Cistos de íris em um canino: relato de caso Luciana Vicente Rosa Pacicco de Freitas Luciane de Albuquerque Paula Stieven Hünning Bernardo Stefano Bercht João Antonio Tadeu Pigatto RESUMO Os cistos de íris são estruturas em forma de vesícula, preenchidas por fluido e circundadas por epitélio pigmentado. Normalmente possuem formato oval, podem ser únicos ou múltiplos e localizam-se na câmara anterior ou posterior do olho. São descritos em humanos, cães, gatos e cavalos. Os cistos geralmente crescem lentamente em tamanho e se rompem, depositando pigmento no endotélio da córnea ou na íris. Devem ser diferenciados de neoplasias da íris ou do corpo ciliar. O diagnóstico é confirmado, na maioria dos casos, utilizando a transiluminação. Quando os cistos não causam alteração ocular, como opacidade da córnea ou aumento da pressão intraocular, não há necessidade de serem removidos. Porém, recomenda-se ao proprietário, o retorno do animal a cada seis meses para reavaliação oftálmica. Palavras-chave: Cistos de íris. Úvea. Caninos. Iris cysts in a canine: Case report ABSTRACT Iris cysts are vesicle-shaped structures filled with fluid and surrounded by pigmented epithelium. Typically they have oval shape, may be single or multiple and are located in the anterior or posterior chamber of the eye. They are described in humans, dogs, cats and horses. The cysts usually grow slowly in size and then rupture, depositing pigment on the endothelium of the cornea or iris. It should be differentiated from neoplasms growing from the iris or ciliary body. Transillumination is usually sufficient to perform the differential diagnosis. If the cysts Luciana Vicente Rosa Pacicco de Freitas é Médica Veterinária, Mestranda do Programa de Pós-Graduação Ciências Veterinárias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Luciane de Albuquerque é acadêmica de Medicina Veterinária, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Paula Stieven Hünning é Médica Veterinária, Mestranda do Programa de Pós-Graduação Ciências Veterinárias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bernardo Stefano Bercht é Médico Veterinário, Mestrando do Programa de Pós-Graduação Ciências Veterinárias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). João Antonio Tadeu Pigatto é Médico Veterinário, Doutor, Professor Adjunto, Departamento de Medicina Animal, Faculdade de Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Endereço para correspondência: Prof. João A. T. Pigatto – Av. Bento Gonçalves, 9090. Bairro Agronomia. Porto Alegre, RS. 91540-000. E-mail: [email protected] 158Veterinária em Foco Veterinária v.8 v.8, n.2, n.2 jan./jun. p.158-164 Canoas em Foco, 2011 jan./jun. 2011 aren’t causing ocular problems such as corneal opacity or increased intraocular pressure, they don’t need to be removed. It is recommended the return of the animal every six months for ophthalmic review. Keywords: Iris cysts. Uvea. Canines. INTRODUÇÃO A úvea, também denominada de trato uveal, é composta por íris, corpo ciliar e coroide. A íris é responsável por controlar a quantidade de luz que penetra no olho e o corpo ciliar altera a distância de focalização, produz o humor aquoso e é importante na regulação da pressão intraocular. Distúrbios da íris podem, assim, estar associados com alterações visuais e na pressão intraocular. Doenças inflamatórias da úvea, tanto locais como decorrentes de uma alteração sistêmica, podem causar dor grave e alterar a função pupilar (GELATT, 2003; SLATTER, 2005). Cistos de íris são estruturas em forma de vesícula, preenchidas por fluido e circundadas por epitélio pigmentado, sendo formadas no epitélio pigmentado posterior da íris. Normalmente possuem formato oval, sendo localizados na câmara anterior ou posterior do olho. São mais comuns em caninos e ocorrem ocasionalmente em felinos e equinos (GEMENSKY-METZLER; WILKIE; COOK, 2004; SAROGLU; ALTUNATMAZ; DEVICIOGLU, 2004). Os cães das raças Golden e Labrador Retrievers, Boston Terrier e Dogue Alemão são mais predispostos a desenvolverem essa afecção (RIIS, 2002; SLATTER, 2005). Os cistos uveais podem ser congênitos ou adquiridos, no entanto, a etiologia das formações císticas adquiridas ainda é desconhecida. São reportados como sendo desenvolvidos após trauma ocular ou inflamação intraocular (COLLINS; MOORE, 1999; MASSA et al., 2002; RIIS, 2002). O principal diagnóstico diferencial deve ser feito em relação ao melanoma intraocular ou a tumores epiteliais do corpo ciliar (RIIS, 2002; GELATT, 2003; SLATTER, 2005; TEIXEIRA; BARROS; BARROS, 2009). Durante o exame oftálmico, os cistos uveais podem ser usualmente diferenciados de tumores, uma vez que a membrana dos cistos é geralmente transparente devido ao fato de ser formada por uma única camada de células. Os tumores são geralmente sólidos e não transparentes e também podem causar inflamação, hifema e aumento da pressão intraocular. Os cistos de íris podem ser distinguidos de neoplasias pigmentadas por transiluminação (GELATT, 2003; SLATTER, 2005). Os cistos de íris geralmente não causam problemas clínicos e não necessitam tratamento. Caso o cisto uveal esteja limitando a visão, este pode ser aspirado através de centese da câmara anterior, ser rompido através de laser de diodo ou então ser removido por criocirurgia (RIIS, 2002; GELATT, 2003; HALLER et al., 2003; GEMENSKY-METZLER; WILKIE; COOK, 2004; BREAUX; GRAHN; CULLEN, 2005; SLATTER, 2005). Veterinária em Foco, v.8, n.2, jan./jun. 2011 159 Embora a ocorrência não seja considerada rara, poucos são os relatos encontrados na literatura sobre cistos de íris. Neste sentido, objetiva-se relatar um caso de múltiplos cistos de íris em um canino. RELATO DO CASO Um canino de oito anos de idade, da raça Boxer, macho, foi encaminhado ao Serviço de Oftalmologia Veterinária do Hospital de Clínicas Veterinárias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apresentando histórico de estruturas ovoides intraoculares há seis meses. Ao exame oftálmico, observaram-se inúmeros cistos de íris pigmentados no olho direito, flutuando na parte ventral da câmara anterior (Figura 1). O exame oftálmico incluiu avaliação dos reflexos pupilares, teste da lágrima de Schirmer, oftalmoscopia binocular indireta com lâmpada de fenda, tonometria digital de aplanação, e prova da fluoresceína. Os valores do teste lacrimal de Schirmer I foram de 18 e 20 mm/min, nos olhos direito e esquerdo, respectivamente. Já os valores da tonometria digital de aplanação foram de 20 e 21 mmHg, nos olhos direito e esquerdo, respectivamente. O teste da fluoresceína apresentou-se negativo em ambos os olhos. FIGURA 1 – Cistos de íris em um cão. Observam-se inúmeros cistos de íris pigmentados flutuando na parte ventral da câmara anterior. DISCUSSÃO Os cistos de íris podem acometer cães de todas as raças, porém a literatura ressalta como as mais predispostas o Golden e Labrador Retrievers, Boston Terrier e Dogue Alemão, de idade adulta a idosos (RIIS, 2002; SLATTER, 2005). No caso apresentado, constatou-se a presença de inúmeros cistos de íris flutuando na parte ventral da câmara anterior em um cão da raça Boxer, com oito anos de idade. Em cães das raças Dogue Alemão e Golden Retriever, os cistos são herdados de 160 Veterinária em Foco, v.8, n.2, jan./jun. 2011 forma recessiva e um grande número de cistos pode se formar e empurrar a base da íris para frente, causando glaucoma secundário por estreitamento do ângulo iridocorneano (SLATTER, 2005). De acordo com o estudo histopatológico retrospectivo de Deehr e Dubielzig (1998), 13 do total de 25 casos de cães da raça Golden Retriever que apresentavam glaucoma, possuíam concomitantemente, cistos iridociliares. No cão do presente relato, os cistos não estavam deslocando a íris para frente, o que não ocasionou a presença de glaucoma. Os cistos de íris podem se desenvolver em decorrência de traumas ou inflamação ocular crônica, podendo também ter origem congênita, tendo seu início de desenvolvimento já no estágio embrionário (COLLINS; MOORE, 1999; SAPIENZA; DOMENECH; PRADES-SAPIENZA, 2000; MASSA et al., 2002; RIIS, 2002). De acordo com Breaux, Grahn e Cullen (2005), não há relatos de cistos uveais decorrentes de trauma cirúrgico em cães. O animal do presente caso não apresentava histórico de trauma nem de inflamação ocular crônica, suspeitando-se que nesse paciente os cistos possuíssem origem congênita. Os cistos uveais podem ser únicos ou múltiplos. Estes emergem do epitélio posterior da íris e do epitélio do corpo ciliar, sendo geralmente esféricos e podem encontrar-se aderidos ou soltos. Na câmara anterior, eles podem se aderir à íris ou ao endotélio corneano, ocasionalmente bloqueando o eixo visual e a pupila. Cistos vazios aparecem como áreas pigmentadas aderidas ao endotélio corneano (RIIS, 2002; GELATT, 2003; SLATTER, 2005; TEIXEIRA; BARROS; BARROS, 2009). No presente relato, o cão apresentava cistos múltiplos, esféricos e soltos na câmara anterior, não havendo a interferência destes no eixo visual. A dilatação da íris facilita o diagnóstico de cistos de íris localizados na câmara posterior (DEEHR; DUBIELZIG, 1998). A coloração varia de quase transparente à escuramente pigmentado. Os cistos localizados na câmara anterior são geralmente mais pigmentados e usualmente caem ou flutuam na parte ventral da câmara anterior. Na maioria dos casos, os cistos encontram-se presentes na câmara anterior ou na posterior, porém, eles também podem se localizar na câmara vítrea (RIIS, 2002; GELATT, 2003; SLATTER, 2005). No entanto, no presente relato, observou-se a presença de cistos somente na câmara anterior, e estes apresentavam pigmento de coloração marrom. Os cistos uveais, geralmente, crescem lentamente em tamanho e se rompem, depositando pigmento no endotélio da córnea ou na íris, o que demonstra a evidência de sua existência (BREAUX; GRAHN; CULLEN, 2005; SLATTER, 2005). No caso clínico relatado os cistos apresentavam uma evolução lenta, tendo iniciado seu aparecimento havia seis meses e não se encontravam rompidos. Veterinária em Foco, v.8, n.2, jan./jun. 2011 161 Os cistos de íris devem ser diferenciados de neoplasias crescendo a partir da íris ou do corpo ciliar. Normalmente, a transiluminação é suficiente para realizar o diagnóstico diferencial. As neoplasias uveais consistem de tecido sólido localizado na íris ou no corpo ciliar. O diagnóstico diferencial primário a ser considerado é o melanoma de úvea. Melanomas intraoculares geralmente induzem alterações como uveíte, glaucoma e hifema, são sólidos e não podem ser transiluminados. Em cães, os melanomas intraoculares raramente causam metástase, porém seu grande crescimento pode gerar inflamação e perda da visão (RIIS, 2002; GELATT, 2003; SLATTER, 2005; TEIXEIRA; BARROS; BARROS, 2009). No presente relato, a biomicroscopia indireta com lâmpada de fenda permitiu a transiluminação das estruturas císticas e verificou-se que se tratava de cistos de íris, os quais eram translúcidos e não apresentavam consistência sólida. A remoção dos cistos de íris é indicada nos seguintes casos: quando há um grande número de cistos presente com potencial para formação de glaucoma ou interferência na visão; quando há presença de edema corneano formado pelo contato dos cistos com o endotélio; quando há obstrução pupilar prejudicando a visão; quando ocorre pressão intraocular elevada ou grande número de cistos presente, deslocando a íris para frente e quando múltiplos cistos colapsam e os debris obstruem a trama trabecular ou então causam uveíte (DEEHR; DUBIELZIG, 1998; MASSA et al., 2002; RIIS, 2002; SLATTER, 2005). No caso clínico apresentado, os cistos de íris não estavam causando nenhuma alteração ocular, não tendo sido necessária a remoção destes. Se os cistos uveais não estão causando danos através do contato com o endotélio da córnea ou não estão obstruindo a visão ou o ângulo iridocorneano, não há a necessidade de tratamento. No entanto, quando o tratamento é requerido, os cistos podem ser removidos através de uma pequena cânula, a qual é inserida através do limbo e o conteúdo do cisto é então aspirado, sob controle microcirúrgico (SLATTER, 2005). Outras opções de tratamento para a remoção dos cistos são a criocirurgia e a fotocoagulação a laser (HALLER et al., 2003; SLATTER, 2005). Animais que possuem cistos de úvea que não estejam causando doenças oculares concomitantes devem ser monitorados a cada seis meses. É aconselhável fotografar as formações císticas para comparar com futuros exames oftálmicos. Há relatos de cistos uveais associados a glaucoma em Golden Retrievers e em Dogues Alemães (SAPIENZA; DOMENECH; PRADES-SAPIENZA, 2000). No presente caso, as formações císticas foram fotografadas para posterior acompanhamento do paciente em reavaliações. Conforme o estudo de Gemensky-Metzler, Wilkie e Cook (2004) foi utilizado um laser semicondutor de diodo para esvaziar e coagular cistos uveais anteriores, em quatro cães, nove cavalos e sete gatos. Todos os cistos eram de tamanho e número suficientes para prejudicar a visão, causar danos ao endotélio ou aumentar 162 Veterinária em Foco, v.8, n.2, jan./jun. 2011 a pressão intraocular. Este estudo concluiu que esta é uma técnica segura, efetiva, simples e não invasiva, com mínimas complicações e cuidados pós-operatórios. No caso clínico relatado, não houve necessidade de remoção dos cistos de íris, pois estes não estavam causando nenhuma alteração ocular, como opacidade da córnea ou aumento da pressão intraocular. Recomendou-se ao proprietário, o retorno do animal a cada seis meses para reavaliação oftálmica. Após este período de seis meses, o paciente foi avaliado novamente e os cistos de íris continuavam sem causar alteração ocular. CONCLUSÃO Com base nos resultados obtidos, pode-se concluir que os cistos de íris, apesar de raros, ocorrem em cães, devendo ser incluídos no diagnóstico diferencial de outras afecções intraoculares. Além disso, geralmente não alteram a visão, não necessitando de tratamento nestes casos. REFERÊNCIAS BREAUX, C.; GRAHN, B. H.; CULLEN, C. L. Diagnostic Ophthalmlogy. Canadian Veterinary Journal, v.46, p.845-846, 2005. COLLINS, K. C.; MOORE, C. P. Diseases and surgery of the canine anterior uvea. In: DEEHR, A, J.; DUBIELZIG, R. R. A histopatological study of iridociliary cysts and glaucoma in Golden Retrievers. Veterinary Ophthalmology, v.1, p.153-158, 1998. GELATT, K. N. (ed.). Veterinary Ophthalmology. 3.ed. Philadelphia, Lippincott Williams & Wilkins, p.776, 1999. GELATT, K.N. Doenças e Cirurgia da Úvea Anterior do Cão. In: ______. Manual de Oftalmologia Veterinária. Manole, Cap. 9, p.197-225, 2003. GEMENSKY-METZLER, A. J.; WILKIE, D. A.; COOK, C. S. 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