio nome diz, este contrato é típico, formal, oneroso, bilateral ou sinalagmático e cumulativo. Logo, esse contrato é o título aquisitivo da propriedade fiduciária. Para fins de terminologia, a “alienação fiduciária” não é a garantia, propriamente dita, mas é tão somente o contrato por intermédio do qual será obtida a garantia, que é a “propriedade fiduciária”. (DANTZGER, 2010, p. 42). A alienação fiduciária é um negócio jurídico que apresenta, segundo Diniz (2012, p. 623, grifo do autor), as seguintes características: 36 a) é bilateral, já que cria obrigações tanto para o fiduciário como para o fiduciante; b) é oneroso, porque beneficia a ambos, proporcionando instrumento creditício ao alienante, e assecuratório ao adquirente; c) é acessório, pois depende, para sua existência, de uma obrigação principal que pretende garantir; d) é formal, porque requer sempre, para constituir-se, instrumento escrito, público ou particular; e) é indivisível, pois o pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração correspondente da garantia ainda que esta compreenda vários bens, exceto disposição expressa no título ou na quitação (CC, arts. 1.367 e 1.421). Neste sentido, Lima (2011, p. 68) destaca que o contrato de alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel possibilita o surgimento da propriedade fiduciária. Tal situação pode ser observada na redação dos Arts. 22 e 23 da Lei n° 9.514/1997: Art. 22. [...] Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título. Cuida-se de um contrato acessório por excelência, porque, pela sua celebração, o que se almeja na verdade não é a transferência do domínio pleno e irreversível do bem ao credor fiduciário, mas sim, a garantia contra eventual inadimplemento do devedor fiduciante, no tocante ao cumprimento da obrigação principal, como por exemplo, a obrigação originada de um contrato de mútuo. (DANTZGER, 2010, p. 42). A acessoriedade do contrato de alienação fiduciária em garantia, para Lima (2011, p. 59), pode ser explicado da seguinte forma: A alienação fiduciária, como negócio de garantia que é, desenvolve-se como um direito acessório, dependente de uma obrigação principal, notadamente um contrato de mútuo, pelo qual o devedor – chamado de fiduciante – realiza, por si, ou por intermédio de terceiro, a entrega de bem imóvel, para o credor – dito fiduciário –, em propriedade resolúvel, enquanto durar a obrigação principal. A acessoriedade, inerente à propriedade fiduciária em geral, consoante prescreve o art. 1.359 do Código Civil, sujeita o bem, por vínculo real, ao destino da obrigação principal. Isto quer dizer que a sorte da propriedade fiduciária está intimamente ligada ao da obrigação principal. Ou seja, por exemplo, uma vez que haja o adimplemento da obrigação principal, extinguem-se todos os direitos reais concedidos na sua pendência. A alienação fiduciária é um contrato formal, devendo ser escrito, mas além do formalismo do ato, há ainda o formalismo registrário, já que o contrato precisa ser levado ao registro público para que seja constituída a propriedade fiduciária, bem como para que o direito tenha validade perante terceiros, pois como visto, a alienação fiduciária é o contrato e a propriedade fiduciária é a garantia que se dará como 37 consequência do registro do contrato de alienação fiduciária no Cartório de Registro de Imóveis. (DANTZGER, 2010, p. 43). Segundo Lima (2011, p. 51), é de vital importância o conhecimento acerca da tipicidade do novo direito real de garantia. Vale dizer, se a vontade do legislador em elastecer o microsistema de garantias é capaz de oportunizar o surgimento de um direito real típico. Com base no exposto, verifica-se que o contrato de alienação fiduciária de bem imóvel trata-se de um contrato típico e a sua tipicidade decorre das regras regulamentas pela Lei n° 9.514/1997. Observa-se que o contrato de AFBI é também um contrato comutativo, na medida em que as prestações obrigacionais por ele geradas para os contratantes são de antemão conhecidas, e guardam entre si uma relativa equivalência de encargos. (DANTZGER, 2010, p. 45). Para Donizette e Quintella (2014, p. 486), diz-se bilateral o contrato se dele nascerem obrigações para ambas às partes, podendo ser chamado também pela doutrina de sinalagmático. Com base na afirmação, o contrato de AFBI pode ser classificado como bilateral ou sinalagmático, pois gera obrigações para ambas as partes. No contrato de alienação fiduciária, ambas as partes, fiduciante e fiduciário têm como objetivo a obtenção de vantagens ou benefícios, impondo-se a cada uma delas determinados encargos. Diante de tais características, tal contrato é também classificado como oneroso. (DANTZGER, 2010, p. 44-45). Superadas as questões conceituais e sua natureza jurídica, passa-se à análise das características da garantia fiduciária de bens imóveis. 3.3 CARACTERÍSTICAS As características do contrato de AFBI podem ser compreendidas a partir do entendimento da forma de sua constituição. Assim, Chalhub (2009, p. 198) descreve os passos para constituir a garantia: a) o credor (fiduciário) investido na condição de proprietário tem um direito real sobre coisa própria, pois que, é proprietário para o fim de garantir-se do pagamento do débito; b) o bem imóvel, objeto de alienação fiduciária em garantia fica - na realidade, pode ficar - inserido num patrimônio de afetação, o que significa que não é atingido por insolvência, quer do credor, quer do devedor, não vindo a integrar a massa falida de um ou outro; c) a condição de propriedade do fiduciário ou credor é temporária “até que o devedor- 38 fiduciante pague a dívida, e somente até aí”; d) isto acontecendo, com o pagamento, desaparece a causa ou a razão que justificava a propriedade ou domínio do fiduciário, passando o bem, “automaticamente” para o devedor, que deixa de o ser e passa a proprietário pleno do bem. Após constituída a AFBI em garantia através do contrato de financiamento, faz-se necessária a averbação no cartório de registro de imóveis, para que a garantia seja efetivamente concretizada e o negócio jurídico torne-se acabado. No curso da operação, caso o mutuário pague sua dívida em pontualidade, ao final o mesmo tornar-se-á proprietário do imóvel novamente, automaticamente, porém no caso de inadimplemento, a Lei n° 9.514/1997 prevê procedimento de expropriação dos bens em garantia. Destaca-se que o procedimento de expropriação dos bens em garantia necessita da prévia constituição do devedor em mora, tal procedimento deve ser realizado através do cartório de registro de imóveis, dando oportunidade ao mutuário de purgar a mora. (LIMA, 2011, p. 167-179). Dantzger (2010, p. 45) afirma que a “alienação fiduciária apresenta duas características marcantes, a saber: a resolubilidade e a restrição da propriedade”. A primeira característica se explica, pois, tanto a propriedade resolúvel como a propriedade fiduciária tem como traço característico, o fato de estar prevista sua extinção no próprio título em que é convencionada sua constituição. Subordinase a propriedade fiduciária em garantia à condição decorrente do adimplemento, assim, caso o devedor-fiduciante pague a dívida, reverte-se em definitivo a propriedade em seu favor, porém se houver o seu inadimplemento, consolida-se a propriedade em nome do credor-fiduciante. (CHALHUB, 2009, p. 198). A segunda característica, para Dantzger (2010, p. 45) é a restrição da propriedade, que pode ser assim explicada: [...] é certo que o credor, fiduciário, não recebe a coisa com o ânimo de tê-la para si como sua de forma plena e definitiva; antes, assume a obrigação inescusável de restituí-la ao fiduciante assim que este, devedor, cumpra sua obrigação. Com isso, a propriedade do fiduciário sofre restrições, tanto que, se cumprida a obrigação pelo devedor, o efeito do implemento da condição resolutiva é ex tunc13, e o fiduciário nunca terá tido as faculdades de usar e perceber os frutos da propriedade, que, como se sabe, foi transmitida em escopo de garantia. A partir das características marcantes apresentadas, observa-se que a caracterização da alienação fiduciária está ligada diretamente com a transferência da 13 Ex tunc: (Lê-se: équici túnque.) Desde então, com efeito retroativo. (SANTOS, 2001, p. 279). 39 propriedade do bem imóvel oferecido em garantia. Neste contexto, Venosa (2016, p. 441-442) afirma que: [...] o contrato de alienação fiduciária, tal como os contratos que instituem penhor ou hipoteca, é instrumento para a constituição da propriedade fiduciária, modalidade de garantia real, criada pelo art. 66 da Lei n° 4. 728/65 e pela Lei n° 9.514/97, e agora contemplada também no Código Civil (arts. 1.361 a 1.368). Desse modo, existem nesses diplomas legais dois institutos jurídicos: o contrato de alienação fiduciária e a garantia fiduciária propriamente dita, decorrente do primeiro. Por meio dos conceitos apresentados, verifica-se que é relevante compreender o contrato de alienação fiduciária e a garantia fiduciária, pois tratam-se de requisitos essenciais para a constituição efetiva da garantia real imobiliária. 3.4 GARANTIA FIDUCIÁRIA A propriedade fiduciária é um patrimônio de afetação em direito real de garantia em coisa própria, pelo fato de ocorrer a transferência da propriedade ao fiduciário. Esta modalidade de direito real é bem mais interessante ao credor do que os demais direitos reais de garantia. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 536). As disposições do Código Civil reportam-se exclusivamente à coisa móvel infungível, como decorre do Art. 1.361: “Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”. (VENOSA, 2016, p. 440). Assim, verifica-se a importância da existência da Lei n° 9.514/1997 dispondo expressamente sobre a “propriedade fiduciária”, sobre a “propriedade resolúvel” e consequentemente estabelecendo um “patrimônio de afetação” na utilização e operacionalização dos diferentes momentos contratuais da alienação fiduciária em garantia, onde passa-se a expor cada um deles. 3.4.1 Propriedade fiduciária A principal distinção entre a propriedade fiduciária e os demais direitos reais de garantia (hipoteca, penhor e anticrese) reside na verdadeira transmissão de propriedade no primeiro, enquanto nos outros há apenas o ônus real sobre coisa alheia. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 537). 40 Dada a importância do assunto, o Código Civil regulamentou a propriedade fiduciária dos artigos 1.361 ao 1.368-B, cabendo ao primeiro o seu conceito: “Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”. A propriedade fiduciária acima regulamentada constitui-se mediante negócio jurídico de disposição condicional, subordinado a uma condição resolutiva, porque a propriedade fiduciária cessa em favor do alienante, uma vez verificado o implemento da condição resolutiva, não exige nova declaração de vontade do adquirente ou do alienante, nem requer a realização de qualquer novo ato. O alienante que transferiu fiduciariamente a propriedade readquire-a pelo pagamento da dívida. (GONÇALVES, 2016, p. 438). Em outras palavras, a propriedade fiduciária do credor está afetada à garantia do pagamento. Para Farias e Rosenvald (2016, p. 560), a especialidade do regime de propriedade fiduciária da Lei n° 9.514/1997 não reside em seus sujeitos, mas no objeto da garantia, o bem imóvel. No caso da propriedade fiduciária de imóveis dados em garantia, Farias e Rosenvald (2016, p. 559) contribuem para o tema: Com o advento da Lei n° 9.514/97, o legislador procura atender as demandas consequentes à evolução social, estimulando o financiamento imobiliário mediante a implantação de maiores garantias pela via da fidúcia. Surge então, verdadeira propriedade fiduciária do credor, e não mera garantia sobre coisa alheia. Na Lei n° 9.514/1997 a propriedade fiduciária está prevista em seu artigo 23: Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título. Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel. Frederico Lima (2011, p. 84) afirma que a propriedade fiduciária imobiliária é um direito resolúvel, e assim deve ser encarado, uma vez que o Art. 33, da Lei n° 9.514/1997 estabelece que a ela devem ser aplicadas as regras previstas nos Arts. 1.359 e 1.360 do Código Civil, no que couber. Os referidos artigos disciplinam a propriedade resolúvel no Código Civil, assunto que passa-se a discutir na sequência. 41 3.4.2 Propriedade resolúvel O Código Civil dedica à propriedade resolúvel os artigos 1.359 e 1.360. Apesar da simplicidade da regulamentação, tais dispositivos são essenciais para o presente estudo: Art. 1.359. Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha. Art. 1.360. Se a propriedade se resolver por outra causa superveniente, o possuidor, que a tiver adquirido por título anterior à sua resolução, será considerado proprietário perfeito, restando à pessoa, em cujo benefício houve a resolução, ação contra aquele cuja propriedade se resolveu para haver a própria coisa ou o seu valor. (BRASIL, 2002). Lima (2011, p. 81), tomando como base os artigos acima, leciona que a propriedade resolúvel: [...] é a propriedade que, excepcionando o princípio da irrevogabilidade inerente às propriedades em geral, a transforma em propriedade temporal, mediante uma cláusula, inserida no negócio jurídico que a institui e subordina, por ato de vontade, à duração do direito a um evento futuro, que pode ser certo ou incerto. A doutrina admite duas correntes para a natureza jurídica da propriedade resolúvel. Para uma corrente, ela é domínio de natureza especial. Neste caso, aplicam-se os princípios especiais do direito de propriedade, sendo considerada um de seus institutos, colocado na parte do direito civil que sistematiza os direitos reais. Para outra corrente, trata-se apenas de um caso de aplicação das regras gerais relativas à condição e ao termo, previstas na Parte Geral do Código Civil, e dos princípios concernentes à dissolução dos contratos. (GONÇALVES, 2016, p. 434). Por sua vez, Farias e Rosenvald (2016, p. 511) afirmam que a propriedade resolúvel: “Cuida-se de uma titularidade que já nasce com a perspectiva de durabilidade subordinada a um acontecimento futuro e certo (termo final) ou incerto (condição resolutiva, Art. 121, do CC)”. Para Gonçalves (2016, p. 434): “Diz-se que a propriedade é resolúvel quando o título de aquisição está subordinado a uma condição resolutiva ou ao advento do termo”. De extrema importância para o presente trabalho, a propriedade resolúvel está regulamentada na Lei n° 9.514/1997, em seu artigo 22: 42 Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. A regulamentação estabelecida pela Lei n° 9.514/1997 divide alguns autores quanto à semelhança dos dispositivos com o Código Civil. Para Lima (2011, p. 82), a propriedade resolúvel da referida lei possui características distintas. Primeiramente, o delineamento da propriedade fiduciária existe por força de imperativo legal, ou seja, não há acordo de vontades para à sua constituição. Assim, não são as partes contratantes da alienação fiduciária que resolvem, por sua própria vontade, estabelecer o surgimento da propriedade fiduciária. Em segundo lugar, também sua extinção não é derivada da vontade das partes contratantes, esta decorre do adimplemento da obrigação principal, de previsão legal, contida no artigo 25 14 da Lei n° 9.514/1997. Assim, “tais caraterísticas, por si só, afastam a propriedade fiduciária como propriedade resolúvel típica, descrita no Código Civil”. 3.4.3 Patrimônio de afetação Uma das características mais importantes da alienação fiduciária em garantia trata-se da afetação patrimonial, já que por meio dela o credor protege-se dos créditos trabalhistas e fiscais, separando parte do patrimônio do devedor para sua segurança. Para Chalhub (2009, p. 75), a afetação patrimonial oriunda de relações de natureza fiduciária produz basicamente dois efeitos: [...] de uma parte, os bens objeto do negócio são colocados à margem das vicissitudes econômico-financeiras que possam atingir o fiduciante, o fiduciário e o beneficiário, e, de outra parte, as faculdades do titular do patrimônio separado sofrem limitações, a ele se atribuindo, tão somente, aquelas faculdades necessárias à consecução dos fins para os quais a afetação foi estabelecida. Neste sentido, o patrimônio de afetação para Faria e Rosenvald (2016, p. 539), pode ser definido como: “um bem separado do patrimônio geral do credor, imune ao alcance dos seus credores, mesmo os trabalhistas e fiscais, posto reservado à 14 Art. 25. Com o pagamento da dívida e seus encargos, resolve-se, nos termos deste artigo, a propriedade fiduciária do imóvel. (BRASIL, 1997). 43 satisfação do interesse merecedor de tutela do devedor fiduciante, concernente na sua restituição ao tempo do adimplemento”. Pela afetação patrimonial é possível a segregação de um patrimônio para atender a finalidade específica. Chalhub (2009, p. 71, grifo do autor) explana sobre esta possibilidade: [...] a teoria da afetação admite segregação patrimonial segundo certos encargos que se impõem a determinados bens, que passariam a ter destinação específica. Em outras palavras: determinados bens seriam destinados a finalidade especial e, para alcançá-la, seriam dotados da autonomia necessária à realização desse fim; não se trata de segregação pura e simples, sendo necessário definir uma destinação para os bens ou direitos segregados; é necessário, enfim, que os bens afetados cumpram determinada função. Segundo esta teoria, é possível da existência de massas patrimoniais distintas, constituídas com a precípua finalidade de se alcançar determinados fins jurídicos ou econômicos. Diante do exposto, importante destacar o patrimônio de afetação estabelecido pela Lei n° 10.931/2004, que em suma consiste na separação do patrimônio para cada empreendimento imobiliário. Tal separação deve ocorrer através de contabilidade própria das operações da incorporadora ou construtora, o que confere segurança aos adquirentes quanto à destinação dos recursos. Não resta dúvida quanto à natureza do patrimônio: é garantia constituída em favor dos adquirentes. (GOMES, 2012, p. 349). 3.5 O CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS Em particular neste estudo, cabe examinar a hipótese em que a alienação fiduciária de coisa imóvel é contratada para garantir uma operação originária de uma cédula de crédito, caso em que a contratação se destina a garantir a promessa de pagamento em dinheiro, constituída cedularmente. Neste caso é indispensável que a garantia seja contratada na própria cédula, uma vez que o instrumento que lhe serve de título é a própria cédula. Assim, a contratação, mesmo que tenha como beneficiária uma pessoa jurídica, pode ser efetivada mediante cédula de crédito, assim como as eventuais futuras extensões da cédula original. (LIMA, 2011, p. 149). As instituições financeiras atualmente utilizam-se da Cédula de Crédito Bancária como instrumento formalizador, tal disposição foi originalmente criada através da MP n° 1.925/1999, cujo texto, posteriormente foi introduzido na Lei n° 10.931/2004. O artigo 26, da referida lei, assim determina: 44 Art. 26. A Cédula de Crédito Bancário é título de crédito emitido, por pessoa física ou jurídica, em favor de instituição financeira ou de entidade a esta equiparada, representando promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito, de qualquer modalidade. (BRASIL, 2004). De fato, a cédula de crédito bancária se estabelece a favor da instituição financeira ou assemelhada, provida ou não de garantia, fixando os juros, atualização, multas e penalidades na hipótese de mora, bem como a substituição do ônus, delimitando no aspecto direto as circunstâncias da obrigação e da própria responsabilidade. (ABRÃO, 2007, p. 528). Ainda dentro deste assunto, as instituições financeiras que operam no crédito rural e utilizam-se da AFBI, precisam segundo Burtet (2016, p. 14), tomar cuidados na escolha do instrumento formalizador (cédula de crédito): Pondera-se que em alguns estados, ou conforme o respectivo Código de Normas ou jurisprudência, a alienação fiduciária não é admitida quando da concessão de crédito rural nem como garantia complementar, embora a Resolução n° 3.239/2004 do Banco Central do Brasil autorize a prática. Diferentemente das demais espécies de cédulas, no Decreto-lei n° 167/1967 não se encontra menção alguma à alienação fiduciária; a Cédula de Crédito Rural antecede a alienação fiduciária, além do que tem que respeitar a designação própria conferida pela norma. A alternativa, portanto, para quem concede crédito rural e pretende se garantir com uma alienação fiduciária de bem imóvel, por exemplo, pela sua praticidade frente a outras garantias, é a emissão de outra espécie de cédula, a Cédula de Crédito Bancário, conforme autoriza o art. 26 da Lei n° 10.931/2004. Diante das considerações, o contrato pelo qual as partes assumem obrigações no sistema financeiro chama-se de cédula de crédito. Assim, a cédula de crédito deverá respeitar todos os requisitos contratuais impostos pela Lei n° 9.514/1997, situação pela qual passa-se a expor os mesmos. 3.5.1 Sujeitos O contrato de alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel é, por excelência, um contrato bilateral em sua formação e também em seus efeitos, em sua constituição conta com a participação de dois sujeitos, um ativo e outro passivo, cada um deles com direito próprio e para quem a contratação gera efeitos também próprios ou individuais. (LIMA, 2011, p. 102). Os sujeitos do contrato são as pessoas que se comprometem na relação jurídica estabelecida. Neste contexto, Chalhub (2009, p. 227, grifo do autor), estabelece quais são os sujeitos e sua nomenclatura: 45 [...] hão de figurar como sujeitos do contrato de alienação fiduciária o devedorfiduciante, proprietário do bem imóvel a ser transmitido em garantia, e o credor-fiduciário, aquele que tem um crédito contrato o devedor-fiduciante e, em garantia do pagamento, receberá a propriedade fiduciária do imóvel; eventualmente figurará também um terceiro na qualidade de garantidor. Ainda no mesmo sentido, Lima (2011, p. 102) explica a relação dos sujeitos com objeto do contrato e a garantia ofertada: [...] segundo ditames da Lei n° 9.514/97, temos o devedor ou fiduciante, que é o sujeito que aliena a coisa imóvel com a finalidade de garantir uma obrigação principal. De outro, o credor ou fiduciário, que pela contratação, adquire a propriedade fiduciária pelo tempo que subsistir a obrigação de que esta é acessória. O devedor fiduciante usualmente é o beneficiário da relação jurídica principal, enquanto que o credor fiduciário é normalmente quem realiza ao aporte financeiro na obrigação principal. Quanto à legitimidade, Chalhub (2009, p. 228) registra que “a Lei n° 9.514/1997 autoriza a contratação da alienação fiduciária da maneira generalizada, atribuindo legitimidade para a contratação dessa alienação a qualquer pessoa, quer física, quer jurídica, sem qualquer restrição (art. 22)”. Da mesma forma, tanto o devedor fiduciante, como o credor fiduciário podem ser pessoas físicas ou jurídicas, não necessitando de características especiais. (LIMA, 2011, p. 102). Relevante também neste contexto é a possibilidade da alienação fiduciária ser efetivada por terceiro, alheio à operação principal de empréstimo, como nas hipóteses em geral de prestação de garantia por terceiro. (CHALHUB, 2009, p. 230). Nesta hipótese, o terceiro alheio à operação é chamado de terceiro interveniente garantidor. (LIMA, 2011, p. 102). 3.5.2 Objeto Para Chalhub (2009, p. 230), o “contrato de alienação fiduciária de que trata a Lei n° 9.514/1997 tem como objeto coisa imóvel (art. 22), compreendendo ‘o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente’ (Código Civil, art. 7915)”. Com relação ao objeto da AFBI, Dantzger (2010, p. 59) posiciona-se da seguinte forma: 15 Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente. (BRASIL, 2002). 46 É suscetível de alienação fiduciária todo imóvel que seja passível de alienação plena, isto é, que não esteja fora do comércio. Se o imóvel não puder ser alienado por qualquer razão, como, por exemplo, em decorrência de cláusula de inalienabilidade, o contrato de alienação fiduciária haverá de ser nulo. A redação original da Lei n° 9.514/1997 não autorizava o escopo de objetos possíveis na atualidade, para a contratação da AFBI. Chalhub (2009, p. 231) aduz: [...] podem ser objeto de alienação fiduciária quaisquer bens imóveis, seja terrenos, com ou sem acessões, o domínio útil de imóveis ou a propriedade superficiária, com como o direito de uso especial para fins de moradia e o dinheiro real de uso, desde que suscetível de alienação, ressalvado que a propriedade fiduciária sobre o direito real de uso e sobre a propriedade superficiária tem duração limitada ao prazo da respectiva concessão (Art. 22 da Lei n° 9.514/97, § 1°, incisos I a IV, e § 2°, com redação dada pela Lei n° 11.481/2007). Portanto, atualmente o objeto da alienação fiduciária de imóveis é livre, podendo recair sobre um terreno sem edificação, em construção ou edificado. (LIMA, 2011, p. 115). 3.5.3 Forma Pela Lei n° 9.514/1997, o contrato de alienação fiduciária produzirá efeitos no mundo real, somente a partir de seu registro no cartório imobiliário (Art. 23, caput). Assim, importante registrar que o eventual registro em Cartório de Títulos e Documentos não dá origem ao direito real, situação que apenas o vínculo obrigacional entre as partes será mantido. (VENOSA, 2016, p. 450-451). Segundo Chalhub (2009, p. 233), o Art. 24 da Lei n° 9.514/1997 dispõe sobre os requisitos do contrato, determinando explicitamente quais as cláusulas essenciais que deverão ser enunciadas no instrumento, a saber: I - o valor do principal da dívida; II - o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário; III - a taxa de juros e os encargos incidentes; IV - a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição; V - a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária; VI - a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; VII - a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27, isto é, os procedimentos do eventual do imóvel alienado fiduciariamente. (BRASIL, 1997). 47 Para Venosa (2016, p. 451), o “legislador preferiu exigir que requisitos de ordem material e procedimental da alienação fiduciária constantes da lei sejam expressamente transcritos nos contratos para possibilitar o registro, evitando, assim, possíveis dúvidas interpretativas”. Assim, do instrumento deverá constar a descrição do imóvel objeto do negócio, bem com a indicação da forma e do modo de sua aquisição pelo devedorfiduciante. Importante também para efeito de venda em leilão público, no caso de inadimplemento do devedor fiduciante, indicar no contrato o valor do imóvel e os critérios de sua revisão (revisão e não reajuste). (CHALHUB, 2009, p. 233). Com relação ao prazo, Lima (2011, p. 155) destaca que o prazo da contratação é livremente fixado pelas partes contratantes, porém o prazo estabelecido na alienação fiduciária é na maioria das vezes, o mesmo estabelecido para a contratação principal. Estabelece o Art. 26, § 2°16 da lei em análise, que deverá ser definido prazo de carência para que, somente após o seu transcurso, seja expedida a intimação para o devedor purgar a mora. Sem o decurso de tal prazo, o devedor não poderá ser regularmente constituído em mora. (DANTZGER, 2010, p. 64). As condições do empréstimo ou do crédito ao fiduciário também precisam estar disciplinadas no instrumento, em especial quanto à periodicidade do pagamento das contraprestações por parte do devedor fiduciante e a possibilidade ou não da antecipação de valores. (LIMA, 2011, p. 155). Em complemento, Dantzger (2010, p. 64) registra que: Quanto ao instrumento pelo qual há de se formalizar a alienação fiduciária de bens imóveis, o contrato, como dito, poderá ser feito por instrumento particular, não se lhe aplicando a norma do art. 10817, do Código Civil, no que diz respeito à essencialidade da escritura pública, pois há a disposição legal expressa em sentido contrário. Da mesma forma, a lei impõe expressamente ao contrato, a presença de todos os encargos cobrados do mutuário de forma clara, além de todos os procedimentos de cobrança, em especial os relacionados à expropriação dos imóveis em caso de inadimplemento. 16 Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário. [...] § 2° O contrato definirá o prazo de carência após o qual será expedida a intimação. (BRASIL, 1997). 17 Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. (BRASIL, 2002). 48 3.6 DIREITOS E OBRIGAÇÕES DO FIDUCIANTE E DO FIDUCIÁRIO A análise dos direitos e obrigações do fiduciante e do fiduciário na constituição e execução de uma alienação fiduciária em garantia será feita sob a ótica da autonomia da vontade, e sua eventual limitação pelo ordenamento jurídico. (SAAD, 2001, p. 141). Por sua vez, Chalhub (2009, p. 239) contextualiza os direitos e obrigações a partir das relações jurídicas firmadas: Ao ser registrado o contrato de alienação fiduciária, considera-se transmitida a propriedade ao credor-fiduciário, em caráter resolúvel; de outra parte, o devedor fiduciante é demitido de sua propriedade e investido de direito real de reaquisição, sob condição suspensiva, podendo tornar-se novamente titular da propriedade plena ao implementar o pagamento da dívida que constitui objeto do contrato garantido pela propriedade fiduciária. Tem o fiduciante, assim, uma pretensão restitutória, que constitui uma expectativa real, subordinada, entretanto, ao implemento da condição. Para Terra (1998, p. 38), o direito do credor (fiduciário), por ser proprietário (ainda que resolúvel), repousa na possibilidade de alienar o bem a terceiros, caso em que o comprador se sub-rogará nos direitos e obrigações perante o devedor (fiduciante), principalmente devolvendo a propriedade do imóvel se houver o pagamento da dívida. Nesta relação jurídica, cabe ao fiduciário a obrigação de recebendo a totalidade do crédito e encargos, fornecer ao fiduciante o termo de quitação, que constituirá documento hábil para que este promova a reversão da propriedade plena em seu nome. Na hipótese de inadimplemento, o fiduciário tem a obrigação de notificar o fiduciante para poder purgar a mora e no caso de venda do imóvel em leilão público, o fiduciário fica ainda obrigado a devolver a quantia que exceder o valor da dívida e encargos. Por último, na hipótese do não pagamento pelo fiduciante, após a intimação para purgar a mora, cabe ao fiduciário o direito de consolidar a propriedade em seu nome, situação em estará autorizado a requerer judicialmente a reintegração de posse. (CHALHUB, 2009, p. 240). O primeiro direito que cabe ao fiduciante é o de receber o termo de quitação num prazo máximo de 30 dias após a liquidação da dívida, sob pena de multa em 49 favor deste, equivalente a meio por cento ao mês, ou fração, sobre o valor do contrato (Art. 25, § 1°18). (VENOSA, 2016, p. 451). Ainda discorrendo sobre os direitos do fiduciante, Chalhub (2009, p. 240) registra que o fiduciante, enquanto adimplente, tem todos os direitos inerentes à posse direta, podendo protegê-la contra quem quer que a ameace ou turbe, inclusive contra o fiduciário. Já em caso de inadimplência, tem o direito de purgar a mora, sem qualquer limitação, porém, se não realizar o pagamento no prazo da intimação, considera-se de pleno direito frustrada a condição resolutiva. 3.7 PAGAMENTO E SUAS CONSEQUÊNCIAS O pagamento é a condição para que a propriedade plena retorne ao fiduciante, pois na alienação fiduciária, o fiduciante transfere ao fiduciário a propriedade resolúvel de imóvel até que a dívida seja paga. (CHALHUB, 2009, p. 246247). Avulta considerar que com a integralização do pagamento, basta que o devedor exiba ao oficial do registro a quitação do preço para que seja averbado o cancelamento da propriedade fiduciária. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 560). Com relação ao pagamento, Dantzger (2010, p. 80) ensina: [...] o art. 25 da Lei n° 9.514/1997 reza que, com o pagamento da dívida e seus encargos, resolve-se a propriedade fiduciária do imóvel, e o faz nos mesmos termos do art. 1.359 do Código Civil, aplicável à alienação fiduciária em garantia, por fora do art. 33 19 da mencionada lei. Os princípios gerais estabelecidos art. 30420 e seguintes do Código Civil, que dizem respeito ao pagamento, são também aqui aplicados, de modo que devem responder pela obrigação assumida, efetuando o pagamento da dívida, o devedor principal (que maioria esmagadora das vezes será o próprio fiduciante) e seus coobrigados, ficando estes, se pagarem, sub-rogados no crédito e na garantia fiduciária, nos termos do art. 3121 da referida lei. 18 Art. 25. Com o pagamento da dívida e seus encargos, resolve-se, nos termos deste artigo, a propriedade fiduciária do imóvel. § 1° No prazo de trinta dias, a contar da data de liquidação da dívida, o fiduciário fornecerá o respectivo termo de quitação ao fiduciante, sob pena de multa em favor deste, equivalente a meio por cento ao mês, ou fração, sobre o valor do contrato. (BRASIL, 1997). 19 Art. 33. Aplicam-se à propriedade fiduciária, no que couber, as disposições dos arts. 647 e 648 do Código Civil. (BRASIL, 1997). 20 Art. 304. Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor. (BRASIL, 2002). 21 Art. 31. O fiador ou terceiro interessado que pagar a dívida ficará sub-rogado, de pleno direito, no crédito e na propriedade fiduciária. (BRASIL, 1997). 50 Conforme previsto no artigo 26, § 8° 22 , o devedor pode desobrigar-se também mediante dação em pagamento, caso em que transferirá ao credor seu direito eventual, consolidando-se a propriedade definitivamente no patrimônio do credor, dispensada assim a realização do leilão do imóvel nesta situação. (BRASIL, 1997). Observa-se no Art. 31 da Lei n° 9.514/1997 que, além do fiador, o terceiro interessado pode pagar a referida dívida. Neste caso entende-se como terceiro interessado somente aquele que de alguma forma esteja obrigado a pagar a dívida em razão de responsabilidade conjunta, solidária ou subsidiária, tanto que, combinando o referido artigo com o Art. 346, III, do Código Civil 23, nota-se que o pagamento com sub-rogação está reservado ao terceiro interessado que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte. (DANTZGER, 2010, p. 81). Observa-se que o pagamento é o evento caracterizador do implemento da condição, criando automaticamente para o credor a obrigação de dar quitação ao fiduciante e viabilizando para este a recuperação da plena propriedade do imóvel. (CHALHUB, 2009, p. 247). Com o implemento da condição pela quitação, passa-se a discutir na sequência a reversão da propriedade em nome do fiduciante. 3.7.1 Reversão da propriedade Conforme estabelece o Art. 25 da Lei n° 9.514/1997, uma vez satisfeitos a dívida e os encargos, sejam contratuais ou legais, a propriedade fiduciária se extingue. Esse é o principal efeito dessa extinção: o cancelamento do registro de propriedade fiduciária, com o retorno da mesma ao devedor fiduciante ou ao terceiro interveniente garantidor, com todos os atributos que haviam sido transferidos ao credor fiduciário. (LIMA, 2011, p. 169). 22 Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário. [...] § 8° O fiduciante pode, com a anuência do fiduciário, dar seu direito eventual ao imóvel em pagamento da dívida, dispensados os procedimentos previstos no art. 27. (BRASIL, 1997). 23 Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: [...] III - do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte. (BRASIL, 2002). 51 A reversão, para Chalhub (2009, p. 248, grifo do autor), se efetiva mediante averbação no Registro de Imóveis, do “termo de quitação” da dívida garantida pela propriedade fiduciária. Neste sentido, a lei prevê: [...] com o pagamento da dívida resolve-se a propriedade fiduciária e, para implementação do assentamento registrário correspondente, obriga o credorfiduciário a fornecer ao devedor-fiduciante, no prazo de trinta dias a contar da data da liquidação da dívida, o corresponde “termo de quitação”, sob pena de multa em quantia equivalente a 0,5% (meio por cento) por mês ou fração sobre o valor do contrato. De posse do “termo”, o antigo devedor o apresenta ao Oficial do Registro de Imóveis competente, que o averba na matrícula do imóvel, procedendo ao cancelamento do registro de propriedade fiduciária. Por força desse cancelamento, volta a vigorar o registro de propriedade plena em nome do antigo devedor-fiduciante (Lei n° 9.514/97, art. 25 e seus parágrafos). (BRASIL, 1997). Assim, de acordo com o exposto, observa-se que o termo de quitação produz seus efeitos no mundo real automaticamente, basta que aconteça o pagamento para que o devedor possa reaver a propriedade plena do imóvel. 3.8 INADIMPLEMENTO E SUAS CONSEQUÊNCIAS Para Dantzger (2010, p. 83), em caso de inadimplemento do contrato de AFBI, cabe ao credor fiduciário optar: [...] por recuperar seu crédito em sede de execução judicial ou pelo procedimento de cobrança extrajudicial e consolidação, em seu nome, da propriedade fiduciária que lhe foi transferida de forma voluntária e anteriormente, quando da concessão do crédito, em garantia do mesmo. Tal entendimento justifica-se, forçosamente, pelo fato de a própria Lei n° 9.514/1997, em seu artigo 31, prever a possibilidade de, além da garantia real representada pela propriedade fiduciária, haver ainda outro tipo de garantia para a dívida, estampada na forma de garantia pessoa, citada na lei como fiança. Chalhub (2009, p. 313) destaca também, que a propriedade fiduciária não está subordinada à regra do Art. 1.42824 do Código Civil, visto que este dispositivo proíbe ao credor ficar com imóvel do devedor em caso de inadimplemento, porém na alienação fiduciária o proprietário do imóvel é o próprio credor, situação em que a inadimplência permite o ingresso da propriedade plena ao patrimônio do credor. Assim, a condição estabelecida no referido artigo não se implementa, já que é da natureza da propriedade resolutiva. De qualquer forma, a Lei n° 9.514/1997 cuidou de 24 Art. 1.428. É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento. (BRASIL, 2002). 52 mitigar os efeitos da resolubilidade, imponto ao credor o ônus de vender o imóvel que já é seu, em dois leilões sem a liberdade de fixar os valores dos imóveis. Com base no previsto na Lei n° 9.514/1997, o procedimento de expropriação das garantias se dá em duas etapas: primeiramente, faz-se a consolidação da propriedade do imóvel em nome do fiduciário; e na sequência realizase leilão público para vender os imóveis, tudo conforme determina a lei. Diante da importância do tema, passa-se a discutir tais etapas. 3.8.1 Consolidação da propriedade no fiduciário Uma vez que o devedor fiduciante deixe de cumprir a obrigação principal, no todo ou em parte, caracteriza-se a impontualidade, surgindo para o credor fiduciário a possibilidade de exercer o seu direito de satisfazer seu crédito com a aplicação do valor do bem objeto da propriedade fiduciária. (LIMA, 2011, p. 173). Com base no previsto na Lei n° 9.514/1997, o procedimento de consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário opera-se da seguinte forma: 1ª O credor requer ao oficial do Registo de Imóveis que intime o devedor para, no prazo de quinze dias quitar a(s) prestação(ões) vencida(s) e as que se vencerem até data do pagamento, com os demais encargos, inclusive tributos e contribuições imputáveis ao imóvel (Art. 26, § 1°); 2ª A intimação deverá ser feita pessoalmente ao devedor (caso este encontrar-se em lugar incerto ou não sabido, é possível a intimação por edital, que deverá ser publicado por três vezes (Art. 26, § 4°); 3ª Purgada a mora, revalida-se o contrato, devendo em três dias o oficial do Registo de Imóveis entregar ao credor as importâncias recebidas, com a devida dedução das importâncias relativas às despesas de cobrança e intimação (Art. 26, § 5° § 6°); e 4ª Não havendo a purgação da mora, o oficial do Registo de Imóveis certificará o fato e promoverá a averbação, na respetiva matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do credor, ocasião em que este deve comprovar o pagamento do imposto de transmissão de bens (Art. 26, § 7°). (BRASIL, 1997). Com a consolidação da propriedade em nome do fiduciante, abre-se prazo de 30 dias conforme previsão legal, para que o imóvel seja levado a leilão público. O leilão previsto na Lei n° 9.514/1997 possui particularidades em seu procedimento que devem ser cumpridas, assunto do próximo subcapítulo. 53 3.8.2 Leilão Uma vez consolidada a propriedade em nome do fiduciário, Chalhub (2009, p. 261) entende: [...] este deverá promover a realização de leilão público para venda do imóvel, nos trinta dias subsequentes, constados da data do registro da consolidação da propriedade. É dispensada da realização de leilão, entretanto, caso a propriedade tenha se consolidado por efeito de dação em pagamento (Lei n° 9.514/1997, art. 26, § 8°). Com base no previsto na Lei n° 9.514/1997, o Leilão opera-se da seguinte forma: 1ª Realizada a consolidação da propriedade, o credor terá 30 dias para realizar o 1° leilão, neste leilão do imóvel deverá ser vendido pelo seu valor de mercado (revisto conforme pactuado em contrato (Art. 27 caput e § 1°); 2ª Caso o imóvel não seja vendido no 1° leilão pelo valor de mercado (revisado), deverá ser realizado em até 15 dias o 2° leilão, neste leilão o imóvel poderá ser vendido pelo valor da dívida (Art. 27, § 2°); e 3ª Caso o imóvel não seja vendido no 2° leilão, a dívida deverá ser liquidada e o devedor desobrigado, independente do credor conseguir satisfazer o seu crédito (Art. 27, § 5°). (BRASIL, 1997). Destaca-se que na hipótese do imóvel não ser vendido no segundo leilão, a dívida considera-se extinta pelo recebimento do imóvel, situação em que o credor deverá emitir o termo de quitação num prazo de até cinco dias, contados da data do segundo leilão, tudo conforme o artigo 27, § 6°, da Lei n° 9.514/199725. Com base no procedimento de expropriação acima descrito, verifica-se que o devedor poderá perder o imóvel oferecido em garantia em um prazo de 60 dias após o vencimento da(s) parcela(s) inadimplente(s). 3.9 HIPOTECA X ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS Ao confrontar a hipoteca com a AFBI, quando utilizadas como garantias reais vinculadas a financiamentos bancários, realiza-se uma revisão dos assuntos expostos nos capítulos anteriores, em especial em relação à natureza jurídica de ambos os institutos. Conforme demonstrou-se na análise histórica, não há grande inovação na natureza jurídica da alienação fiduciária, quanto ao direito atribuído ao credor, mediante a transferência de propriedade. Os méritos do atual regime da alienação 25 § 6° Na hipótese de que trata o parágrafo anterior, o credor, no prazo de cinco dias a contar da data do segundo leilão, dará ao devedor quitação da dívida, mediante termo próprio. (BRASIL, 1997). 54 fiduciária de imóvel encontram-se na realidade em aspectos acessórios: a espécie de direito real atribuída ao devedor; o patrimônio de afetação existente sobre a garantia; a simplificação da sua constituição; e a eficácia de sua execução extrajudicial. Por outro lado não há dúvidas, do ponto de vista da natureza das garantias, a hipoteca é instituto mais versátil e adequado para garantir diferentes espécies de obrigação. A hipoteca sobre bem do devedor diferencia-se pela maior versatilidade e adequação, permitindo a multiplicidade de hipotecas sobre o mesmo bem. (SILVA, 2014, p. 171172). A hipoteca, apesar de mais versátil e tradicionalmente o direito real mais utilizado para a garantia de créditos no sistema financeiro nacional, perdeu espaço em razão do seu procedimento de execução ser extremamente moroso e oneroso, inviabilizando a própria concessão do crédito. (LIMA, 2011, p. 41). Assim, no direito brasileiro são evidentes as vantagens da alienação fiduciária quanto à simplificação de sua constituição e ao seu método de execução extrajudicial, esta sendo talvez a maior vantagem da alienação fiduciária frente à hipoteca. (SILVA, 2014, p. 172). Nas hipotecas, para Lima (2011, p. 42), as execuções “são procedimentos judiciais infindáveis, arrastando-se nos foros judiciais por anos a fio, acobertadas por um sistema recursal que protege aquela parte que deseja procrastinar o feito, uma vez que no Brasil há recurso para tudo”. Outro ponto vantajoso para a AFBI, trata-se da imunidade à falência do devedor e ao concurso de credores, o que confere ampla segurança e barateia o crédito, sendo bastante útil e adequada para os créditos empresariais. (SILVA, 2014, p. 172). Para Dantzger (2010, p. 19), a “hipoteca nem sempre oferece o privilégio garantidor de preferência sobre todos os credores, como é o caso dos créditos trabalhistas, que recebem seus créditos antes do credor hipotecário [...]”. É possível atribuir-se à alienação fiduciária também desvantagens, como na hipótese da venda extrajudicial do imóvel objeto da garantia fiduciária não bastar para a satisfação do crédito, situação em que o credor é obrigado a dar quitação pelo valor total, independentemente do valor efetivamente recebido. (SILVA, 2014, p. 173). Também considera-se como desvantagem da alienação fiduciária, a impossibilidade de novas alienações sobre o mesmo imóvel (graus subsequentes), a exemplo do que ocorre com a hipoteca. Outra desvantagem pode estar na 55 insegurança jurídica da alienação fiduciária frente aos tribunais, visto que empresas inadimplentes têm procurado o Judiciário questionando a legalidade/finalidade da lei, bem como a validade do procedimento de expropriação. A problemática acima apresenta-se como relevante para o presente estudo, razão pela qual adentra-se no próximo capítulo especificamente nesta discussão. 56 4 A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS COMO GARANTIA REAL FORA DO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO Em seu texto original, a Lei n° 9.514/1997 teve como objetivo fomentar o financiamento de bens imóveis, e não a criação de uma garantia real para qualquer espécie de obrigação, sendo inadequada para este fim. Porém, não há dúvida quanto à posterior opção legislativa de permitir e fomentar o uso amplo da alienação fiduciária de imóveis, através das sucessivas alterações do Art. 22 da referida lei, e também no permissivo do Art. 51 da Lei n° 10.931/200426. (SILVA, 2014, p. 154). No mesmo sentido, a alienação fiduciária proporciona segurança, na medida que predetermina o bem sobre o qual recairá a responsabilidade executiva. Mas apenas segurança não é suficiente, o procedimento de cobrança necessita de mecanismos céleres, porém equilibrados, para a satisfação concreta do direito do credor. Tendo em mira principalmente (mas não exclusivamente) os financiamentos imobiliários, o legislador brasileiro concebeu instrumento extrajudicial para a satisfação coercitiva do crédito dotado de garantias pela Lei n° 9.514/1997. (BRESOLIM, 2013, p. 85, grifo nosso). No mesmo sentido, desdobram-se questionamentos judiciais sobre a aplicabilidade da Lei n° 9.514/1997, em especial quando utilizada em financiamentos fora do SFI. Tais questionamentos são, para Dantzger (2010, p. 103), peculiaridades da referida lei, sendo que o mesmo destaca duas delas: 1 – Haverá, quando a inadimplência do fiduciante e consequente alienação do imóvel pelo fiduciário, que teve a propriedade consolidada em seu nome, a incidência do disposto no art. 53, da Lei 8.078/199027? 2 – E quanto à consolidação da propriedade em nome do fiduciário em virtude de inadimplemento do fiduciante, por meio de procedimento executório extrajudicial, sem se passar pelo crivo do poder judiciário, seria ela constitucional? Ferir-se-ia, com ela, o Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição e outros princípios constitucionais a ele inerentes? [...] 26 Art. 51. Sem prejuízo das disposições do Código Civil, as obrigações em geral também poderão ser garantidas, inclusive por terceiros, por cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa imóvel. (BRASIL, 2004, grifo nosso). 27 Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado. (BRASIL, 1990). 57 Não há dúvida que a motivação inicial do legislador em 1997 foi a de resolver o problema do sistema habitacional brasileiro, que passava por grande crise. Porém, com o passar do tempo, o próprio legislador estendeu a abrangência de utilização para além do SFI (Lei n° 10.931/2004). Diante da permissão legal, as instituições financeiras utilizam-se usualmente da alienação fiduciária para financiar objetos diversos da aquisição, edificação ou reforma de imóveis. Apesar da aparente legalidade, tais casos tem sido alvo de questionamentos judiciais com decisões favoráveis pelo judiciário, em especial questionando: a aplicabilidade do Art. 53 do CDC; a constitucionalidade do procedimento extrajudicial de expropriação dos previsto na Lei n° 9.514/1997; e a aplicabilidade da referida lei fora do SFI, em virtude da finalidade do legislador quando de sua criação. (BRASIL, 1997). Assim, com base nos fundamentos das decisões judiciais, passa-se a analisar a segurança jurídica da utilização da alienação fiduciária em bens imóveis em financiamentos puramente bancários. 4.1 APLICABILIDADE DO ARTIGO 53 DO CDC A Lei n° 8.078/90 estabeleceu o Código de Defesa do Consumidor, tal normativo inspirou-se no Art. 5, XXXII, e no Art. 170, V, da Constituição Federal, onde enuncia os princípios fundamentais da defesa do consumidor, destacando-se o reconhecimento da vulnerabilidade no mercado de consumo e a compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, sempre com base na boa-fé e equilíbrio das relações de consumo. (CHALHUB, 2009, p. 300). Pelo CDC, o consumidor é presumido como a parte mais fraca na relação de consumo (vulnerável), pois, no mercado de consumo, o fornecedor detém com exclusividade as informações sobre os bens e produtos e a decisão sobre quando, onde e como disponibilizá-los para o consumidor. Diante disso, o legislador visou reequilibrar a situação de desigualdade, não só a desigualdade econômica, como também a desigualdade no poder de decisão que existe entre consumidor e fornecedor. (ABRAHÃO, 2015, p. 7). Diante do problema, importa saber qual norma seria aplicada na hipótese de conflito. Assim, Chalhub (2009, p. 300-301, grifo do autor) contribui: 58 Ao ser entronizado no direito brasileiro, o CDC provocou basicamente, duas ordens de questionamento: primeiro, se teria revogado determinados dispositivos do Código Civil e Comercial, já que, aparentemente, contemplava diferentes soluções para situações já contempladas por aqueles Códigos, e, segundo, como seriam vistas as normas especiais posteriores, em face do CDC. Com base no acima disposto, a Lei n° 9.514/1997 estabeleceu normas para uma situação a princípio já contemplada pelo Art. 53 do CDC. Em relação ao conflito de normas estabelecido, Lima (2011, p. 199, grifo do autor) acrescenta: À primeira vista se poderia falar em exclusão de uma norma diante de outra. O Código de Defesa do Consumidor é uma lei geral de consumo, enquanto a Lei n° 9.514/97 é uma norma especial, tratando da propriedade fiduciária imobiliária. E, ainda, poderíamos acrescentar o aspecto temporal normativo, em que, dentro de um mais puro espírito positivista, encontraríamos uma antinomia de norma. E, dessa forma e de maneira simplista, concluiríamos que o CDC é inaplicável à propriedade fiduciária imobiliária. Em que pese a Lei n° 9.514/1997 ter sido promulgada sete anos depois do CDC e ser norma específica, com disciplina própria sobre a alienação fiduciária sobre bens imóveis, tem-se visto na prática, a ocorrência de discussões no sentido de ser ou não aplicável o disposto no Art. 53 do CDC, uma vez que a redação do artigo é clara, utilizando a expressão “alienação fiduciária em garantia”. Assim, pelo CDC, na hipótese de o devedor tornar-se inadimplente e o credor consolidar a propriedade, o credor-fiduciário estaria obrigado a devolver ao devedor as prestações pagas. (DANTZGER, 2010, p. 105). Segundo Chalhub (2009, p. 319): [...] a regra do art. 53 do CDC não pode ser aplicada de maneira invariável a todos os casos concretos de alienação fiduciária, mas somente àqueles casos em que o valor do bem alienado fiduciariamente supere o valor da dívida e encargos, e é nesses casos que o CDC quer assegurar a equidade e equilíbrio das relações contratuais, evitando que o mutuante venda o bem por valor superior ao do seu crédito e se aproprie do excesso. Finalmente, é de se registrar a manifestação do Superior Tribunal de Justiça a respeito da matéria, exarada quando do julgamento do Agravo Regimental em Agravo de Instrumento 932.750 (SP), ocasião na qual o Ministro Hélio Quaglia Barbosa, em Decisão Monocrática datada de 08/02/2008, reconsiderou anterior decisão para afastar a aplicação do Art. 53 do Código de Defesa do Consumidor, no caso da AFBI. Com base na referida decisão, verifica-se que a primeira decisão havia interpretado o negócio jurídico com um contrato de promessa de compra e venda de imóvel, porém na realidade tratava-se de um contrato de mútuo (dinheiro) com 59 alienação fiduciária de bem imóvel. Assim, pela decisão reconsiderada, conclui-se pela não aplicação do Art. 53 do CDC aos contratos de AFBI, pois, a Lei n° 9.514/1997 é mais recente que o CDC e trata de matéria especial, enquanto o CDC é norma genérica. (DANTZGER, 2010, p. 114-116). 4.2 CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA Ao examinar os preceitos legais que autorizam o procedimento de consolidação da propriedade em nome do credor, em especial à luz dos princípios constitucionais emanados pelo o Art. 5°, destacam-se os incisos XXXV, LIV e LV da Constituição Federal: Art. 5° [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. (BRASIL, 1988). Nestes incisos encontram-se os princípios da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa, respectivamente. Chalhub (2009, p. 321) ensina que os princípios acima mencionados, apesar de estarem distribuídos em três incisos distintos, assentam numa única e mesma base, que é a do devido processo legal. Tais princípios fundamentais emanam da Constituição e garantem o direito de ação e reservam ao Poder Judiciário a apreciação de qualquer lesão ou ameaça de lesão de direito. Por isso, ao se apreciar a conformidade da lei à Constituição, consideraram-se conjuntamente os três princípios, pois são eles indissoluvelmente articulados entre si, de tal modo que a afronta a um deles sempre repercute de algum modo nos demais. Sobre o assunto, Dantzger (2010, p. 118-119) contribui no mesmo sentido: O Princípio da Inafastabilidade da jurisdição reveste-se da conotação de síntese da garantia constitucional de acesso à justiça, e por ele é garantido a todos que o Poder Judiciário, uma vez instado, nunca poderá deixar de aplicar o direito, de modo a atender aos anseios dos cidadãos na resolução de seus problemas. O problema da constitucionalidade da norma está diretamente ligado ao procedimento de consolidação da propriedade, que pela Lei n° 9.514/1997 ocorre 60 totalmente no Cartório de Registro de Imóveis, ou seja, tudo é realizado sem a intervenção do Judiciário. Contextualizando o problema, segue-se julgado: AGRAVO DE INSTRUMENTO. CAUTELAR INOMINADA INCIDENTAL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO (CRÉDITO PESSOAL) GARANTIDA COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEL RURAL. DECISÃO AGRAVADA QUE INDEFERIU A LIMINAR PARA SUSPENDER A VENDA EXTRAJUDICIAL DO IMÓVEL RURAL. CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE DO BEM NAS MÃOS DO CREDOR. EXEGESE DO DISPOSTO NO ART. 26 DA LEI N. 9.514/1997. IMPOSSIBILIDADE. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO JUIZ NATURAL, DO CONTRADITÓRIO E O DEVIDO PROCESSO LEGAL. PRECEDENTE DA CÂMARA. DECISÃO REFORMADA. TUTELA ANTECIPADA CONCEDIDA. RECURSO PROVIDO. "Com a edição da Lei n.° 9.514/97, "a exacerbação da unilateralidade e da desgarantia acrescem motivos para que se duvide da conformidade do procedimento agora instituído ao disposto no art. 5° da Constituição Federal, incs. XXXV, XXXVII, LIII, LIV e LV. Com efeito, a entrega da iniciativa e condução do procedimento ao próprio credor, sem a intermediação ao menos moderadora de terceiro desinteressado, representa uma inaceitável regressão à autotutela. Escancara-se aí a opção preferencial pela proteção ao capital, ao custo do sacrifício do princípio da indeclinabilidade da jurisdição" (Adroaldo Furtado Fabrício). Sob tais pressupostos, é de ser deferida a tutela antecipada a fim de não ser aplicado o disposto no art. 26 da Lei n. 9.514/97, por ferir garantias constitucionais, uma vez que consolida a propriedade do imóvel em nome do credor, tão-somente por procedimento cartorário extrajudicial, sem qualquer espécie de atividade jurisdicional acerca do método adotado pela instituição financeira, não oferecendo qualquer oportunidade de defesa ou de resistência por parte do devedor, a não ser a de satisfazer o que exige o fiduciante, ou se conformar com a consolidação do ato". (SANTA CATARINA, 2013, grifo nosso) Pelos fundamentos da decisão acima, extrai-se facilmente que a aplicação da consolidação do imóvel pelo procedimento extrajudicial, ou seja, sem qualquer espécie de atividade jurisdicional, ofende os princípios do juiz natural, do contraditório e o devido processo legal para o entendimento dessa Câmara. Porém, como este entendimento não é unânime na jurisprudência, passa-se a discutir as razões pelas quais o procedimento de consolidação da propriedade em nome do credor extrajudicialmente, trata-se de dispositivo legal e plenamente constitucional. Dessa forma, verifica-se que o não aceito pelo Judiciário em relação à constitucionalidade do procedimento, na verdade é a uma característica da AFBI prevista em lei, visto que pelo disposto os atos de execução são realizados sob instância do credor, por um não juiz, podendo culminar com a satisfação do credor sem nenhum contato com os Tribunais. (BRESOLIN, 2013, p. 146). Inicialmente, sobre a consolidação da propriedade, Chalhub (2009, p. 325326, grifo nosso) esclarece: 61 Efetivamente, na consolidação da propriedade, o Oficial do Registro apenas certifica o fato de que decorreu o prazo da notificação sem que o devedor tenha purgado a mora e averba a consolidação, que, dada a natureza da condição expressa e por força da lei, é o efeito natural e automático que decorre da não-implementação da condição. Não é o ato do Oficial que põe a propriedade no patrimônio de um ou do outro contratante, mas, sim, o evento correspondente à condição e, ademais, os efeitos do implemento ou do não-implemento da condição independem de pronunciamento do juiz, pois operam de pleno direito. [...] Não há, no que tange aos efeitos da condição, nenhuma exigência, em nível constitucional ou infraconstitucional, de intervenção judicial, não havendo controvérsia quanto à natureza da propriedade fiduciária, em que a condição resolutiva, como ensina LABORI, opera de pleno direito, tanto no caso de ter falhado como na hipótese de se ter verificado. Assim, a averbação do evento é tão somente a anotação de que ocorreu, ou não ocorreu, o fato que, numa hipótese, provoca a extinção da propriedade ou, na outra hipótese, resulta na sua consolidação; esse ato de averbação não está incluído na esfera da função jurisdicional e, portanto, produz seus efeitos de pleno direito, sem necessidade de se buscar qualquer espécie de prestação jurisdicional. Theodoro Junior (2008, p. 142-143, grifo nosso) explica que só se pode falar em execução (judicial ou extrajudicial) quando existe de fato uma expropriação de bens pertencentes ao devedor: “Há, em suma, nos atos tipicamente executivos do processo de execução uma verdadeira agressão ao patrimônio do devedor, para dele extrair-se, sem a sua participação ou consentimento, o bem ou valor necessário à satisfação do crédito do exequente”. Na alienação fiduciária de imóveis, diferente do afirmado acima, o fiduciário já possui a propriedade do bem. O devedor não será expropriado de bem algum, como tampouco do bem transmitido em fidúcia, pois o próprio devedor já o transferiu, voluntariamente, ao credor no momento da contratação. Assim, como é da natureza da propriedade resolúvel, essa consolidação se dá independente da intervenção judicial e a única coisa que separa o fiduciário da propriedade plena é a possibilidade da condição resolutiva. Por conta disso, na alienação fiduciária de imóveis não acontece um procedimento de expropriação do devedor, mas tão somente a verificação da ocorrência, ou não ocorrência da condição resolutiva. (CHALHUB, 2009, p. 254-313). Assumindo que na AFBI o que ocorre é o implemento (ou não) da condição, importante destacar o disposto no Art. 474 do CC: “A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial”. (BRASIL, 2002). Dessa forma, pelo disposto no artigo 474 do CC, a cláusula resolutiva tácita depende de intervenção judicial, porém no caso de cláusula resolutiva expressa, 62 condição essencial do negócio fiduciário, opera-se de pleno direito, ou seja, independentemente da intervenção judicial. (BRASIL, 2002). Com relação a condição resolutiva expressa, Assis (1999, p. 147 apud CHALHUB, 2009, p. 255) afirma: “Em se tratando de resolução convencional, ou seja, fundada em cláusula resolutória expressa, o vínculo se desfaz de modo automático, e se dispensa a intervenção judicial”. Apesar de previsto o desenrolar da expropriação dos bens extrajudicialmente, tal procedimento não exclui do devedor a faculdade de procurar o Judiciário, se assim entender. Tal afirmação baseia-se no fato que o procedimento previsto em lei não viola a reserva de jurisdição, porque não retira do juiz, em hipótese alguma, o monopólio da última palavra. Deve-se registrar ainda que, o procedimento extrajudicial, em momento algum se atribui ao Cartório de Registro de Imóveis o poder de empregar ou mesmo de requisitar o uso da força, aqui compreendida como força física, cujo monopólio remanesce nas mãos do Poder Judiciário. (BRESOLIN, 2013, p. 156-157). Diante dos argumentos apontados, Chalhub (2009, p. 349, grifo nosso) posiciona-se a favor do procedimento extrajudicial: No caso específico da venda extrajudicial do bem objeto da garantia, as normas não são, em si mesmas, incompatíveis com os princípios constitucionais do art. 5°, XXXV, LIV e LV, podendo ser exercido o direito de ação pelo devedor sempre que ocorrer lesão ou ameaça de lesão a direito, inclusive se verificada por inobservância dos requisitos legais consubstanciados nos princípios de aplicação geral e nas normas específicas, que delineiam o regime legal peculiar de cada modalidade de venda privada, sejam as normas do Código Civil, relativas ao penhor, ou aquelas contidas na legislação especial. A inobservância dessas normas, causando lesão ou ameaça de lesão a direito, enseja a atuação judicial não só para reprimir ou impedir a prática de ato lesivo, como, também, para impor a reparação de danos causados por fraude de qualquer natureza, exemplo do que preveem os arts. 40 e 41 do Decreto-lei n° 70/66. Pelos argumentos acima expostos, acredita-se que a constitucionalidade do procedimento extrajudicial de expropriação dos imóveis oferecidos em garantia será julgada de forma semelhante pelo STF, ou seja, admitindo a regularidade da norma. Na sequência, aborda-se o objetivo principal do trabalho, ou seja, discute-se a segurança jurídica da utilização da AFBI em operações de crédito puramente bancárias. 63 4.3 FINALIDADE DA CRIAÇÃO DA NORMA Conforme exposto anteriormente, as instituições financeiras utilizam a AFBI nos mais diversos tipos de financiamentos, inclusive para financiar capital de giro puro. Tais financiamentos, em algumas decisões do Judiciário, não estariam abrangidos pela finalidade da criação da norma, visto que a motivação do legislador à época foi resolver os problemas no SFH. Com relação à utilização da AFBI fora do SFI, Chalhub (2009, p. 221, grifo nosso) aduz: Presumivelmente, a aplicação da propriedade fiduciária de bens imóveis em garantia há de se fazer com mais frequência no mercado de produção e de comercialização de imóveis com pagamento parcelado, dado que é aí que se verifica a concessão de crédito imobiliário em maior escala. Isso não obstante, a lei que regulamenta essa garantia não tem sentido restritivo, permitindo, ao contrário, que a propriedade fiduciária de bem imóvel seja constituída para garantia de quaisquer obrigações, pouco importando o fato de ter sido regulamentada no contexto de uma lei na qual prepondera a regulamentação de operações típicas dos mercados imobiliário, financeiro e de capitais. São nesse sentido as disposições do § 1° do art. 22 da Lei n° 9.514/97, pelo qual a alienação fiduciária pode ser contratada por qualquer pessoa, física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no sistema de financiamento imobiliário, e o art. 51 da Lei n° 10.931/2004, que permite a constituição de propriedade fiduciária para garantia de quaisquer obrigações, em geral. Ainda sobre o mesmo tema, Venosa (2016, p. 450, grifo nosso) também concorda com a legalidade da Lei n° 9.514/1997 quando aplicada fora do SFI: No tocante à alienação fiduciária, ao contrário de outras modalidades do sistema, o legislador expressamente possibilitou qualquer pessoa física ou jurídica contratá-la, não sendo privativa das entidades que operam o Sistema Financeiro Imobiliário. Desse modo, constrói-se mais um mecanismo jurídico fomentador da alienação fiduciária de imóveis, com estrutura simplificada cuja tendência será substituir em muitas oportunidades a hipoteca e compromisso de compra e venda. Dúvida era saber se essa modalidade de negócio pode garantir qualquer negócio jurídico, uma vez que a lei não faz restrição. Em princípio, embora o instituto tenha sido criado com a finalidade de aquisição de imóveis, nada impedirá que a garantia fiduciária seja utilizada para outros negócios paralelos, pois não existe proibição na lei. Importante, também, para compreensão da legalidade da lei fora do SFI, explanar sobre a forma que a Lei n° 9.514/1997 foi disposta pelo legislador, pois na ementa da referida lei o legislador cuidou de colocar a alienação fiduciária de imóveis como objeto paralelo à regulação do SFI, demonstrando, portanto a independência e autonomia dos objetos na referida lei: “Dispõe sobre o Sistema de Financiamento 64 Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências.” (SOUZA28, 2016). Além disso, o legislador, ao distribuir a capitulação da Lei n° 9.514/1997, definiu o SFI e a Alienação Fiduciária de Imóveis de forma autônoma e independente. Segue abaixo a disposição da lei, indicando capítulos apartados: Capítulo I: Do Sistema de Financiamento Imobiliário. Capítulo II: Da Alienação Fiduciária de Coisa Imóvel. Capítulo III: Disposições Gerais e Finais. (BRASIL, 1997). Outrossim, veja-se que ainda no Capítulo I, que trata exclusivamente do SFI, o legislador inseriu a “Seção VII: Das garantias”, onde trata exclusivamente das garantias aplicadas aos contratos do Sistema Financeiro Imobiliário, inclusive mencionando expressamente, dentre várias outras modalidades, a alienação fiduciária de coisa imóvel (Art. 17, IV29). (SOUZA30, 2016). Apesar da aparente uniformidade da doutrina pactuando favoravelmente pela utilização da AFBI fora do SFI, bem como a própria Lei n° 9.514/1997 dispondo sobre o assunto de forma expressa, encontram-se nos Tribunais posicionamentos divergentes, conforme segue: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE INDEFERIU A TUTELA ANTECIPADA. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO GARANTIDA POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. INSTRUMENTO FIRMADO PELOS RECORRENTES COM O BADESC - AGÊNCIA DE FOMENTO DO ESTADO DE SANTA CATARINA S/A "EXCLUSIVAMENTE PARA INVESTIMENTO FINANCEIRO EM CAPITAL DE GIRO" DA EMPRESA AGRAVANTE. OBJETO DIVERSO DA AQUISIÇÃO IMOBILIÁRIA PREVISTA NA LEI N. 9.514/1997. INAPLICABILIDADE DO PROCEDIMENTO EXPROPRIATÓRIO EXTRAJUDICIAL À HIPÓTESE DOS AUTOS. ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO PROCEDIMENTO DE ALIENAÇÃO EXTRAJUDICIAL DA LEI EM REFERÊNCIA. ARGUMENTO UTILIZADO PELOS AGRAVANTES QUE NÃO SE COADUNA COM O ENTENDIMENTO ESPOSADO PELA CÂMARA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. (SANTA CATARINA, 2016, grifo nosso). A decisão do julgado acima fundamenta-se no não atendimento da finalidade da criação da Lei n° 9.514/1997 e no não atendimento dos princípios constitucionais (jurisdição, ampla defesa e devido processo legal). 28 SOUZA, Rafael Andrade de. Contrarrazões em agravo de instrumento 20150450050. Florianópolis, 2016. Agência de Fomento do Estado de Santa Catarina - BADESC. 29 Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por: [...] IV alienação fiduciária de coisa imóvel. (BRASIL, 1997). 30 SOUZA, Rafael Andrade de. Contrarrazões em agravo de instrumento 20150450050. Florianópolis, 2016. Agência de Fomento do Estado de Santa Catarina - BADESC. 65 Para Silva (2014, p. 154, grifo do autor), nestas decisões judiciais, “evidentemente contra legem, não contêm qualquer argumento que justifique expressamente a não aplicação dos dispositivos legais que permitiram a utilização geral da alienação fiduciária”. Neste sentido, vale registrar que o Recurso Especial n° 48.525-3, que teve como relator o Ministro Teori Albino Zavascki, não reconhece qualquer inconstitucionalidade do procedimento do Decreto-Lei n° 70/1966, que prevê procedimento extrajudicial semelhante ao da AFBI: SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. AUDIÊNCIA PRÉVIA DE CONCILIAÇÃO. DISPENSA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. AUSÊNCIA DE NULIDADE. DECRETO-LEI 70/66. CONSTITUCIONALIDADE PRESSUPOSTOS FORMAIS. ESCOLHA DO AGENTE FIDUCIÁRIO. 1. [...] 2. O julgamento antecipado da lide não importa cerceamento de defesa, quando a própria litigante manisfesta-se sobre a inexistência de provas a produzir. 3. Restringe-se a competência desta Corte à uniformização de legislação infraconstitucional (art. 105, III, da CF), por isso que o exame da alegada incompatibilidade da execução extrajudicial disciplinada pelo Decreto-Lei 70/66 com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório significaria usurpar a competência do STF para exame de matéria constitucional. Ademais, o Decreto-lei n° 70/66 já teve sua inconstitucionalidade definitivamente rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal em inúmeros julgados, que firmaram o entendimento de que a citada legislação não viola o princípio da inafastabilidade da jurisdição e nem mesmo o do devido processo legal. 4. Atendidos pelo agente fiduciário todos os pressupostos formais impostos pelo Decreto-lei n° 70/66 para constituição do devedor em mora e realização do leilão, não há que se falar em irregularidade do procedimento de execução extrajudicial do imóvel, inexistindo motivo para a sua anulação. 5. [...] 6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido. (BRASIL, 2005). A discussão sobre a utilização AFBI fora do SFI apresenta-se como muito recente, visto que algumas decisões foram prolatadas em 2016. Assim, na sequência abordam-se os entendimentos jurisprudenciais em relação ao tema. 4.4 ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL A ciência que se destina a estudar a experiência humana do justo chamouse Jurisprudência, por ser o senso prudente da medida. A jurisprudência ainda pode ser entendida como: o conjunto de soluções dadas pelos tribunais às questões de Direito; conjunto de decisões uniformes dos tribunais; autoridade dos casos julgados sucessivamente do mesmo modo; ciência do Direito e dos princípios de Direito 66 seguidos num país, numa dada época ou em certa e determinada matéria legal; fonte secundária do Direito. (SANTOS, 2001, p. 137). Assim, o entendimento jurisprudencial é de extrema importância, visto que a interpretação da lei em relação ao caso concreto precisa ser pacificada ou uniformizada, ou seja, dos entendimentos possíveis qual será o aceito de forma definitiva. Isto posto, na sequência destacam-se os entendimentos jurisprudenciais relacionados ao tema. 4.4.1 Desvio de finalidade da norma A tese de desvio de finalidade já conta com acórdão do STJ indeferindo o pedido, ou seja, neste julgado a suprema corte admitiu a possiblidade da utilização da Lei n° 9.514/1997 fora do SFI, conforme segue: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE GARANTIA FIDUCIÁRIA SOBRE BEM IMÓVEL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. DESVIO DE FINALIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. COISA IMÓVEL. OBRIGAÇÕES EM GERAL. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE DE VINCULAÇÃO AO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 22, § 1°, DA LEI N° 9.514/1997 E 51 DA LEI N° 10.931/2004. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. VEROSSIMILHANÇA DA ALEGAÇÃO. AUSÊNCIA. 1. Cinge-se a controvérsia a saber se é possível a constituição de alienação fiduciária de bem imóvel para garantia de operação de crédito não relacionadas ao Sistema Financeiro Imobiliário, ou seja, desprovida da finalidade de aquisição, construção ou reforma do imóvel oferecido em garantia. 2. A lei não exige que o contrato de alienação fiduciária de imóvel se vincule ao financiamento do próprio bem, de modo que é legítima a sua formalização como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária, podendo inclusive ser prestada por terceiros. Inteligência dos arts. 22, § 1°, da Lei n° 9.514/1997 e 51 da Lei n° 10.931/2004. 3. Muito embora a alienação fiduciária de imóveis tenha sido introduzida em nosso ordenamento jurídico pela Lei n° 9.514/1997, que dispõe sobre o Sistema Financiamento Imobiliário, seu alcance ultrapassa os limites das transações relacionadas à aquisição de imóvel. 4. Considerando-se que a matéria é exclusivamente de direito, não há como se extrair do texto legal relacionado ao tema a verossimilhança das alegações dos autores da demanda. 5. Recurso especial provido. (BRASIL, 2015, grifo nosso). A decisão trata-se de acordão relevante para o assunto, visto que indica o caminho do possível entendimento definitivo da suprema corte. Dessa forma, discutem-se abaixo os pontos centrais do relatório que fundamenram o voto em questão. 67 Do relatório extrai-se a pretensão dos autores: Os autores ajuizaram ação anulatória buscando a nulidade da cédula de crédito bancário com cláusula de garantia fiduciária sobre bens imóveis, cumulada com pedido de antecipação dos efeitos da tutela, para o fim de determinar a suspensão do procedimento de execução extrajudicial de que cuidam os arts. 26 e 27 da Lei n° 9.514/1997, ao argumento de desvio de finalidade da referida lei, pois o crédito adquirido não teve como objetivo o financiamento imobiliário "com vistas ao cumprimento do direito social de moradia, a dizer, a aquisição de imóveis principalmente para moradia". (BRASIL, 2015, grifo nosso). O tema central da fundamentação do pedido é exatamente a finalidade da norma, porém, o assunto não foi julgado em primeiro e segundo graus de forma uniforme. O magistrado de primeiro grau, por entender que a tese dos recorridos contraria o disposto no Art. 22, § 1°, da Lei n° 9.514/1997 e que o perigo da demora não restou configurado, indeferiu o pedido de antecipação dos efeitos da tutela. Descontentes, os demandantes interpuseram agravo de instrumento na Corte local, o qual foi provido para "deferir a antecipação dos efeitos da tutela, determinando a suspensão do procedimento extrajudicial de expropriação dos bens dados em garantia”, obtendo o acórdão que segue: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO ANULATÓRIA DE CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, COM PEDIDO DE LIMINAR – PROCEDIMENTO DE EXPROPRIAÇÃO EXTRAJUDICIAL – LEI 9.514/97 – EMPRÉSTIMO BANCÁRIO – AUSÊNCIA DE QUALQUER INTUITO RELATIVO À AQUISIÇÃO DE IMÓVEIS – SUSPENSÃO DO PROCEDIMENTO EXPROPRIATÓRIO – VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES E RECURSO PROVIDO. Não se tratando de operação garantida fiduciariamente com amparo na Lei 9.514/97, por não se tratar de financiamento imobiliário (para fins de aquisição, edificação ou reforma de imóvel), mas sim de empréstimo, imperiosa a suspensão do procedimento expropriatório fundamentado na citada lei, para evitar-se dano de difícil reparação. (BRASIL, 2015, grifo nosso). Pelo relatório do voto, o recorrente apontou, além da divergência jurisprudencial, a violação dos Arts. 535 do Código de Processo Civil, 22, § 1°, da Lei n° 9.514/1997 e 51 da Lei n° 10.931/2004. Diante dos fatos apresentados, o relatório do STJ, preliminarmente assim manifestou-se: Preliminarmente, aduz a negativa de prestação jurisdicional e, no mérito, alega que, por expressa determinação legal, a contratação da alienação fiduciária de coisa imóvel não se qualifica como privativa das entidades que operam no Sistema de Financiamento Imobiliário, bem como é autorizada a instituição de garantia de obrigação materializada em cédula de crédito bancário por alienação fiduciária de imóvel, o que importa na continuidade do procedimento expropriatório ante a inexistência de vícios em seu transcorrer. (BRASIL, 2015, grifo nosso). 68 Apresentadas as contrarrazões, o relatório do STJ fundamentou sua decisão baseando-se em dois pontos centrais: 1 – Da negativa da prestação jurisdicional; e 2 - Da alienação fiduciária de bem imóvel como garantia de operação de crédito. Com relação ao primeiro ponto, nada de relevante extrai-se para o presente estudo, assim passa-se a discutir o segundo ponto. No referido relatório do voto, o STJ fundamenta sua decisão abrindo um tópico sobre a alienação fiduciária de bem imóvel como garantia de operação de crédito e passa a expor seus argumentos: O deslinde da questão pressupõe examinar a inexistência de verossimilhança da alegação dos demandantes, fundada na tese de que não é possível utilizar a alienação fiduciária de bem imóvel como garantia de qualquer das espécies de obrigações, mas tão somente àquelas vinculadas ao financiamento imobiliário, à luz da legislação que disciplina a matéria. Em breve resumo, da sistemática prevista na Lei n° 9.514/1997, que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário-SFI e institui a alienação fiduciária de coisa imóvel, extrai-se a dinâmica da operação: o devedor (fiduciante) aliena o imóvel ao credor (fiduciário) a título de garantia, ficando a propriedade do imóvel adquirida em caráter resolúvel, vinculada ao pagamento da dívida. Uma vez paga a dívida, a propriedade do credor se extingue, com a reversão da propriedade plena ao fiduciante. Entretanto, caso ocorra o inadimplemento, o próprio cartório de registro de imóveis notifica o devedor, de modo a constituí-lo em mora, e, persistindo a inadimplência, a propriedade do bem se consolida em favor do credor, que já pode realizar a venda do imóvel por meio de leilão. A execução da garantia fiduciária imóvel se dá na esfera extrajudicial, o que a torna mais ágil, barata e mais eficaz do que a tradicional hipoteca, considerada pouco efetiva pelo mercado, garantindo ao credor a segurança e a rapidez na recuperação de seu crédito. No caso dos autos, a problemática diz respeito à possibilidade ou não de constituição de alienação fiduciária de bem imóvel para garantia de operação de crédito desvinculada da função de financiamento imobiliário. Sobre o tema, o Tribunal de origem concluiu que o instituto da alienação fiduciária de bens imóveis somente poderia ser utilizado em crédito destinado à aquisição, edificações ou reformas do imóvel oferecido em garantia. Isso porque, no seu entender, a finalidade da Lei n° 9.514/1997 é proteger o sistema imobiliário e o de habitação como um todo, de modo que a constituição de garantia fiduciária sobre bem imóvel deve estar em sintonia com o objetivo da lei, que é o incentivo ao financiamento imobiliário. Contudo, o referido entendimento não encontra respaldo nos dispositivos legais que disciplinam a matéria (arts. 22, § 1°, da Lei n° 9.514/1997 e 51 da Lei n° 10.931/2004), precisos ao estabelecer que: "Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. § 1° A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena: Art. 51. Sem prejuízo das disposições do Código Civil, “as obrigações em geral” também poderão ser garantidas, inclusive por terceiros, por cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de 69 contratos de venda ou promessa de venda de imóveis e “por alienação fiduciária de coisa imóvel.” Logo, da leitura dos artigos em destaque, sem maior esforço hermenêutico, é possível afirmar que a lei não exige que o contrato de alienação fiduciária de imóvel se vincule ao financiamento do próprio imóvel. Ao contrário, é legítima a sua formalização como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária, podendo inclusive ser prestada por terceiros. Muito embora a alienação fiduciária de imóveis tenha sido introduzida em nosso ordenamento jurídico pela Lei n° 9.514/1997, que dispõe sobre o Sistema Financiamento Imobiliário, seu alcance ultrapassa os limites das transações relacionadas à aquisição de imóvel. Resta indubitável, portanto, que a finalidade do instituto é o de fomentar o sistema de garantias do direito brasileiro, dotando o ordenamento jurídico de instrumento que permite sejam as situações de mora, tanto nos financiamentos imobiliários, como nas operações de créditos com garantia imobiliária, recompostas em prazos compatíveis com as necessidades da economia moderna. [...] Desse modo, no caso concreto, o fato de a avença ter sido firmada com propósito de mútuo bancário, por si só, não torna ilegítima a instituição da garantia fiduciária de bem imóvel, pois não existe nenhuma vedação legal que impeça a utilização de tal modalidade de garantia em contratos que não dizem respeito à aquisição, construção ou reforma de imóvel, tampouco é causa para a suspensão do processo extrajudicial de que cuidam os arts. 26 e 27 da Lei n° 9.514/1997. Além disso, ao contrário do consignado no acórdão recorrido, é pacífico no âmbito desta Corte, por meio da Súmula n° 28/STJ, o entendimento segundo o qual “o contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já integrava o patrimônio do devedor ”. Diante dos fundamentos apresentados, e considerando-se que a matéria em exame é exclusivamente de direito, não há como se extrair do texto legal (arts. 22, § 1°, da Lei n° 9.514/1997 e 51 da Lei n° 10.931/2004) a verossimilhança das alegações dos autores da demanda. (BRASIL, 2015, grifo nosso). Com base nos argumentos acima, o Ministro manteve a decisão de primeiro grau, onde havia sido indeferida a antecipação de tutela, ou seja, a matéria em análise é exclusivamente de direito, não sendo possível aceitar as alegações de verossimilhança. 4.4.2 Os efeitos da recuperação judicial sobre os bens alienados fiduciariamente Para Oliveira (2013, p. 5), o credor fiduciário não se submete ao quadro geral de credores, por ter o direito de, antes do rateio coletivo da massa falida, formular pedido de restituição para obter sozinho o bem alienado fiduciariamente, conforme se extrai da Lei de Falência, Lei n° 11.101, de 2005 (Arts. 49, § 3°, e 85). Para exemplificar segue julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ): AGRAVO REGIMENTAL EM CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. BUSCA E APREENSÃO. BENS OFERECIDOS EM GARANTIA MEDIANTE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. NÃO SUBMISSÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CONTINUIDADE DA EXECUÇÃO. POSSIBILIDADE. 70 1. O credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial (art. 49, § 3°, da Lei 11.101/2005). 2. Não ocorrência, na hipótese, de peculiaridade apta a recomendar o afastamento circunstancial da regra, porquanto não demonstrado que o objeto da busca e apreensão envolva bens de capital essenciais à atividade empresarial, de maneira a atrair a exceção contida no § 3° do art. 49 da Lei 11.101/2005. 3. Agravo regimental desprovido. (BRASIL, 2014, Grifo nosso). Conforme observado, este tema encontra-se pacificado nos tribunais, visto que no relatório do voto, o Ministro cita o dispositivo legal expresso na Lei 11.101/2005 em seu Art. 49, § 3°31 e em várias outras decisões do STJ no mesmo sentido usando a mesma fundamentação. Destaca-se que tal posicionamento é de grande relevância e certamente uma das grandes razões para as instituições financeiras optarem com a AFBI como garantia real fora do SFI. 4.5 EQUILÍBRIO DO PROCEDIMENTO DE EXPROPRIAÇÃO Discute-se neste tópico o possível equilíbrio do procedimento de expropriação dos imóveis, que para Bresolin (2013, p. 159) configura-se pela “máxima satisfação ao credor sem exagerado sacrifício do devedor”. Para o mesmo, tal equilíbrio configura-se pela perspectiva da sequência de atos caracterizadores do procedimento da expropriação dos bens em si mesmo, considerando: aspectos endógenos, estes ligados à interação de tal instrumento com elementos que lhe são exteriores; e aspectos exógenos, sendo estes ligados com a interação com o Poder Judiciário. Diante do exposto, passa-se a discutir primeiramente os aspectos endógenos que dizem respeito aos procedimentos administrativos previstos em lei e na sequência os aspectos exógenos, neste último destacando-se os procedimentos disponíveis para as partes insatisfeitas recorrerem ao Poder Judiciário. 31 Art. 49, § 3° Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, [...] (BRASIL, 2005, Grifo nosso). 71 4.5.1 Procedimentos extrajudiciais Ao defender o equilíbrio do procedimento de expropriação, deve-se destacar que a própria Lei n° 9.514/1997 estabeleceu uma série de procedimentos obrigatórios para a validade do negócio jurídico. Tais procedimentos estabelecem regras desde a contratação (cláusulas obrigatórias para garantir ao devedor prévio conhecimento do procedimento de expropriação) e até ao final com a realização dos leilões e liquidação da dívida. Na sequência, abordam-se os principais procedimentos previstos na referida lei, que segundo Bresolin (2013, p. 159-169), garantem características de equilíbrio entre as partes. 4.5.1.1 A efetiva comunicação ao devedor O primeiro aspecto a revelar o equilíbrio do procedimento é a obrigatoriedade da comunicação formal do devedor, logo no início do procedimento de expropriação dos imóveis. O ato de comunicação, apesar de extrajudicial, guarda estreita semelhança com o de citação no processo judicial de execução por quantia certa contra devedor solvente, caso em que o suposto devedor ou quem possa ter legitimidade para figurar no polo passivo, pague a quantia exigida pelo credor, em prazo certo fixado em lei. Não se conclama o devedor apresentar defesa (o que seria próprio do processo do conhecimento), mas sim, pelo escopo próprio da técnica executiva, tanto judicial quanto extrajudicial, a satisfazer o crédito pecuniário reclamado. (BRESOLIN, 2013, p. 159-160). Neste ponto destaca-se que a lei estabelece ao Cartório de Registro de Imóveis a obrigação de realizar a comunicação ao devedor antes de consolidar a propriedade em nome do credor, independente de outras notificações realizadas pelo credor. 4.5.1.2 Direito do devedor à purgação da mora em razoável tempo Devidamente informado do procedimento extrajudicial que tramita contra si e da pretensão do credor de receber quantia certa discriminada em demonstrativo apresentado junto com a notificação realizada pelo CRI, resta ao devedor derradeira 72 oportunidade de adimplir a prestação reclamada e evitar a expropriação do imóvel em garantia da operação. (LIMA, 2011, p. 178). Trata-se assim de direito potestativo do devedor, concedido por um favor legal, a ser exercido em razoável lapso de tempo previsto em lei. Sob este aspecto o direito brasileiro não permite a pronta expropriação do bem, imediatamente após o inadimplemento. Neste caso, pelo contrário, caso o devedor não pague pontualmente a parcela devida, deverá o credor aguardar o prazo legal para a purgação da mora32, não sendo exagerado, na prática, imaginar que o tempo efetivamente decorrido entre o atraso no pagamento e o termo final para purgar a mora compreenda alguns meses, a permitir que o devedor, nesse período envide esforços para sanar sua falta e evitar a expropriação. (BRESOLIN, 2013, p. 161-162). 4.5.1.3 Publicidade e segurança dos leilões Cumpridas pelo cartório as formalidades necessárias para constituir o devedor em mora, e este não cumprindo com a obrigação assumida, pela ausência da purgação da mora, nasce o direito para expropriar os imóveis dados em garantia pelo credor fiduciário. Tal expropriação pela Lei n° 9.514/1997 deve ocorrer através de hastas públicas, impropriamente designadas como leilões públicos. Trata-se de mecanismo também análogo ao que se verifica na execução judicial contra devedor solvente, em larga medida semelhante à alienação realizada por entidades privadas conveniadas aos Tribunais, com as diferenças essenciais de que, na execução extrajudicial inexiste avaliação prévia, o certame é todo conduzido por leiloeiro habilitado, sem participação alguma, nem mesmo indireta, do juiz e não se prevê a comunicação do devedor para dar ciência do dia, hora e local das hastas. Semelhante ao que ocorre nas hastas ocorridas por força do processo judicial, na execução extrajudicial há a necessidade de publicação de editais em jornal local, visando dar ampla publicidade para o maior número de interessados possíveis. (BRESOLIN, 2013, p. 163). Purgação da mora: expressão substituída pela Lei n. 8.245/91, no lugar de “emenda da mora”. Significa livrar, desembaraçar ou emendar a mora conseguir o seu desaparecimento, tornando-a extinta. (SANTOS, 2001, p. 199). 32 73 4.5.1.4 Valor mínimo para arrematação e extinção da dívida Só se pode vislumbrar equilíbrio no mecanismo de execução extrajudicial se esta não causar injustificado prejuízo ao devedor, em comparação ao mecanismo judicial para satisfação coercitiva dos créditos. Neste passo, um dos pontos mais difíceis de equacionar em busca do almejado equilíbrio diz respeito ao valor mínimo pelo qual o imóvel objeto da garantia poderá ser expropriado e às consequências na hipótese de não se alcançar, em leilão, montante suficiente para satisfazer a integralidade do débito, acrescido de despesas e encargos. (BRESOLIN, 2013, p. 166). Diferente do que ocorre no procedimento judicial, onde ocorre a avaliação dos bens por perito antes das hastas públicas, no procedimento disciplinado pela alienação fiduciária exige-se das partes, quando da contratação da garantia, como um dos elementos mínimos para caracterização do título que dá base ao negócio, a indicação, para efeito de venda em leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão. Com tais critérios define-se o valor revisado do imóvel que serve de base para os leilões. (CHALHUB, 2009, 261-266). Dessa forma, o procedimento de expropriação extrajudicial independente da legalidade ou não da solução adotada pela lei, neste particular mostra-se mais equilibrado. (BRESOLIN, 2013, p. 166-169). Verifica-se que o procedimento extrajudicial apresenta mecanismos capazes de evitar o “preço vil (valor abaixo do mercado)” na venda das garantias e também instrumentos para dar publicidade às hastas, visando obter a maior quantidade possível de pretendentes na aquisição dos imóveis. 4.5.2 Procedimentos junto ao Poder Judiciário O afastamento do juiz na execução extrajudicial é potencialmente total, visto que é possível que o procedimento inteiro decorra da propositura da demanda até a satisfação do credor, sem que em momento algum o juiz seja chamado a intervir. Detendo o Poder Judiciário o monopólio da última palavra, em respeito à garantia constitucional do acesso à Justiça e de outro lado, dispondo o procedimento de expropriação de poderes limitados, não estando investido de jurisdição para decidir sobre conflitos que possam surgir por ocasião do desempenho dos atos de execução 74 extrajudicial, é certo que qualquer das partes poderá acorrer à Justiça Estadual para buscar a solução de eventuais litígios. (BRESOLIN, 2013, p. 170, grifo do autor). Na sequência, passa-se a discorrer sobre os meios judiciais de defesa do devedor, separando o assunto em meios de defesa até a expropriação dos imóveis e meios de defesa depois da consolidação da propriedade. 4.5.2.1 Defesa do devedor até a expropriação Inicialmente, entende-se relevante distinguir as defesas apresentadas antes da expropriação do imóvel daquelas posteriores às hastas públicas, já que neste último caso, o imóvel já está alienado a terceiro. Assim, antes da realização das hastas públicas, eventual conflito tende a contrapor os interesses, tão somente, de exequente e executado, o que permite o mais largo espectro de defesas. (BRESOLIN, 2013, p. 172). O controle judicial pode ser reclamado pelo devedor antes mesmo do início do procedimento extrajudicial. Neste contexto, Pereira (2008, p. 143) registra que sob a ampla designação de ações revisionais estão sendo abarcadas as mais diferentes postulações, desde a validade das cláusulas contratuais, critério de correção da dívida, montante do saldo devedor, entre outras. O devedor, ao ser comunicado pelo CRI sobre o início do procedimento de expropriação, sentindo-se desrespeitado em seus direitos terá prazo razoável para buscar socorro junto ao Judiciário, sem restrições, as defesas que entender cabíveis, aí incluídas notadamente as de caráter preventivo, para evitar a ocorrência de dano, e as de caráter reparatório, seja para que as partes sejam repostas no estado anterior ao da execução extrajudicial, desfazendo-se no todo ou em parte os atos praticados e seus respectivos efeitos, seja para que se indenizem eventuais prejuízos para a parte inocente. Dessa forma, são frequentes os requerimentos de tutela de urgência, com o fim precípuo de obstar o prosseguimento do procedimento de expropriação dos imóveis e impedir a realização das hastas públicas. (BRESOLIN, 2013, p. 173). 4.5.2.2 Defesa do devedor depois da expropriação Ainda que o devedor permaneça em silêncio durante todo o curso da execução extrajudicial e não tome a iniciativa de procurar a Justiça nem mesmo 75 quando formalmente comunicado ao início do procedimento de expropriação, bastará que não desocupe voluntariamente o imóvel para tornar-se réu, em ação que postulará a posse do imóvel. Citado para a demanda judicial, mesmo nesta ocasião tardia, o devedor poderá postular em juízo o que entender de direito, invocando como fundamento qualquer ato anteriormente praticado no procedimento de execução extrajudicial ou qualquer aspecto da relação jurídica material subjacente, mesmo que já havida a expropriação. (BRESOLIN, 2013, p. 178). A ação de reintegração de posse pelo fiduciário é o instrumento utilizado pelo fiduciante, se o fiduciário não cumprir com a obrigação assumida (pagamento), situação em que a consequência natural será a consolidação da propriedade no fiduciário, nascendo assim o direito de reintegrar-se na posse. (CHALHUB, 2009, p. 274). No entanto, destaca-se que a amplitude assegurada ao devedor não pode, por outro lado, comprometer os direitos de terceiro que, legitimamente, tenha arrematado o imóvel que servira de garantia. Neste contexto, entende-se que o critério a ser adotado para resolver tal conflito é o critério da relativa estabilidade da arrematação, pelo qual eventual vício da execução não conduz ao desfazimento da arrematação em relação ao arrematante, que remanesce com o domínio do bem adquirido, mas deve resolver-se em indenização por perdas e danos devidos pelo exequente ao executado. (BRESOLIN, 2013, p. 179). 4.6 O CONCEITO DA GARANTIA IDEAL O conceito da garantia ideal desdobra-se do problema com as garantias reais hoje disponíveis no ordenamento jurídico pátrio, que são de constituição complexa e também sujeitas à execução lenta e onerosa. Diante das desvantagens apresentadas pela garantia reais atuais, Aynès e Crocq (2013, p. 7 apud SILVA, 2014, p. 41) afirmam que a garantia ideal deve ter quatro qualidades: (i) de constituição simples e pouco onerosa, para não aumentar o custo do crédito; (ii) adequada à dívida garantida, nem em excesso, nem insuficiente, a fim de evitar o abuso de garantias que desperdiça o crédito do devedor; (iii) eficaz, ou seja, conferir ao credor a certeza de que será pago, na hipótese de o devedor inadimplir a obrigação garantida; e (iv) de execução simples, a fim de evitar demoras e custos inúteis. 76 Com base no conceito, pode-se extrair que as garantias devem ser de constituição simples, adequada, material e processualmente eficaz. Ao credor interessa, à princípio, a simplicidade e a eficácia da garantia, enquanto ao devedor comum interessa também a adequação à dívida garantida. (SILVA, 2014, p. 41). Neste contexto, pode-se estabelecer uma conexão com a hipoteca e a AFBI. A hipoteca apresenta como desvantagem o procedimento de cobrança moroso e oneroso, além de não proteger a garantia de créditos preferenciais. As desvantagens da hipoteca são equacionadas pela AFBI, porém esta apresenta outras desvantagens, que são a obrigatoriedade de liquidação da dívida pelo valor do bem (não interessa quanto é o valor devido, deverá liquidar a dívida) e a total oneração do imóvel com o crédito concedido (não permite a garantia em graus subsequentes, situação esta que poderia ser equacionada se o legislador regulamentasse o disposto no Enunciado 50633 do Conselho da Justiça Federal). 33 Estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo bem imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada na data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc. (BRASIL, 2011). 77 5 CONCLUSÃO No ordenamento jurídico pátrio encontram-se disponíveis vários direitos reais utilizados como garantia nas operações de crédito, porém, conforme demonstrado no presente estudo, a hipoteca e a Alienação Fiduciária de Bens Imóveis, em razão de suas características, são os institutos mais adequados para garantir as operações de crédito puramente bancárias. A hipoteca mostra-se em desuso, mas continua sendo um dos institutos utilizados nas operações de crédito realizadas fora do Sistema Financeiro Imobiliário, visto que apesar da sua onerosidade, morosidade e da sua não proteção da garantia em relação aos créditos preferencias (fiscais e trabalhistas), sua utilização baseia-se na facilidade de constituição e na possibilidade da averbação da mesma garantia em diferentes níveis (permitindo alavancar o total do valor imóvel). Não há dúvida de que a motivação inicial do legislador ao sancionar a Lei n° 9.514/1997, norma que trata da Alienação Fiduciária de Bens Imóveis, foi a de aquecer o mercado da construção civil que passava por grandes dificuldades, em virtude da inadimplência e da grande morosidade para reaver os recursos imobilizados nos mutuários inadimplentes. Também é evidente que o legislador de forma deliberada decidiu por estender a aplicação da Lei n° 9.514/1997, com a promulgação da Lei n° 10.931/2004, que em seu Artigo 51, de forma expressa determinou: “Sem prejuízo das disposições do Código Civil, as obrigações em geral também poderão ser garantidas, inclusive por terceiros, [...] e por alienação fiduciária de coisa imóvel”. Dessa forma, entende-se que o Judiciário, ao acatar pedidos para paralisação do processo de expropriação em razão do desvio de finalidade da norma, está agindo contra legem. A afetação patrimonial proporcionada pela propriedade fiduciária é a principal razão pela opção da alienação fiduciária em garantia de imóveis nos financiamentos fora do Sistema Financeiro Imobiliário, visto que tal característica na prática protege a garantia dos créditos privilegiados, uma vez que a mesma não faz parte do patrimônio da empresa até o pagamento da obrigação. O procedimento de expropriação dos imóveis previstos na Lei n° 9.514/1997, que ocorre totalmente no cartório de registro de imóveis, ou seja, sem a intervenção do Judiciário, apresenta-se com todas as características de legalidade, pois: o devedor é efetivamente comunicado; é dado ao devedor a oportunidade de 78 pagar os valores em atraso; na hipótese do não pagamento, a garantia deve ser vendida em hastas públicas e a publicidade é condição de validade para os atos; e com a realização das hastas públicas, a dívida deve ser obrigatoriamente liquidada pelo credor, desobrigando totalmente o devedor. Além disso, não há o que se falar de autotutela, pois em momento algum o credor ou o cartório de registro de imóveis possui o direito de solicitar a força física (polícia) para coagir o devedor a qualquer conduta que não deseje realizar. Assim, por exemplo, na hipótese de o devedor não desocupar as garantias voluntariamente após a consolidação da propriedade, o credor terá que recorrer ao Judiciário para obter a posse direta dos imóveis, situação em que o devedor poderá defender-se em juízo, apresentando defesa mesmo depois da perda da propriedade. A não participação do Judiciário na solução de conflitos, em nada deve ser encarada como motivo de ilegalidade, visto que em situações análogas a mesma é respeitada e fomentada. Destaca-se, por exemplo, a regra da não intervenção do Judiciário se estipulada em contrato cláusula de arbitragem. Da mesma forma, no caso do procedimento de expropriação, as partes pactuam livremente e a Lei n° 9.514/1997 define de forma expressa o procedimento administrativo que deve ser adotado pelo Cartório de Registro de Imóveis, bem como pelo credor para garantir a não onerosidade excessiva do devedor. Apesar de o procedimento administrativo de expropriação das garantias previsto na Lei n° 9.514/1997 desenrolar-se totalmente fora do Poder Judiciário, em nada há que se falar sobre cerceamento de direitos, como por exemplo o não cumprimento dos princípios do devido processo legal, da inafastabilidade da jurisdição e do contraditório e da ampla defesa, em virtude de que a qualquer momento o devedor prejudicado pode procurar a jurisdição, se entender que está sendo prejudicado. Tal conclusão pode ser facilmente comprovada pelos acórdãos analisados no presente trabalho, já que todos são casos em que o Judiciário está tutelando a possibilidade de ofensa aos direitos dos devedores. Entende-se necessária a realização pelo legislador de atualização nos dispositivos legais que regulamentam as garantias reais hoje disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro, visando trazer maior segurança jurídica e eficiência ao Sistema Financeiro Nacional. No contexto deste estudo, acredita-se que a Alienação Fiduciária de Bens Imóveis necessita de pelo menos duas novas características: permitir a utilização da garantia real pelo devedor em diferentes 79 operações de crédito, ou seja, estabelecer a possibilidade da constituição de alienações fiduciárias sucessivas, talvez seguindo o Enunciado 506 do Conselho da Justiça Federal (extremamente importante para o devedor poder alavancar-se na totalidade do valor das garantias); e nas operações de crédito fora do Sistema Financeiro Imobiliário, desobrigar as instituições financeiras da liquidação da operação pela simples expropriação da garantia (em algumas situações o valor das garantias não são compatíveis com o saldo devedor, mas a lei impõe a liquidação, com isso as instituições financeiras necessitam de modelos híbridos de cobrança nestes casos). Diante de tudo que foi exposto, acredita-se que é perfeitamente legal a utilização da Lei n° 9.514/1997 em financiamentos puramente bancários, ou seja, quando o objeto financiado não é imóvel ou a sua reforma. Também entende-se que o procedimento de expropriação dos imóveis previsto na referida lei apresenta-se como adequado para tutelar os direitos do credor, sem violar os direitos fundamentais do devedor, situação que deve ser totalmente aceita e fomentada pelo Poder Judiciário, visando diminuir o volume de demandas de sua competência. 80 REFERÊNCIAS ABRAHÃO, Roberto Mattos. Direito das relações de consumo: livro didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2015. ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. BRASIL, Lei n° 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9514.htm>. 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