Proteção social em saúde para famílias vulneráveis

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
POLÍTICA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA
Carmen Rosario Ortiz Gutierrez Gelinski
PROTEÇÃO SOCIAL EM SAÚDE PARA FAMÍLIAS
VULNERÁVEIS COM MONOPARENTALIDADE FEMININA
VIA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia Política da
Universidade Federal de Santa
Catarina, como requisito para obtenção
do Título de Doutor em Sociologia
Política.
ORIENTADORA: Dra. Márcia
Grisotti
Florianópolis
2010
2
Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da
Universidade Federal de Santa Catarina
G317p
Gelinski, Carmen Rosario Ortiz G.
Proteção social em saúde para famílias vulneráveis com
monoparentalidade feminina via Estratégia Saúde da Família
[tese] / Carmen Rosario Ortiz Gutierrez Gelinski ;
orientadora, Márcia Grisotti. - Florianópolis, SC, 2010.
266 p.: grafs., tabs.
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina,
Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de PósGraduação em Sociologia Política.
Inclui referências
1. Sociologia política. 2. Família – Proteção social.
3. Monoparentalidade. 4. Política de saúde. I. Grisotti,
Marcia. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa
de Pós-Graduação em Sociologia Política. III. Título.
CDU 316
CARMEN ROSARIO ORTIZ GUTIERREZ GELINSKI
3
4
5
Dedico este trabalho:
A mis padres, Angel y Betty, siempre presentes a pesar de
la distancia… responsables por los sueños que me hicieron
llegar hasta aquí. A mis hermanos, Ricardo, Saúl, Cristina,
Miguel Angel y Adelita, por todo.
Ao meu marido, Francisco, e aos meus filhos, Júnior,
Beatriz e Lucas, meus eternos professores de português e
da arte da vida.
6
7
AGRADECIMENTOS
“A escolha de um tema não emerge
espontaneamente, da mesma forma que o
conhecimento não é espontâneo. Surge de
interesses
e
circunstâncias
socialmente
condicionadas, frutos de determinada inserção no
real, nele encontrando suas razões e seus
objetivos.” (MINAYO, 1994, p.90)
Em 2003 escrevi um pequeno artigo contendo uma crítica à
campanha deflagrada pelo Ministério Público contra o trabalho infantil
doméstico. Nele fazia menção a uma família fictícia composta por
Maria, 27 anos, e seus filhos Marina, Jackson e Vânia (de dez, sete e
três anos respectivamente). Os nomes eram fictícios, a família não.
Tratava-se do quadro familiar da moça, migrante do interior do estado,
separada, sem pensão do ex-marido e sem parentes na cidade, que
trabalhava alguns dias por semana na minha casa como empregada
doméstica. Da mesma forma que ela, eu também tinha três filhos com
idades semelhantes e também enfrentava o desafio de tentar equilibrar
trabalho e cuidado dos filhos sem uma rede familiar que pudesse dar
suporte. Sabia tal qual ela o que era enfrentar doenças de filhos
pequenos sem contar com o apoio direto de mãe, sogra ou irmãs por
perto. Tínhamos muitas coisas em comum. Entretanto, um mundo nos
separava: eu podia “comprar” ajuda através de empregadas ou babás, ela
não. Se o cotidiano dessa jovem mãe era marcado por lutas, elas se
intensificavam quando os filhos adoeciam e ela precisava passar a noite
na fila do posto de saúde para conseguir “ficha” para o médico. O
inverno era sinônimo de dias de trabalho perdidos por causa disso. A
essa mãe anônima, com a qual aprendi a contemporizar os meus
desafios e lutas como mãe e trabalhadora, vai o meu agradecimento pela
inspiração para esta pesquisa.
Este trabalho é testemunha de que mecanismos de proteção são
essenciais para a vida das mulheres trabalhadoras. Ele não teria sido
possível sem o apoio (mesmo que indireto) de muitas pessoas.
De início, duas delas merecem menção especial. Em primeiro
lugar, a ti, Senhor, pela tua presença viva e constante, pelos momentos
de inspiração e pelos desertos... Por teres tornado real a canção de
Kleber Lucas “(...) pois o que chora aos pés da cruz, clamando em nome
8
de Jesus alcançará de ti, Senhor, misericórdia, graça e luz”. Porque
cuidastes dos meus filhos nas minhas ausências e pelos inúmeros
insights (tinham que ser de madrugada ou só enquanto lavava louça?).
Em segundo lugar, à minha orientadora, a professora Márcia Grisotti,
sempre disponível, dedicada, incansável e generosa. Pelas longas
reflexões, pelos seminários e pelas pertinentes observações.
Responsável direta por ter inoculado o “vírus” da saúde no meu
horizonte acadêmico.
Algumas pessoas foram essenciais para poder entrar no
programa de pós-graduação. Reconheço o encorajamento e as dicas
preciosas da Ivoneti da Silva Ramos, minha ex-pupila e agora minha
mestra, cuja vida é uma lição para mim. A profa. Beatriz Paiva cedeu
importante bibliografia para a realização do projeto. Agradeço muito
também pelas reflexões do professor Erni José Seibel, de quem, ainda na
condição de aluna especial deste programa, aprendi a paixão de estudar
políticas públicas. Agradeço-lhe, em particular, pela orientação recebida
na etapa inicial deste trabalho. O meu ingresso no curso de PósGraduação não teria sido possível também se a Profa. Patrícia Arienti,
colega do Departamento de Economia da UFSC, não tivesse assumido
parte da minha carga didática em 2006/2 para que pudesse me dedicar
ao projeto de pesquisa. A ela minha gratidão. Da mesma forma,
agradeço as cartas de recomendação dadas pelos Professores Valeska
Nahas Guimarães, Fernando Seabra e João Rogério Sanson.
O meu afastamento em tempo integral para realizar o curso só
foi possível pelo irrestrito apoio institucional recebido da UFSC. Em
particular, quero destacar o apoio dos chefes do Departamento de
Economia, professores Ricardo de Oliveira e Helton Ricardo Ouriques e
do diretor do CSE, prof. Maurício Pereira. Sou grata, também, pelo
suporte dos funcionários da secretaria do curso de Economia: Roberto,
Flori, Marilúcia e Rafael.
Dentro do curso de Pós-graduação em Sociologia, o meu
reconhecimento aos professores do Programa que respeitaram a minha
condição de estranha ao ninho e ensinaram a uma economista como ver
a sociedade com outros olhos. Boa parte das reflexões deste trabalho é
oriunda de discussões ocorridas nas disciplinas do curso ou de trabalhos
realizados nelas. Em especial agradeço aos professores Fernando Ponte
De Sousa, Erni José Seibel, Cécile Raud (In memorian), Maria Ignez
Paulilo, Julian Borba, Ligia Luchman, Tamara Benakouche, Ary
Minella, Janice Tirelli Ponte De Sousa e Julia Guivant. Da mesma
forma, quero manifestar o meu agradecimento pala gentileza e atenções
9
recebidas dos funcionários da secretaria do programa: Albertina, Fátima,
Otto e Alaíde.
Professores de outros programas de pós-graduação da UFSC
contribuíram para que pudesse olhar para o meu objeto de pesquisa de
modo interdisciplinar. Refiro-me particularmente à professora Ivete
Simionatto do curso de Pós-graduação em Serviço Social e aos
professores, Josimari Telino Lacerda, Maria Cristina Calvo e Sérgio
Fernando Freitas do Curso de Pós-graduação em Saúde Pública.
Parte importante de um trabalho são os materiais bibliográficos
utilizados e as críticas de terceiros. Mesmo em tempos de internet, em
que a informação parece estar a um clique de distância, agradeço
àqueles que gastaram parte do seu tempo me sugerindo textos, me
ajudando a tratá-los de maneira adequada, ou ainda lendo trechos desta
tese. Nesse sentido, expresso a minha gratidão ao Prof. João Rogério
Sanson (a quem devo os meus reconhecimentos desde o mestrado em
economia na UFGRS), e as contribuições de Sílvia Quaresma, Ana
Saccol, Ivoneti da Silva Ramos, Elflay Miranda e das professoras
Maristela Sisson, Teresa Kleba Lisboa e Regina Mioto.
Momento particularmente tenso na vida de um doutorando é a
qualificação do projeto. Na ocasião, as gentis contribuições dos
professores Erni Seibel, Ivete Simionatto e Maristela Sisson, tornaram o
que parecia um tormento num momento de alento. Suas observações e
em muito contribuíram para consolidar as questões pertinentes à
pesquisa e para “limpar” o tema.
Confesso que há mais de quinze anos não fazia pesquisa de
campo e, depois desse tempo todo, houve certo “friozinho na barriga” ao
calçar o tênis, pegar o gravador e começar as entrevistas. Nas primeiras
incursões a campo (em coleta de dados sobre o PSF de Biguaçú) foi
fundamental a companhia da amiga Sílvia Quaresma. O gasto na sola de
sapatos foi compensado pelas reflexões que fazíamos sobre as nossas
pesquisas, no percurso até as unidades de saúde ou nas longas viagens
de ônibus até Biguaçú.
Esta pesquisa não teria chegado ao fim sem o desprendimento
das ACS ou da líder comunitária que dedicaram parte significativa das
suas jornadas para me levarem até os domicílios das famílias
monoparentais. Suas reflexões ampliaram meu horizonte de visão sobre
o tema. Agradeço da mesma forma aos funcionários da Secretaria
Municipal de Saúde do município de Florianópolis e às coordenadoras
das unidades de saúde e, em respeito à promessa feita, resguardo ao
longo do trabalho detalhes que possam identificar as unidades
investigadas. Por último, o meu agradecimento mais profundo às mães
10
que abriram suas casas e me receberam sem reservas e sem esperar nada
em troca, apenas na expectativa de que as políticas públicas tenham um
olhar diferenciado para elas e suas múltiplas carências.
Mais do que rito de passagem na vida acadêmica, a defesa da
tese se constituiu numa das aulas mais produtivas que esta aprendiz teve
no curso.. As contribuições e sugestões dos professores Márcia Grisotti,
Fernando Dias de Avila Pires, Jose Miguel Rasia, Izabella Barison
Mattos e Edilza Maria Ribeiro ultrapassaram os objetivos deste trabalho
e abriram novas perspectivas de pesquisa.
Encerro estes agradecimentos com as palavras de Shakespeare:
"a sabedoria e a ignorância se transmitem como doenças; daí a
necessidade de se saber escolher as companhias". Por isso, a minha
longa lista de agradecimentos na estaria completa sem mencionar o
carinho e a camaradagem ao longo do curso dos colegas e amigos
Elflay, Valdenésio, Elyane, Eduardo, Giane, Silvana, Tiago, Marilise,
Melissa, Nivaldo, Zilas, Cleusa e Bernardete.
11
“Depois de escalar um grande morro, descobrimos apenas
que há muitos outros a escalar” (Nelson Mandela)
“Porém, Deus faz forte ao cansado e multiplica as forças
ao que não tem nenhum vigor” (Isaías 40:29)
12
13
RESUMO
GELINSKI, Carmen Rosario Ortiz Gutierrez. Proteção social em saúde
para famílias vulneráveis com monoparentalidade feminina via
Estratégia Saúde da Família. Florianópolis, 2010. Tese (Doutorado) –
- Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências
Humanas. Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política.
No contexto de mudança do modelo de atenção em saúde (do modelo
hospitalocêntrico para o modelo da atenção básica) o Ministério da
Saúde criaria em 1994 o Programa Saúde da família e, posteriormente
em 1997, a Estratégia Saúde da Família, com foco nas famílias. Além da
mudança no modelo de atenção essa perspectiva na família também foi
condicionada por transformações nos modelos de proteção social que
convocam a sociedade (famílias, empresas e terceiro setor) para assumir
parte desses encargos. Só que as famílias são chamadas no momento em
que elas estão passando por profundas mudanças, com destaque para o
ingresso maciço das mulheres no mercado de trabalho e o aumento das
famílias chefiadas por mulheres. Nesse sentido, este trabalho teve por
objetivo verificar se a ESF, enquanto mecanismo chave da atenção
básica no Brasil atende as necessidades de proteção social das novas
configurações familiares, em particular das famílias vulneráveis com
chefia feminina. O trabalho foi norteado pela discussão de quatro
elementos teóricos e analíticos: a reestruturação produtiva, as
transformações dos sistemas de proteção social, a reorientação do
modelo de atenção em saúde para os cuidados primários e as mudanças
ocorridas no âmbito da família. A partir desses elementos esta tese
buscou compreender as condições que as famílias têm de dar conta da
co-responsabilidade dos cuidados, que a configuração mais recente do
sistema de proteção em saúde lhes atribui. Para isso foi realizada
pesquisa de campo junto a quatorze famílias monoparentais atendidas
por duas unidades básicas de saúde localizadas em áreas de risco da
cidade de Florianópolis/SC. Os dados foram submetidos à análise
temática do discurso. O trabalho salienta que a falta de percepção das
novas configurações familiares por parte das políticas de saúde pode ter
impacto negativo na eficácia das ações em saúde da ESF. E isso por dois
motivos. Primeiro, porque impossibilita dimensionar de maneira
adequada as conseqüências que tem a transferência de responsabilidades
sobre as famílias, as quais recaem principalmente sobre a mulher chefe
de família, já sobrecarregada em relação àquelas mulheres que
14
compartilham os cuidados com os cônjuges. E segundo, porque o
desconhecimento a respeito da diversidade de situações que se abrigam
na categoria “monoparentalidade feminina”, e das redes de suporte que
essas mulheres encontram disponíveis, pode impedir que o sistema de
saúde saiba quais os itinerários terapêuticos que as famílias seguem na
busca por tratamento médico. Além disso, o trabalho também concluiu
que enquanto os profissionais envolvidos com a saúde da família têm
suas responsabilidades claramente definidas não há o mesmo grau de
conhecimento a respeito de quais seriam as responsabilidades que cabe
às famílias executar. Nesse sentido, constatou-se que as famílias não
sabem o que seja a ESF nem conhecem a ênfase que ela têm nos
aspectos preventivos e de promoção à saúde.
Palavras-chave: Saúde da Família, monoparentalidade, proteção social
em saúde.
15
ABSTRACT
GELINSKI, Carmen Rosario Ortiz Gutierrez. Social protection in
health for vulnerable families with female single parenthood via the
Family Health Strategy. Florianópolis, 2010. Thesis (Ph.D.).
Universidade Federal de Santa Catarina - Centre of Philosophy and
Humanities. Postgraduate Program in Political Sociology.
In the context of change model of health care (from hospital-centered
model to primary care) the Ministry of Health in 1994 would create the
Family Health Program, and later in 1997, the Family Health Strategy,
with a focus on families. Besides the change in the model of attention
this prospect in the family also was influenced by changes in social
protection models that demands the society (families, businesses and
third sector) to take over some of these charges. But the families are
called when they are undergoing profound changes, especially the
massive entry of women into the labor market and the increase in
households headed by women. Thus, this study aimed to determine
whether the ESF as a key mechanism for primary care in Brazil serves
the needs of social protection of new family configurations, particularly
for vulnerable families with female head. This work was guided by the
discussion of four theoretical and analytical elements: the restructuring
of production, the transformation of social protection systems, the
reorientation of health care to primary care and changes in the family.
From these elements this thesis aims to understand the conditions that
families have to cope with the co-responsibility of the care that the latest
configuration of the protection system in health attributed to them. This
study was conducted field research in the fourteen female parenthood
families served by two primary care units located in risk areas of the city
of Florianopolis. Data were subjected to thematic analysis of the speech.
This study concludes that the lack of insight of the new family
configurations on the part of health policies can have negative impact on
the effectiveness of health interventions of the ESF. And this happens
for two reasons. First, because it unables to scale adequately the
consequences of the transfer of responsibilities has on families, which
are focused on the female household head, already overworked
compared to those women who share the care with their spouses. And
second, because the ignorance about the diversity of situations that take
shelter in the category "female parenthood”, and the support networks
that these women are available, can prevent the health system to know
16
what the therapeutic plans that they follow in pursuit for medical
treatment. Besides, this study also concluded that while the
professionals involved with family health have their responsibilities
clearly defined there is not the same degree of knowledge about what
are the responsibilities that families have to cope. In this sense, it was
found that families do not know what the ESF is nor know the emphasis
it has in the preventive aspects and health promotion.
Keywords: family health, single parenthood, social protection in health.
17
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Estado do mercado de trabalho em condições de acumulação
flexível .................................................................................................. 48
18
19
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Delimitação das famílias a serem entrevistadas dentre as
atendidas pela ESF. ............................................................................... 39
Quadro 2 – Diferenças entre a atenção médica convencional e a atenção
primária à saúde. ................................................................................... 39
Quadro 3 – As diferentes interpretações da Atenção Primária à Saúde.
............................................................................................................. 103
Quadro 4 – Diferentes linhas teóricas de família: conceitos e áreas de
interesse. ............................................................................................... 128
Quadro 5 – Categorias que embasaram a coleta dos dados. ............... 143
Quadro 6 – Fluxo de encaminhamento para serviços de emergência 24
horas – município de Florianópolis. ..................................................... 173
Quadro 7 – Usuários satisfeitos por tipo de tratamento demandado e por
qualidade da UBS. ................................................................................ 175
20
21
LISTA DE TABELAS
Tabela 1- Estrutura da população economicamente ativa (PEA), por
sexo, no Brasil, no período 1970-2002................................................ 109
Tabela 2- Brasil: Famílias residentes em domicílios particulares por
sexo da pessoa de referência da família (%)........................................ 111
22
23
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AB – Atenção Básica
ABS – Atenção Básica à Saúde
ACS – Agentes Comunitários de Saúde
AIS – Áreas de Interesse Social
ANM – Academia Nacional de Medicina
AP – Atenção Primária
APS – Atenção Primária à Saúde
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
CAP – Caixa de Aposentadorias e Pensões
CEP – Comitê de Ética em Pesquisa
CF – Constituição Federal
CONASEMS – Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde
CONASS – Conselho Nacional dos Secretários da Saúde
CONASP – Conselho Consultivo de Administração da Saúde
Previdenciária
CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeira
DGSP – Departamento Geral de Saúde Pública
DNSP – Departamento Nacional de Saúde Pública
DRU – Desvinculação das Receitas da União
ESF – Estratégia Saúde da Família
FCC – Fundação Carlos Chagas
HU – Hospital Universitário
IAP – Institutos de Aposentadoria e Pensões
IAPAS – Instituto de Administração da Previdência Social
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência
Social
INPS – Instituto Nacional de Previdência Social
INSS – Instituto Nacional do Seguro Social
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
LOAS – Lei Orgânica da Saúde
LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social
MARE – Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado
MES – Ministério da Educação e Saúde
MESP – Ministério da Educação e Saúde Pública
MPAS – Ministério da Previdência e Assistência Social
MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
MPAS – Ministério da Previdência e Assistência Social
24
NASF – Núcleo de Assistência à Saúde da Família
NOB – Norma Operacional Básica
PACS – Programa de Agentes Comunitários de Saúde
PBF – Programa Bolsa Família
PEA – População Economicamente Ativa
PME – Pesquisa Mensal de Emprego
PMF – Prefeitura Municipal de Florianópolis
PNAD – Pesquisa nacional por Amostra de Domicílios
PNAS – Política Nacional de Assistência Social
PSF – Programa de Saúde da Família
PME – Pesquisa Mensal de Emprego
SIAB – Sistema de Informação da Atenção Básica
SINPAS – Sistema Nacional de Previdência Social
SMS – Secretaria Municipal de Saúde
SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
TLCE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
U – Usuária
UBS – Unidade Básica de Saúde
ULS – Unidade Local de Saúde
VD – Visita domiciliar
25
SUMÁRIO
CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO .........................................................27
1.1 OBJETIVOS ................................................................................................34
1.2 ASPECTOS METODOLÓGICOS ..............................................................35
1.2.1 Condicionantes da pesquisa e referenciais teóricos utilizados ...........35
1.2.2 Planejamento e caracterização da pesquisa .........................................37
1.3 ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ..........................................................40
CAPÍTULO II – REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E
VULNERABILIDADE SOCIAL .......................................................43
2.1 REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA ........................................................44
2.2 VISÕES PARCIAIS DA POBREZA ..........................................................50
2.3 VULNERABILIDADE SOCIAL ................................................................56
CAPÍTULO III – CAMINHOS E DESCAMINHOS DA
PROTEÇÃO SOCIAL OFERECIDA ÀS FAMÍLIAS ....................61
3.1 PROTEÇÃO SOCIAL, WELFARE STATE E POLÍTICAS SOCIAIS .......63
3.1.1 Proteção social – de caridade a direito ..................................................63
3.1.2 Proteção social – de direito a ação de solidariedade familiar..............67
3.2 PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL: AVANÇOS E RECUOS .................70
3.3 PROTEÇÃO SOCIAL EM SAÚDE ...........................................................76
3.4 A FACE MAIS RECENTE DA PROTEÇÃO EM SAÚDE: A ESF ..........91
3.4.1 O que levaria a ESF a tornar-se a estratégia fundamental das políticas
públicas de saúde? ............................................................................................91
3.4.1.1 A descentralização das políticas públicas ..............................................91
3.4.1.2 O novo modelo de atenção em saúde .....................................................96
3.4.2 Eixos estruturantes da ESF/Desenho do programa .................................104
CAPÍTULO IV – A MULHER E A FAMÍLIA COMO
INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO SOCIAL ..............................107
4.1 FEMINIZAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO E NOVOS
ARRANJOS FAMILIARES NO BRASIL .....................................................108
4.2 PAPÉIS SOCIAIS NA FAMÍLIA E RESPONSABILIDADE PELOS
CUIDADOS .....................................................................................................113
4.3 CONTROVÉRSIAS SOBRE CONCEITO DE FAMÍLIA NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS E A DISPONIBILIDADE DE APOIO OFICIAL .......................121
4.4 A FAMÍLIA NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA ........................126
CAPÍTULO V – AS FAMÍLIAS MONOPARENTAIS
ATENDIDAS PELA ESF EM COMUNIDADES DE
FLORIANÓPOLIS ............................................................................135
26
5.1 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA DE CAMPO ...........136
5.1.1 Aspectos éticos da pesquisa com famílias vulneráveis e
monoparentais................................................................................................136
5.1.2 Definição dos sujeitos da pesquisa e entrada no campo ....................138
5.1.3 Coleta de dados e instrumentos de pesquisa ......................................142
5.1.4 Técnica de análise dos dados ..............................................................144
5.2 AS FAMÍLIAS MONOPARENTAIS VULNERÁVEIS E A ESF EM
DUAS COMUNIDADES DE FLORIANÓPOLIS .........................................146
5.2.1 Caracterização sócio-econômica das famílias ....................................147
5.2.2 As múltiplas facetas da monoparentalidade feminina - caracterização
da chefia feminina dos lares ..........................................................................149
5.2.2.1 Mulheres chefes do lar idosas, com doentes acamados ou em situação de
vulnerabilidade .................................................................................................150
5.2.2.2. Mulheres chefes de família que se encontram subordinadas a outras
mulheres – famílias inseridas em outras ..........................................................152
5.2.2.3 Mulheres chefes com cônjuges em situação de risco social decorrentes
do uso ou tráfico de drogas ou mulheres com cônjuges com problemas de
saúde.................................................................................................................153
5.2.2.4 Mulheres chefes de família com filhos pequenos ................................155
5.2.3 Concepção de família e apoio nos cuidados ........................................158
5.2.4 O itinerário terapêutico ........................................................................165
5.2.5 Satisfação com os serviços recebidos ...................................................174
5.2.6 A questão da co-responsabilidade prevista pela ESF ........................185
5.2.6.1 Mudança de modelo assistencial e a questão da co-responsabilidade na
ESF ..................................................................................................................187
5.2.6.2 Até que ponto as famílias têm conhecimento do novo modelo em
saúde? ...............................................................................................................194
5.2.6.3 Como os profissionais da ESF percebem a monoparentalidade feminina
e o repasse de responsabilidades ......................................................................203
CAPÍTULO VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................207
REFERÊNCIAS ................................................................................217
ANEXOS ............................................................................................253
ANEXO I – Áreas de Interesse Social por Unidades Locais de Saúde e
Regionais de Saúde ............................................................255
ANEXO II – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ….........265
ANEXO III – Roteiro para entrevistas …........................................................267
27
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
Esta tese busca compreender a proteção social outorgada pela
Estratégia Saúde da Família para famílias monoparentais com chefia
feminina. A análise proposta se assenta em quatro elementos. O
primeiro se refere às grandes transformações ocorridas na estrutura
produtiva, com impactos no aumento da pobreza e da vulnerabilidade. O
segundo trata das transformações societárias decorrentes do ingresso
maciço das mulheres no mercado de trabalho e das alterações ocorridas
na estrutura das famílias. A mudança nos sistemas de proteção social e o
chamado feito às famílias para assumirem parte dos encargos da
proteção é o terceiro elemento. Por último, a reorientação do modelo de
atenção em saúde – do modelo hospitalocêntrico para o modelo dos
cuidados primários em saúde - e a sua implantação no Brasil
De modo mais específico, a segunda metade do Século XX seria
palco de profundas transformações societais, tanto no âmbito da família
quanto no âmbito econômico. Em relação à família, a forma
tradicional/patriarcal cederia lugar a novos arranjos 1 com aumento de
lares conduzidos por apenas um cônjuge (monoparentalidade) e da
chefia familiar feminina, fenômenos que fazem parte de todo um leque
de mudanças recentes ocorridas no perfil das famílias. Ao respeito, Sorj
(2004) destaca as quatro mudanças mais significativas evidenciadas no
Brasil: (1) retração do tipo de família formada por casal e filhos; (2)
redução da proporção de famílias compostas por casal com filhos e
parentes (famílias extensas); (3) queda do número médio de filhos e (4)
crescimento do número de famílias compostas por mulheres chefes de
família e filhos (famílias monoparentais femininas). Sorj (2004) destaca,
ainda, que dentre os vários tipos de famílias (unipessoais, casais com ou
sem filhos ou monoparentais) é notável o nível de pobreza a que estão
submetidas as famílias monoparentais, em particular as constituídas
por mulheres e filhos: cerca de 45% delas são pobres ou vulneráveis 2.
Dados da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do IBGE (mencionados
por SANTOS, 2006) em levantamento feito entre agosto de 2002 e
agosto de 2006 confirmam os aspectos apontados por Sorj. Do total de
Adota-se neste trabalho a expressão “arranjos familiares”, usada largamente pelo IBGE, como
sinônimo de núcleos familiares.
2
No outro extremo, com menor índice de pobres, estão as unipessoais e as compostas por
casais sem filhos.
1
28
mulheres ocupadas, 78,6% recebiam menos do que três salários
mínimos, possuíam menor escolaridade e trabalhavam em ocupações
menos valorizadas. A escolaridade média das chefes de família é de 8,7
anos e quase 40% delas tinham menos de 8 anos de escolaridade, contra
27,7% do conjunto das mulheres ocupadas. Os lares chefiados por
mulheres têm renda 40,7% menor do que aqueles chefiados por homens
(SANTOS, 2006). Mais recentemente, dados da PNAD de 2009
(liberados em 2010) assinalam que 35,2% dos domicílios particulares
são chefiadas por mulheres, contra 27,3% em 2001 (FONTOURA,
PEDROSA E DINIZ, 2010).
No âmbito econômico, a re-estruturação produtiva instaurada pela
produção enxuta ou pós-fordista – que ocorreria após as três décadas
gloriosas do capitalismo (1945-1975) - mudaria não apenas a
organização da produção, mas a própria configuração do mundo do
trabalho: o emprego estável seria substituído por formas precárias e
flexíveis de trabalho (como a subcontratação) com a consequente
redução de benefícios sociais. Nessa situação, o acesso maciço de
mulheres a trabalhos precários, quase sempre com salários inferiores aos
dos homens, e a falta de perspectivas para os jovens que pretendem
ingressar ao mercado de trabalho, são duas das faces mais perversas
desse processo. O quadro de instabilidade e exclusão que se desenha a
partir daí é intensificado pelos crescentes níveis de violência e de
insegurança social.
O pós-fordismo, enquanto promotor de aumentos significativos
de produtividade, é um dos elementos que explicam o surgimento de
novas formas de pobreza. Formas estas que serão denominadas aqui de
uma “nova vulnerabilidade”. Como forma mais ampla de exclusão, ela
não se limita a aspectos econômicos, mas é delineada pelo acesso
restrito a trabalho, saúde e educação dignos, num contexto de
desproteção social, de aumento da criminalidade e de crescente
individualização. E é na família, como unidade social, que este processo
se apresenta de forma mais contundente, assim como suas
conseqüências. Num contexto de redução dos mecanismos de proteção
social, ditados pelo enxugamento de gastos sociais, a mulher passa a ser
(supostamente) “a comandante” das decisões de um conjunto expressivo
de lares e, portanto, passa a ser a responsável pela sobrevivência do seu
grupo e até pela coesão social. Passa a comandar uma instituição em
mutação com novos arranjos e cujas características (incluídas aí suas
redes sociais) irão definir de que forma as famílias satisfazem suas
necessidades.
29
Tradicionalmente a família tem representado um importante
espaço onde a reprodução e a proteção social se processam. Diante das
mudanças pelas quais as famílias vêm passando – aumento da
vulnerabilidade e do número de lares monoparentais femininos – deveria
crescer o papel do Estado como parceiro via políticas sociais. Só que
desde a crise do Estado de Bem-Estar Social nos países desenvolvidos,
nos anos setenta do século XX, os estados têm fixado prioritariamente a
sua atenção na busca de equilíbrio fiscal via redução de despesas. A
ênfase no equilíbrio fiscal tem também se transformado numa das
principais preocupações das políticas macroeconômicas dos países
menos desenvolvidos economicamente. Nesse contexto e, precisamente,
no momento em que a família mais precisa de amparo é que ela é
redescoberta para atribuir-lhe mais encargos. Como lembra Serapione
(2005, p.243) “a crise do Estado de Bem-Estar Social tem contribuído
para a redescoberta da família, das redes primárias e da comunidade
como atores fundamentais na efetivação das políticas sociais” 3. E até
mesmo em países que, a exemplo do Brasil, não tiveram efetivamente
estados de bem-estar social, a família é chamada a desempenhar tal
papel.
Se, de um lado, a redescoberta da família a desloca da sua
condição de “ilustre desconhecida nas diretrizes e programas propostos
pela política social” (CARVALHO, 1998, p.101), por outro lado, essa
redescoberta implica torná-la co-responsável (com sua carga de direitos
e responsabilidades) pelos resultados das políticas e programas. E
responsáveis, também, pela proteção social aos seus membros.
Entretanto, essa redescoberta não tem se dado de maneira muito
clara. E aqui cabem alguns destaques. O primeiro se refere ao fato de
que, diante da crise econômica, as reformas introduzidas nos modernos
sistemas de welfare state europeus implicaram na co-responsabilização
da sociedade e das famílias pelos cuidados como forma de redução de
despesas. O segundo destaque deve ser dado à configuração dos
sistemas de proteção em países como o Brasil que não possuem sistemas
estruturados de bem estar social e que também chamam a sociedade a
ser co-participe dos cuidados. O terceiro se refere às mudanças nas
categorias a serem utilizadas na elaboração das políticas públicas. Por
exemplo, quando se fala em família, de qual tipo de família se trata?
De acordo com Martin (1995) “a crise do Estado-Providência trouxe de novo à ribalta
mecanismos tradicionais de integração social. Daí a importância dos trabalhos que incidem
sobre os laços sociais, as redes de sociabilidade, o parentesco, as solidariedades intergeracionais e familiares, enquanto contributo substancial para a proteção do indivíduo”.
3
30
Quem representa as famílias monoparentais? Mulheres sem cônjuge e
com filhos ou mulheres casadas e com rendimentos superiores aos seus
pares?
Em termos de análise de políticas públicas o que está em questão
aqui é discutir a própria eficácia delas. Isto é, até que ponto uma política
pública atinge, de fato, o seu objetivo e, por conseguinte, sana uma
determinada necessidade? Sem a pretensão de se aprofundar, aqui, no
debate disponível na literatura sobre a formulação de políticas públicas 4
cabe salientar a postura de Faria (2003) quanto à importância das idéias
e do conhecimento na elaboração de políticas públicas: enquanto
“afirmação de valores [as idéias] podem especificar relações causais,
podem ser soluções para problemas públicos (...) bem como concepções
de mundo e ideologias” (JOHN, 1999). As idéias que determinam as
políticas públicas podem também representar disputas na luta pelo
poder. Nessa direção, entende-se que a análise de uma política pública
deve focar a concepção de justiça que a sustenta para depois indagar a
intenção da política, isto é verificar se ela foi “desenhada” para uma
determinada finalidade e se, portanto, pode se cobrar dela que dê conta
de certas exigências.
Nessa direção, este trabalho tem como objetivo verificar se
a Estratégia Saúde da Família, enquanto mecanismo chave de
atenção básica à saúde no Brasil, atende as necessidades de proteção
social das novas configurações familiares, com destaque para as
famílias vulneráveis com chefia feminina.
O trabalho terá como pano de fundo a análise de uma política
pública, mais especificamente um programa de saúde, a partir da lógica
na qual se assenta: o fato de ter o como público alvo a família. Em
consonância com o instrumental analítico proposto pelos estudos sobre
políticas públicas, e seguindo as premissas mencionadas por Souza
(2003, p.17), esta pesquisa buscará “concentrar a análise na natureza do
problema que a política pública busca responder”.
Embora previsto na Constituição Federal de 1988, o Sistema
único de Saúde (SUS) somente seria regulamentado em 1990, pela lei
8080. O sistema instituído visava superar a dicotomia entre ações
preventivas e curativas, presente no modelo biomédico, bem como o
atendimento a parte da sociedade e a crescente centralização do sistema.
O SUS visava alterar a configuração assistencialista dos serviços de
saúde.
4
Ver ao respeito, Gelinski e Seibel (2008).
31
Enquanto novo modelo de atenção a sustentar o SUS, a ênfase na
Atenção Básica já havia sido proposta desde a Conferência Internacional
sobre Cuidados Primários em Saúde, realizada em Alma Ata, no ano de
1978. Sob o lema Saúde para Todos no Ano 2000, essa Conferência
propôs um modelo com um sistema de saúde abrangente que tivesse por
foco a prevenção, a promoção, a cura e a reabilitação. E isso como parte
de um processo amplo de desenvolvimento social e econômico, em que
outros setores deveriam ser envolvidos.
No Brasil, a Atenção Básica à Saúde (ABS), ao incluir a
prevenção e manutenção da saúde, visava superar o modelo
hospitalocêntrico centrado na doença e na cura. O novo modelo se
caracteriza “(...) por um conjunto de ações de saúde, no âmbito
individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a
prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a
manutenção da saúde”. E ele se orienta “pelos princípios da
universalidade, da acessibilidade e da coordenação do cuidado, do
vínculo e continuidade, da integralidade, da responsabilização, da
humanização, da equidade e da participação social” (BRASIL, 2006,
p.12). A atenção básica à saúde
(...) é desenvolvida por meio do exercício de
práticas gerenciais e sanitárias democráticas e
participativas, sob forma de trabalho em equipe,
dirigidas a populações de territórios bem
delimitados,
pelas
quais
assume
a
responsabilidade sanitária, considerando a
dinamicidade existente no território em que
vivem essas populações. Utiliza tecnologias de
elevada complexidade e baixa densidade, que
devem resolver os problemas de saúde de maior
freqüência e relevância em seu território
(BRASIL, 2006, p.12).
Em 1994 o Ministério da Saúde implanta o Programa de Saúde da
Família (PSF). Programa que a partir de 1997 passaria a ser denominado
de Estratégia Saúde da Família (ESF) e se constituiria em base da
reorganização da Atenção Básica à Saúde. O modelo da ESF coloca as
famílias no centro da agenda das políticas em saúde e para isso
pressupõe o estabelecimento de laços de compromisso e de coresponsabilidade nas ações em saúde. As equipes de Saúde da Família
– compostas por médico, enfermeira e ACS e responsáveis por um
32
número determinado de famílias – são encarregadas de aproximar os
serviços de saúde da população. Das equipes de SF devem partir as
ações de prevenção e promoção da saúde. Ações que devem contar com
a participação ativa da população. Enquanto estratégia de consolidação
da Atenção Básica no país, a ESF coloca as famílias no papel de coresponsáveis pela geração dos cuidados.
Entretanto, a questão de ter a família como objeto de atenção tem
algumas implicações. A primeira delas diz respeito à concepção de
família que perpassa o programa e a segunda trata da responsabilidade
que é repassada às famílias, mesmo que elas se encontrem num severo
quadro de vulnerabilidade social:
(1) Quanto à caracterização da família, Ribeiro (2004, p.661)
levanta alguns questionamentos sobre a inclusão da família na agenda
da atenção básica de saúde: “(...) de que família se fala? Há
entendimento entre os diversos agentes da assistência e outros, sobre a
abordagem da família no contexto da atenção básica?”. A autora
considera que
(...) é possível identificar ambivalências,
diferenças, contradições, insuficiências, na forma
de efetuar a abordagem da família. Na maioria
das vezes, a família é abordada de forma
parcelizada ou identificada através de
representantes e substitutivos, ou ainda, como
referência genérica no âmbito das políticas
sociais e/ou é tomada como problema e
transformada em objeto terapêutico. Na relação
cuidado x abordagem, o cuidado pode ser
procedido ao indivíduo no contexto da família ou
a família com um indivíduo no contexto, ou
ainda não ser procedido, na circunstância dessa
ser apenas uma denominação adotada pelo PSF.
(2) No que se refere à responsabilidade crescente que a ESF
atribui às famílias, Campos e Matta (2007) questionam se o novo modo
de intervenção irá fortalecer ou resguardar as famílias ou, se ao invés
disso, será uma estratégia para vigiá-lás, sobrecarregá-las ou
responsabilizá-las. (cf. também com SERAPIONE, 2005).
Ambas as questões estão intimamente ligadas, pois a nova
definição de direitos e responsabilidades que estruturam a ESF tem que
estar alicerçada no conhecimento da realidade dessas famílias e suas
novas configurações. Entende-se aqui que conhecer as famílias implica
33
saber quais os recursos (sociais e econômicos) de que dispõem para
enfrentar suas necessidades de saúde. Nesse sentido é que a reflexão
proposta neste trabalho deve ajudar a responder aspectos de um
conjunto de questionamentos 5, dentre eles:
- Quais os problemas que a Estratégia Saúde da Família busca
responder? (desenho do programa)
- Que tipo de demandas as famílias fazem para a área da saúde?
- Até que ponto as necessidades das famílias são contempladas no
novo modelo assistencial em saúde assentado na ESF?
- Quais os deveres das famílias e quais os recursos de que
dispõem para enfrentar as suas necessidades de saúde?
- Qual a estrutura das famílias e de que modo o desempenho das
suas funções é viabilizado pela Estratégia Saúde da Família? E, ainda,
de que forma os resultados da ESF podem ser impactados pelas novas
estruturas familiares?
- Qual o papel da mulher na sociedade em relação aos seus
doentes na família?
- A nova função que a ESF atribui às famílias não se trataria de
uma transferência direta dessas funções para as mulheres? Isto é, o novo
desenho estaria jogando nas mãos das famílias e mais especificamente
das mulheres a resolução dos seus problemas de saúde?
- Em que medida a ESF vem estabelecendo suas prioridades,
tendo em vista que as famílias têm características (resolvem suas
necessidades em redes, aumento da vulnerabilidade e da
monoparentalidade, etc.) e, portanto, necessidades diferenciadas?
Em síntese, mesmo que a ESF seja uma proposta de mudança no
paradigma da saúde-população em geral para a população-família, será
que a forma como que é concebida e operacionalizada leva em
consideração as novas especificidades das famílias contemporâneas? E,
nesse sentido, ela não estaria mais sobrecarregando as famílias do que
resolvendo os seus problemas de saúde?
Dentre os trabalhos sobre a ESF parece que há um interesse
crescente em avaliar a posição dos usuários quanto aos serviços, ao
acesso, ao acolhimento ou às visitas domiciliares (TRAD e BASTOS,
5
De acordo com Triviños (1987, p.107), as questões de pesquisa podem envolver
subentendidamente a colocação de alguma hipótese. Ela “(...) representa o que o investigador
deseja esclarecer. Nesse sentido, a questão de pesquisa é profundamente orientadora do
trabalho do investigador. (...) A questão de pesquisa deve reunir algumas condições que
permitem não ter dúvida alguma sobre o que ala significa: precisão, clareza, objetividade, etc. e
deve servir aos propósitos manifestos e latentes da pesquisa. A questão de pesquisa parte das
idéias colocadas na formulação do problema e dos objetivos da investigação.”
34
1998; TRAD et al., 2002; GIACOMOZZI e LACERDA, 2006; SOUZA
et al., 2008, OLIVEIRA E BORGES, 2008; OLIVEIRA e MARCON,
2007; MANDÚ et al., 2008, entre outros). Normalmente as avaliações
se detêm em aspectos epidemiológicos ou de cobertura das ações do
programa, mas não de verificar como o cotidiano dessas famílias pode
estar sendo afetado pela configuração do programa. Com este trabalho
pretende-se compreender se haveria adequação entre as propostas da
política pública e as necessidades de fato existentes da população-alvo.
A questão de considerar as famílias, e em particular as mulheres,
elementos importantes na execução das ações de políticas públicas tem
sido a tônica desde a crise do modelo keynesiano dos anos 1970. Cabe
agora avançar na discussão sobre se essas mulheres (e as suas famílias)
têm a retaguarda suficiente para responder a encargos que as políticas
públicas lhes atribuem agora que elas, pela sua inserção crescente no
mercado de trabalho, estão numa condição diferente daquela enfrentada
pelas suas mães ou avós.
1.1 OBJETIVOS
O presente estudo tem por objetivo geral verificar se a ESF
atende as necessidades de proteção social em saúde de famílias com
monoparentalidade feminina do município de Florianópolis e a
participação das mesmas no que se refere à co-responsabilidade nos
cuidados proposta pela ESF. A partir daí, pretende-se hipotetizar que o
novo desenho da Atenção Básica, plasmada na ESF, estaria
sobrecarregando as famílias, e em particular as chefiadas por mulheres,
ao transferir-lhes a co-responsabilidade pelos cuidados. Adicionalmente,
a hipótese é que a falta de clareza e conhecimento quanto ao papel e à
situação atual das famílias no novo desenho da política de saúde tende a
afetar a eficácia dessa política pública.
Para dar conta da tarefa proposta tem-se os seguintes objetivos
específicos:
1. Identificar a analisar as noções de pobreza e vulnerabilidade
social, no contexto das transformações produtivas ocorridas
desde os anos 1960.
2. Estudar a questão da proteção social em saúde inserida na
discussão mais ampla das políticas sociais e dos sistemas de
welfare state, com destaque para as transformações mais
recentes que apontam para o repasse de responsabilidades
para as famílias ou empresas, própria do welfare mix ou do
35
pluralismo de bem-estar. A partir daí, busca-se entender as
características e as condicionalidades a que tem estado
submetidas a política de saúde no país.
3. Analisar o desenho da Estratégia Saúde da Família, para
entender que tipo de demandas ela busca resolver.
4. Descrever e analisar a família, suas funções e transformações
mais recentes, para problematizar as implicações que tem
colocar a família como centro de uma política de saúde e
instrumento de proteção social
5. Analisar especificidades relativas à saúde de famílias
vulneráveis e com monoparentalidade feminina junto a
famílias com esse perfil, atendidas por unidades de Saúde da
Família do município de Florianópolis.
1.2 ASPECTOS METODOLÓGICOS
Nesta seção serão descritos os procedimentos metodológicos que
nortearam este trabalho de tese. A intenção é assinalar os condicionantes
teóricos a serem discutidos nos capítulos subseqüentes como
fundamento desta pesquisa. É importante destacar que aspectos relativos
à coleta e tratamento dos dados de campo serão esclarecidos no quinto
capítulo. Desde já cabe adiantar que foram entrevistadas quatorze
famílias monoparentais atendidas por duas Unidades Locais de Saúde
(ULS) localizadas em áreas de risco do município de Florianópolis/SC.
1.2.1 Condicionantes da pesquisa e referenciais teóricos utilizados
Antes de detalhar os procedimentos metodológicos e o aporte
teórico que dá suporte a este trabalho, cabe fazer menção aos elementos
que embasam o mesmo. Para isso é importante recordar os quatro
elementos que Minayo (2004) considera as balizas dentro das quais se
processa o conhecimento. A primeira delas é o seu caráter
aproximado. Isto é “o conhecimento é uma construção que se faz a
partir de outros conhecimentos sobre os quais se exercita a apreensão, a
crítica e a dúvida” (p.89). O segundo ponto se refere à inacessibilidade
do objeto. Como as idéias que se fazem sobre os fatos são imprecisas
isso requer que haja uma constante definição e redefinição do objeto,
processo em que assume papel central o conhecimento de outras
percepções e de outros trabalhos. A terceira baliza se refere à
vinculação entre pensamento e ação. “Nada pode ser intelectualmente
36
um problema, se não tiver sido em primeira instância, um problema da
vida prática. Isto quer dizer que a escolha de um tema não emerge
espontaneamente, da mesma forma que o conhecimento não é
espontâneo. Surge de interesses e circunstâncias socialmente
condicionadas” (MINAYO, 2004, p.90). A quarta baliza se refere ao
“caráter originariamente interessado do conhecimento ao mesmo tempo
que sua relativa autonomia. O olhar sobre o objeto está condicionado
historicamente pela posição social do cientista e pelas correntes de
pensamentos em conflito na sociedade” (p.90).
O olhar interdisciplinar para o objeto desta pesquisa esteve
condicionado pela formação da pesquisadora, em que aspectos
econômicos e sociológicos estiveram presentes, bem como de
conhecimentos adquiridos em leituras e disciplinas cursadas nos cursos
de Sociologia Política, Saúde Pública e Serviço Social da UFSC. Como
afirma Minayo (1994, p.91). “As correntes intelectuais diversas não se
desenvolvem isoladamente, mas se afetam e se enriquecem
mutuamente”.
Olhar para a família, para as famílias de baixa renda em
particular, e para o trabalho feminino faz parte das preocupações que
têm norteado o exercício da nossa atividade acadêmica 6. As
transformações das famílias, suas lutas e desafios, bem como os papéis
que são ali desempenhados dentro delas serviram de base para a reflexão
sobre as necessidades de proteção social que famílias vulneráveis ou em
risco social enfrentam. Além disso - e talvez o elemento que motivou
esta pesquisa em particular - a convivência com famílias vulneráveis e
com perfil monoparental aguçou o olhar para aspectos que as tornam
peculiares, se comparadas a famílias biparentais. Abandono, carências,
lutas, estratégias específicas de sobrevivência são algumas dessas
características. Em especial, a situação de abandono emocional que
essas famílias enfrentam parece ser maior que o abandono econômico.
Entretanto, essa carência de apoio em muitos casos dá lugar a toda uma
rede estruturada, composta por vizinhos ou parentes, que brindam apoio
nos cuidados. Essa complexa rede de relações sociais traz à tona
elementos próprios de classes subalternas e de famílias profundamente
fragilizadas como as monoparentais, em que as relações de apoio
parecem estar mais fortemente presentes do que nas classes com maior
poder econômico.
6
Ver, por exemplo, Gelinski (2003), Gelinski e Ramos (2004), Miranda e Gelinski (2005) e
Gelinski e Pereira (2005).
37
Se o universo das famílias monoparentais é frágil, o que ocorre
quando problemas de saúde se apresentam? Que mecanismos de
proteção em saúde encontram-se à disposição das famílias para enfrentar
essas adversidades? Responder a essas interrogantes significou
mergulhar nas discussões teóricas sobre as transformações das famílias
bem como a discussão maior das transformações na estrutura produtiva
e societal com efeitos claros na elevação das condições de pobreza da
população e da inserção crescente de mulheres no mercado de trabalho.
Nessas circunstâncias, foi necessário se deter na reflexão a respeito dos
sistemas de proteção social e de que forma específica a saúde se
constitui em elemento importante desses sistemas. Nesse ponto a
discussão teve que passar pela discussão sobre repasse de
responsabilidades que caracteriza os modernos sistemas de proteção
social, denominados, por esse motivo, de pluralismo de bem-estar.
1.2.2 Planejamento e caracterização da pesquisa
Esta pesquisa, de corte descritivo e analítico, passou por um
momento exploratório.
A fase exploratória da pesquisa é tão importante
que ela em si pode ser considerada uma pesquisa
exploratória. Compreende a etapa de escolha do
tópico de investigação, de delimitação do
problema, de definição do objeto e dos objetivos,
de construção do marco teórico conceitual, dos
instrumentos de coleta de dados e da exploração
do campo. (MINAYO, 2004, p.89).
Minayo (2004) esclarece que nessa primeira fase exploratória há
alguns elementos que devem estar presentes. Se refere, mais
especificamente, (1) à definição de conceitos fundamentais a serem
usados na construção do quadro teórico da pesquisa; (2) ao esforço
subseqüente de construção do objeto de pesquisa “um labor teórico e
como esforço prático de informação, crítica e experiência” (p.91) e, por
último, (3) à discussão sobre o instrumento a ser usado para obtenção
dos dados empíricos e à entrada exploratória em campo.
Primeiro passo importante então é definir o objeto e o problema
de pesquisa. Para Selltiz et al. (1960) depois da definição precisa do
problema a ser estudado urge planejar a pesquisa em consonância com
os objetivos que motivam a mesma. A definição clara dos objetivos
38
perseguidos com a pesquisa irá condicionar a coleta dos dados. Os
autores mencionam que é possível ter quatro tipos de objetivos nos
trabalhos de pesquisa: (1) aqueles que buscam familiarizar-se com o
fenômeno, formular melhor uma questão ou definir hipóteses – caso dos
estudos exploratórios; (2) os que pretendem caracterizar uma situação,
um grupo ou um indivíduo - considerados estudos descritivos; (3) os que
buscam verificar a frequência com que algo ocorre – também
considerados descritivos e (4) os que visam verificar uma hipótese de
relação causal entre variáveis – denominados de estudos experimentais
ou quasi-experimentais.
A motivação deste trabalho é avançar na compreensão e
descrição do cotidiano das famílias em termos de saúde e sobre a
possibilidade da ESF estar atendendo as demandas para as quais ela foi
criada. A análise será feita a partir de casos que permitam ampliar o
conhecimento sobre a percepção que as famílias - em particular as
monoparentais - têm das suas demandas de saúde e da responsabilização
nos cuidados que norteia o novo modelo em saúde.
A pesquisa se configura, portanto, como descritiva e analítica
(SELLTIZ et al., 1960; TRIVIÑOS, 1987) e qualitativa (MINAYO,
1994).
Para Minayo (1994), a pesquisa qualitativa diferente de uma
pesquisa quantitativa (que busca representatividade da população para
generalização de conceitos teóricos) preocupa-se “menos com a
generalização e mais com o aprofundamento e a abrangência da
compreensão seja de um grupo social, de uma organização, de uma
instituição, de uma política ou de uma representação” (p.102).
Conforme será detalhado no capítulo 5, a coleta dos dados será
feita a partir de um recorte dentre a população vulnerável atendida pela
ESF do município de Florianópolis. Desde já cabe salientar que para
fins deste trabalho que o conceito de vulnerabilidade está associado às
fragilidades decorrentes da inserção na estrutura produtiva. Nessa
situação a vulnerabilidade social está associada às famílias que vivem
em áreas de risco social e se caracterizam pela baixa escolaridade,
condições inadequadas de moradia, baixo acesso a serviços públicos,
dentre outros7. Conforme será detalhado no capítulo 5, em termos
7
Para a priorização das ações no processo de expansão da Atenção Básica,. Em 2006
Florianópolis possuía 50.735 moradores em áreas de interesse social (AIS), ou seja, em torno
de 12,5% da população. A Secretaria Municipal de Saúde classifica as áreas sanitárias de
acordo com critérios de risco social. Os critérios de risco adotados pelo Setor de
Geoprocessamento são: “(1) Renda familiar até três salários mínimos. Predominância da renda
39
operacionais serão consideradas famílias vulneráveis aquelas que
moram em áreas consideradas de interesse social no município de
Florianópolis, conforme critérios estabelecidos pela Secretaria
Municipal de Habitação e Saneamento Ambiental da Prefeitura 8.
Em termos esquemáticos entende-se que a população atendida
pela ESF é composta tanto por indivíduos ou famílias vulneráveis
quanto por aquelas não vulneráveis. Dentre do público alvo da Saúde da
Família também é possível distinguir famílias biparentais, com a
presença de ambos os pais, e famílias monoparentais, com presença de
apenas um dos genitores, quase sempre a mãe (Quadro 1).
Quadro 1. Delimitação das famílias a serem entrevistadas dentre
as atendidas pela ESF.
Condição de
vulnerabilidade
VULNERÁVEIS
NÃO
VULNERÁVEIS
Tipo de família
BIPARENTAIS
MONO- PARENTAIS
A opção por estudar o segmento vulnerável da população, e em
particular as famílias monoparentais, está ligada ao fato, já assinalado
per capita abaixo da linha de pobreza (R$ 180,00/ mês – IPEA); (2) Unidades habitacionais
precárias isoladas ou em agrupamento, apresentando uma distribuição espacial caótica; (3)
Unidades habitacionais precárias localizadas em áreas de risco; (4) Encostas de morro
suscetíveis a desmoronamento; (5) Áreas de preservação permanente, áreas verdes, nascentes
de rios e córregos; (6) Áreas de mangues e dunas; (7) Áreas próximas a leitos de rios, córregos,
canais e praias, suscetíveis a inundação; (8) Posse irregular de áreas públicas e/ou privadas;
áreas desprovidas parcial ou totalmente de infra-estrutura (água tratada, rede elétrica, sistema
de esgoto sanitário, rede pluvial, pavimentação, coleta de lixo); e (9) Áreas desprovidas parcial
ou totalmente de serviços e equipamentos públicos (creches, escolas, postos de saúde, posto
policial etc)”.
8
Verificar diagnóstico elaborado pela Secretaria de Habitação, Trabalho e Desenvolvimento
Social da Prefeitura Municipal de Florianópolis.
http://www.pmf.sc.gov.br/habitacao/publicacoes_/planejamento_habitacional/diagnostico_ais_
1.pdf
40
anteriormente, de que o nível de pobreza das famílias chefiadas por
mulheres é significativo. Além disso, é pressuposto básico desta tese
que a necessidade de proteção social é mais urgente quanto maior for o
grau de carência ou vulnerabilidade.
Em termos de variáveis de análise dois elementos serão
fundamentais para esta investigação: a compreensão da questão da
monoparentalidade feminina (e suas implicações nos cuidados em
saúde) e a questão do chamado feito às famílias para assumirem a coresponsabilidade proposta pela ESF.
Este trabalho assume que, em função da universalidade do SUS e
da ESF, se há transferência de responsabilidades ela deve ocorrer para
todos os usuários. No entanto, as conseqüências dessa transferência
podem estar sendo mais sentidas pela população vulnerável e com
chefia feminina que não tem alternativa para satisfazer suas demandas
de saúde. A intenção não é reforçar na análise o caráter focalizado que
esta política parece ter, mas apenas ver de que forma o programa pode
estar sendo adequado ou não para proteger esses grupos populacionais
específicos e com isso cumprir a diretriz da equidade, presente nas
diretrizes do SUS.
1.3 ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
Esta tese está organizada em seis capítulos incluindo esta
introdução. Os capítulos dois a quatro tratam dos aspectos teóricos e
históricos que darão sustentação à análise empírica com famílias
monoparentais a ser realizada no capítulo cinco. O último capítulo
resgata as conclusões do trabalho e tece algumas considerações finais
De modo mais específico, o segundo capítulo trata das
transformações ocorridas no âmbito produtivo desde os anos 1960 e os
impactos no mercado de trabalho, com destaque para a precarização e o
desemprego. Esse será o pano de fundo para discutir o que se
consideram aqui como visões parciais da pobreza - aquelas que
apreendem o fenômeno da pobreza a partir das suas características mais
aparentes como níveis de renda ou dotação de capital humano e que
tendem a culpabilizar o indivíduo pela sua condição de miséria. Por
último apresenta-se a noção da vulnerabilidade como mais adequada
para compreender a situação das famílias subalternizadas que são objeto
desta pesquisa.
O terceiro capítulo visa compreender a noção de proteção social
para construir um base analítica a partir da qual será estudada a
41
Estratégia Saúde da Família, alçada à condição de mecanismo
fundamental na oferta de proteção social em saúde no país. O capítulo
resgata o debate em torno das características dos sistemas de proteção
europeus (que em certa forma serviriam de referência para o sistema de
proteção brasileiro) e as mudanças pelas quais esses modelos vêm
passando desde a crise do modelo keynesiano na metade dos anos 1970.
A ênfase nessas mudanças está no chamado para que a sociedade e as
famílias assumam parte dos encargos da proteção que até então cabiam
ao Estado. Pari passu à refamilização da proteção social esse capítulo se
detém na evolução e análise da proteção social em saúde com destaque
para os elementos que determinariam a constituição da ESF em
estratégia fundamental para a reorientação do modelo em saúde
assentado na Atenção Básica.
O quarto capítulo visa compreender as implicações de colocar a
família como centro de uma estratégia de saúde, pois se trata de um ente
em mutação, aspecto esse que se revela pelas controvérsias em torno da
definição de um conceito unívoco de família, dos papéis que são
desempenhados pelos seus membros ou até mesmo da operacionalização
do conceito nas políticas públicas, e na ESF em particular. A intenção é
resgatar aspectos que permitam, no capítulo cinco, verificar se a política
pública em análise tem clareza dos tipos de famílias que são objeto da
sua prática e das implicações que pode ter o chamado à coresponsabilidade dados as múltiplos encargos que as mulheres executam
na intimidade das famílias.
O quinto capítulo inicia com o percurso metodológico trilhado
para empreender a coleta e tratamento dos dados empíricos. Após isso
procede-se à análise das categorias que emanaram das entrevistas, com
destaque para os tipos de famílias monoparentais detectados por esta
pesquisa, para as práticas terapêuticas desenvolvidas e para a
compreensão do significado da co-responsabilidade prevista pela ESF.
O sexto capítulo retoma as preocupações dos capítulos iniciais,
resgata as linhas de argumentação e os principais resultados e traça
algumas considerações finais.
42
43
CAPÍTULO II
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E VULNERABILIDADE
SOCIAL
A despeito do seu caráter pretensamente universal, a política de
saúde no Brasil, e mais especificamente a Estratégia de Saúde da
Família, parece ter o seu foco na população de baixos recursos sócioeconômicos. No geral, o alvo prioritário das políticas sociais tem sido as
camadas mais desfavorecidas da sociedade, as que têm algum tipo de
carência ou as que sofrem de exclusão. É por isso que as políticas
sociais normalmente estão permeadas de um conjunto de palavras que
retratam condições de vida precária: “exclusão social”, “pobreza”,
“marginalidade”, ou ainda “vulnerabilidade social”. Embora esses
termos possam ser considerados sinônimos, cada um deles naturaliza um
paradigma conceitual a respeito dos seus determinantes ou causas.
Interessa neste capítulo discutir os condicionantes da condição de
pobreza de populações precarizadas. Não com a intenção de construir
uma base analítica que legitime o caráter minimalista ou focalizado que
na prática o SUS parece ter, mas para entender as condições de trabalho
a que a população empobrecida se encontra submetida.
Entende-se aqui que a vulnerabilidade é um fenômeno amplo que
não pode ser dimensionado apenas por limites de renda pré-definidos.
As restrições que as famílias vulneráveis sofrem vão além de questões
monetárias. Entender o que significa de fato a condição de vulnerável,
para além das visões parciais da pobreza, requer vasculhar as origens
desse fenômeno na questão mais ampla da reestruturação produtiva.
Esta discussão será o pano de fundo para entender, no próximo capítulo,
os desafios postos para as famílias pelas transformações ocorridas nos
regimes de bem-estar social em que pese a sua condição de
vulnerabilidades são chamadas a assumir parte da responsabilidade
pelos cuidados.
A intenção deste capítulo é estabelecer que a condição de
vulnerabilidade é fruto de processos de ordem estrutural modulados por
transformações que ocorreram no âmbito produtivo desde os anos 1960.
Nessa direção, importa desde já ir adiantando que se a noção de
vulnerabilidade até então esteve ligada à ausência de emprego, na
atualidade essa condição se amplia mesmo para aqueles que estão
inseridos no mercado de trabalho.
44
Em termos estruturais, este capítulo está organizado em três
seções. A primeira trata do processo que se instala no âmbito da
produção e que passaria a ser conhecida como a Reestruturação
Produtiva. O objetivo dessa seção é mostrar que a crise do padrão
produtivo fordista terá impactos significativos no mercado de trabalho,
cujas características mais importantes serão a precarização e o
desemprego e, em certa forma, o aumento do trabalho feminino. A
segunda seção discute as visões parciais da pobreza. Parciais porque se
limitam a definir a pobreza a partir das suas características mais
evidentes (baixa dotação de capital humano, escassez de renda ou
capacidade ou, ainda, de denotar comportamentos próprios de uma
classe subalterna). O argumento a ser trabalhado é que essa percepção
estreita do fenômeno da pobreza tende a culpabilizar os pobres pela sua
situação e escamoteia uma análise mais profunda da sua real causa: a
exclusão como tônica da sociedade moderna, profundamente marcada
pela falta de proteção social mesmo para aqueles que se encontram
empregados. Para além das visões consideradas parciais no estudo de
populações pobres ou subalternizadas na terceira seção se discute a
noção de vulnerabilidade, abordagem que terá destaque neste trabalho.
2.1 REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA
A reestruturação produtiva - substituição dos métodos de
racionalização da produção fordista/taylorista pela nova organização
industrial baseada no toyotismo - impulsionou a construção de um
espaço diferenciado para atuação dos trabalhadores.
O modelo taylorista-fordista de produção baseava-se na produção
em massa e nos princípios da administração científica de Taylor (tempos
e movimentos). Demarcava, ainda, os limites entre a concepção e a
execução do trabalho. A crise que se instala nesse modelo por volta de
1960 levaria a uma transformação global na organização da produção e,
por consequência, na organização do trabalho. De acordo com Harvey
(1992, p. 135):
Parece que havia problemas sérios no fordismo já
em meados dos anos 60. Na época, a recuperação
da Europa Ocidental e do Japão tinha se
completado, seu mercado interno estava saturado
e o impulso para criar mercados de exportação
para os seus produtos excedentes tinha de
começar. (...) A profunda recessão de 1973,
45
exacerbada
pelo
choque
do
petróleo,
evidentemente retirou o mundo capitalista do
sufocante torpor da „estagflação‟ (estagnação da
produção de bens e alta dos preços) e pôs em
movimento um conjunto de processos que
solaparam o compromisso fordista. Em
conseqüência, as décadas de 70 e 80 foram um
conturbado período de reestruturação econômica
e de reajustamento social e político.
As mudanças em curso no ambiente econômico criaram as
condições para a adoção do padrão flexível de produção - toyotismo ou
pós-fordismo - que, nas palavras de Harvey (1992, p.140),
(...) é marcada por um confronto direto com a
rigidez do fordismo. (...) se apoia na flexibilidade
dos processos de trabalho, dos mercados de
trabalho, dos produtos e padrões de consumo.
Caracteriza-se pelo surgimento de setores de
produção inteiramente novos, novas maneiras de
fornecimento de serviços financeiros, novos
mercados e, sobretudo, taxas altamente
intensificadas de inovação comercial, tecnológica
e organizacional. A acumulação flexível envolve
rápidas
mudanças
dos
padrões
de
desenvolvimento desigual, tanto entre setores
como entre regiões geográficas, criando, por
exemplo, um vasto movimento no emprego no
chamado „setor de serviços‟, bem como
conjuntos industriais completamente novos em
regiões até então subdesenvolvidas (tais como a
„Terceira Itália‟, Flandres, os vários vales e
gargantas do silício...).
O Toyotismo, por ter sido responsável pela recuperação da
economia japonesa no pós-guerra, constituiria-se num possível remédio
para a crise pela qual passava o capitalismo. Ele se distingue do
fordismo nos seguintes aspectos (ANTUNES, 1998, p.90):
1) É uma produção mais diretamente vinculada
aos fluxos da demanda;
2) é variada, bastante heterogênea e
diversificada;
46
3) fundamenta-se no trabalho operário em
equipe, com multivariedade e flexibilidade de
funções, na redução das atividades improdutivas
dentro das fábricas e na ampliação e
diversificação das formas de intensificação da
exploração do trabalho;
4) tem como princípio o just in time, o melhor
aproveitamento possível do tempo de produção e
funciona segundo o sistema de kanban, placas ou
senhas de comando para reposição de peças e de
estoque, que no toyotismo, devem ser mínimos.
Enquanto na fábrica fordista cerca de 75% era
produzido no seu interior, na fábrica toyotista
somente cerca de 25% é produzido no seu
interior. Ela horizontaliza o processo produtivo e
transfere a ‟terceiros‟ grande parte do que
anteriormente era produzido dentro dela.
A causa das mudanças na produção ocorridas desde meados dos
anos 1970 têm sido explicadas de várias formas, como bem mostra
Castells (2005): (i) as mudanças resultam da exaustão da produção em
massa (PIORE e SABEL (1984); (ii) as novas formas organizacionais
foram respostas à crise de lucratividade pela qual atravessava o
capitalismo (HARRISON, 1994); (iii) a transição do fordismo ao pósfordismo faz parte de um conjunto de transformações não apenas no
âmbito da produção, mas também no consumo e na concorrência
(CORIAT, 1990) e (iv) a definição de que os elementos fundamentais
das novas empresas de Era da Informação são a inteligência
organizacional, o aprendizado organizacional e a administração de
conhecimentos (TUOMI, 1999). Em última instância, o principal
objetivo era “(...) lidar com a incerteza causada pelo ritmo veloz das
mudanças no ambiente econômico, institucional e tecnológico da
empresa, aumentando a flexibilidade em produção, gerenciamento e
marketing” (CASTELLS, 2005, p. 211). Em termos de processos de
trabalho é introduzido o “modelo de produção enxuta”, que economiza
trabalho via automação do mesmo, ou via redução de camadas
administrativas.
Se para as empresas a produção enxuta parece ter sido a
responsável pela recuperação da economia da metade dos anos 1970
para os trabalhadores significaria o início de drásticas mudanças no
mercado de trabalho. O aumento da competição e o enfraquecimento
dos sindicatos - decorrente da ampliação do excedente de mão-de-obra
47
desempregada – abririam espaço para todo um leque de novas formas de
contratos de trabalho, caracterizados pela flexibilidade, como a
terceirização e os empregos em tempo parcial.
A reconfiguração do emprego regular, face ao crescente trabalho
em tempo parcial, temporário ou subcontratado é resultado da redução
do emprego no “grupo central de trabalhadores”, como são
denominados por Harvey (1992) aqueles empregados em tempo integral
necessários à empresa no longo prazo (Figura 1). Estes, além de
segurança no emprego, gozam de pensão, seguro, estratégias de
promoção e qualificação e outras vantagens indiretas. Em contraste com
os trabalhadores do núcleo central, os “trabalhadores da periferia do
sistema” compõem dois grupos. O primeiro compreende aqueles “(...)
empregados em tempo integral com habilidades facilmente disponíveis
no mercado de trabalho, como pessoal do setor financeiro, secretárias,
pessoal das áreas de trabalho rotineiro e de trabalho manual menos
especializado” O segundo é composto por aqueles que “(...) oferece[m]
uma flexibilidade numérica ainda maior e inclui empregados em tempo
parcial, empregados casuais, pessoal com contrato por tempo
determinado, temporários, [etc.] (...) tendo ainda menos segurança de
emprego do que o primeiro grupo periférico”. E conclui “a mudança
mais radical tem seguido a direção do aumento da subcontratação (...)
ou do trabalho temporário - em vez do trabalho em tempo parcial. (...) a
atual tendência dos mercados de trabalho é reduzir o número de
trabalhadores „centrais‟ e empregar cada vez mais uma força de trabalho
que entra facilmente e é demitida sem custos quando as coisas ficam
ruins”(p.144).
Sem dúvida, a era toyotista impôs mudanças significativas para o
mundo do trabalho. Diante do novo quadro, os integrantes da classe
trabalhadora precisariam se sujeitar às condições a partir daí impostas.
Os trabalhadores da era Fordista/taylorista, que até então desfrutavam de
estabilidade no emprego passariam a enfrentar uma nova dinâmica no
mercado de trabalho, em que a insegurança seria a característica
principal.
Ao mesmo tempo em que para os trabalhadores as mudanças na
estrutura produtiva redundariam em formas precarizadas de trabalho, em
termos
setoriais
haveria,
entre
1970-90,
uma
clara
recomposição/reconfiguração do emprego do setor industrial em direção
ao setor de serviços. O deslocamento gradual do emprego industrial para
os serviços é semelhante ao que ocorrera, entre os anos 1920-70, em que
o emprego agrícola fora suplantado pelos empregos do setor secundário
48
(CASTELLS, 2005). Só que desta vez, as contratações no setor serviços
seriam marcadas pela subcontratação, pela terceirização ou pelo
emprego em tempo parcial.
Figura 1. Estado do mercado de trabalho em condições de acumulação
flexível.
Fonte: Harvey (2006, p.143) a partir de C. Curson: Flexible patterns of work. Institute
of Personnel Management.
A modo de balanço, Antunes resume as conseqüências das
mudanças na organização da produção. Mudanças, estas, responsáveis
por desempregar ou precarizar cerca de um terço da força de trabalho
mundial (1998, p.93, grifos nossos):
1) diminuição do operariado manual, fabril e
estável, típico do binômio taylorismo/fordismo e
da fase de expansão da indústria verticalizada e
concentrada;
2) aumento acentuado do novo proletariado, das
inúmeras formas de subproletarização ou
precarização do trabalho, decorrentes da
49
expansão do trabalho parcial, temporário,
subcontratado, terceirizado, e que tem-se
intensificado em escala mundial, tanto nos países
do Terceiro Mundo, como também nos países
centrais;
3) aumento expressivo do trabalho feminino
no interior da classe trabalhadora, também
em escala mundial, aumento este que tem
suprido principalmente (ainda que a ele não se
restrinja) o espaço do trabalho precarizado,
subcontratado, terceirizado, part-time, etc;
4) enorme expansão dos assalariados médios,
especialmente no setor de serviços que
inicialmente aumentaram em ampla escala, mas
que vem presenciando também níveis crescentes
de desemprego;
5) exclusão dos trabalhadores jovens e dos
trabalhadores idosos, segundo a definição do
capital (em torno de 40 anos), do mercado de
trabalho dos países centrais;
6) intensificação e superexploração do trabalho,
com a utilização brutalizada do trabalho dos
imigrantes, dos negros, além da expansão dos
níveis de trabalho infantil, sob condições
criminosas, em tantas partes do mundo, como
Ásia, América Latina, entre outras;
7) há, em níveis explosivos, um processo de
desemprego estrutural que, se somado ao
trabalho precarizado, part-time, temporário, etc.,
atinge cerca de um terço da forma humana
mundial que trabalha;
Beck (1998, p.92-93) é também incisivo quanto às profundas
transformações ocorridas no mercado de trabalho: “O desemprego já
não é um destino marginal: nos afeta potencialmente a todos, e também
à própria democracia como forma de vida”. Beck justifica sua
preocupação mostrando que a população em idade de trabalhar
plenamente empregada, no sentido lato da palavra, vem caindo.
Menciona o caso da Inglaterra onde somente um terço dessa população
está empregada, sendo que na Alemanha esse montante oscila ao redor
de 60%. Em fins dos anos 1970 era de mais de 80% em ambos os países.
E conclui:
50
O que é apresentado como um remédio – a
flexibilização do mercado de trabalho – somente
tem ocultado a terrível doença do desemprego:
não a curou. Pelo contrário, é cada vez maior o
desemprego, bem como o emprego em tempo
parcial, as precárias relações contratuais (...). Em
outras palavras, o volume de trabalho
remunerado está desaparecendo a marcha forçada
e estamos nos dirigindo a toda velocidade a um
capitalismo sem trabalho, e isso em todos os
países pós industriais do planeta. (BECK, 1998,
p.93)
2.2 VISÕES PARCIAIS DA POBREZA
O estudo de novas formas de pobreza se justifica como
decorrência das transformações produtivas e para entender a forma
como são vistos os pobres pelas políticas públicas.
A pobreza pode ser estudada como um fenômeno que advêm de
condições que afetam os indivíduos, como a sua inserção na estrutura
produtiva, ou pode ser estudada como manifestação de carências
individuais. Esta última, por ter sua preocupação excessivamente focada
no indivíduo e nas suas características perde de vista a possibilidade de
compreender o fenômeno em toda sua magnitude. No âmbito deste
trabalho consideram-se como visões restritas ou parciais da pobreza
aquelas que pretendem abstrair a noção de pobreza a partir do indivíduo
e, mais precisamente dos seus níveis de capital humano ou dos seus
níveis de renda, em contraposição àquelas que localizam a pobreza
como decorrente das condições estruturais.
Destacam-se aqui quatro visões da pobreza, consideradas
parciais: A Teoria do Capital Humano, a percepção da pobreza a partir
dos níveis de renda auferidos, a Teoria das Capacidades de Amartya Sen
(inspirada na Teoria do Capital Humano) e a noção norte americana de
underclass. Cabe chamar a atenção para elementos que elas têm em
comum: a ênfase no indivíduo, a culpabilização pela condição de
pobreza e a necessidade de mecanismos de empoderamento para que os
indivíduos superem a sua condição.
A primeira visão que tem contribuído para focar no indivíduo o
fenômeno da pobreza é a teoria do capital humano. Criada por Theodore
Schultz considera a qualificação pessoal uma forma de investimento que
poderá trazer retornos no futuro. Visto desde uma perspectiva mais
51
ampla, o crescimento econômico e níveis mais elevados de renda
estariam condicionados por investimentos maciços no capital humano
dos indivíduos.
Apesar de reconhecer a dificuldade de “medir” este tipo de
capital, Schultz (1961) considera que há elementos que promovem o
capital humano, como por exemplo, os serviços de saúde (que
contribuem para que as pessoas tenham mais vigor e melhor expectativa
de vida), o treinamento no emprego e a educação formal, com destaque
para a educação de adultos (SAUL, 2004).
A despeito da importância que tem a elevação dos padrões de
qualificação e do seu impacto nas possibilidades de ascensão social, a
teoria do capital humano tem os seus limites, pois restringe o seu foco e
pressupõe um tipo de sociedade em que haveria uma relação direta entre
qualificação e progressão social. Nesse sentido, ao privilegiar
características dos indivíduos, como escassa qualificação, a teoria do
Capital Humano praticamente responsabiliza o indivíduo por não ter
alcançado os patamares que a sociedade lhe exige para estar incluído.
A segunda percepção da pobreza é aquela que vê o fenômeno por
uma das suas características mais aparentes: os níveis de renda.
Instituições que promovem o desenvolvimento, como o Banco Mundial,
popularizaram o conceito de pobreza a partir de critérios quantitativos 9.
Nessa concepção os pobres são aqueles que auferem renda abaixo de
certos patamares: “two-dollars-a-day” caracteriza a situação de pobreza
e “one-dollar-a-day” a de pobreza extrema. Cabe destacar que a
despeito das discordâncias quanto ao seu uso e sua viabilidade 10, a
definição desses patamares se constituiu durante anos em poderoso
instrumento de comparação das condições de vida entre países e ainda
hoje é empregado largamente. Hopenhayn (2003) questiona essa
abordagem por considerar que é cada vez mais difícil limitar a pobreza a
um conjunto de necessidades insatisfeitas ou a níveis pré-determinados
de renda. Ele secunda as idéias daqueles que (a exemplo de Amartya
Sen) consideram a pobreza como a privação de ativos e de
oportunidades, isto é como “a falta de realização de direitos, sejam estes
de primeira geração (direitos civis e políticos) ou de segunda geração
(direitos econômicos, sociais e culturais)” (HOPENHAYN, 2003, p.4).
9
Para uma análise comparativa das concepções de políticas sociais e das estratégias de
superação da pobreza do Banco Mundial, da CEPAL e do PNUD/BID, ver Simionatto e
Nogueira (2001).
10
Ver por exemplo o debate entre Reddy (2008) e Ravalion (2008).
52
Contextualizando a terceira percepção, Ugá (2004, p.59) destaca
que o Banco Mundial, em estudos mais recentes sobre políticas sociais,
tem abandonado a delimitação da pobreza unicamente atrelada a
critérios monetários. Nos trabalhos da instituição tem emergido a
pobreza como fenômeno multifacetado que decorre de privações
econômicas, políticas e sociais: “além da forma monetária de pobreza,
ela é considerada como ausência de capacidades, acompanhada da
vulnerabilidade do indivíduo e da sua exposição ao risco”. A ausência
de capacidades que inspira a concepção de pobreza do Banco Mundial
deriva da idéia de “privação de capacidades”, de Amartya Sen. Esse tipo
de privação tolhe a possibilidade do indivíduo desenvolver o seu
potencial e, com isso, obter níveis de renda mais elevados.
Para Sen (2000, p.92) “a escassez de renda (...) não é uma idéia
tola, pois a renda tem enorme influência sobre o que podemos ou não
podemos fazer. A inadequação de renda frequentemente é a causa
principal de privações, que normalmente associamos à pobreza, como a
fome individual e a fome coletiva”. Nos estudos sobre pobreza, Sen
reconhece a utilidade de começar com informações sobre renda, mas
alerta para não terminar apenas com esse tipo de análise. Amplia a
análise da pobreza com a “perspectiva da capacidade” em detrimento da
“perspectiva da renda”. Na sua visão, há um conjunto de elementos que
influenciam sobre a privação das capacidades (ou do potencial que as
pessoas têm de auferir sua renda) e, portanto sobre a pobreza. Para Sem,
a relação entre renda e capacidade pode ser afetada, por exemplo, pela
idade da pessoa (necessidades específicas de idosos ou jovens, por
exemplo), pelos papéis sexuais e sociais, pela localização geográfica
(propensão a catástrofes naturais, locais sujeitos a violência ou
insegurança), por condições epidemiológicas e sanitárias sobre as quais
as pessoas têm pouco ou nenhum controle. Se de um lado esses aspectos
afetam a capacidade de auferir renda, por outro lado (e a modo de um
círculo vicioso perverso) desvantagens nas capacidades tornam mais
árdua a tarefa de converter renda em capacidade, gerando um círculo
vicioso perverso. Por exemplo, uma pessoa mais velha ou incapacitada
pode precisar de mais renda para obter o mesmo nível de satisfação de
outras pessoas. Nessa concepção, “a „pobreza real‟ (no que se refere à
privação de capacidades) pode ser (...) mais intensa do que pode parecer
no espaço da renda” (SEN, 2000, p.110).
No entender de Ugá (2004), mesmo reconhecendo que o conceito
de capacidades humanas é mais amplo que o do capital humano, o
problema do arcabouço teórico de Sen está em que o autor desconsidera
53
a necessidade de um Estado que garanta os direitos sociais e apenas
prevê um Estado caridoso, com deveres somente para com os pobres.
A presença do Estado só seria necessária,
portanto, em um primeiro momento, no sentido
de aumentar as capacidades dos pobres, para em
um segundo momento, quando esses indivíduos
já estivessem capacitados, o Estado já se tornaria
desnecessário, passando a deixar que eles
individualmente
procurassem
seu
desenvolvimento pessoal (UGÁ, 2004, p.60).
A questão da retirada do Estado implica, sem dúvida, uma
crescente mercadorização11 de serviços sociais, pois subentende que à
medida que os indivíduos conseguem alavancar seu progresso eles serão
capazes, também, de arcar com todos os custos que envolvam a sua
sobrevivência.
Cabe salientar que o modelo de sociedade que permeia os estudos
do Banco Mundial pressupõe dois tipos de indivíduos: o competitivo e o
pobre ou incapaz. Este último é aquele que não consegue garantir seu
emprego ou sua subsistência, enquanto o competitivo encontra formas
de superação da pobreza. Nesta concepção, “a pobreza acaba sendo vista
como um fracasso individual daquele que não consegue ser
competitivo” (UGA, 2004, p.60).
Para introduzir a quarta visão de pobreza, reporta-se à referência
do caráter acusatório contra os pobres que está presente, também, na
discussão norte-americana sobre o tema. O termo que emblematiza o
debate nessa sociedade é underclass – denominação usada na década de
1960 para se referir, principalmente, aos imigrantes afro-americanos e a
sua cultura da pobreza. Kowarick (2003) resgata esse debate e mostra
como o mesmo tem oscilado entre dois pólos, com forte conteúdo
político-ideológico. De um lado, a posição conservadora que
culpabiliza as vítimas da pobreza por considerar essa condição resultado
da irresponsabilidade dos pobres. Para essa concepção, programas
sociais reforçariam a condição de indolência e a desestruturação
familiar. Por outro lado, a posição liberal atribui a pobreza a processos
estruturais mais amplos como a desindustrialização, as transformações
11
Termo usado por Esping-Andersen (1991) para se referir à dependência do mercado para
obter um serviço. A “desmercadorização” ocorre quando a prestação de serviço é vista como
uma questão de direito.
54
tecnológicas e urbanas nas grandes cidades ou ao preconceito racial.
Kowarick aponta que se o conservadorismo era predominante na década
de 1980, posteriormente, na administração Clinton, uma possível
aproximação com a visão liberal teria sido possível com programas
sociais específicos nos quais permanecia, no entanto, a crescente
responsabilização das vítimas. “A marginalização social e econômica
passa a ser encarada como fraqueza peculiar a indivíduos ou grupos que,
como tais, não possuem a perseverança ou o treinamento moral para
vencer na vida” (KOWARICK, 2003, p.63).
É importante destacar que se até a década de 1960, o termo
underclass era usado para designar imigrantes afro-americanos e a sua
cultura da pobreza, na década de 1980 se tornaria mais abrangente e
passaria a contemplar novas categorias:
(a) os pobres passivos, que, no mais das vezes,
são recipientes de longo prazo de serviços sociais;
(b) o hostil criminoso de rua, que aterroriza
grande parte das cidades e que, geralmente, foi
expulso da escola e é consumidor de droga; (c) o
escroque (hustler), [...] que ganha a vida na
economia subterrânea [...]; (d) os bêbados
traumatizados, vagabundos, moradores de rua [...]
e os doentes mentais, que, freqüentemente,
vagueiam ou morrem nas ruas da cidade
(AULETTA, 1981, p. XVI, apud KOWARICK,
2003, p.65).
Para os conservadores, o quadro social assim constituído era
decorrente da “generosidade” das políticas sociais dos governos
democratas precedentes, que produziram uma “cultura da dependência”
ou um elevado “parasitismo social”. Kowarick (2003) menciona que
Wilson (1987) faria uma severa crítica à visão conservadora. Destaca
que a desindustrialização dos grandes centros urbanos, tendo como pano
de fundo a discriminação racial, levaria a uma redução do trabalho
pouco ou nada qualificado e à medida que os segmentos afroamericanos mais qualificados se habilitavam ao mercado de trabalho
(alentados pelo clima de liberdades civis dois anos 60) os remanescentes
sofriam um processo progressivo de concentração da pobreza, de
desemprego e de isolamento. A despeito das suas controvérsias sobre o
seu significado, o termo underclass cairia num desuso relativo no início
55
dos anos 90 e daria lugar à noção de jobless ghetto, para se referir aos
novos pobres urbanos.
Entretanto, no percurso dos anos 90, e mais especificamente no
embalo da Era Reagan, ganharia força novamente a noção de
underclass, para se referir não apenas à pobreza, mas a uma forma de
comportamento em que o indivíduo aparece como responsável pela sua
condição precária.
[...] a argumentação dominante deixou de estar
centrada nas análises macroestruturais –
mudanças tecnológicas e organizacionais,
desindustrialização, deterioração e êxodo urbano,
dinâmica das classes, preconceito racial, ou na
questão feminina. Esses enfoques perderam
grande parte de sua capacidade persuasiva na
medida em que sucumbiram na avalanche
explicativa que culpabilizava os pobres por sua
situação12. (KOWARICK, 2003, p.68).
Para Mauriel (2006), a culpabilização dos pobres e o desenho de
políticas públicas focadas no indivíduo fazem parte do giro
individualista que se opera no interior das Ciências Sociais,
principalmente no último quartel do século 20. Esse direcionamento
representaria um importante ponto de inflexão na tradição das Ciências
Sociais de buscar entender os fenômenos sociais fora do indivíduo. Para
a autora “a ênfase na individualização pode ser uma das maneiras de
evitar uma discussão mais profunda (das incapacidades) do padrão de
incorporação social contemporâneo (ou sua outra face: a exclusão)”
(MAURIEL, 2006, p. 49, grifo nosso).
Na perspectiva focada no indivíduo, as políticas sociais
destinadas ao combate da pobreza (ou da exclusão) procuram tornar os
indivíduos “inseríveis” nos padrões de sociabilidade contemporânea.
Nesse contexto, os padrões de proteção social se alteram: perdem o seu
caráter universal e se limitam a programas específicos de atendimento
dos grupos mais vulneráveis, em que o assistencialismo é a tônica
dominante (MAURIEL, 2006).
Para além do termo pobreza, as noções mais amplas de exclusão e
de vulnerabilidade aparecem como avanços significativos da dimensão
da sujeição do pobre às condições a ele impostas, seja no mercado de
12
Sobre a criminalização da pobreza ver Rosanvallon (1998) e Wacquant (2001).
56
trabalho, seja na sociedade como um todo. Enquanto ator social, o
indivíduo pobre passa a demandar acesso pleno à cidadania. A exclusão
se configura para além da questão meramente econômica. O processo de
exclusão tem muitas dimensões: aumento da pobreza urbana, escassas
oportunidades de emprego para jovens e migrantes ou minorias étnicas.
2.3 VULNERABILIDADE SOCIAL
A noção de vulnerabilidade social está presente nas políticas
sociais que lidam com a população subalternizada ou excluída. O termo
assume definições mais ou menos elásticas dependendo do campo
epistemológico ou da política pública em questão.
No Brasil, para a Política Nacional de Assistência Social grupos
que se encontram em situação de vulnerabilidade são
Famílias e indivíduos com perda ou fragilidade
de vínculos de afetividade, pertencimento e
sociabilidade; ciclos de vida; identidades
estigmatizadas em termos étnico, cultural e
sexual; desvantagem pessoal
resultante de
deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no
acesso às demais políticas públicas; uso de
substâncias psicoativas; diferentes formas de
violência advinda do núcleo familiar, grupos e
indivíduos; inserção precária ou não inserção no
mercado de trabalho formal e informal;
estratégias e alternativas diferenciadas de
sobrevivência que podem representar risco
pessoal e social (BRASIL, 2004B, p. 27)
Sobre a definição da condição de vulnerabilidade, o Conselho
Nacional de Saúde do Ministério da Saúde, na Resolução 196/96 que
disciplina as pesquisas em seres humanos no país, estabelece os
cuidados que devem ser tomados ao realizar pesquisas junto a
indivíduos ou populações vulneráveis ou aqueles com autonomia
reduzida. Em link disponível junto à mencionada Resolução, Guimarães
e Novaes (2009, s.d., p.1) esclarecem o significado dessas duas
acepções. Pessoas com autonomia reduzida - como crianças,
adolescentes, enfermos, prisioneiros - são aqueles que “têm redução
temporária da autonomia porque estão impedidos de manifestar sua
vontade e se espera que cessado o impedimento possam elas fazê-lo de
maneira inequívoca”. Por sua vez a condição de vulnerável é fruto de
57
“uma relação histórica entre diferentes segmentos sociais e pode ser
individual ou coletiva” e caracteriza “pessoas que por condições sociais,
culturais, étnicas, políticas, econômicas, educacionais e de saúde têm as
diferenças estabelecidas entre eles e a sociedade envolvente,
transformadas em desigualdade”. 13
Em termos operacionais algumas prefeituras consideram famílias
vulneráveis aquelas que moram em áreas consideradas de interesse
social de acordo com critérios como baixa renda familiar, precariedade
habitacional, precariedade da rede de infra-estrutura, precariedade
ambiental e áreas de risco, precariedade na posse da terra e precariedade
dos equipamentos e serviços urbanos 14.
A despeito da categoria epistemológica empregada entende-se
aqui que a noção de vulnerabilidade que perpassa a definição de
políticas públicas é dada não apenas, mas principalmente, pela exclusão
que ocorre no mundo do trabalho. Como salienta Lopes (2008), os
processos de exclusão estão fortemente delimitados pelo tipo de trabalho
ou ocupação que os sujeitos excluídos vivenciam. Reforça seu
argumento com as palavras de Ivo (2004, p.57): “não se pode
compreender os dilemas da política social fora da dimensão do trabalho,
entendido como a forma concreta de reprodução e inserção social e
como valor histórico e culturalmente instituído, que confere identidade
social e matriz de sociabilidade no marco de uma construção coletiva”.
A desarticulação da relação emprego-proteção social está no
âmago da noção de vulnerabilidade desenvolvida por Castel (1998). O
autor localiza na crise do modelo salarial - no pós-fordismo - a
instauração de uma situação de instabilidade que atinge não apenas os
desempregados. Se até a década de 1970 a proteção social estava
fortemente atrelada à condição de assalariamento, a posteriori a
sensação (e a condição) de desproteção atinge até aqueles que ainda se
encontram empregados.
13
Embora não seja explorada neste trabalho se reconhece que na área da saúde há uma outra
noção de vulnerabilidade associada à epidemia da AIDS (bem como a muitas outras epidemias)
e ao risco. Nessa concepção a vulnerabilidade teria três dimensões: individual (aspectos do
modo de vida das pessoas que possam contribuir para a sua exposição ao vírus); social
(aspectos da vida em sociedade – estrutura jurídico-política, relações de gênero e raciais, etc.) e
programática (acesso e organização dos serviços de saúde) (AYRES et al., 2006). Ver também
ao respeito Guareschi et al. (2006).
14
Estes são os critérios utilizados pela Prefeitura Municipal de Florianópolis para definir a
população vulnerável que reside em áreas de risco social. A especificação desses critérios está
disponível
em:
http://www.pmf.sc.gov.br/saude/inf_saude/criterios_para_classificacao_de_ais_setembro_2007
.doc
58
Castel (op.cit.) chega a esse quadro traçando a evolução da
sociedade europeia (e francesa em particular, em muitos momentos)
desde a sociedade pré-industrial, no século XIV, até o século XX. O seu
fio condutor são as transformações que sofrem os modos de produção e
os vínculos sociais que ali se estabelecem. Na Idade Média destaca a
tutela da sociedade por parte do Estado. Na era pré-industrial a ênfase
estaria na sociedade cadastrada, em que as corporações de ofício
significavam muito mais do que formas de organização do trabalho:
significavam formas de sociabilidade gestoras de vínculos. Nesse
período, o assalariamento era considerado indigno, pois era concedido a
aprendizes incapazes de tornar-se mestres, a artesãos arruinados ou a
agricultores que não conseguiam suprir o seu sustento. No século XVIII,
a modernidade liberal outorgaria um novo sentido à condição do
assalariamento. O trabalho passaria a ser reconhecido como fonte de
riqueza social e permitiria superar a condição de vulnerabilidade em
massa na qual a Europa se encontrava. O trabalho assalariado se tornaria
o suporte de inserção na sociedade. Garantias e direitos sociais estariam
indissociavelmente ligados à condição de empregado. O trabalho
passaria a exercer o papel de integrador, que antes era desempenhado
pelas corporações, pois redes de sociabilidade e proteção estariam
fortemente vinculadas ao trabalho. Nessa situação, os “excluídos”
seriam aqueles que se encontravam à margem dos vínculos e proteções
que o trabalho proporcionava.
A ruptura desse processo, que instaura “a nova questão social” a
que se refere Castel (1998), é a perda de centralidade do trabalho, que
ocorre por volta de 1970. A partir daí, a condição de assalariamento se
tornaria sinônimo de risco e não mais de proteção. Surge uma nova
vulnerabilidade de massa, situação que a Europa pensava como parte de
um passado remoto. Os “excluídos” não seriam mais os vagabundos da
época prévia à revolução industrial, nem aqueles que estão
necessariamente à margem do sistema de trabalho e de proteção social
(mesmo porque as proteções sociais se alteraram com a crise do Estado
de Bem-Estar Social), mas todo um contingente de
(...) indivíduos colocados em situação de
flutuação na estrutura social e que povoam seus
interstícios sem encontrar aí um lugar designado.
Silhuetas incertas, à margem do trabalho e nas
fronteiras das formas e troca socialmente
consagradas – desempregados por período longo,
moradores dos subúrbios pobres, beneficiários da
59
renda mínima de inserção, vítimas das
readaptações industriais, jovens à procura de
emprego e que passam de estágio a estágio, de
pequeno trabalho à ocupação provisória...
(CASTEL, 1998, p.23)
Como salienta Rizek (1998, p.17), no prefácio de As
metamorfoses da questão social, “desestabilização, precarização,
desemprego, são ameaças que (...) se fazem onipresentes para o
conjunto da sociedade”. Na atualidade a exclusão ganha um sentido
mais amplo, pois quem a sofre são pessoas que, mesmo tendo trabalho,
estão em condições de precariedade. Precariedade em termos de justiça,
de educação, de violência extrema, de carência de serviços públicos e
não apenas de precariedade em termos de trabalho.
A exclusão não é uma ausência de relação social,
mas um conjunto de relações sociais particulares
da sociedade tomada como um todo. Não há
ninguém fora da sociedade, mas um conjunto de
posições cujas relações com seu centro são mais
ou menos distendidas: antigos desempregados
que se tornaram desempregados de modo
duradouro, jovens que não encontram emprego,
populações mal escolarizadas, mal alojadas, mal
cuidadas, mal consideradas, etc. Não existe
nenhuma linha divisória clara entre essas
situações e aquelas um pouco menos mal
aquinhoadas dos vulneráveis que, por exemplo,
ainda trabalham mais poderão ser demitidos no
próximo mês, estão mais confortavelmente
alojados, mas poderão ser expulsos se não
pagarem
as
prestações,
estudam
conscienciosamente, mas sabem que correm o
risco de não terminar... Os “excluídos” são, na
maioria das vezes, vulneráveis que estavam “por
um fio” e que caíram. Mas também existe uma
circulação entre essa zona de vulnerabilidade e a
da integração, uma desestabilização dos estáveis,
dos trabalhadores qualificados que se tornam
precários, dos quadros bem considerados que
podem ficar desempregados (CASTEL, 1998,
p.568, 569).
60
A categoria epistemológica empregada para referir-se à pobreza e
os critérios que as definem podem variar. Quer se fale em vulneráveis,
pobres ou população subalternizada trata-se de um contingente de
pessoas que passam a ser a tônica da civilização moderna
(MAGALHÃES, 2001) e isso a despeito do otimismo liberal e sua
crença na incorporação da população pelo crescimento econômico.
Pochmann et al. (2004) falam de uma “nova exclusão social”
(caracterizada pelo surgimento de novas formas de vulnerabilidade não
apenas associadas à baixa renda e ao analfabetismo). Essa “nova
exclusão” seria parte de todo um quadro delimitado pelo desemprego,
pela desigualdade de renda, pela baixa escolarização superior e pela
violência. E se faz presente tanto nos países desenvolvidos quanto nos
subdesenvolvidos de média renda e níveis relativamente elevados de
industrialização, fato que traz à tona a necessidade de discutir
mecanismos de proteção social.
61
CAPÍTULO III
CAMINHOS E DESCAMINHOS DA PROTEÇÃO SOCIAL
OFERECIDA ÀS FAMÍLIAS
O objetivo deste capítulo é construir uma análise que permita
localizar a Estratégia Saúde da Família no âmbito das transformações
que os sistemas de proteção social têm apresentado. O argumento
central a ser desenvolvido é que os sistemas de proteção social, devido a
transformações societárias e econômicas, têm gradativamente repassado
às famílias as responsabilidades pela sua proteção sem instrumentalizálas para tal.
Característica das sociedades modernas parece ser a
vulnerabilidade e a sensação de insegurança e de desproteção. Castel
(2005) ao refletir sobre o que é ser protegido acredita que a dissociação
social, ou a perda de vínculos na sociedade, está na base da insegurança
social. Para ele, a insegurança, a solidão e a incerteza com o amanhã são
resultados de sociedades cada vez mais individualistas em que laços de
solidariedade parecem estar se esgarçando.
A forma como cada sociedade enfrenta suas vicissitudes e como
protege indivíduos contra riscos que fazem parte da vida humana como
doença, velhice, desemprego ou exclusão é objeto da configuração que
assumem os sistemas de proteção social. Esses sistemas nada mais são
do que a “ação coletiva de proteger indivíduos contra os riscos inerentes
à vida humana e/ou assistir necessidades geradas em diferentes
momentos históricos e relacionadas com múltiplas situações de
dependência” (VIANA e LEVCOVITZ 2005, p. 17)
A discussão em torno da proteção social e dos mecanismos de
satisfação de necessidades da população num determinado contexto tem
girado em torno de dois eixos: a existência (ou não) de sistemas de
Welfare State (Estado Previdência, Estado Social ou Estado de bemestar social) e das características das políticas sociais. A imbricação
desses dois temas tem levado, em muitos casos, a pensar que seria
possível considerar como sinônimos os termos Welfare State, política
social e proteção social ou, ainda, como fenômenos equivalentes. A
discussão sobre essa possível identidade será neste trabalho o pano de
fundo sobre o qual pretende-se a analisar as transformações que têm
ocorrido na oferta de proteção social no país.
Normalmente os sistemas de proteção dispõem de ações
específicas relativas à seguridade social em três áreas: assistência social,
62
saúde e previdência social. A intenção das agendas dessas políticas
públicas é delimitar a área que lhes cabe no fornecimento da proteção
social. Isto é, delimitar quem será protegido, de que forma se dará essa
proteção e quanto de proteção será necessário (VIANA e LEVCOVITZ,
2005; SILVA, YAZBEK e GIOVANNI, 2004). Entretanto, o dilema que
tem rondado a definição dos sistemas de proteção social, mais do que
estabelecer quais os riscos a serem cobertos, tem sido definir quem
proverá essa proteção, se o Estado, o mercado ou as famílias. A
solidariedade expressa em redes sócio-familiares, mesmo que
desgastada na contemporaneidade, tem sido chamada a desempenhar
papel central na oferta de proteção social, papel que em certa forma a
família já desempenhara na Idade Média, como será visto neste capítulo.
Esse “chamado” parece se dar de duas formas: de forma estruturada,
com a retirada do Estado no provimento de condições de proteção social
(e a inclusão das famílias na execução das políticas públicas) e de forma
não estruturada, entre camadas subalternizadas da população que diante
de tantas carências e incertezas a única coisa que parecem ter são os
laços de solidariedade. Conforme será visto neste capítulo, o Estado, que
nos modernos sistemas de proteção social se coloca como apenas um
dos parceiros na oferta de proteção social foi responsável num primeiro
momento pela sua oferta e institucionalização enquanto direito e, depois,
pelo seu desmonte e conseguinte repasse da responsabilidade às
famílias.
Nesse contexto, a intenção é resgatar o debate em torno da refamiliarização da proteção social. Debate que tem que começar por
esclarecer que a família sempre teve papel central no provimento da
proteção social (tarefa que na Idade Média passou a ser dividida com o
Estado e com a Igreja), para depois entender os motivos que explicam o
porquê do Estado - via políticas públicas – depois da década de 1970
“redescobre” as famílias como parceiras dessa proteção e passa a
responsabilizá-las por encargos que até então cabiam ao Estado. A
reflexão deve incidir, também, sobre a discussão dos limites da
institucionalização da solidariedade familiar e dos riscos de transpor a
idéia de proteção social, via famílias, de sociedades como as europeias
que têm sistemas de bem-estar social bem estruturados para países como
o Brasil que nunca tiveram sistemas dessa natureza. Muito mais se as
famílias se encontram em processo severo de mudanças (a serem
discutidas no próximo capítulo) em que a tônica são novos arranjos
familiares (com elevada proporção de lares monoparentais chefiados por
mulheres) com redes sócio-familiares frágeis que talvez dificultem a
63
execução do novo papel que lhes é atribuído: o de co-responsáveis pela
proteção social.
Este capítulo está dividido em cinco seções, mas grosso modo é
composto por duas partes. A primeira parte faz o resgate histórico e
teórico das transformações dos sistemas de proteção europeus, com
ênfase nas mudanças no welfare state. A segunda parte resgata os
elementos que permitem configurar a proteção social no Brasil e, de
modo mais específico, a proteção social em saúde no país. O capítulo
conclui com uma análise sobre a face mais recente da proteção em saúde
para as famílias representada pela Estratégia Saúde da Família.
3.1 PROTEÇÃO SOCIAL, WELFARE STATE E POLÍTICAS
SOCIAIS
A noção de proteção social será aqui analisada em dois
momentos. O primeiro, desde a sua associação com a caridade até a sua
configuração como direito, que redundaria em sistemas estruturados de
bem-estar social em países europeus. O segundo, em que ocorre um
deslocamento da noção de proteção como direito para a noção de
proteção como responsabilidade da família, característica do Welfare
mix, ou do pluralismo de bem-estar, dos anos 70 do século XX.
3.1.1 A proteção social – de caridade a direito
A gênese da proteção social tem sido frequentemente associada à
constituição do
Welfare State nos países europeus após Segunda
Guerra Mundial. No entanto, Pereira (2008) assinala que é possível
localizar, na ordem social da Idade Média, e mais precisamente na
sociedade inglesa, as origens da proteção social. Nesse sentido, Mioto
(2008) recorda que a provisão da proteção social é anterior ao modo
capitalista de produção e que as ações solidárias nas sociedades prémercantis eram asseguradas pela família, pela igreja e pelos senhores
feudais.
A proteção, portanto, se daria primeiramente dentro da família –
enquanto representante da autoridade e do poder do soberano. A
responsabilidade do Estado se cristalizaria nas Poor Laws (Leis dos
Pobres) inglesas que datam do século XIV. Tendo em vista a
constatação de que a caridade cristã não era suficiente para conter as
desordens decorrentes da dissolução do feudalismo e do surgimento de
epidemias e da fome, em 1351 a Inglaterra institui o Statute of labourers
64
(Lei dos trabalhadores) que seria reforçada em 1388 pela Poor Law Act.
Posteriormente as Poor Laws seriam reeditadas em 1601 e em 1834 e
receberiam um conjunto de emendas que as modificaram em aspectos
específicos. Ao longo desse período elas preservariam o forte caráter
paternalista e caritativo. Além disso, tinham em comum a preocupação
de responsabilizar as paróquias e as comunidades locais pela assistência
dos seus necessitados como tentativa de impedir que se deslocassem
para outras comunidades (confinamento territorial da pobreza) e conter
a “vagabundagem”, mesmo que através de métodos violentos
(PEREIRA, 2008).
No decorrer do tempo, a família, ao se constituir em instância
privada com clara definição de papéis e tarefas, passou a ser o “canal
natural” da proteção social (MIOTO, 2008). Depois, com a instituição
do Estado-Nação e de práticas administrativas e legais, a família
perderia o privilégio de representar a autoridade do soberano. Nessas
circunstâncias, “os governos passaram a ser vistos e a funcionar como
autoridade pública e a sofrer novos tipos de pressões, como as que lhe
exigiam proteção social como direito do cidadão e dever do Estado”
(PEREIRA, 2008, p.37).
Na passagem da sociedade pré-industrial para a industrial a
concepção de proteção concedida pelo Estado passaria por um processo
de mudança: da atitude paternalista para a concepção de direito 15.
Mudança essa que não se daria sem percalços: se na sociedade préindustrial o conceito era calcado no paternalismo e no vínculo de
dependência entre o pobre e o Estado, na sociedade industrial dominada pelo liberalismo clássico – haveria um severo embate entre o
que se considerava protecionismo social e as forças anti-protecionistas.
Seria somente em fins do século XIX que se consolidaria um moderno
conceito de proteção social que associava bem-estar a cidadania
(PEREIRA, 2008). Trata-se do modelo alemão de proteção de Bismarck
e do modelo inglês de Beveridge. O modelo bismarckiano tinha como
foco a preocupação de assegurar renda aos trabalhadores em momentos
de risco social e aliava a concessão de proteção à filiação profissional. O
modelo beveridgiano objetivava combater a pobreza pela via da
universalização de direitos e creditava a proteção a princípios
universalistas de justiça social (BOSCHETTI e SALVADOR, 2006).
Ambas as concepções inspirariam os modernos sistemas de proteção
15
Bobbio (1992) salienta que a instauração do Estado moderno alteraria a relação dos súditos
com o soberano. Na contemporaneidade essa relação passaria a se dar entre os cidadãos e o
Estado. O cidadão torna-se objeto de direitos.
65
social europeus, denominados de Welfare State. Pereira (2008) lembra
que embora o termo Welfare State só tenha sido utilizado após a
Segunda Guerra Mundial, com freqüência é empregado para indicar
fatos do fim do século XIX , que estariam na origem do estado de bemestar.
O Welfare State, de acordo com a Enciclopédia Britânica, trata-se
de um mecanismo específico que “visa proteger os cidadãos de riscos
econômicos e eventos inesperados (...) ou ainda resguardar a sociedade
dos efeitos de riscos clássicos como doença, velhice, desemprego e
exclusão” . Enquanto padrão amplo de proteção social o Welfare State
deve ser considerado como fenômeno próprio do século XX e mais
precisamente do período posterior à Segunda Guerra Mundial
(ARRETCHE, 1995). A garantia de mínimos sociais e a universalização
de direitos foram duas das suas facetas mais importantes 16. Ainda, nas
palavras Silva, Yazbek e Giovanni (2004) os sistemas de proteção
sociais são “sistemas mais ou menos institucionalizados em todas as
sociedades para enfrentar vicissitudes de ordem biológica ou social que
coloquem em risco a totalidade dos seus membros”
Fiori (1997) e Pereira (2008) resgatam a controvérsia em torno da
discussão sobre se o Welfare State britânico seria resultado de um
processo evolutivo que data das ações de proteção social iniciadas pelas
Poor Laws ou se se trataria de um fenômeno social diferente, ligado
apenas à concepção de políticas sociais. Esse debate envolve a
associação entre proteção social, políticas sociais e Welfare State. A
esse respeito, Fiori sintetiza três posições fundamentais. A primeira, que
privilegia a noção de “proteção social” assinala o caráter evolutivo
desde as Poor Laws até o Plano Beveridge. A segunda, que trabalha
16
Importa ressaltar que os sistemas de bem-estar europeus não obedecem a um único formato.
Wolf (2005, p.A13) resgata os quatro modelos observados por Sapir (2005). “O „modelo
nórdico‟ (Dinamarca, Finlândia, Suécia e Holanda) tem os mais elevados gastos públicos
aplicados em proteção social e provisão de bem-estar universal. (...) O modelo „anglo-saxão‟ (a
Irlanda e o Reino Unido) proporcionam uma assistência social de última instância bastante
generosa, com transferências de dinheiro destinadas principalmente a pessoas em idade
economicamente ativa. (...) O „modelo renano‟ (Áustria, Bélgica, França, Alemanha e
Luxemburgo) baseia-se em seguro social para os desempregados e na provisão de
aposentadorias. A proteção ao emprego é mais forte do que nos países nórdicos. (...)
Finalmente, o „modelo mediterrâneo‟ (Grécia, Itália, Portugal e Espanha) concentra gastos
públicos no pagamento de aposentadorias de idosos. Forte regulamentação protege (e diminui)
o emprego, ao passo que generoso apoio a aposentadorias antecipadas buscam reduzir o
número de pessoas em busca de trabalho . [E conclui] os países europeus tendem a dosar níveis
elevados de proteção ao emprego (no modelo mediterrâneo) contra alta cobertura de seguro
desemprego (nos modelos anglo-saxão e nórdico), sendo o modelo renano um meio-termo”.
Ver também ao respeito Esping-Andersen (1991).
66
com a idéia de “políticas sociais”, entende essas políticas como
sinônimo de Welfare State e considera este último decorrente da
legislação securitária alemã. A terceira sustenta “(...) a existência de
uma ruptura qualitativa entre políticas sociais anteriores à Segunda
Guerra Mundial e o que veio a ser, a partir do Plano Beveridge, o
Welfare State contemporâneo” (FIORI, 1997, p.132).
A discussão sobre o caráter evolutivo dos sistemas de Bem-estar
passa, também, pela distinção entre política social e Welfare State.
Pereira (2008) recupera o argumento de Mishra (1995) para quem é
enganoso utilizar os conceitos de política social e Welfare State como
equivalentes, pois este último tem uma conotação histórica e normativa
específica, decorrente do perfil de regulação capitalista oriundo da
Segunda Guerra Mundial. Em contraste, a política social tem um escopo
genérico “que lhe permite estar presente em toda e qualquer ação que
envolva intervenção do Estado com agentes interessados” e mais, a
política social atende necessidades sociais, mas sem deixar de atender
“objetivos egocêntricos como o controle social e político, a doutrinação,
a legitimação e o prestígio das elites” (PEREIRA, 2008, p.27). Ao
contrário do caráter normativo do Welfare State, a constituição das
políticas sociais “(...) decorre de conflitos de interesses e da constante
relação (não necessariamente harmoniosa) entre Estado e sociedade. E
sua formulação requer estipulação de conceitos, escolhas e
compromissos, muito embora na prática, percebam-se hiatos entre o que
foi concebido e o que foi realizado” (Id., p.29).
Em suma, como a política social vai lidar com interesses opostos,
e resulta da pressão simultânea de sujeitos distintos ou de interesses
político-ideológicos em vigor, seria impossível, no entender de Pereira
(2008), considerar o Welfare State como parte de um continuum. “A sua
natureza não condiz com um enfoque evolucionista que procura
encaixá-la num continuum que começa com a caridade privada,
passando pela beneficência e assistência, até terminar na política social
como prática evoluída e estritamente associada ao Welfare State” (p.28).
Para a autora, os sistemas de Welfare State são decorrentes de uma
espécie de “corporativismo social” em que a sociedade pactua pela
manutenção de certos padrões de proteção social, independentemente do
partido que esteja no poder. A sociedade, mediada por instituições
sólidas e legítimas, pactua por direitos cuja principal característica é a
universalidade da cidadania, o que passa pela garantia de pelo menos
três coisas: “um mínimo de renda, independente da sua inserção no
mercado de trabalho; segurança social contra contingências sociais,
67
como doenças, velhice, abandono, desemprego; e oferta, sem distinção
de classe ou status, de serviços sociais básicos” (PEREIRA, 2008, p.38).
Tendo sido estabelecido que a proteção social não nasce com o
Welfare State e que este e as políticas sociais têm caráter diferenciado,
cabe agora se deter nos elementos que permitem aceder à proteção
social.
Paralelo ao debate epistemológico sobre as rupturas e as
continuidades dos sistemas de proteção social emerge, como questão
central, a discussão sobre o papel que o Estado, o mercado e as famílias
desempenham na proteção social e com isso a questão do elemento que
permite aos indivíduos “acessar” a proteção: se o trabalho ou estatutos
que definam sua condição de cidadão com direitos universais
garantidos, mesmo que ele se encontre fora do mercado (CASTEL,
2005; ITABORAÍ, 2005). A divisão de responsabilidades entre Estado,
mercado e famílias tem apontado para o ressurgimento da família e das
redes de proteção a ela vinculadas como fortes elementos de coesão da
sociedade, configurando aquilo que Saraceno (1995) denomina de refamiliarização da proteção social. Esse repasse, ao mesmo tempo em
que inaugura uma nova fase na proteção social marcada pela coresponsabilidade, representa também uma retração da proteção enquanto
direito universal não contributivo.
3.1.2 Proteção social – de direito a ação de solidariedade familiar
A familiarização17 da proteção social faz parte de um conjunto de
mudanças, no padrão de proteção social outorgado pelo Welfare State,
que se instauram com a crise do Estado keynesiano. Trata-se do
pluralismo de bem-estar (Welfare mix ou Welfare pluralism18), em vigor
desde meados dos anos 70 em substituição ao padrão vigente entre
1945-1975. Sobre a arquitetura do Welfare Mix, Pereira (2004b, p.144)
é bem esclarecedora: tem por bases “descentralização e participação,
ênfase nas redes de solidariedade informais e no trabalho voluntário;
criação de cooperativas de consumidores e centros vicinais de
Embora reconhecendo que o mais adequado seria adotar o termo “refamiliarização” da
proteção, pois se trata do ressurgimento da proteção em moldes familiares sob novas feições,
usa-se também o termo “familiarização” que expressa uma nova fase com uma configuração
institucional e normativa bem definida.
18
Martin (1995, p.53) assinala que conforme os países há modelos e noções diferentes: “non
profit sector nos EUA, welfare pluralism na Grã Bretanha, welfare mix na Alemanha e
Holanda, „setor de utilidade social‟ ou „economia solidária‟ na França”. Neste último país,
utiliza-se, também, a expressão “estado previdência”.
17
68
assistência a pessoas, principalmente idosas; e estabelecimento de
serviços civis de apoio aos cidadãos em geral”. A autora lembra que o
Welfare Mix ganharia atenção em países onde não havia previamente
um grande compromisso do Estado com o bem-estar social, como
Bélgica e Alemanha. A simpatia por esse novo modelo significaria o
fortalecimento do Modelo Bismarckiano de Bem-Estar, apoiado nas
contribuições dos segurados, em detrimento do modelo beveridgiano –
não contributivo - que incluía os não segurados 19.
Em ambos os modelos, a passagem da fase keynesiana para o pós
keynesiana é caracterizada pela perda de centralidade do Estado na
política social e a conseqüente chamada para participar dela do mercado
e dos setores não mercantis, como o terceiro setor. Nessa situação cada
um entra com a sua parte - o Estado com poder, o mercado com dinheiro
e o terceiro setor com a solidariedade (PEREIRA, 2004b). Como lembra
Martin (1995), característica essencial do novo modelo será a questão da
partilha de responsabilidades entre família e Estado: “O novo modelo
preconiza exatamente uma combinação de recursos e de meios
mobilizáveis junto do Estado, dos parentes, mas também junto do
mercado ou ainda das iniciativas privadas, associativas, beneficentes e
não lucrativas” (p.55).
O Estado perde protagonismo e a condição de responsável único
pela proteção e assume a condição de parceiro no atendimento das
necessidades humanas. A responsabilidade ficaria mais precisamente
dividida entre quatro setores-chave: o voluntário, o comercial, o oficial e
o informal (JOHNSON, 1990 e MISHRA, 1995, citados por PEREIRA,
2004b). O setor voluntário é composto por organizações filantrópicas
ou ONG‟s, que na esteira da descentralização das atividades do Estado
De acordo com Zimmermann (2005, p.1) “Essas duas concepções se distinguem pelo caráter,
pela forma de contribuição e pelo financiamento dos sistemas de seguridade social. O modelo
bismarckiano é caracterizado pela contribuição individual como critério para o aferimento de
benefícios, valendo também para a aposentadoria. Os que não puderam contribuir com o
sistema previdenciário ficam sem receber o benefício da aposentadoria. Aos que não recebem
nenhum tipo de benefício, seja por que não terem tido condições de contribuir ou por não haver
outras formas de assistência, resta o apoio da família e/ou da igreja como provedoras da
aposentadoria dos idosos. O modelo beveridgiano, por outro lado, caracteriza -se pelo seu
caráter universal, não exigindo contribuição individual anterior para a obtenção de um
benefício básico, aferindo o direito ao benefício pela característica definidora da cidadania, ou
seja, o simples fato da pessoa ter nascido ou possuir a cidadania de um determinado país. O
financiamento dos programas de caráter universal não se dá via contribuições individuais, mas
por tributos gerais. Em virtude disso, esse modelo é tido como mais justo por incorporar
mecanismos redistributivos”.
19
69
passam a substituí-lo aparentemente com mais agilidade e menor custo.
O setor comercial ou mercantil que representa, para os pluralistas,
importante instância de empoderamento dos consumidores, trata-se de
organizações que atuam como moderadores do poder de mercado. Para
o setor oficial são reservadas as atividades consideradas o centro da
política social numa economia de mercado: garantir a democracia, o
respeito à propriedade privada e a coordenação de compromissos com a
sociedade para manutenção de um sistema de proteção social. Por
último, no setor informal a assistência deve ser fornecida por grupos
primários – parentes, amigos, vizinhos e principalmente pela família,
sendo que dentro desta última, a mulher é chamada a ocupar papel
central no cuidado a crianças, idosos e doentes (PEREIRA, 2004b).
Na realidade, a família sempre exerceu papel fundamental na
provisão da proteção social. Entretanto, como lembra Mioto (2008,
p.137), seria a partir do declínio da sociedade salarial e da crise do
Estado keynesiano que ela passaria a ser “ator fundamental na provisão
do bem-estar”. Se por um lado a redescoberta da família a desloca da
sua condição de “ilustre desconhecida nas diretrizes e programas
propostos pela política social” (CARVALHO, 1998, p.101), por outro
lado, essa redescoberta implica torná-la co-responsável (com sua carga
de direitos e responsabilidades) pelos resultados das políticas e
programas. E responsáveis, também, pela proteção social aos seus
membros.
Importa destacar que mais do que uma ruptura a constituição da
família como elemento significativo de proteção social trata-se do
ressurgimento só que sob novas feições.
Nessa mesma direção, Nunes (1995) destaca o lugar central que a
família passa a ter na Sociedade-previdência – alternativa posta diante
da falência ou esgotamento do Estado–previdência. Enquanto este
último assentava-se num padrão de cidadania ligado ao acesso igual a
direitos, a solidariedade na Sociedade-previdência está assentada “numa
identificação ancorada e personalizada daqueles que podem invocar
legitimamente essa solidariedade e daqueles que têm por obrigação
prestá-la” (NUNES, 1995, p.21). Para ele, a sociedade-previdência não
distingue entre desigualdades legítimas e ilegítimas. É um espaço de
negociação entre os seus membros passível de “reafirmações
periódicas” – atividades tais como visitas a doentes, empréstimo de
dinheiro, ajuda em bens ou trabalho, participação em festas de família.
Nunes (1995) alerta que o esforço de criar e reproduzir essas relações
recai pesadamente sobre as mulheres. Chama a atenção, também, para
70
os limites que a “devolução de risco” tem para a solidariedade social. A
Sociedade-previdência, por estar assentada em redes de solidariedade
primárias baseadas no parentesco e nas relações sociais continuadas,
teria dois tipos de limitações: (1) a impossibilidade de simplesmente
substituir os bens e serviços oferecidos pelo Estado-previdência e (2) as
contradições existentes entre as relações ancoradas, próprias da
sociedade-previdência e do espaço doméstico, em que se fundam, em
contraste com as relações anônimas próprias do Estado-previdência e
do espaço de cidadania a que se vincula.
As relações decorrentes da sociedade-previdência geram
mecanismos constantes de inclusão e exclusão, hierarquias e
subordinações e, portanto, não se constituem em mecanismos sólidos e
duradouros de proteção social. Como destaca Martin (1995), uma
solidariedade baseada no papel dos parentes pode acentuar as
desigualdades em vez de compensá-las, na medida em que pode haver
pessoas que não contam com ninguém, para as quais morar sozinhas não
seja uma opção, mas uma situação imposta por circunstâncias da vida.
Para elas “pobreza e precariedade se coadunam com isolamento e
solidão” (p.65). Nesse sentido, Martin (1995) alerta que segmentos
sociais com menor capital relacional (ou com redes de suporte mais
restritas) estariam automaticamente excluídos dos mecanismos de
proteção via solidariedade familiar.
Tendo estabelecido que a proteção social via famílias tem limites
estreitos que esbarram nos recursos (afetivos, sociais ou econômicos)
que elas dispõem, interessa agora avançar na discussão sobre a
configuração da proteção social no Brasil. Se a discussão até aqui têm
retratado transformações ocorridas no padrão de bem-estar social de
países europeus, o foco agora será resgatar a configuração da proteção
social no país.
3.2 PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL: AVANÇOS E RECUOS
A noção de proteção social tem sido elemento recorrente nas
discussões sobre políticas sociais no Brasil. O debate tem se adensado
nas últimas décadas, constituindo-se em tema relevante desde os anos
1980 (JACOUD, 2009). Não apenas o debate, mas também a
institucionalidade da proteção social. A Constituição Federal de 1988
re-significaria o papel do Estado brasileiro ao criar um arcabouço
jurídico que institucionalizaria as políticas sociais. De acordo com o
artigo 6º da Carta Magna “São direitos sociais a educação, a saúde, a
71
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância e a assistência aos desamparados”. Em seção
específica denominada “Da Ordem social”, dispõe aspectos relativos à
seguridade social em três áreas: assistência social, saúde e previdência
social. Cada uma dessas políticas sociais passaria a ter a sua
instrumentalidade definida em termos de financiamento e gestão nas três
esferas governamentais, bem como a participação popular na definição
dessas políticas via Conselhos.
Se de um lado os programas de bem-estar social europeus –
principalmente o alemão e o inglês 20 - parecem ter sido referência
importante na carta constitucional, por outro lado, o Brasil nunca
chegou a ter propriamente um sistema de proteção social dessa natureza.
Até o advento da Constituição de 1988 só foram implantadas algumas
políticas específicas de bem-estar. Políticas essas que estavam, na
opinião de Gomes (2006), em consonância com a legitimação ideológica
do sistema de exclusão muito mais do que atentos à resolução de todo
um leque de problemas estruturais.
A ausência de um sistema de Welfare State no Brasil21 pode ser
explicada pela falta de protagonismo da classe trabalhadora na
construção de um sistema de proteção social. Nos países europeus a
gênese dos Estados de bem-estar esteve intimamente ligada à luta de
classes, na qual os trabalhadores desempenhariam “[...] papel ativo na
luta contra as conseqüências do funcionamento do sistema de
acumulação”. (GOMES, 2006, P.221). No processo de industrialização
implantado no Brasil, a massa de trabalhadores urbanos, somados ao
grande contingente de população rural, carecia de força para se
contrapor às oligarquias dominantes. Nessas circunstâncias, o Estado
Getulista incorporou a luta de classes ao próprio Estado. Além disso, a
condição de direito aos benefícios sociais – implantados desde a década
de 30 - estava ligada (no melhor sentido meritocrático) à condição de
trabalhador assalariado e, portanto, à posse da carteira de trabalho
20
Conforme foi destacado anteriormente, o modelo bismarckiano alemão tinha como foco a
preocupação de assegurar renda aos trabalhadores, em momentos de risco social, e o modelo
beveridgiano inglês objetivava combater a pobreza pela via da universalização de direitos
(BOSCHETTI e SALVADOR, 2006).
21
A questão da ausência de um sistema de welfare state no Brasil não é consenso na literatura
sobre o tema (Ver, por exemplo, Draibe e Henrique, 1988; Draibe, 1989; Medeiros, 2001).
Enquanto uns consideram que as políticas sociais elaboradas desde a Era Vargas nos anos 30 e
as estabelecidas pela Constituição Federal de 1988 se constituem num sistema de bem-estar,
outros consideram que o país nunca chegou a constituir um sistema dessa natureza. Os
argumentos mais robustos parecem fortalecer a segunda hipótese.
72
(CARDOSO JÚNIOR, 2005). Isso criou uma situação perversa: “A
inserção das pessoas no mundo da proteção social pela via do trabalho,
se já não havia sido a regra para cerca de metade da população ocupada
até 1980, deixou de ser uma aspiração confiável ao longo desses trinta
anos de crise econômica, estatal e social” (CARDOSO JÚNIOR, 2005,
p.6).
Na literatura que analisa a evolução das políticas sociais é
possível identificar, com algumas variantes, dois movimentos: primeiro
o da estruturação institucional, com início na década de 1930, que
desembocaria na Constituição Federal de 1988. E o segundo, a contrareforma, a partir dos anos 90 - cuja tônica seria a desestruturação dessas
mesmas políticas sociais 22. Na próxima seção serão recuperados
elementos históricos sobre a proteção social em saúde. No momento a
intenção é verificar se o que possibilitava o acesso às políticas públicas
nesses dois momentos era o mérito ou o direito.
As políticas sociais implementadas desde 1930 tinham ênfase
bem clara no aspecto do mérito23. E quando se fala em mérito trata-se
especificamente daquele concedido pelo assalariamento formal.
Assalariamento que outorgava, nas palavras de Vianna (1998), o status
de cidadão, enquanto que os alijados das ocupações regulares pelos
preceitos legais eram transformados em pré-cidadãos. Segundo Vianna
(1998) isso criou dois tipos de indivíduos: os “cidadãos” - regulados
pelos preceitos legais - e os “pre-cidadãos” – aqueles cujo trabalho a lei
desconhecia. O mérito não pode ser usado como instrumento de acesso
aos bens públicos. Se o indivíduo tem mérito é porque teve uma
sociedade que lhe deu condições para ascender ou ter acesso a esses
bens. As políticas sociais devem ter como principal critério o de gerar
justiça. Ao respeito SEIBEL (2005, p.95, 96) assinala
Figueiredo (1997) investiga a substancialidade
dos princípios de justiça para um julgamento
defensável de uma política pública. Estes
princípios são baseados em argumentos morais e
políticos, levando em conta os princípios da
justiça distributiva classificados como: direito se
forem positivos e ideais; mérito se forem uma
compensação ou contrapartida econômica das
22
Para uma apreciação da evolução da institucionalização da proteção social desde a década de
30 até 1994 cf. Gomes (2006). Para uma análise das políticas sociais de 1964 a 2002 ver
Fagnani (2005). Ver também ao respeito, Behring (2003) e Yazbek (2008).
23
Sobre histórico das políticas de satisfação de necessidades, ver Pereira (2002, p.125).
73
contribuições e do esforço de grupos sociais; e
necessidades se forem carências sociais
definidas através de tipologias e de instrumentos
metodológicos que permitam identificar grupos
sociais localizados. (, grifos nossos).
O deslocamento do mérito para o direito (e a necessidade) seria
possível em parte com as Reformas implantadas no País com a
Constituição de 1988. A Constituição Federal de 1988, re-significaria o
papel do Estado brasileiro ao criar um arcabouço jurídico que
institucionalizaria as políticas sociais, dentre elas a saúde. Com esse
marco, a seguridade social passaria a contar com um conjunto de ações
integradas visando garantir direito à previdência, à saúde, à assistência
social e à proteção contra o desemprego (seguro desemprego) 24. Mais do
que uma nova institucionalidade o que estava em questão era a
necessidade de construir um sistema de garantias de direitos sociais que,
embora distante das experiências tradicionais de Welfare State na
Europa, tivesse por objetivo a superação, ou pelo menos mitigação, da
condição de desamparo da população brasileira.
Em fins dos anos 1980, com a promulgação do texto
constitucional, as reivindicações pelo fim do regime ditatorial e pela
conquista de direitos pareciam ter alcançado sucesso. Nesse contexto, a
universalização de direitos e a proteção social incluída na pauta de
políticas públicas específicas, como a assistência social e a saúde,
pareciam ter espaço propício ao começar os anos 1990. Entretanto, o
que essa década presenciaria seria uma contramarcha com dois
processos correlatos: a focalização das políticas públicas e o desmonte
da incipiente estrutura de proteção social, sinais claros da crescente
desresponsabilização do Estado na área social (FAGNANI, 2005;
BEHRING, 2003). A “necessidade” de focalizar seria posta para o país
desde a década de 1980, no contexto de reforma do Estado impulsionada
pela onda liberalizante comnadada por Reagan e Tatcher, cuja tônica era
o controle de gastos públicos e a descentralização administrativa. Já nos
anos 1990, o Consenso de Washington daria mais consistência às
reformas implantadas nos países centrais e passaria a sinalizar as “boas
práticas” da administração pública e da gestão das políticas
macroeconômicas para o resto do mundo.
Segundo o artigo 194 da Constituição “A seguridade social compreende um conjunto
integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinadas a assegurar os
direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.
24
74
O contexto, de redução de gastos e de manutenção do estado
mínimo, era propício para políticas sociais com caráter focalizado, a fim
de evitar desperdícios. Nessas circunstâncias, e por orientação de
organismos internacionais, as políticas sociais assumiriam um caráter
residual com foco prioritário nos “pobres dentre os pobres” (pobreza
extrema). Já para aqueles que se enquadrassem na condição de “pobres”,
esperava-se que superassem essa condição com o crescimento
econômico (SIMIONATTO & NOGUEIRA, 2001; SALAMA &
VALIER, 1997).
Fagnani (2005) e Marques e Mendes (2007) assinalam que a
implantação da universalidade da proteção social no Brasil se daria num
contexto diferente do europeu. Enquanto lá foi implantado numa fase de
prosperidade econômica, no Brasil o sistema de proteção social seria
institucionalizado em fins dos anos 80, ocasião em que o Estado passava
por uma grave crise fiscal25.
Se a novidade do novo texto constitucional de 1988 foi incluir
uma visão sistêmica da proteção social com áreas interligadas nos
moldes do que a Europa já tinha há mais de 40 anos o que houve na
prática foi a regulamentação específica de cada área, só que isoladas
umas das outras. A gestão unificada da seguridade social iria por terra
nos anos 1990 com a institucionalização de ministérios (e orçamentos)
separados para a previdência, a saúde e a assistência social (VIANNA,
2008). Como será visto na próxima seção, a saúde perderia recursos
garantidos via dotação orçamentária específica, presenciaria a perda do
caráter de assistência médica ligada a serviços previdenciários e veria
crescer a oferta de serviços de cunho privado. A previdência por sua vez
perderia o seu padrão universalista e redistributivo e se tornaria
sinônimo de seguro social contributivo.
O resultado disso seria o que Vianna (2000) denomina de
“americanização perversa da seguridade social”:
No modelo americano de proteção social,
chamado de residual, o Estado comparece apenas
quando as formas privadas de proteção social se
esgotam. A assistência médica gratuita é prestada
No caso específico da saúde “ao mesmo tempo em que o SUS era implantado, com base nos
princípios de um sistema público e universal, agravava-se a crise fiscal e financeira do Estado,
fazendo com que os governos federal e estadual limitassem o aporte de recursos para a saúde.
Esse ambiente de encolhimento da capacidade do Estado e de ausência de crescimento
econômico foi totalmente distinto do período em que ocorreu a universalização da saúde nos
países desenvolvidos europeus. (MARQUES e MENDES, 2007)
25
75
para os muito pobres, através do Medicaid; a
concessão (pelos estados) de auxílios familiares
requer comprovação de indigência; o sistema
previdenciário está aberto a todos os que
contribuem para ele, mas os valores das
aposentadorias e pensões são baixos, estimulando
os trabalhadores à aquisição de seguros no
mercado (p.155).
Em suma, se a partir de 1988 o país teve a grande chance de
contar com um sistema de Welfare State, houve um desmonte da
incipiente estrutura com as reformas neoliberais implantadas entre 1990
e 1992, com forte ênfase no equilíbrio fiscal. Fagnani (2005, p.8)
resume assim esse desmonte:
Se a Constituição de 88 enaltece os direitos
sociais, a agenda neoliberal prega o
assistencialismo. Ao invés de políticas
universais, políticas focalizadas. Ao invés de
seguridade social, que é a idéia de que todos
estão dispostos a pagar para que todos tenham
um mínimo, a agenda fala em seguro social,
direito apenas a quem contribui. Ao invés do
Estado interventor, o Estado regulador e a
privatização dos serviços públicos. Ao invés do
Estado de Bem-Estar Social, o Estado
„mínimo‟.26
No que corre do século XXI, em termos de proteção social
predominam na política social programas compensatórios
(transferências condicionadas de renda) com forte conteúdo
assistencialista em que o destaque recai para o Programa Bolsa
Família 27 (SILVA; YAZBEK; GIOVANNI, 2004; VIANA, 2008). A
proteção social no país pela sua frágil institucionalização parece não ter
superado a condição das políticas sociais elaboradas obedecendo a
projetos partidários (no sentido apontado anteriormente por MISHRA,
26
Para mais detalhes da contra-reforma nas políticas públicas motivada pelo Consenso de
Washington e encabeçada no país por Bresser Pereira, no governo FHC, ver Behring (2003);
Fagnani (2005); Pereira L.C.B. (1997); Pereira & Spink (2001) e Draibe (2003).
27
A respeito do caráter limitado das políticas sociais mais recentes no Brasil, das fragilidades
do sistema de proteção apoiado em transferências condicionadas de renda e da impossibilidade
delas constituírem um sistema de proteção social permanente nos moldes do Welfare State
europeu, ver Grisotti e Gelinski (2010).
76
1995 e PEREIRA, 2008) e não chegou a se constituir num sistema de
proteção pactuado pela sociedade como um todo. A frágil articulação
das políticas permanentes de proteção social (previdência e saúde) com
as ações na área da assistência tem reforçado processos de
“assistencialização” da proteção social (PASTORINI e GALIZIA ,
2006).
3.3 PROTEÇÃO SOCIAL EM SAÚDE
Nesta seção serão resgatados os eventos que marcaram a
evolução da proteção social em saúde no país. A intenção é traçar o
quadro em que se inserem as ações em saúde para as famílias para
posteriormente compreender o papel da ESF.
A literatura sobre a história da saúde no Brasil foca aspectos
específicos como: inter-ligação entre a evolução das políticas de saúde e
a evolução político-social e econômica da sociedade brasileira
(POLIGNANO, 2008; FAGNANI, 2005); ênfase nos aspectos
institucionais (HOCHMAN, MENICUCCI, 2007; OLIVEIRA e
FLEURY TEIXEIRA, 1985); modelos tecno-assistenciais implantados
ou tecnologias empregadas (MERHY e QUEIROZ, 1999; FRANCO e
MERHY, 1999a e 1999b); centralização e descentralização das ações
(VIANA e MACHADO, 2009; HOCHMAN, 1998) ou, ainda, análise do
mix público-privado que configura a oferta de serviços de saúde
(MENICUCCI, 2007). O resgate a ser feito aqui não privilegiará
nenhum desses aspectos, mas pretende buscar nessas análises alguns
elementos que configurem a proteção social em saúde. Interessa
sobremaneira investigar as continuidades e rupturas em torno de
aspectos tais como: de que forma se operava o acesso a proteção social
em saúde, se as ações eram de caráter público ou privado, se as
ações/modelos tinham ênfase em aspectos preventivos ou meramente
nos curativos e, ainda, discorrer sobre o caráter restrito ou universal da
proteção social outorgada.
Já que num plano mais geral esta tese localiza a ESF dentro do
sistema de proteção social brasileiro (e se constitui em estratégia
fundamental para a proteção social em saúde das famílias), a intenção
aqui será caminhar um pouco na direção do que Hochman (1998) aponta
ao estudar as origens das políticas públicas de saúde nas primeiras
décadas do século XX: entender em que momento as ações de saúde se
tornam objeto das políticas públicas e, além disso, se o caráter público
das políticas significa que necessariamente estejam restritas às ações do
77
Estado (compreensão de que público não necessariamente seja estatal).
No que se refere à proteção social em saúde, interessa perceber em que
momento passa a haver uma ação deliberada do Estado no sentido de
normatizar a questão e os elementos que definirão quem será protegido e
de que modo se dará essa proteção.
Vale a pena reforçar o argumento desenvolvido anteriormente de
que o repasse de responsabilidades do Estado à sociedade é parte de
toda uma estratégia de gestão das políticas sociais em vigência desde a
década de 1970. Em cima desse argumento se mostrará nesta seção que
a delegação e a terceirização das ações de saúde tanto decorrentes de
problemas financeiros do Estado (como insiste a retórica oficial) quanto
de uma decisão político-ideológica que entende a gestão privada como
mais adequada e eficiente28.
Já de partida é relevante a observação de Polignano (2008, p.2)
que “devido a uma falta de clareza e de uma definição em relação à
política de saúde, a história da saúde permeia e se confunde com a
história da previdência social no Brasil em determinados períodos”. De
fato, muitos dos textos que servirão de base para as reflexões desta
seção terão por temática a previdência social e não especificamente a
saúde.
Durante a Colônia as ações de saúde tiveram o seu foco restrito
às questões de saúde pública. Até 1850, as ações se limitavam a delegar
as atividades sanitárias aos municípios e controlar os navios e a saúde
nos portos. A concentração do poder colonial limitaria as ações à então
capital, Rio de Janeiro, e subsidiariamente à Bahia. (BRASIL, 2007).
Nas primeiras décadas do século XX haverá uma importante
inflexão do papel regulatório do Estado na área da saúde, principalmente
a partir da década de 20. Hochman (1993) assinala que, até então, o
escopo da atuação da União obedecia aos limites impostos pela
Constituição de 1891 que estabelecia a autonomia estadual e municipal.
À União caberia intervir nessas instâncias somente em situações de
crises sanitárias ou em epidemias urbanas. Em 1920, a criação do
Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em substituição ao
De acordo com Castro (1989, p.4) “o conteúdo das políticas sociais – como fator de mudança
ou de conservação da ordem social – depende principalmente da natureza do Estado, ou seja,
dos arranjos políticos que lhe dão sustentação e que definem as prioridades na alocação dos
recursos públicos extraídos da população. Depende, portanto das condições em que se dá o
conflito político mais ou menos aberto a instituições democráticas garantidoras do maior grau
de transparência do processo decisório e do acesso de organizações populares à arena onde são
decididos os objetivos das políticas e programas sociais, assim como a prioridade na destinação
de recursos”.
28
78
Departamento Geral de Saúde Pública (DGSP29) significaria a
ampliação, e conseguinte centralização na esfera federal das ações da
área da saúde. Cabe destacar que essa centralização era uma resposta ao
grave quadro sanitário que o país enfrentava nas duas primeiras décadas
do século XX. Hochman, (op.cit.) assinala três elementos que explicam
essa importante inflexão do papel do Estado na área da saúde: (1)
durante a Primeira Guerra Mundial e depois dela as nações vivenciam
movimentos de caráter nacionalista e de fortalecimento dos estados
nacionais. Na área da saúde, isso se plasmaria na Liga Pró-saneamento
do Brasil que advogaria por ações de saneamento no interior do país ou
o “saneamento dos sertões”30. (2) Precede às atividades da Liga PróSaneamento do Brasil a manifestação de entidades representativas dos
médicos, em 1917, com destaque para a Academia Nacional de
Medicina (ANM). E, o que Hochman considera como mais decisivo, (3)
o alastramento da pandemia da gripe espanhola. (HOCHMAN, 1993).
Estava dado o grande salto em termos do início da configuração da
proteção social em saúde: com essas ações “a saúde se torna não
somente pública, mas estatal e nacional” (HOCHMAN, 1998, p.19).
Antes de prosseguir convém se deter um pouco mais no papel que
a Liga Pro-Saneamento teria no processo de centralização das ações de
saneamento e saúde31. A partir do diagnóstico sobre a situação das
doenças endêmicas no meio rural brasileiro, a Liga posiciona-se como
elemento de pressão para cobrar das autoridades públicas a
responsabilidade pela saúde da população (para o Movimento a doença
era resultado da ausência do Estado). Um dos desdobramentos da Liga
Pro-Saneamento foi a constatação de que a solução para as doenças
endêmicas que assolavam o país deveria passar pela unificação e
centralização das políticas de saúde nas mãos do governo federal. À luz
29
Que tinha por competência apenas serviços sanitários a portos, a fiscalização do exercício da
medicina e farmácia, a organização de estatísticas e a prestação de auxílio aos estados quando
assim o requeressem.
30
Castro Santos (1985) destaca que a Liga Pró-Saneamento faz parte da vitória da posição
intelectual que entendia que a construção do país devia passar pela integração do sertanejo, em
contraposição àqueles que viam na mestiçagem da população um dos maiores entraves ao
desenvolvimento do país. Para estes últimos “um Brasil moderno significava necessariamente
um Brasil europeizado. Só a imigração estrangeira poderia limpar os brasileiros da nódoa do
passado escravocrata e dos efeitos perniciosos da miscigenação” (op.cit., p.2). Ver também ao
respeito Hochman (1998).
31
Conforme destaca Hochman (1998), “a Liga Pró-saneamento do Brasil fundada em
11/2/1918, no primeiro aniversário da morte de Oswaldo Cruz, pretendia alertar as elites
políticas e intelectuais para a precariedade das condições sanitárias e obter apoio para uma
ação pública efetiva de saneamento no interior do país ou, como ficou consagrado, para o
saneamento dos sertões.”
79
da Teoria da interdependência social de Elias, Hochman (1998) entende
que à medida que a doença se constituía em elemento de
interdependência social, que não respeitava limites geográficos ou
sociais, a solução dos problemas de saúde não poderia mais se restringir
a ações individuais ou locais. Por isso, a constituição do DNSP, mais do
que significar a criação de um órgão permanente de saúde a nível
federal, era fruto do surgimento de um novo paradigma nos cuidados
com a saúde: a consciência social de que “o micróbio da doença” não
respeitava classes sociais nem limites geográficos e que as ações de
saúde desenvolvidas apenas a nível local ou regional eram insuficientes
(HOCHMAN, 1998).
Em termos institucionais, a saúde pública da segunda década do
século XX presenciaria uma expansão da infra-estrutura de apoio.
Tratava-se de novos postos sanitários rurais, hospitais regionais,
hospitais de isolamento, de assistência geral, asilos e dispensários 32.
Junto com isso, a separação entre a saúde pública, a assistência médica e
a institucionalidade burocrática seria a herança que o Governo Vargas
receberia mais tarde.
O processo de nacionalização e a coletivização
dos cuidados com a saúde, acompanhada nos
anos 1920 da criação de mecanismos públicos de
seguridade social e de proteção trabalhista,
certamente não solucionou o problema das
endemias rurais, dos surtos epidêmicos, de falta
de saneamento, mas quase todas as avaliações
indicavam melhoria em relação à situação
anterior. (HOCHMAN, 1993, p.17)
Não apenas na área da saúde, mas também em relação às questões
trabalhistas e sociais, a década de 1920 presenciará, na opinião de
32
Hochman (1993, p12-13) resume o balanço feito por Pessoa em 1923 sobre as ações do
DNSP: ”Em 1922, 16 dos 21 estados da federação, mais o Distrito Federal, tinham feito
acordos com a União para serviços de profilaxia e combate às endemias rurais.24 Ao lado das
sedes dos serviços nas capitais desses estados (16), funcionavam 88 postos sanitários rurais,
além dos postos da Rockefeller Foundation instalados no Maranhão, Pernambuco, Alagoas,
Espírito Santo e Rio de Janeiro. A metade dos postos estava estabelecida no Distrito Federal
(17), em Minas Gerais (18) e no Paraná (8). Foram construídos 6 hospitais regionais para
complementar os serviços de saneamento e profilaxia rural, além de hospitais de isolamento, de
assistência geral, asilos e 27 dispensários. Dados dos anos posteriores revelam um aumento
constante do poder público federal na área de saúde. Por exemplo, em 1926, pelo mesmo
mecanismo de acordo, o governo federal já tinha criado em 18 estados cerca de 130
dispensários e no Distrito Federal, 18 (FRAGA, 1926: 521-535).”
80
Oliveira e Fleury Teixeira (1986), uma modificação significativa na
postura do Estado, até então liberal. Vale destacar que, para além das
práticas fiscalizadoras implantadas por Oswaldo Cruz, e por muitos
consideradas autoritárias, a reestruturação do DNSP inova em relação ao
modelo campanhista ao introduzir a educação sanitária. As ações
desenvolvidas na década de 1910 estavam focadas no combate a
endemias rurais (como malária e ancilostomíase) e, na década de 1920,
mesmo tendo ampliado o seu foco para outras doenças (como febre
amarela, tuberculose, lepra e doenças venéreas), ainda faziam parte da
visão campanhista da saúde pública.
A ampliação do escopo de atuação do Estado na questão da saúde
seria, portanto, prévia à constituição do Estado-novo. Mais
precisamente, Oliveira e Fleury Teixeira (1986) localizam na Lei Eloy
Chaves de 1923 – responsável pela criação de Caixas de Aposentadorias
e Pensões (CAPs) para empregados de estradas de ferro – o marco
inicial da previdência social no país. Entretanto, os autores esclarecem
que definir na era pré-Vargas esse marco não é uma questão consensual:
enquanto a historiografia oficial fixa a Lei Eloy Chaves como o marco
inicial da previdência,
(...) a mitologia estadonovista difundiu
amplamente a idéia de que só com Vargas, com a
criação dos IAPs (Institutos de Aposentadoria e
Pensões), e portanto apenas no pós-30, é que a
Previdência Social teve um início efetivo entre
nós, desqualificando, dessa maneira, o sistema de
Caixas dos anos 20, e as tentativas anteriores
(p.20).
A despeito dessa polêmica, em termos de serviços de saúde o
destaque para o padrão previdenciário implantado com a Lei Eloy
Chaves está na ligação entre a concessão de benefícios pecuniários
(como pensões e aposentadorias) e a prestação de serviços
(farmacêuticos e médicos) para os segurados e seus familiares. O
modelo previdenciário de proteção social que se impõe a partir dessa Lei
é a concepção de previdência como seguro, isto é do regime de
capitalização.
A ligação entre “previdência” e “assistência” (ou serviços
médicos) oferecidos pelas próprias caixas, enfrentaria forte resistência
depois de 1930, sob o argumento de que a previdência não deveria
incluir a assistência e que ela deveria se limitar aos elementos
81
pecuniários. Interessa por enquanto salientar que a oferta de serviços de
saúde pelas caixas de aposentadorias e pensões é
uma das
características marcantes dos anos 1920-30 e dá o tom da natureza
privada da incipiente previdência social. No modelo de proteção social
outorgado pelas CAPs, o Estado não se responsabilizava pelo custeio.
As caixas eram mantidas pelos empregados e pelas empresas. Somente
depois da Constituição de 1934 o Estado passaria a contribuir para a
manutenção do sistema previdenciário.
O caráter excludente da proteção social seria mantido com a
Constituição de 1937, que formalizaria a dualidade entre trabalhadores
formais e informais. Enquanto a emergente classe operária brasileira
passava a ser alvo de ações de proteção social, aos trabalhadores sem
carteira assinada e aos desempregados, restava-lhes acessar algum tipo
de proteção via obras sociais ou filantrópicas (YAZBEK, 2008).
Em 1930 foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública
(MESP). Ação que fazia parte da estratégia do Governo Vargas de
constituir/formar um Estado forte e centralizador que integrasse as
esferas federal, estaduais e municipais 33. Entretanto, somente a partir de
1937 e sob a nova denominação de Ministério da Educação e Saúde
(MES) juntamente com a criação dos Serviços Nacionais (responsáveis
pela verticalização das campanhas) é que se consolidaria a estrutura
administrativa e institucional da saúde. Em certa forma, a ampliação da
presença do governo federal em ações de saúde pública nos estados era
uma resposta aos que denunciavam a concentração dos serviços de
saúde no Distrito Federal (HOCHMAN, 1993).
Hochman (2005), em texto que analisa as políticas de saúde no
Brasil de 1930-45, considera que com a gestão de Gustavo Capanema
no Ministério da Educação e Saúde Pública (1937-45) se estabeleceriam
as bases da estrutura institucional da saúde pública enquanto política
estatal. A Reforma de 1937 (que redundaria na criação do MES)
definiria “rumos para a política de saúde pública, reformulando e
consolidando a estrutura administrativa e adequando-a aos princípios
básicos que haviam definido a política social do Estado Novo” (p.131).
Essa reforma instituiria as Delegacias Federais da Saúde e as
33
Hochman (1998) desenvolve, a partir de Castro Santos (1985), a tese de que as políticas de
saúde e saneamento foram elementos essenciais para explicar a penetração do Estado na
sociedade e no território nas três primeiras décadas do Século XX.
82
Conferências Nacionais de Saúde, que teriam por objetivo reunir
representantes dos estados para discutir temas de saúde pública.
Posteriormente, a Reforma de 1941 criaria os Serviços Nacionais
responsáveis pela verticalização das campanhas destinadas a combater
grandes endemias e doenças específicas.
Somente na década de 1940, quando a herança sanitarista da
primeira República se aprofunda, começa a haver uma aproximação
entre as ações preventivas-educativas e as curativas, bem como das
práticas individualizadas (tanto curativas quanto assistenciais) com a
medicina preventiva de caráter coletivo. Movimento esse que de
maneira incipiente representaria o início da aproximação entre a saúde
pública e a assistência médica previdenciária, unificadas somente na
década de 1990 (HOCHMAN, 2005).
Entretanto, até o fim dos anos 50, a assistência médica
previdenciária via IAPs ainda se limitava aos trabalhadores formais (e
de modo mais restrito só para aqueles que faziam parte de certas
categorias trabalhistas), enquanto que o atendimento àqueles
considerados como pré-cidadãos (pobres, desempregados ou
trabalhadores informais) era feito pelo MES, com destaque para
campanhas de baixa eficácia (YAZBEK, 2008; BRASIL, 2007).
Em meados dos anos 50 o avanço do desenvolvimento industrial,
a aceleração da urbanização e o aumento do número de assalariados
geraria um aumento da demanda por assistência médica via institutos de
previdência. Em 1960, a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS)
previa a unificação dos IAPs. Se essa lei visava unificar o regime geral
de previdência e aglutinar o regime dos trabalhadores formais na CLT,
ainda não previa incluir os trabalhadores rurais34 e os empregados
domésticos. A unificação prevista só ocorreria em 1966, com a
implantação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). A
partir de então a assistência médica bem como as aposentadorias e
pensões, que eram oferecidas
pelos IAPs, passaram a ser de
incumbência do nova estrutura (POLIGNANO, 2008).
Ao mesmo tempo em que a criação do INPS se constituía em
marco importante para a criação de uma previdência pública e estatal, a
crise gerada pelo aumento de número de beneficiários (e o conseqüente
estrangulamento dos serviços) seria o argumento para teoricamente
justificar o estabelecimento de convênios com médicos e hospitais, o
que na prática significava terceirizar (e privatizar ainda mais) a proteção
34
O contingente rural também só teria acesso à previdência social com a Constituição Federal
de 1988.
83
social em saúde. Sobre as crises da Previdência e a opção por terceirizar
serviços para atender a demanda excedente, Oliveira e Fleury Teixeira
(1986, p.210) assinalam que
O período que se inaugura em 1964, e se
consolida em 1966 através da criação do INPS,
vai acrescentar novas diretrizes à política de
assistência médica, que, em nome de uma
racionalidade necessária e viabilizadora da
expansão de cobertura, dá prioridade à
contratação de serviços de terceiros em
detrimento dos serviços médicos próprios da
Previdência Social. Esta orientação toma como
argumento básico a crise financeira dos IAPs
e,por conseguinte, a necessidade de adoção de
novas formas de regulação das instituições e de
prestação de serviços. É importante ressaltar
que, para além da problemática financeira,
configura-se um novo quadro político que gesta
as novas orientações. Neste sentido, resta
salientar que as crises da Previdência Social
sempre aparecem e são „resolvidas‟ como se
fossem crises financeiras, encobrindo-se assim o
seu conteúdo político. O que vem a ocorrer com
a Previdência Social, especificamente quanto à
prestação de assistência médica, não pode ser
tomado como um problema específico, mas
como parte de um modelo mais geral de
relacionamento entre o Estado e a sociedade
civil.
Menicucci (2007) destaca que a ampliação da atividade privada em ação desde os anos 60 - permitirá nos anos 80 a consolidação de um
sistema de saúde dual em que o Estado foca a sua ação nos mais pobres
e delega ao mercado o atendimento das demandas dos setores com
maior capacidade de compra.
Vianna (2000; 2008) vai além. Considera que a criação do INPS
na década de 1960 acentuaria o caráter perverso da seguridade social no
país: se o modelo anterior constituído nos anos 30 era restrito a
determinadas categorias profissionais pelo menos os seus componentes
participavam das tomadas de decisões. A criação do INPS ao mesmo
tempo que ampliava a clientela rompia com os mecanismos associativos
e lhes retirava a capacidade de expressão. Mais tarde (em 1989) a
84
transformação do INPS em INSS (Instituto Nacional do Seguro Social)
e a sua recondução para o âmbito do Ministério do Trabalho reforçaria o
caráter da proteção atrelada ao trabalho bem como a concepção de
seguro e não de seguridade (VIANNA, 2008).
Quanto ao caráter curativo ou preventivo das ações em saúde,
com a criação em 1974 do Ministério da Previdência e Assistência
Social (MPAS) ficaria estabelecido que esse ministério estaria
incumbido das ações curativas enquanto que as ações preventivas
ficariam aos cuidados do Ministério da Saúde. A prioridade da medicina
curativa sob a preventiva é atribuída por Polignano (2008) ao fato de
que os recursos eram destinados em maior proporção para o MPAS e
isso (a despeito dela ser mais cara) devido a que contava com recursos
provenientes dos segurados do INPS.
A crise econômica de 1974 e a crescente tensão política interna
vividas na ocasião no país levariam o governo militar a incorporar na
sua estratégia governamental as políticas sociais (com ênfase nas
atividades assistenciais). Dali resultaria a implantação de uma série de
medidas que ampliariam benefícios como a instituição do salário
maternidade, o amparo previdenciário a maiores de 70 anos e a
determinação de que acidentes na área rural fossem pagos pelo
FUNRURAL. Entretanto, mesmo que isso significasse um alargamento
da base de beneficiados não representaria uma mudança no caráter
fortemente privado das ações em saúde. De concreto, as medidas
adotadas se traduziriam na criação de novos mecanismos institucionais
de controle35 e a constituição de convênios com sindicatos,
universidades ou prefeituras para ampliar a assistência médica via
convênios (OLIVEIRA e FLEURY TEIXEIRA, 1986).
Ainda sobre o caráter público ou privado das ações em saúde, no
final da década de 1970 havia duas correntes político-ideológicas com
propostas distintas para o setor da saúde. A primeira formada pelo
complexo médico-industrial (representantes a indústria de
medicamentos, laboratórios e hospitais), com foco na privatização da
De acordo com Rosa a Labate (2005, p.1029) “O sistema previdenciário sofreu mudanças
institucionais, separando o componente benefício da assistência médica. Com a criação do
Sistema Nacional de Previdência Social (SINPAS), foram organizados o Instituto Nacional de
Previdência Social (INPS), o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
(INAMPS) e o Instituto de Administração da Previdência Social (IAPAS), além da
reorganização dos órgãos de assistência social (LBA e FUNABEM) e da constituição de uma
empresa de processamento de dados (DATAPREV). Essa reorganização significou, também,
um novo momento de concentração do poder econômico e político no sistema previdenciário.”
35
85
saúde36. E a segunda, composta pelo Movimento Sanitário (intelectuais
e profissionais da saúde), com uma proposta contra-hegemônica ao
modelo de saúde privatista, vigente no país. A força e a capacidade de
organização dessa segunda corrente possibilitariam mais tarde, com a
Constituinte, colocar a saúde no patamar de direito universal para os
cidadãos brasileiros (BORBA, 1998)37.
Um dos elementos que reforçaria a agenda de lutas do
Movimento Sanitarista seriam as conclusões da Conferência
Internacional de Saúde realizada em Alma-Ata em 1978. Conforme será
detalhado na seguinte seção (ao estudar os fundamentos da ESF) a
Conferência propôs a atenção primária à saúde (APS) como primeiro
contato das comunidades com os sistemas nacionais de saúde, com
ênfase na promoção e na prevenção da saúde.
Em 1982, com a criação/por iniciativa do Conselho Consultivo de
Administração da Saúde Previdenciária (CONASP) seria proposto um
plano de reorientação da assistência à saúde no âmbito da Previdência
Social, denominado Programa de Ações Integradas de saúde (PAIS 38),
cuja intenção era a integração entre atividades curativas, preventivas e
educativas. Para Rosa e Labate (2005, p.1029).
As AIS representam um movimento fundamental
para iniciar o processo de mudança. A área do
planejamento de saúde representava o início da
incorporação dos setores público e privado nas
atividades de planejamento que romperiam com a
concepção dominante da dicotomia entre
serviços/ações preventivas e curativas, ainda que
o enfoque do planejamento se vinculasse
estritamente à capacidade instalada de assistência
individual.
36
Nos anos 90 ficaria cada vez mais claro que este modelo privatista atendia as determinações
do ajuste neoliberal com forte contenção de gastos e racionalização da oferta.
37
Bravo e Matos (2008, p.199 e 200) resumem as principais propostas dos dois projetos em
disputa. Os aspectos mais significativos do Projeto da Reforma Sanitária eram:
“democratização do acesso, universalização das ações, descentralização, melhoria da qualidade
dos serviços com adoção de um novo modelo assistencial pautado na integralidade das ações”
Sua premissa básica era saúde como direito de todos s dever do Estado. Já o Projeto Saúde
articulado ao mercado ou de reatualização do modelo médico assistencial privatista, pautado
na política de ajuste neoliberal, destacava como principais tendências “a contenção de gastos
com racionalização da oferta, a descentralização com isenção de responsabilidade do poder
central e a focalização”.
38
Em 1985 passaria a denominar-se de AIS – Ações Integradas de Saúde.
86
De acordo com Grisotti e Patrício (2006, p.34) as AIS “buscavam
racionalizar a prestação dos serviços básicos de saúde pública a partir do
estabelecimento de convênios entre o MPAS e os estados e municípios”.
Apesar dos impasses verificados na sua implantação (lenta adesão dos
municípios e ênfase na produtividade dos serviços, entre outros), as AIS
seriam responsáveis pela constituição das primeiras instâncias
colegiadas de decisão, que mais tarde originariam os Conselhos de
saúde (GRISOTTI e PATRÍCIO, 2006).
A 8ª Conferência Nacional de Saúde realizada em 1986 é
frequentemente apontada como o marco de criação do SUS. Entretanto,
Grisotti e Patrício (op.cit.) assinalam que as propostas para sua criação
já haviam sido apresentadas anteriormente.
(...) em 1963, na III Conferência Nacional de
Saúde, foi proposta a municipalização dos
serviços de saúde bem como debateu-se a
influência dos fatores sócio-políticos e
econômicos no processo saúde/doença. Porém,
dada a conjuntura política da época, essa
proposta não foi viabilizada. (...) É inegável que
em 1986, durante a 8ª Conferência, existia um
contexto político favorável tanto para sua
realização quanto para os encaminhamentos de
suas propostas (2006, p.34).
Em termos institucionais essa Conferência seria responsável pela
criação de um Sistema Nacional de Saúde cuja função era comandar e
unificar as ações a nível estadual e municipal, função que seria
executada pelo SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde.
Esse processo marcaria, também, a reorganização do INAMPS que teria
repassadas as suas funções para as secretarias estaduais ficando com a
atribuição de órgão controlador do sistema. A CF 88 e a subseqüente
passagem do SUDS para o SUS, representam a instauração de um novo
modelo em que a saúde passaria a ser concebida como direito
(GRISOTTI e PATRÍCIO, 2006). Estava em pauta a necessidade de
constituir um arcabouço jurídico-institucional que contemplasse as
linhas da Reforma Sanitária e não apenas uma reforma administrativa e
financeira (ANDRADE, PONTES e MARTINS JÚNIOR, 2000)
De fato, na Constituição a grande novidade para a área da saúde
(que juntamente com a previdência e a assistência social passaram a
fazer parte do sistema brasileiro de proteção social) é que ficaria
87
estabelecido que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Ou seja,
no texto constitucional estavam se sentando as bases de um novo
patamar de cidadania em que o acesso à proteção em saúde não se daria
mais de forma meritocrática, apenas para os que tivessem ligação com o
mercado formal de trabalho nem de forma filantrópica pela ação da
caridade.
Formalmente o SUS só seria regulamentado em 1990, pela lei
8080. Em termos jurídicos, a Constituição criaria condições legais para
viabilizar o direito à saúde; a Lei 8080/90 regulamentaria o SUS com
definição de responsabilidades e, mais tarde, as Normas Operacionais
Básicas – NOB-SUS se preocupariam em definir estratégias para
operacionalizar o sistema a partir de avaliações feitas sobre a
implantação e o desempenho do SUS. Até então, o sistema de saúde se
caracterizava por (1) dicotomia entre ações preventivas e curativas (2)
atendimento a parte da sociedade (3) e pela sua crescente centralização
(FRAIZ, 2007). O SUS foi estabelecido segundo os seguintes princípios:
universalidade, integralidade da assistência (com prioridade para as
atividades
preventivas), eqüidade,
descentralização políticoadministrativa, conjugação dos recursos da União, dos estados, do
Distrito Federal e dos municípios, participação da comunidade; e
regionalização e hierarquização. Piardi (s.d.) esclarece o significado
desses princípios. A universalidade se refere ao fato de que a saúde
não requer nenhuma condição para o seu usufruto. A integralidade
implica conceber o indivíduo como um ser humano integral e não como
um amontoado de partes. Implica ainda, que ele está submetido a
diversas situações sociais e de trabalho e, que, portanto a saúde está
interligada com essas áreas. A equidade, ou o princípio da igualdade,
implica que o SUS deva disponibilizar recursos para atender sem
privilégios nem preconceitos. Entretanto, “Em situações desiguais, a
aplicação do princípio da igualdade ou eqüidade significa a prestação de
um atendimento prioritário, como ocorre com crianças, adolescentes,
gestantes, pessoas portadores de deficiência e idosos; os serviços de
saúde devem adaptar-se às necessidades existentes, diferenciando o
atendimento de acordo com elas.” (PIARDI, s.d., p.1). A
Descentralização significa a redistribuição de responsabilidades entre
os três níveis de governo. O princípio da participação introduz a
participação da comunidade via Conferências e Conselhos de Saúde 39. O
39
As Conferências, formada por diversos segmentos da sociedade, se reúnem a cada quatro
anos para discutir a situação da saúde e propor novas diretrizes Os Conselhos, compostos por
representes do governo, dos prestadores de serviços, dos profissionais da saúde e pelos
88
princípio da conjugação dos recursos da União, dos estados, do
Distrito Federal e dos municípios, estabeleceu a criação de tributos ou
contribuições sociais vinculadas à seguridade social. A regionalização e
hierarquização dos serviços do SUS buscam entender melhor os
problemas de saúde de uma área delimitada.
A partir da consciência da saúde como dever do Estado e direito
do cidadão, a intenção do SUS era democratizar as ações da saúde e
ampliar o acesso (universal e gratuito), até então definido pela
disponibilidade de recursos da população: as classes com melhores
condições econômicas buscavam o atendimento privado e a população
carente acudia às Santas Casas de Misericórdia. Entretanto, e como já
foi apontado anteriormente, se a partir de 1988 o país teve a grande
chance de contar com um sistema de proteção social universal, houve
um desmonte da incipiente estrutura com as reformas neoliberais
implantadas entre 1990 e 1992 e aprofundadas depois de 1994, com
forte ênfase no equilíbrio fiscal.
A despeito dos ganhos institucionais significativos como a
aprovação das leis 8080/90 e 8142/90 que estruturaram a LOAS (Lei
Orgânica da Saúde), a área da saúde sofreria redução de verbas a partir
de 1994, ficaria cada vez mais claro que o modelo privatista atendia as
determinações do ajuste neoliberal com forte contenção de gastos,
descentralização, racionalização da oferta, focalização e redução da
responsabilidade do Estado (BRAVO e MATOS, 2008).
Além disso, vale a pena a observação de Vianna (2000) quanto ao
caráter pretensamente universal do SUS, que na prática é seletivo e o
que é pior: como a seletividade não é assumida “facilita o tradicional
clientelismo de prebendas” (p.152)
Ao tentar fazer um rápido resgate das avaliações feitas sobre o
SUS nos seus pouco mais de vinte anos de existência é preciso ter em
mente o alerta feito por Bahia (2009) sobre as três posições que essas
avaliações têm assumido: o pólo otimista, o pólo pessimista e a posição
daqueles que relativizam as conquistas e impasses do SUS. No pólo
otimista estão os trabalhos que apontam para o SUS como uma
revolução no sistema de saúde e aqueles que o consideram o melhor
sistema de saúde do mundo. No pólo pessimista as avaliações destacam
aspectos críticos com déficits de acesso, de cobertura e de utilização e
serviços do SUS. Para esse segundo pólo, o direito à saúde seria
incompatível com o capitalismo, fato pelo qual a saúde só estaria de fato
usuários, têm a função de fiscalizar as ações em saúde e formular estratégias para execução da
política pública.
89
garantida em regimes socialistas. Entre esses dois extremos estão as
avaliações que ao enfatizar as categorias processo e reformas têm
relativizado as conquistas e impasses do SUS. Estas últimas “procuram
captar as alterações conjunturais, os encaixes entre os processos de
mudanças com os padrões estruturais de desenvolvimento econômico e
social” (BAHIA, 2009, p.754). A autora também assinala que enquanto
os dois primeiros pólos são próprios de ambientes com posições
político-partidárias bem definidas e com posições a favor ou contra
determinados governos, as avaliações intermediárias (que enfatizam o
processo e a incipiente maturação do SUS) provém de técnicos ou
autoridades políticas e governamentais envolvidas com a execução desta
política pública.
Sem a pretensão de esgotar o leque de questões suscitadas, nem
de tomar partido por alguma das posições apontadas, cabe aqui
reconhecer o grande avanço que tem significado a constituição de um
sistema público, universal e gratuito de saúde. Os números que retratam
a magnitude do atendimento e da cobertura em saúde são expressivos 40 e
não é desprovido de motivos o fato do SUS ser considerado como
referência por muitos países e como modelo digno de ser exportado.
Entretanto, não há como escapar de reconhecer os problemas que tem
sido a tônica do SUS e as lacunas entre o previsto pela Constituição e o
que de fato se efetivaria: focalização ao invés de universalidade, ou
“universalidade excludente” como sinônimo de “expansão por baixo” 41;
seletividade, ao invés de equidade ou, ainda, equidade nivelada por
baixo42; dificuldade de representação de interesses da população via
40
Santos (2008), por exemplo, resgata números referentes ao atendimento do SUS. Dados que
por si só podem ser considerados impressionantes se comparados com a informação de que
quase metade da população nos anos 80 era excluída da atenção em saúde: “O SUS
transformou-se no maior projeto público de inclusão social em menos de duas décadas: 110
milhões de pessoas atendidas por agentes comunitários de saúde em 95% dos municípios e 87
milhões atendidos por 27 mil equipes de saúde de família. Em 2007: 2,7 bilhões de
procedimentos ambulatoriais, 610 milhões de consultas, 10,8 milhões de internações, 212
milhões de atendimentos odontológicos, 403 milhões de exames laboratoriais, 2,1 milhões de
partos, 13,4 milhões de ultra-sons, tomografias e ressonâncias, 55 milhões de ações de
fisioterapia, 23 milhões de ações de vigilância sanitária, 150 milhões de vacinas, 12 mil
transplantes, 3,1 milhões de cirurgias, 215 mil cirurgias cardíacas, 9 milhões de sessões de
radioquimioterapia, 9,7 milhões e sessões de hemodiálise e o controle mais avançado da AIDS
no terceiro mundo. (SANTOS, 2008, p.2010).
41
Faveret e Oliveira (1990), em texto visionário elaborado praticamente na gênese do SUS,
assinalavam o caráter excludente do sistema implantado no país, pois excluía pessoas da classe
média com poder de vocalização de demandas. Ver também ao respeito Ocké-Reis (2009).
42
Expressão usada por SANTOS (2008, p.2010) para se referir à necessidade de dotação de
recursos que “(...) assegurem a acessibilidade de todos os níveis e atenção à saúde aos grupos e
pessoas excluídos e precariamente incluídos, em contraposição à atual „eqüidade nivelada por
90
Conselhos de Saúde43; problemas decorrentes da falta de dotação de
recursos para o setor e de gastos com medicamentos caros que os planos
de saúde se negam a pagar44 sem falar do expressivo financiamento
indireto da saúde privada via deduções de Imposto de Renda ou do
financiamento de planos privados para servidores federais. O debate
mais recente sobre as políticas de saúde a nível macro desloca da agenda
de discussão o tema da universalidade e das formas de financiamento do
padrão de proteção social em saúde e coloca em pauta novas formas de
gestão em que aspectos da racionalidade do setor privado deveriam ser
incorporados pelo SUS (COHN, 2008). A nível micro ganham destaque
avaliações sobre a implantação da Estratégia Saúde da Família,
considerada, como seu próprio nome afirma, a estratégia de
reformulação da política de saúde.
O resgate da evolução da proteção social em saúde feito nesta
seção teve por intenção traçar o quadro em que se inserem as ações em
saúde para as famílias, objeto a ser tratado em seguida. A modo de
síntese é possível identificar algumas continuidades e rupturas no
sistema de proteção social em saúde do país:
1. A política de saúde teve inicialmente um forte entrelaçamento
com a política previdenciária. A sua posterior separação e a própria
fragmentação das ações no interior do Ministério da Saúde dificultaram
a possibilidade de criar um sistema de proteção integral.
2. Verificou-se um movimento centralizador e descentralizador
das ações em saúde. Na década de 1920, ao mesmo tempo em que a
centralização fazia parte de uma estratégia de consolidação do Estado,
era um passo necessário para enfrentar de modo coordenado as grandes
endemias que o país enfrentava. Já a descentralização nos anos 1990
baixo‟ que vem subfinanciando e sub-ofertando serviços aos incluídos, „gerando recursos‟ para
transferir aos excluídos, o que leva as camadas médias e os servidores públicos à adesão aos
planos privados”.
43
Cf. Morita, Guimarães e Di Muzio (2006); Grisotti e Patrício (2006).
44
De acordo com Fernandes (2010, p.1-2) “O Supremo Tribunal Federal esticou a corda dos
serviços que o SUS é obrigado a prestar. Municípios, Estados e União devem fornecer
gratuitamente medicamentos de última geração comercializados no exterior que ainda não
estejam na lista do SUS, custear próteses e cirurgias e até tratamentos médicos fora do país.
(...) Foi uma decisão igualmente histórica a da Constituinte de estender o direito à saúde
pública, antes restrito apenas àqueles filiados à Previdência Social, a todos os brasileiros. Mas
com a desvinculação, o sistema, na sua origem, já se viu privado de sua base de financiamento.
São tratamentos tão custosos que os planos de saúde caem fora. Apenas um em cada cinco
brasileiros pode custeá-lo. Ao fazê-lo, a classe média acredita que escapou da vala comum,
mas, como demonstram os milhares de pacientes de planos de saúde que acionaram e venceram
o Estado no Supremo, é no SUS que vai parar a conta.”
91
faria parte de um processo de repasse de responsabilidades (muitas
vezes sem o conseguinte repasse de recursos) para estados e municípios.
3. A proteção Social no país nasce ligada ao mundo do trabalho.
No caso específico da saúde ela se origina com um forte componente
corporativo. A disponibilidade de serviços previdenciários e de
assistência à saúde estava atrelada a institutos de previdência de
categorias específicas. Àqueles à margem do trabalho formal lhes
restava o atendimento em entidades filantrópicas. A Constituição de
1988 configura a proteção social como direto universal, tanto para a
saúde quanto para a assistência e a previdência. Entretanto, no caso da
saúde a universalidade prevista pelo SUS ainda não é uma realidade
plena. O que se tem de fato é um sistema dual: o SUS para os excluídos
e o sistema privado para os que têm maior poder aquisitivo.
4. A proteção em saúde também teve na sua origem um forte
caráter auto-financiado: as categorias de trabalhadores financiavam seus
serviços previdenciários e de assistência à saúde. Em fins dos anos 80, a
vinculação de recursos orçamentários era uma das características da
criação do SUS. Entretanto, sucessivas reformas consolidariam a
desvinculação de recursos, fatos que fragilizariam o financiamento de
um sistema público e universal. Na prática, o Estado continua
incentivando a expansão do atendimento via planos de saúde, tanto pelo
estímulo à aquisição de planos de saúde via pagamento parcial dessas
despesas para o funcionalismo público, quanto pela terceirização de
serviços de média e alta complexidade, ou ainda pelo pagamento de
serviços caros que os planos de saúde se negam a pagar.
5. Se a dissociação das ações curativas e preventivas era a marca
das ações em saúde até os anos 80, posterior a isso cresce a
compreensão da necessidade de integrar as atividades curativas,
preventivas e educativas. O novo modelo passa a tratá-las de modo
unificado. Essa será a característica básica de proteção social em saúde
mais recente.
3.4 A FACE MAIS RECENTE DA PROTEÇÃO EM SAÚDE: A ESF
Esta seção tem por preocupação entender quais os problemas que
a Estratégia Saúde da Família busca responder. Isto é, compreender o
desenho do programa para no capítulo de análise dos dados de campo
poder verificar se as demandas que as famílias fazem à área da saúde
estariam sendo contempladas por essa política pública e pelo novo
modelo assistencial em saúde assentado na Atenção Básica.
92
Antes de entrar propriamente na configuração/desenho do novo
modelo em saúde e para uma melhor compreensão dos fundamentos da
política pública em estudo consideramos importante começar a
discussão pelo resgate dos elementos que levariam a ESF a tornar-se a
estratégia fundamental de reorientação do modelo de atenção em saúde.
3.4.1 O Que levaria a ESF a tornar-se a estratégia fundamental das
políticas públicas de saúde?
Entende-se que a ESF (inicialmente o PSF) é resultado da
convergência de dois movimentos: um de caráter mais político e técnico
- a descentralização das políticas públicas - e outro, de caráter mais
programático - a necessidade de implantar um novo modelo de atenção
em saúde, a atenção básica. Não há como dissociar esses dois
elementos, pois, como assinalam Franco e Merhy (1999a), os modelos
assistenciais em saúde se alteram como respostas dos governos a
conjunturas especificas.
3.4.1.1 A descentralização das políticas públicas
A questão da descentralização das ações em saúde tem sido
tratada na literatura com duas ênfases: como parte de um processo de
reforma do Estado, cujo objetivo primordial era enxugar custos, e como
resultado do anseio do Movimento da Reforma Sanitária de aproximar
as decisões e a gestão dos recursos dos estados e dos municípios. As
linhas gerais dessas duas visões serão resenhadas a seguir. A intenção é
mostrar que estava imbuída na idéia da descentralização uma dupla
convergência de interesses. Se, de um lado, ela era uma idéia cara aos
teóricos mais afinados com a focalização das políticas sociais, própria
do discurso neoliberal, por outro lado faria parte das concepções mais
cidadãs que inspirariam a noção universalizante de saúde a ser cravada
na Constituição Federal de 1988.
(1) Para a primeira visão, a descentralização administrativa juntamente com a focalização das políticas sociais - faria parte do
processo de repasse de responsabilidades para a sociedade e de
reforma do Estado nos anos 1990. De acordo com Bravo e Matos (2008)
para os defensores dessa Reforma, ela se justificava pela notada
ineficiência da gestão pública que transpareceria, dos anos 1980 em
diante, na crise do Welfare State, no fim dos estados
93
desenvolvimentistas ou na crise dos estados socialistas 45. Nessa
situação, a ação do Estado deveria ser redirecionada para a busca da
eficiência. No país, no projeto de Reforma do Estado proposto pelo
Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), sob
a supervisão do então ministro Bresser Pereira, a saúde se encontraria
dentre aqueles setores que deveriam ser transformados em Organizações
Públicas Não-estatais ou Organizações Sociais, por se entender que se
trataria de setor que não deveria ser privatizado, mas que tampouco
deveria ser executado pelo setor público, haja vista a sua incompetência
para tal46. A descentralização no setor incitaria a formação de dois
subsistemas (BRESSER PEREIRA, 1997): um Subsistema de Entrada e
Controle e um Subsistema de Referência Ambulatorial e Hospitalar. O
primeiro destinado a resolver os problemas de saúde mais comuns e as
ações básicas em saúde bem como encaminhar casos mais complexos
para os segmentos que possuíssem maior nível de especialização na rede
ambulatorial de referência e nos hospitais, que constituem o segundo
subsistema.
Bravo e Matos (2008) assinalam que a proposta do MARE
buscava manter sob responsabilidade do Estado o setor que não dá lucro
(o atendimento básico) enquanto que os segmentos ambulatorial e
hospitalar ficariam sujeitos a concorrência 47. Os autores ainda salientam
que a Norma Operacional Básica – NOB-96 (de novembro de 1996) ao
enfatizar o PSF estabeleceria uma clara orientação focal e prioritária na
atenção básica, desarticulada da atenção secundária e da terciária.
“Percebe-se nesta proposição, a divisão do SUS em dois: o hospitalar
(de referência) e o básico – através dos programas focais e (também)
deixa subentendidos dois sistemas: um SUS para os pobres e outro
sistema para os consumidores” (p.209, 210).
Como assinala Guerra (1998, mencionado por BRAVO e MATOS, 2008) “É como se não
houvesse uma crise econômico-política. A crise passa a ser centrada como se fosse apenas a de
um modelo de Estado, que caso mude (...) irá resolver a situação da crise instalada. Fica claro
que a solução para o encaminhamento seria o Estado abrir mão da sua responsabilidade para
com as políticas públicas”.
46
É importante lembrar que a reforma compreendia quatro setores: o núcleo estratégico
(legislativo, judiciário, presidência e ministérios); as atividades exclusivas do Estado
(definição de políticas públicas, fiscalização, poder regulatório e de polícia); os serviços
sociais e científicos (educação, saúde, pesquisa - a serem transformados em organizações
sociais) e o setor de produção de bens e serviços (a ser privatizado) (BRAVO E MATOS,
2008).
47
Além dos aspectos mencionados por Bravo e Matos (2008) cabe destacar que a “opção” do
Estado de manter sob seus cuidados o setor que não dava lucro devia-se à impossibilidade de
arcar com os custos mais elevados do atendimento hospitalar e ambulatorial.
45
94
(2) Cabe destacar que enquanto na concepção anterior a
descentralização é vista (sob uma perspectiva crítica) como parte de um
processo de enxugamento de custos, a visão alternativa vê o processo
como parte das conquistas do movimento da Reforma Sanitária, pois
considera que a descentralização configura-se uma forma de
democratização do Estado que possibilita a entrada em cena de vários
atores envolvidos na formulação e execução das ações (como as
Comissões Intergestoras), a ampliação da participação social via
conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde (NASCIMENTO e
COSTA, 2009). Nessa mesma linha, Andrade, Pontes e Martins Junior
(2000) vêem o processo da descentralização como algo construtivo. Para
eles o desafio do Movimento da reforma Sanitária era promover a
transição de um sistema desintegrado (baixa articulação das esferas
governamentais) e centralizado (ênfase em serviços hospitalares ou
programas verticalizados) para outro com comando único em cada
esfera do governo.
A descentralização das ações em saúde faz parte de discussão
maior tratada na Constituição Federal de conceder autonomia às três
instâncias da federação, a qual viria acompanhada de definição de
responsabilidades e partilha de recursos. Enquanto resultado de um
amplo pacto nacional pela redemocratização do país, a inovação no
desenho federativo levaria os municípios a assumirem papel central na
prestação e no gerenciamento dos serviços de saúde. Em termos
institucionais, a CF/1988 definiria as competências e as
responsabilidades tributárias de cada nível da federação, posição que
seria reforçada na NOB-96 e nos documentos da ESF (1997, 2000). A
descentralização se plasmaria na adoção do Programa Saúde Família
enquanto delegação de responsabilidades principalmente para os
municípios48.
Na busca por definição dos interesses ou autores que estariam por
trás do processo descentralizador, é importante o argumento de
Andrade, Pontes e Martins Junior (2000) que consideram a
descentralização da saúde parte de um processo de pactuação
infraconstitucional por parte dos componentes do Movimento da
48
De acordo com a NOB-96 (SUS, 1996, p.1-2) Busca-se a plena responsabilidade do poder
público municipal (...) os poderes públicos estadual e federal são sempre co-responsáveis, na
respectiva competência ou na ausência da função municipal (...) o município passa a ser de
fato, o responsável imediato pelo atendimento das necessidades e demandas de saúde do seu
povo e das exigências de intervenções saneadoras em seu território.
95
Reforma Sanitária e de outros atores que entram em cena, como os
Secretários Municipais de Saúde (liderados pelo Conselho Nacional dos
Secretários Municipais de Saúde – CONASEMS) e pelos Secretários
Estaduais de Saúde (agregados no Conselho Nacional dos Secretários da
Saúde – CONASS). Fruto dessa pactuação infraconstitucional seria a
publicação da Lei Orgânica da Saúde (LOAS), composta por duas leis
complementares à Constituição, a Lei 8080/90 e a Lei 8142/90. A
primeira delas se refere à descentralização político-administrativa do
SUS e a segunda à participação da comunidade.
Sem pretender fazer um balanço do processo de descentralização
das ações em saúde e se de fato ele teria atingido os objetivos propostos
pela Reforma Sanitária, cabe assinalar os ganhos para a cidadania
decorrentes da existência de novas instâncias deliberativas mais
próximas dos estados e dos municípios. No entanto, mais de 20 anos
depois da sua implementação permanece como importante gargalo a
indefinição dos recursos orçamentários que deveriam financiar as ações
em saúde.
Não há como dizer que apenas uma das concepções a respeito da
descentralização tenha tido influência na configuração das ações em
saúde. Em termos da sua configuração institucional, o SUS é
reconhecido internacionalmente por prover serviços de saúde de forma
universal e por permitir que haja participação da sociedade via
Conselhos e Conferências de Saúde nas decisões da área. No entanto, é
inegável que ela de fato é focalizada. Focalização essa que se manifesta
não por uma intenção deliberada de atender apenas os pobres, mas pelo
fato da saúde pública ter ficado com o encargo de fornecer serviços de
atenção básica cujo custo é mais reduzido se comparado ao da atenção
secundária e terciária. E aqui há uma questão controversa, que os
críticos à concepção ligada ao neoliberalismo não mencionam: a idéia
de que os segmentos ambulatoriais e hospitalares, não foram deixados
para o mercado apenas por serem áreas que geram lucro, mas
principalmente porque precisam de grande dotação de recursos. Dessa
forma, a “opção” do Estado pela atenção básica pode estar condicionada
à quantidade de recursos que o Estado podia (ou queria) gastar com a
saúde. Em última instância, as decisões de gastos na área da saúde
embora tenham sido condicionadas por pontos de vista políticos e pela
visão que se tem a respeito de quem é mais eficiente para cuidar de
determinada área (se o mercado ou o Estado49) tem também se moldado
49
A visão que se tem sobre o papel e as funções do Estado e do mercado é elemento
fundamental, como apontam Seibel e Gelinski (2007), no processo de avaliação de uma
96
a restrições orçamentárias50. Em suma, se já se passaram mais de 20
anos da promulgação do SUS e até agora há muitas idas e vindas na
discussão sobre recursos orçamentários garantidos para financiar a
saúde é porque a sua frágil institucionalização não permite ainda que
esta política pública tenha a solidez de uma política de Estado, nos
moldes daquelas que os países com sistemas de bem-estar consolidados
as têm.
3.4.1.2 O novo modelo de atenção em saúde
Antes de entrar propriamente nas circunstâncias que
determinariam a definição do modelo da atenção primária diretriz para
nortear as ações em saúde é adequado previamente compreender o
significado da expressão “modelo de atenção”. Viana e Machado (2008)
assinalam alguns dos sentidos que tem assumido a expressão. Por
exemplo, citam que Oliveira e Teixeira (1985) nos anos 80
mencionariam o termo “modelo médico-assistencial privatista”, para se
referir à configuração hegemônica do sistema de saúde brasileiro
amparado fortemente na centralização política, administrativa e
financeira, nas atividades curativas e hospitalares (geralmente privados)
e na ausência de ações preventivas e de promoção da saúde. A tônica
desse modelo seria a contratação de hospitais privados em detrimento do
possível fortalecimento do setor público marcado pela ineficiência.
Viana e Machado assinalam, também, que Paim (2004) adota o termo
“atenção à saúde” em sentido amplo para se referir a duas situações:
política pública. Para os autores, “A tentativa de sistematizar o debate da avaliação de políticas
públicas esbarra no estabelecimento de critérios de ordem prática. O primeiro refere-se à
própria concepção do Estado e às responsabilidades que o mesmo deve assumir. O segundo
refere-se à própria concepção da avaliação, se gerencialista (mais “micro” ou focada nos
custos) ou não-gerencialista (com ênfase nos processos políticos e nos atores).” (p.2)
50
Enquanto importante bandeira de luta do Movimento Sanitarista, a vinculação de receitas
viria por terra com a provação em 1994 da DRU (Desvinculação das receitas de União) mecanismo que impede que parte das receitas tributárias seja obrigatoriamente destinada a
determinado órgão, fundo ou despesa. A DRU liberaria recursos para o Fundo Social de
Emergência, medida preparatória para o Plano Real. Mais tarde com a provação da CPMF
(Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeira) no ano de 1997 tentaria se garantir
recursos para o custeio da saúde pública. Entretanto, os recursos passaram a ser utilizados na
gestão para o pagamento de diversas contas públicas, situação que provocaria a renúncia do
então ministro Adib Jatene. Com vigência prevista entre 1997 e 1999, a CPMF foi
restabelecida no ano 2000 e teve vigência até 2007. No momento da conclusão deste trabalho,
líderes governistas ligados à futura presidente Rousseff afirmam que pretendem apresentar
proposta para implementar novamente a CPMF para custear a saúde.
97
“(1) como resposta social aos problemas e necessidades de saúde,
inserindo-se no campo disciplinar da política de saúde, em que podem
ser identificadas as ações e omissões do Estado; (2) como um serviço
compreendido no interior dos processos de produção, distribuição e
consumo, inserido no setor terciário da economia, dependendo de
processos que perpassam os espaços do Estado e do mercado.” Esta
última situação considera não apenas os aspectos sociais, mas também
os econômicos, haja vista as pressões para consumo de mercadorias que
o setor enfrenta. Num outro trabalho, Paim (2003, mencionado por
Corbo, Morosini e Pontes, 2007, p.70) destaca que os modelos
assistenciais ou modelos de atenção “têm sido definidos como
combinações tecnológicas utilizadas pela organização dos serviços de
saúde em determinados espaços-populações, incluindo ações sobre o
ambiente, grupos populacionais, equipamentos comunitários e usuários
de diferentes unidades prestadoras de serviços de saúde com distinta
complexidade (postos, centros de saúde, hospitais, etc.)”. Ressalte-se
nessa definição a menção de Paim ao componente tecnológico das ações
ou modelos assistenciais. Aspecto que também é destacado nos
trabalhos de Merhy e outros 51 que se referem a “modelos
tecnoassistenciais” por enfatizar os componentes assistenciais e
tecnológicos dos serviços e ações em saúde. Em última instância, o que
se quer destacar aqui sobre os modelos de saúde é que a despeito da
denominação dada o que está em questão é a racionalidade presente nas
práticas, serviços e sistemas de saúde, isto é o projeto político que
sustenta a satisfação das necessidades da população e a configuração
tecnológica dos serviços de saúde.
Embora a Conferência Internacional sobre Cuidados primários de
Saúde realizada em Alma Ata em 1978 seja considerada como o marco
fundamental no estabelecimento da atenção primária como modelo
substitutivo ao até então modelo hegemônico, cabe recordar que a
primeira experiência de cuidados primários data do final do século XIX
com o sistema de promoção e assistência à saúde da população infantil
criado em Paris (BRASIL, 2009b). Posteriormente, e de acordo com
Andrade, Barreto e Bezerra (2006), já entre 1910 e 1915 haviam
experiências nos Estados Unidos que relacionavam os serviços de saúde
à população de uma área específica e à constituição de Centros de
Saúde. Na Inglaterra em 1920, com o Relatório Dawson, a noção de
atenção médica a nível primário começa a ser associada aos centros de
51
Ver por exemplo Franco e Merhy (1999a), Campos (1992).
98
saúde52. Nas décadas de 1960 e 70 nos EUA a noção de atenção
primária passaria a ser claramente definida como primeiro contato da
população com os serviços de saúde, que deveriam atender os pacientes
de modo integral (nos seus aspectos físicos, sociais e psicológicos),
independente da presença ou não de doenças.
A Conferência de Alma Ata é mencionada como momento
significativo pela literatura da área por tratar-se de evento que a nível
mundial colocaria a atenção básica como estratégia prioritária dos
serviços de saúde. De acordo com a Conferência, os cuidados primários
de saúde são definidos como:
Cuidados essenciais de saúde baseados em
métodos e tecnologias práticas, cientificamente
bem fundamentadas e socialmente aceitáveis,
colocadas ao alcance universal de indivíduos e
famílias da comunidade, mediante sua plena
participação e a um custo que a comunidade e o
país possam manter em cada fase de seu
desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e
automedicação. (...) Representam o primeiro nível
de contato dos indivíduos, da família e da
comunidade com o sistema nacional de saúde,
pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais
proximamente possível aos lugares onde pessoas
vivem e trabalham, e constituem o primeiro
elemento de um continuado processo de
assistência à saúde. (DECLARAÇÃO...,1978).
Importa destacar que os cuidados primários de saúde viriam se
contrapor ao modelo centrado no médico, na doença e nos hospitais. O
modelo medicocêntrico, ou hospitalocêntrico como também é
denominado, “desenvolve-se a partir de recursos que são
disponibilizados à assistência à saúde, centrados no conhecimento
especializado, equipamentos/máquinas e fármacos” (FRANCO E
MERHY, 1999a, p.12), ou foca suas ações no uso de máquinas e
De acordo com Oliveira (2005, p.2) “A proposta de usar a descentralização geográfica, a
regionalização e a hierarquização dos serviços de saúde como meio de alcançar maior
eficiência surge na Inglaterra em 1920, com o “Relatório Dawson”, estudo que se tornou um
marco na história da organização dos sistemas de saúde. Sua proposta de implantação de um
sistema integrado de medicina preventiva e curativa, coordenando ações primárias, secundárias
e terciárias, está na base da criação do sistema nacional de saúde britânico (NHS) em 1948, e
orientou a reorganização dos sistemas de saúde em vários países”
52
99
instrumentos, com o uso de tecnologia duras53. De acordo com Franco e
Merhy (1999a) esse modelo assistencial era “procedimento centrado” e
não “usuário centrado”, haja vista que “(...) o principal compromisso do
ato de assistir à saúde é com a produção de procedimentos. Apenas
secundariamente existe compromisso com as necessidades dos
usuários”. (p.13).
Outros autores optam por se referir ao anterior modelo como
“biomédico” ou “medicina científica” 54. Modelo que teria as seguintes
características (SILVA JÚNIOR, 2006):
A) Mecanicismo - o corpo humano é visto como
uma máquina [nessa condição, a doença é
resultado de uma avaria numa das peças]
B) Biologismo - devido à sua origem nos avanços
da
microbiologia, tem uma
concepção
exclusivamente biológica da doença, exclui
determinantes econômicos ou sociais.
C) Individualismo - a medicina elege o indivíduo
como objeto, alienando-o de sua vida e dos
aspectos sociais, a doença é vista como restrita a
práticas individuais.
D) Especialização - mecanicismo induziu o
aprofundamento do conhecimento científico na
direção de partes específicas do corpo humano, na
organização da formação e nas práticas de saúde.
E) Exclusão das práticas alternativas - a medicina
científica se impõe sobre outras práticas médicas.
F) Tecnificação do ato médico - necessidade de
técnicas e equipamentos para a investigação
53
Em termos de tecnologias de trabalho Franco e Merhy (1999a) consideram que o modelo
hegemônico anterior estava fortemente amparado nas tecnologias “duras” (inscritas nas
máquinas e equipamentos) em contraposição às tecnologias “leveduras” (presentes no
conhecimento técnico estruturado) e nas tecnologias “leves” (tecnologia das relações).
54
Morais (2001) assinala que o modelo biomédico é herdeiro de dois marcos na história do
conhecimento: do físico inglês Isaac Newton e do filósofo francês René Descartes. “No século
XVII, Newton concebeu o universo como um imenso mecanismo de relógio, possível de ser
compreendido a partir do estudo de suas partes. Na mesma época, Descartes estabeleceu a
visão dualista do homem, separando mente e corpo como entidades independentes. Nos séculos
seguintes, tais idéias constituíram o cerne do que hoje é conhecido como o paradigma
cartesiano-newtoniano, base de todos os sistemas conceituais nos diversos ramos da ciência.
Na medicina, a aplicação do paradigma mecanicista deu ênfase ao estudo isolado de órgãos e
tecidos, o que foi reforçado ainda mais pelos grandes avanços da microbiologia no século
XIX.” (p.52)
100
diagnóstica, produzindo uma nova forma de
mediação entre o homem e as doenças.
G) Ênfase na medicina curativa - prestigia o
processo fisiopatológico como base do
conhecimento para diagnóstico e terapêutica.
H) Concentração de Recursos devido à
dependência crescente de tecnologia, houve uma
concentração das práticas médicas em hospitais,
como centros de diagnóstico e tratamento.
Andrade, Barreto e Bezerra (2006) sintetizam as diferenças entre
o modelo convencional ou hegemônico e o proposto pelo modelo da
atenção primária à saúde (Quadro 2). Enquanto o modelo hegemônico
ou convencional estava fortemente amparado na noção de doença e cura,
o modelo de AP privilegiava a noção de Saúde de forma ampla por meio
de ações preventivas e educativas. Se o modelo convencional focava o
episódio a ser tratado, o modelo da AP tinha por preocupação promover
a saúde de modo continuado e abrangente, promovida por grupos de
profissionais e não apenas por médicos especialistas Por último, se o
usuário era tido como receptor passivo, no novo modelo passa a ser coresponsável pelas ações em saúde.
QUADRO 2. Diferenças entre a atenção médica convencional e a
atenção primária à saúde.
CONVENCIONAL
Doença
Cura
CONTEÚDO
Tratamento
Atenção por episódio
Problemas específicos
ORGANIZAÇÃO Especialistas
Médicos
Consultório individual
RESPONSABILI- Apenas setor de saúde
DADE
Domínio pelo
profissional
Recepção passiva
Fonte: Andrade, Barreto e Bezerra (2006).
ENFOQUE
ATENÇÃO PRIMÁRIA
Saúde
Prevenção, atenção e cura
Promoção da saúde
Atenção continuada
Atenção abrangente
Clínicos gerais
Grupos de outros profissionais
Equipe
Colaboração intersetorial
Participação da comunidade
Auto-responsabilidade
101
Há um consenso na literatura a respeito de que o modelo medicocentrado entraria em crise na década de 1970. Essa crise é atribuída a
dois conjuntos de fatores. De um lado estão os que privilegiam a crise
intrínseca do modelo como elemento explicativo (CORBO, MOROSINI
e PONTES, 2007) e de outro os que consideram a crise como
subproduto da conjuntura econômica recessiva a nível mundial
(FRANCO E MERHY, 1999a). Entende-se aqui que ambas as
explicações não se contrapõem mas se complementam.
Os que creditam a crise a fatores internos do modelo salientam
que desde 1920, com o Relatório Dawson, existiam críticas à medicina
científica e sua ênfase nos aspectos curativos. Para Corbo, Morosini e
Pontes (2007) havia grande desequilíbrio entre as necessidades de saúde
das famílias e a oferta de serviços de saúde. Além disso, “um custo
crescente na prestação dos serviços de saúde com baixa resolutividade,
com excessiva especialização dos profissionais e serviços, um uso
acrítico da tecnologia e a perda da dimensão cuidadora e relacional das
práticas de saúde e a crescente caracterização da saúde como produto de
mercado também se apresentavam como característica desse modelo”
(CORBO, MOROSINI e PONTES, 2007, p.72). Esses aspectos
apontariam para uma série de discussões no âmbito de programas
nacionais e internacionais de saúde que desembocariam na Conferência
de Alma Ata em 1978 e na recomendação pelos cuidados primários em
saúde.
Na segunda vertente explicativa, Franco e Merhy (1999a)
assinalam que a economia mundial na década de 1970 presenciaria uma
forte crise estrutural devido ao fim do ciclo desenvolvimentista iniciado
no fim da Segunda Guerra Mundial. Com a queda da arrecadação fiscal
dos estados haveria redução de gastos com políticas sociais, dentre eles
a saúde. O gasto público seria reavaliado e considerado elevado. Vale
lembrar que a orientação para reduzir custos obedecia também a uma
questão de natureza ideológica dentro da própria ordem capitalista já
que para os liberais, o que estava em crise era a noção Keynesiana do
estado de bem-estar. O desafio nessas circunstâncias era dar resposta às
necessidades de saúde, mas de tal maneira que houvesse racionalização
de gastos. As propostas surgidas na Conferência de Alma Ata
responderiam à conjuntura econômica recessiva do capitalismo da
época. “A lógica pensada é a de que os estados não mais teriam recursos
suficientes para continuar financiando os sistemas de saúde. Seria
necessário então, articular uma proposta minimamente eficiente, de
baixo custo, e capaz de ganhar adesão entre os diversos segmentos da
102
sociedade, contemplando amplas camadas da população com ações
básicas de assistência em saúde” (FRANCO E MERHY, 1999a, p.17).
A despeito da ênfase nos aspectos que causariam a crise do
modelo hospitalocêntrico interessa destacar o que ambas as vertentes
têm em comum – o fato de que o modelo de Atenção Primária se
tornaria a nova referência para o estabelecimento de ações e sistemas e
saúde. Cabe frisar que a noção “Atenção Primária em Saúde” tem várias
acepções. Tanto pode se referir a serviços seletivos voltados para a
população pobre, a um nível de atenção, a uma estratégia para
reorganizar os serviços de saúde, ou ainda a uma filosofia norteadora da
política em saúde (Quadro 3).
No contexto histórico brasileiro a acepção mais usada para se
referir à AP tem sido “Atenção Básica à Saúde”. Sobre isso, Fausto e
Matta (2007) assinalam que à despeito do fato de serem usados
indistintamente , o mais freqüente tem sido empregar o termo APS para
se referir às experiências internacionais enquanto que o termo ABS seria
uma adaptação brasileira do anterior. O termo “Atenção Básica” teria
sido introduzido no Brasil em 1996 pela NOB-SUS 01/96 “a opção pelo
termo deveu-se essencialmente a que nesse momento, existia, do ponto
de vista ideológico uma forte resistência de alguns atores ao termo
atenção primária à saúde principalmente porque (...) o propósito seletivo
prevalecia na concepção veiculada por organismos internacionais”
(FAUSTO e MATTA, 2007, p.61). Enquanto terminologia própria da
saúde pública do Brasil, a AB desempenhou papel importante num
determinado momento para dissociar a proposta da focalização e o forte
conteúdo ideológico que ela carregava. Mais recentemente alguns
autores e o próprio CONASS (Conselho Nacional de Secretários de
Saúde- ver Brasil, 2009) tem utilizado a acepção internacional do termo
(AP). Já o Ministério da Saúde embora tenha um Departamento de
Atenção Básica usa em determinados documentos a acepção “primária”.
Passada a resistência ideológica que ela carregava percebe-se o uso
indistinto dos termos.
103
Quadro 3. As diferentes interpretações da Atenção Primária à Saúde
INTERPRETAÇÕES DE
APS
APS seletiva
Um conjunto específico de
atividades e serviços de saúde
voltados à população pobre.
Um nível de Atenção
em um sistema de serviços de
saúde.
DEFINIÇÃO OU CONCEITO DE APS
A APS constitui-se em um conjunto de atividades e
serviços de alto impacto para enfrentar alguns dos
desafios de saúde mais prevalentes nos países em
desenvolvimento.
APS refere-se ao ponto de entrada no sistema de saúde
quando se apresenta um problema de saúde, assim
como o local de cuidados contínuos da saúde para a
maioria das pessoas. Esta é a concepção mais comum
da APS na Europa e em outros países industrializados.
Uma estratégia para
organizar os sistemas de
atenção à saúde
Para que a APS possa ser entendida como uma
estratégia para organizar o sistema de saúde, este
sistema deve estar baseado em alguns princípios
estratégicos simples: serviços acessíveis, relevantes às
necessidades de saúde; funcionalmente integrados
(coordenação); baseados na participação da
comunidade,custo-efetivos, e caracterizados por
colaboração intersetorial.
Uma concepção de sistema de
saúde,
uma “filosofia” que permeia
todo o sistema de saúde.
Um país só pode proclamar que tem um sistema de
saúde baseado na APS,, quando seu sistema de saúde
se caracteriza por: justiça social e equidade; autoresponsabilidade; solidariedade internacional e
aceitação de um conceito amplo de saúde. Enfatiza a
compreensão da saúde como um direito humano e a
necessidade de abordar os determinantes sociais e
políticos mais amplos da saúde..
Não difere nos princípios de Alma-Ata, mas sim na
ênfase sobre as implicações sociais e políticas na
saúde. Defende que o enfoque social e político da APS
deixaram para trás aspectos específicos das doenças e
que as políticas de desenvolvimento devem ser mais
inclusivas, dinâmicas, transparentes e apoiadas por
compromissos financeiros e de legislação, se
pretendem alcançar mais eqüidade em saúde.
Fonte: Brasil (2007) - Coleção Progestores 8, p.34
104
3.4.2 Eixos estruturantes da ESF/desenho do programa
Num cenário em que ganhariam prevalência os modelos
internacionais de atenção primária, o Programa Saúde da Família
surgiria no Brasil em 1994 como a estratégia organizativa da Atenção
Primária à Saúde no SUS. Andrade Barreto e Bezerra (2006, p.807)
alertam que “a gestação do PSF não pode ser grosseiramente resumida a
uma súbita replicação de modelos internacionais da medicina da família
ou atenção à saúde simplificada”. Conforme foi assinalado
anteriormente as tensões do modelo campanhista, do modelo privatista e
do modelo tecnicista médico-hospitalocêntrico gestariam mudanças
institucionais na política social em saúde, com destaque para a
implantação do SUS e posteriormente do PSF. De fato, o PSF é
resultado do amadurecimento de um conjunto de experiências de
implantação da atenção primária no país, desenvolvidas desde a década
de 1940. Mendes (2002, citado por CORBO, MOROSINI e PONTES,
2007) destaca que o PSF seria o quinto ciclo de expansão da atenção
primária à saúde no país. Antes dele ocorreram experiências mais
restritas ou de cunho local/regional, tais como a proposta da Medicina
Geral e Comunitária, com início em Porto Alegre em 1983; a Ação
Programática em Saúde, em São Paulo nos anos 1970; o Modelo
Médico de Família, em Niterói em 1992; e o modelo de Defesa da Vida,
criado em Campinas no fim dos anos 1980. Dentre essas experiências
CORBO, MOROSINI e PONTES (2007) destacam o Programa de
Medicina da Família de Niterói e o Serviço de Saúde Comunitária de
Grupo Hospitalar Conceição de Porto Alegre como aquelas que teriam
repercussão mais imediata na formulação do PSF.
Para melhor operacionalização do novo modelo assistencial e
dentro dos princípios que sustentam o SUS, o Ministério as Saúde
implantou em 1991 o Programa de Agentes Comunitários de Saúde
(PACS), cuja cobertura inicial se restringiria ao Nordeste. Esse
programa assentaria as bases para o tratamento da saúde a partir de base
territorial de incumbência de cada agente.
Em 1994 o Ministério da Saúde amplia esse programa com a
implantação do Programa de Saúde da Família (PSF) e em 1997 altera a
concepção do programa que passa a ser denominado Estratégia Saúde da
Família (ESF). Ribeiro (2004) chama a atenção para o fato de que a
adoção dos termos programa ou estratégia está cheio de
questionamentos e argumentos a favor do uso de cada um deles. O
documento oficial que estabelece a reorientação (BRASIL, 1997, p.8)
105
destaca que é mais adequado considerá-lo uma estratégia ao invés de
programa, pois
(...) foge à concepção usual dos demais
programas concebidos no Ministério da
Saúde, já que não é uma intervenção vertical
e paralela às atividades dos serviços de
saúde. Pelo contrário, caracteriza-se como
uma estratégia que possibilita a integração e
promove a organização das atividades em um
território definido, com o propósito de
propiciar o enfrentamento e resolução dos
problemas identificados.
A despeito da mudança de nome, desde o seu início o PSF
colocaria as famílias na agenda das políticas sociais do Brasil.
Juntamente com o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS)
ambos se constituem na base de reorganização da Atenção Básica à
Saúde e representam a consolidação do SUS.
O modelo da ESF, com foco na assistência básica à saúde,
pressupõe o estabelecimento de laços de compromisso e de coresponsabilidade nas ações em saúde, tanto por parte dos profissionais
da saúde quanto da população. A ESF, enquanto ruptura com o modelo
tradicional, apóia-se na noção do indivíduo como protagonista. Se na
concepção anterior ele “era visto sob a perspectiva do objeto, sem
capacidade, autonomia e, principalmente, destituído de um contexto o
qual o influencia e é influenciado” (RESTA e MOTTA, 2005, p.15),
agora passa a ser coadjuvante das ações de saúde.
Em termos estruturais, as equipes de Saúde da Família devem
contar com uma equipe multiprofissional composta por, no mínimo, um
médico de família ou generalista, um enfermeiro, um auxiliar de
enfermagem e seis Agentes Comunitários de Saúde (ACS). A
disponibilidade de outros profissionais estará determinada pelas
demandas e características da organização de cada unidade. As equipes
são responsáveis por um número determinado de famílias (cerca de
1.000 ou 3 a 4 mil pesssoas), numa região geográfica delimitada. Ao
invés da unidade de saúde “ficar esperando” pela população, os agentes
comunitários visitam as famílias nos seus lares, de modo a aproximar
(pelo menos teoricamente) os serviços de saúde das famílias, pois se
considera que é nesse espaço que se processam a saúde e a doença.
106
Na atuação da equipe desempenha papel fundamental o agente
de saúde. A ele cabe fazer a visita domiciliar e é por esse meio que a
ESF aproxima a família dos serviços de saúde. “A visita é concebida
como um meio importante de aproximação entre o Programa de Saúde
da Família e as famílias, favorecendo o acesso aos serviços, a
construção de novas relações entre os usuários e a equipe e a formação
de vínculo entre estes” (MANDÚ et al., 2008, p.131). Aliás, a afinidade
cultural do ACS com a população que atende é garantida pela exigência
dele residir próximo da sua área de atuação. Além das visitas, as equipes
da saúde da família orientam na internação domiciliar - que visa
humanizar e dar conforto ao paciente – ou, ainda, participam reuniões de
equipes que buscam diagnosticar e resolver problemas na região
adstrita.
O novo modelo só seria possível com a mudança de objeto de
atenção: da população em geral para a família (matricialidade familiar),
a partir do ambiente (condições físicas e sócio-econômicas) em que elas
vivem. “Mais que uma delimitação geográfica, é nesse espaço que se
constroem as relações intra e extra familiares e onde se desenvolve a
luta pela melhoria das condições de vida – permitindo, ainda, uma
compreensão ampliada do processo saúde/doença e, portanto, da
necessidade de intervenções de maior impacto e significação social”
(BRASIL, 1997, p.8).
107
CAPÍTULO IV
A FAMÍLIA E A MULHER COMO INSTRUMENTOS DE
PROTEÇÃO SOCIAL
Este capítulo tem por objetivo levantar elementos que contribuam
para compreender as implicações de colocar a família como centro de
uma política de saúde e entender, desde uma perspectiva mais ampla, as
condições que elas têm de ser instrumentos de proteção social. A
intenção é mostrar que a família deve ser vista como um ente em
mutação e que o fato dela ganhar destaque nas políticas públicas não
implica necessariamente que tenha sido entendida de maneira adequada
nem que ela receba o apoio necessário para que possa cumprir as
funções para as quais é convocada. Com esta discussão pretende-se
destacar aspectos que permitam, no próximo capítulo, verificar se a
política pública em análise tem clareza dos tipos de famílias que são
objeto da sua prática e das implicações que pode ter o chamado à coresponsabilidade dados os múltiplos encargos que as mulheres executam
na intimidade das famílias.
Este capítulo assenta-se em dois elementos analíticos – a
crescente participação das mulheres no mercado de trabalho e a
constituição de novos arranjos familiares – como base para compreender
possíveis alterações dos papéis sociais dentro das famílias brasileiras55.
Entende-se que o desenho de políticas públicas que envolvam famílias
não pode ignorar os papéis desempenhados pelos seus membros.
Especificamente no caso da política de saúde em estudo, se o novo
modelo pressupõe uma crescente responsabilidade das famílias cabe
indagar quem estaria ficando com a incumbência de arcar com esses
cuidados dentro do núcleo familiar. O olhar para as concepções de
famílias dentro das políticas públicas é necessário por dois motivos:
para detectar as funções que o Estado atribui ao núcleo familiar e para
perceber os mecanismos de apoio que disponibiliza para o cumprimento
dessas funções.
55
Tem se ciência de que há outros elementos que também provocaram alterações nas famílias,
como a fragilização dos laços matrimoniais, o aumento do número de divórcios ou a redução
do número de filhos. Entretanto neste trabalho se enfatiza o aumento da participação das
mulheres no mercado de trabalho e do surgimento de novos arranjos familiares por considerar
que eles têm impacto decisivo sobre os papéis desempenhados dentro das famílias e sobre a
alocação da atividaddes não remuneradas realizadas dentro dos lares.
108
4.1 FEMINIZAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO E NOVOS
ARRANJOS FAMILIARES NO BRASIL
Dentre o conjunto de grandes transformações sociais que o século
XX deixou como heranças, duas - que afetam diretamente o agir das
famílias - merecem aqui particular atenção: a inserção crescente das
mulheres no mercado de trabalho e o aumento de famílias chefiadas por
mulheres. Compreender a dimensão dessas transformações pode auxiliar
a entender os limites do chamado à co-responsabilidade feito pela ESF
e, numa perspectiva mais ampla, a convocação para que as famílias
assumam parte dos encargos nos sistemas contemporâneos de proteção
social.
A partir de relatório do Banco Interamericano de
Desenvolvimento - BID (2003), Gelinski e Ramos (2010) mostram que
na década de 1990 na América Latina as taxas de atividade (percentual
das pessoas que podem ingressar no mercado que de fato o fazem)
aumentaram em toda a região, principalmente devido ao trabalho da
mulher. Enquanto a participação dos homens no mercado de trabalho
oscilou entre 80 e 90% nos últimas cinco décadas, a taxa de participação
das mulheres passou de 24%, nos anos 1950, para aproximadamente
33% nos anos 1980 e ao redor de 50% no final do século56.
No Brasil, de acordo com dados da Fundação Carlos Chagas
(2005, citados por Gelinski e Ramos, 2010), entre 1976 e 2002, 25
milhões de mulheres se agregariam ao mercado de trabalho. Em termos
quantitativos isso significa que se em 1976, 28 em cada 100 mulheres
trabalhavam, o século XXI iniciaria com a metade das mulheres
trabalhando ou procurando trabalho. A Tabela 1 mostra que de acordo
com a PNAD, as mulheres representavam 28,8% da População
Economicamente Ativa (PEA) em 1976, número que ascenderia para
43,1% em 2004. Em termos da taxas de atividade (ou a proporção de
mulheres/homens economicamente ativos sobre o total de
mulheres/homens) as mulheres apresentavam, uma taxa de 28,8% em
1976 e 51,6% em 2004. Enquanto isso, a taxa de atividade masculina
(73,6% em 1976) permanecia em 2004 praticamente no mesmo nível da
década de 70: 73,2%.
Para Lavinas (2001) e Nogueira (2004) o aumento da
participação feminina no mercado de trabalho, desde meados dos anos
56
Ver também ao respeito Cerrutti e Binstock (2010).
http://www.eclac.cl/dds/noticias/paginas/0/37350/PonenciaMarcelarrutti_GeorginaBinstockCe.pdf
109
80, pode ser explicado por três fatores. O primeiro se refere à
reestruturação produtiva, que impactaria de maneira negativa no
emprego industrial, tradicional reduto masculino até então. O segundo,
diz respeito à expansão da economia dos serviços, com empregos
majoritariamente femininos. E o terceiro, à flexibilização das relações
trabalhistas, com a consequente precarização e aumento das ocupações
por conta própria e da informalidade.
Tabela 1 - Estrutura da população economicamente ativa (PEA),
por sexo, no Brasil, no período 1970-2002
HOMENS
MULHERES
ANOS
Taxa Atividade
(%)
PEA
Taxa Atividade
(%)
PEA
1970
71,9
1976
73,6
71,2
28,8
28,8
1980
74,6
68,6
32,9
31,3
1983
74,8
67,0
35,6
33,0
1985
76
66,5
36,9
33,5
1990
75,3
64,5
39,2
35,5
1993
76
60,4
47,0
39,6
1995
75,3
59,6
48,1
40,4
1997
73,9
59,6
47,2
40,4
1998
73,6
59,3
47,5
40,7
2002
73,2
57,6
50,3
42,5
2004
73,2
56,9
51,6
43,1
18,2
Fonte: elaborada por Gelinski e Ramos (20100 a partir de Fundação Carlos
Chagas (2005)
Para Carnoy (1999) há ainda outro elemento, prévio ao processo
de globalização: a inserção maciça das mulheres seria parte de um
processo de mudanças que ocorrem no seio da família desde fins do
século XIX.
110
As mulheres têm rejeitado progressivamente o
papel de responsáveis únicas da coesão social e
da educação da geração seguinte. O processo
iniciou-se (...) quando começaram a reduzir o
tamanho da família (…). Ter menos filhos
facilitava a coesão social: as mulheres podiam
dedicar mais tempo a atividades que reforçavam
a comunidade ou criar uma vida própria fora da
família, o que as levou, inclusive a incorporar-se
ao trabalho. A última batalha da rebelião da
mulher, que iniciou em vários países no fim dos
anos sessenta, se travou contra as relações entre
os sexos, que estão implícitas na família e no
trabalho. As mulheres rejeitaram a identidade de
donas-de-casa que lhes atribuía a sociedade
industrial. Muitas mulheres se incorporaram ao
mercado de trabalho, primeiro a tempo parcial e
depois a tempo completo. Muitas acabaram
sendo chefes do lar de família sem homens. E
tudo isso ocorreu tanto antes, como
independentemente da globalização e da chegada
da nova tecnologia da informação (CARNOY,
1999, p.462,463).
Em suma, a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho
– ou a feminização do mercado de trabalho – se, por um lado,
corresponderia aos anseios delas por mais espaço no âmbito público ou
produtivo, por outro lado, também atenderia à necessidade crescente de
força de trabalho dos setores produtivos, em condições muitas vezes
mais precárias do que aquelas às quais a força de trabalho masculina
estava submetida57.
Em termos de constituição das famílias, o destaque no Brasil fica
por conta do crescente número de arranjos compostos por mulheres
chefes de família com filhos e da redução de famílias formadas por casal
e parentes ou família extensa (SORJ, 2004; 2007; GOLDANI, 1994).
Se, como já foi mostrado agora pouco, houve no Brasil um
acréscimo significativo de mulheres no mercado de trabalho, o aumento
de famílias chefiadas por mulheres foi ainda mais significativo. Santos
(2006), com dados da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do IBGE,
De acordo com Nogueira (2004, p.83) “a flexibilização e a desregulamentação do mundo do
trabalho vêm atingindo de maneira mais acentuada toda a classe trabalhadora, mas de maneira
muito mais intensa e particular quando se trata da mulher trabalhadora”
57
111
mostra que enquanto a população feminina empregada aumentou 17,5%,
entre 2002 e 2006, o número de mulheres chefes do lar teve um
crescimento de 20,9% nesses quatro anos. Com isso, a participação das
chefes de família no total de mulheres ocupadas passou de 28,7% para
29,6%. Dados mais recentes da PNAD de 2009, desta vez com famílias
que residem em domicílios particulares revelam que 35,2% delas são
chefiadas por mulheres, contra 27,3% em 2001 (Tabela2). Fontoura,
Pedrosa e Diniz (2010) dão uma dimensão do crescimento do universo
de famílias chefiadas por mulheres: em termos absolutos em 2009 são
quase 22 milhões de famílias as que identificam como principal
responsável uma mulher. Cabe destacar que embora a PNAD e a PME
sejam pesquisas com bases e periodicidade diferentes, ambas apontam
para o significativo aumento de famílias chefiadas por mulheres.
Tabela 2. Brasil: Famílias residentes em domicílios particulares por sexo da
pessoa de referência da família (%)
Ano
Sexo
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
2009
Homem
72,7
71,6
71,2
70,6
69,4
68,6
67,0
65,1
64,8
Mulher
27,3
28,4
28,8
29,4
30,6
31,4
33,0
34,9
35,2
FONTE: elaboração própria a partir de dados da PNAD
As mudanças nas famílias têm sido acompanhadas de alterações
conceituais na coleta de dados populacionais. Alterações que, sem
dúvida têm a ver com as relações/representações de gênero. A mais
notória delas, se refere à substituição do termo “chefe de”
família/domicílio para “responsável por” família/domicílio.
Para
entender esses conceitos, duas observações são importantes: a primeira,
diz respeito à distinção entre família e domicílio e a segunda, se refere
aos termos “chefe de” ou “responsável por”. Em primeiro lugar, família
e domicílio são categorias diferentes. Como já foi apontado por Lima
(2006) a família é um tipo de agrupamento social ligado por laços de
parentesco, enquanto o domicílio é a estrutura física, que serve de abrigo
às pessoas ou famílias que moram nele. Várias famílias podem morar no
mesmo domicílio. Em segundo lugar, a situação de “chefia” ou
“responsabilidade” pela família ou pelo domicílio implica em
112
atribuições e deveres diferenciados em relação às pessoas que convivem
uns com os outros. O que cabe destacar é que o uso do termo “chefe”
(de família ou domicílio) esteve associado, desde o Censo de 1920, à
autoridade de um dos membros, sobre os outros, e à sua condição de
provedor. A acepção “chefe de” (família ou domicílio) seria a forma
usada até 1991. A partir do Censo de 2000 a denominação “responsável
por” passaria a ser oficialmente usada pelo IBGE, embora muitos textos
ainda usem ambos os termos como sinônimos, ou usem o termo “chefe
de” com bastante freqüência.
O crescimento do número de mulheres, com cônjuge, que se
declaram responsáveis pelo domicilio pode estar ligado - na
interpretação de Oliveira, Sabóia e Soares (2002) - à insuficiência (ou
ausência) de renda do cônjuge, o que as leva a assumir o sustento do lar
de forma cada vez mais visível. Ou, ainda, ao auto-reconhecimento da
sua responsabilidade nas decisões e na manutenção da sobrevivência da
família e do domicílio. Para as autoras “esta [última] hipótese trabalha
com a possibilidade de um processo de alteração da compreensão dos
papéis socialmente reservados à condição feminina, por muitos ainda
considerada sócia menor, na constituição da família e da sociedade
conjugal” (p.19, grifo nosso).
Qual o retrato dessas mulheres responsáveis pelas famílias?
Dados do Censo de 2000 mostram que: (1) se concentram no espaço
urbano (27,3% contra 12,8% no meio rural). (2) A proporção de
mulheres responsáveis é maior entre as mais jovens. (3) Elas se
encontram em maior proporção que os homens no grupo dos que têm
menor escolaridade (sem instrução ou com menos de um ano de estudo).
(4) Nos domicílios mais pobres, a proporção dos que estão sob chefia
feminina é de 34%, contra 24,9% na média nacional. (5) As mulheres
responsáveis se concentram nas faixas mais baixas de rendimento:
33,3% contra 21,4% dos homens. E, por último, (6) os rendimentos são
inferiores entre as famílias com chefia feminina e sem cônjuge. Tudo
isso, indica a maior fragilidade econômica dos domicílios sob
responsabilidade das mulheres.
Duas questões foram levantadas até aqui, que sinalizam uma
mudança no universo feminino. De um lado, a feminização do mercado
de trabalho e, de outro, o aumento dos lares com chefia (ou
responsabilidade) feminina. Interessa agora explorar se isso tem sido
acompanhado de um processo de alteração dos papéis socialmente
reservados às mulheres e se têm se refletido em mudanças significativas
nas relações de gênero, em aspectos concretos como a divisão de tarefas
113
no espaço privado. Essa discussão é fundamental para entender se há
condições para que as famílias (tanto as mono quanto as bi parentais)
assumam parte dos cuidados impostos pela nova configuração dos
sistemas de proteção.
4.2 PAPÉIS SOCIAIS NA FAMÍLIA E RESPONSABILIDADE
PELOS CUIDADOS
O desenho de políticas públicas que envolvam famílias não pode
ignorar os papéis desempenhados pelos seus membros. As mudanças
nas famílias são decisivas para entender a posição das mulheres e o seu
papel dentro delas. Resgatando um pouco a história da família, cabe
destacar que no século XVIII as famílias burguesas ainda conservavam
a rígida divisão, (herdada da Idade Média) entre a esfera pública e a
privada. As mulheres respeitáveis eram fechadas no espaço privado e os
homens ocupavam o espaço público. A elas cabia a realização do
“labor”, ou as atividades improdutivas, e aos homens o “trabalho”, ou as
atividades produtivas (PAULILO, s.d. e 2004).
Por volta do final do século XIX se generalizaria a separação
entre residência e local de trabalho, o que fortaleceria a associação entre
as mulheres e o espaço doméstico. Mesmo entre as mulheres com
melhores condições econômicas se estabeleceria a idéia de que „o lugar
da mulher é em casa‟. A única diferença entre elas e as mulheres
desfavorecidas é que as primeiras tinham condições de ter criadas,
governantas ou empregadas domésticas. Já as mulheres dos setores
intermediários e populares desempenhavam as tarefas domésticas e, ao
mesmo, cuidavam das crianças sem que tais atividades fossem
reconhecidas como trabalho (GIDDENS, 1984).
A partir da segunda metade do Século XX haverá mudanças
gradativas no papel que cabe às mulheres desempenhar no seio da
família. Benincá e Gomes (1998), em estudo sobre transformações
familiares de três gerações no município de Passo Fundo/RS, tecem uma
série de conclusões sobre os papéis femininos, aspectos que podem ser
generalizados para outros contextos culturais e geográficos. Na primeira
geração (nascida em torno de 1920) havia uma forte estrutura patriarcal
em que o poder de decisão e os recursos financeiros estavam sob
controle do pai. À mãe correspondia o cuidado do lar e dos filhos. Os
papéis sociais eram claramente definidos. Em raros casos, começava a
haver colaboração da mulher no orçamento familiar. Na segunda
geração (que se inicia em torno de 1940) amplia-se a possibilidade de
114
gratificação e afirmação femininas com a entrada no mercado de
trabalho, desde que isso não prejudicasse o seu desempenho no lar,
função que permanecia prioritária. Já para a terceira geração (nascida ao
redor dos anos 1960) aumentou o leque de oportunidades, podendo
escolher entre a vida doméstica e a profissional, combinar as duas ou
ainda escolher entre ficar solteira ou casar. A mulher também passou a
ser provedora, em muitos casos a única, o que poderia mudar o papel
que desempenha na família.
Por trás da discussão da atribuição dos papéis sociais outorgados
a cada sexo dentro da família está a questão das relações entre os
gêneros. A família patriarcal assenta-se no estereotipo do homem
provedor e da mulher dedicada à casa e aos filhos.
Os papéis sociais assumidos por homens e
mulheres em nossa sociedade (...) resultam de
diferenças muito mais amplas do que apenas
diferenças sexuais (biológicas), mas são resultado
de diferenciações de Gênero, relativas a
construções culturais que atribuem a determinados
grupos características que não encontram respaldo
no campo biológico, mas que acabam por
legitimar as relações de poder. Desse modo, as
relações sociais que se estabelecem em todas as
esferas da sociedade tendem e ser „gendradas‟, ou
seja, marcadas por especificidades de gênero
(PINHEIRO e FONTOURA, 2007, p. 209).
Se entre as feministas teóricas há um consenso – no meio de
tantos dissensos 58 – é quanto à problematização da existência de
relações de gênero (FLAX, 1991). E são nessas relações de gênero que
se assenta a atribuição de papéis sociais dentro da família, apoiadas na
dominação masculina.
Flax (1991, p.225) elenca algumas das questões para as quais não há consenso: “O que é
gênero? Como ele está relacionado às diferenças sexuais anatômicas? Como as relações de
gênero são constituídas e mantidas? Como as relações de gênero se relacionam a outros tipos
de relações sociais como as de classe ou raça? As relações de gênero têm uma história ou
muitas? O que faz as relações de gênero mudarem ao longo do tempo? (...) Qual a ligação entre
as formas de dominação masculina e relações de gênero? Há alguma coisa caracteristicamente
masculina ou feminina nos modos de pensar e nas relações sociais? Se há, essas características
são inatas ou socialmente construídas? (...)”. Para uma revisão das vertentes feministas ver
Casimiro (2004).
58
115
As relações de gênero são uma categoria
destinada a abranger um conjunto complexo de
relações sociais, bem como a se referir a um
conjunto mutante de processos sociais
historicamente variáveis. O Gênero, tanto como
categoria analítica quanto como processo social, é
relacional. (...) As relações de gênero são divisões
e atribuições diferenciadas e (por enquanto)
assimétricas de traços e capacidades humanas. (...)
Homem e mulher são apresentados como
categorias excludentes. (...) O conteúdo real de ser
homem ou ser mulher e a rigidez das próprias
categorias são altamente variáveis de acordo com
épocas e culturas. Entretanto, as relações de
gênero, tanto quanto temos sido capazes de
entendê-las, tem sido (mais ou menos) relações de
dominação. Ou seja, as relações de gênero, têm
sido (mais) definidas e (precariamente)
controladas por um de seus aspectos interrelacionados - o homem (FLAX, 1991, p. 227-8).
A família é o espaço onde ficam manifestos os papéis sociais que
são atribuídos a cada sexo. As representações dos papéis masculino e
feminino59 não mudaram com a entrada maciça das mulheres no
mercado de trabalho. O desempenho de tarefas associadas a cada gênero
é uma principais pautas de luta dos grupos feministas, pois mesmo com
o crescimento do assalariamento entre as mulheres não há uma divisão
igualitária do trabalho doméstico.
Para Oliveira (2006), há uma clara dissociação entre o papel de
“chefe de família” (ou responsável conforme e nova denominação) e a
função de provedor. Isto é, mesmo contribuindo com uma proporção
maior da renda, permanecem os papéis dentro de casa 60. Para a autora há
uma nova configuração das desigualdades, apoiadas no plano simbólico,
59
Uma bela discussão sobre o poder das representações nas relações de gênero é feita por
Paulilo (1997), com base no filme “Madame Butterfly”.
60
Kroth (2008) assinala o descompasso que há, no sistema jurídico brasileiro, que se de um
lado estabelece a igualdade jurídica das pessoas de ambos os sexos, por outro “naturaliza” as
funções das pessoas na família ao atribuir as funções de “provedor” e “chefe de família” ao
homem e a “função doméstica” à mulher. A autora conclui “O casamento continua a ser
compreendido como mecanismo de a mulher adquirir o amparo econômico necessário a sua
sobrevivência. Estas concepções estão presentes não só nas decisões dos Ministros [dos
tribunais], mas também nos argumentos jurídicos utilizados na propositura da ação, pelos
advogados e seus „clientes‟” (p.210).
116
pois mesmo com a crescente participação das mulheres no espaço
público há uma clara associação do feminino ao espaço privado e à
família e, portanto, há uma clara assimetria na atribuição das tarefas no
lar61.
Folbre e Nelson (2000) destacam que a reavaliação dos papéis
individuais nas famílias é uma discussão oportuna que deve ser
realizada, não apenas por feministas, mas também por economistas e
políticos. De acordo com essas autoras, nas análises neoclássicas (que
predominam na economia) a questão dos encargos com os cuidados está
fortemente embasada num viés de gênero. O homem que provê o
sustento da sua família é concebido como um indivíduo que age de
forma egoísta no trabalho – ao tentar alcançar seus próprios interesses e de modo altruísta ao ultrapassar o portal da sua casa. Inversamente,
“a retórica da luxúria e do egoísmo parece ter sido particularmente
reservada para aquela mulher que tendo um marido que ganhe o
suficiente para ter uma vida decente é frequentemente condenada por
negligenciar as necessidades de sua família quando aceita um trabalho
remunerado” (FOLBRE e NELSON, 2000, p.132). A mesma avaliação é
feita caso ela contrate alguém para auxiliá-la nas tarefas do lar. O
serviço doméstico só é “precificado”, ou se lhe confere valor econômico
e entra nas contas nacionais de um país, se realizado por terceiras
61
Mendes (2002) investiga, a partir de pesquisa qualitativa realizada junto a mulheres líderes
comunitárias de favelas do Recife, se a participação crescente das mulheres no mercado de
trabalho e a sua condição de chefes de família poderia estar relacionada à questão da
emancipação feminina. Conclui que a relação entre trabalho e emancipação parece estar
presente entre nas mulheres de classe média. Entre as mais desfavorecidas prevalece a
necessidade de garantir a sobrevivência do núcleo familiar e, quando questionadas sobre a
permanência do marido no lar, ou auferindo rendimentos inferiores, justificavam o fato
argüindo problemas de saúde dos mesmos, como forma de preservar os papéis ligados à
identidade masculina. Quanto à execução das tarefas domésticas “(...) apesar delas terem
assumido atribuições consideradas tradicionalmente masculinas, o mesmo não ocorre em
relação aos homens, que na maioria das vezes não as substituem no âmbito doméstico, e
quando o fazem é parcialmente, alegando que determinados serviços não podem e não devem
ser feitos por homens.” (p.8). Mesmo assim, a autora considera que “mesmo inscritas num
quadro de mudanças discretas e de lampejos de conservadorismo , foi possível perceber nessas
mulheres a emergência de elementos que as tornaram mais autônomas, decididas e com a autoestima melhorada (...) [elas] vão adquirindo também sua fresta de independência e liberdade
através da sociabilidade adquirida no ambiente de trabalho” (p.9-10). Até mesmo em espaços
econômicos com uma racionalidade diferente, como é o terceiro setor, o potencial
emancipatório proveniente do trabalho pode não estar se concretizando. Ramos (2006) discute
a funcionalidade do trabalho feminino para o terceiro setor e o desmistifica como locus
emancipatório. Apesar de ser um espaço focado nas atividades solidárias, ele reproduz – para
as mulheres - as mesmas condições de trabalho dos espaços não solidários, no tocante às
condições salariais e à dupla jornada de trabalho.
117
pessoas62. Quando realizado pelas mulheres é considerado parte das suas
habilidades naturais, da sua natureza, ou fruto de uma atitude amorosa
para com a sua família. No fundo, o que está em questão é decidir quem
será responsável pelos cuidados no lar e juntamente com eles os
cuidados com a saúde. Não apenas quem paga pelos cuidados, mas,
também, quem os executa.
Martin e Angelo (1999, p.89 e 93) destacam que famílias de
baixa renda têm características peculiares referentes à estrutura e aos
papéis familiares e à execução das tarefas domésticas:
A divisão de papéis entre os pais é bem definida,
cabendo à mulher a responsabilidade de educar,
socializar e cuidar dos filhos e ao homem, o
sustento da família. As interações entre pais e
filhos visam à resolução de problemas e não à
prevenção desses, ou seja; não há tomada de
decisões antes que algo aconteça, há apenas a
tentativa de solucionar um problema mediante sua
concretização. (...) O pai se responsabiliza pelo
sustento da família, nesse caso, o de subsistência e
a mãe se encarrega de todos os outros papéis para
com as crianças e com o marido. Diante do que
lhe foi ensinado por seus pais e reforçado com os
comportamentos de sua mãe, [a mulher] considera
seu desempenho uma obrigação, algo dado à
mulher de forma inata e acredita que o seu marido
ou companheiro já faz a sua parte trabalhando
para dar de comer aos seus filhos, não tendo que
ter mais a obrigação de auxiliá-la na educação e
cuidado das crianças, pois esse é seu papel dentro
da estrutura familiar. (...) A mulher-mãe torna-se
o eixo da estrutura familiar. Tudo passa a ser alvo
de seu controle: a criação e educação dos filhos, o
cuidado com a casa, com a saúde dos membros da
família. A expectativa que se tem dela e que ela
tem de si mesma é a de cuidadora, como se ela
62
Gelinski e Pereira (2005) mostram que a desconsideração nas contas nacionais do trabalho
não remunerado (aquele executado no lar) cria uma distorção na elaboração dos orçamentos
públicos. O trabalho executado pelas mulheres pela sua “invisibilidade” não tem como ser
objeto de políticas macroeconômicas. Certo avanço nesse sentido tem sido a realização de
pesquisas de uso do tempo como a que vendo sendo realizada pela PNAD no Brasil. Ao
respeito ver, também, Dedecca (2004).
118
nascesse com essa habilidade e capacidade a
desenvolver.
Já entre as famílias da classe média pode estar ocorrendo um
lento processo de transição, com uma relativa divisão de tarefas
(WAGNER et al., 2005). Mas essas mudanças parecem não estar
ocorrendo com a mesma intensidade em todas as famílias.
(...) a divisão de tarefas domésticas, criação e
educação dos filhos parecem não acompanhar de
maneira proporcional as mudanças decorrentes da
maior participação da mulher no mercado de
trabalho e do sustento econômico do lar.
Pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos têm
constatado que a divisão das tarefas domésticas
ainda tende a seguir padrões relativamente
tradicionais. Mesmo nas casas onde as mulheres
têm um ganho financeiro maior do que os
maridos, ou mesmo naquelas onde os maridos
estão desempregados, elas realizam uma
quantidade muito maior de atividades no trabalho
doméstico que eles. Ademais, homens e mulheres
ainda desempenham distintas tarefas domésticas
como se tais atividades fossem próprias de cada
um deles. Assim, as mulheres seguem realizando
tarefas como cozinhar, lavar e passar enquanto os
homens desempenham tarefas como carpintaria e
pequenos consertos. (...) Ademais, as mulheres
que sustentam a casa desempenham mais
tarefas domésticas do que as mulheres
dependentes economicamente de seus maridos,
proporcionalmente ao tempo disponível que
possuem. (WAGNER et al., 2005, p.182-3,
grifos nossos)
Conforme aponta Dedecca (2004), mesmo em países com
políticas sociais amplas, com creches em período integral, o tempo que
as mulheres dedicam às atividades do cuidado domiciliar e familiar é
muito maior do que o dos homens. Para ele, isso significa que não há
necessariamente correspondência entre grau de desenvolvimento do país
e alocação diferenciada no uso do tempo. Menciona que no Brasil, de
acordo com a PNAD de 2001, 42% dos homens declararam executar
119
trabalhos domésticos, bem abaixo da participação de 90% das mulheres
nessas atividades.
Quanto ao tempo dedicado aos afazeres domésticos, a Síntese de
Indicadores Sociais de 2010 (do IBGE) destaca que:
Apesar do aumento da taxa de atividade das
mulheres, essas permanecem como as principais
responsáveis pelas atividades domésticas e
cuidados com os filhos e demais familiares. No
Brasil, a média de horas gastas pelas mulheres a
partir dos 16 anos de idade em afazeres
domésticos é mais do que o dobro da média de
horas dos homens. Em 2009, enquanto as
mulheres de 16 anos ou mais de idade ocupadas
gastavam em média 22,0 horas [por semana] em
afazeres domésticos, os homens nessas mesmas
condições gastavam, em média, 9,5 horas.
(IBGE, 2010)
Gelinski e Pereira (2005) mostram que mesmo em países mais
desenvolvidos, que teoricamente teriam uma maior consciência das
relações entre gêneros, há uma concentração das tarefas domésticas
entre as mulheres. Os homens, quando se dedicam a elas, optam por
aquelas que estão associadas a um hobby ou às que proporcionam certo
prazer, como cuidar dos filhos, pintar a casa ou cuidar do jardim63.
Fontoura, Pedrosa e Diniz (2010) denominam de “atividades interativas”
as realizadas pelos homens no círculo doméstico e se referem
especificamente à realização de compras de alimentos em
supermercados, transporte de filhos para a escola oi, ainda, a atividades
esporádicas de manutenção doméstica.
Um dos avanços nessa discussão tem sido o conceito de barganha
(The bargaining approach) desenvolvido por Agarwal (1994). Nessa
63
Para Paulilo (1987), no meio rural as atividades às quais se dedicam mulheres e as crianças
(capinar, desbrotar, passar veneno, cuidar estufas de fumo...) são consideradas “leves”, em
contraposição ao trabalho “pesado” dos homens, isto é aquele que exige força física. “Poder se-ia pensar que mulheres e crianças desempenham certas tarefas porque, de fato, estas são
“leves” por sua própria natureza. Mas não é bem assim. Na verdade, qualifica-se o trabalho em
função de quem o realiza: são “leves” as atividades que se prestam à execução por mão-deobra feminina e infantil. Importa destacar que essa classificação está associada a diferentes
remunerações: maior para o trabalho “pesado”, menor para o “leve”, mesmo que ambos
demandem o mesmo número de horas ou que o esforço físico exigido por um tenha como
contraponto a habilidade, a paciência e a rapidez requeridas pelo outro. O que determina o
valor da diária é, em suma, o sexo de quem a recebe” (PAULILO, 1987, p.3).
120
abordagem, a família é uma complexa matriz de relacionamentos onde
se realizam negociações, mesmo que implícitas. Nas negociações “o
poder de barganha de cada membro estará dado por um conjunto de
fatores, em particular a força da posição de retaguarda da pessoa, fallback position, ou as opções externas que determinam que tão bem ela ou
ele estariam se a cooperação cessasse (p.54)”. Para Agarwal, quem
tivesse uma fall-back position mais favorável teria condições de sair
com um resultado mais favorável na negociação. Os elementos que
condicionam esse poder de retaguarda são a propriedade e o controle
dos bens econômicos, o acesso a emprego ou a outras formas de geração
de renda, o acesso a recursos comunais e a sistemas tradicionais de
apoio social externo (comunidade ou família ampliada) ou, ainda, a
possibilidade de contar com apoio estatal ou de ONGs64.
Nessa abordagem, o lar é palco de um arranjo onde pode se
verificar a cooperação ou o conflito. Só que com a cooperação todos
estariam melhor do que se não cooperassem. A cooperação vai desde
definir o que faz cada um, quem e como serão obtidos os bens e serviços
para a família e como cada um será tratado. Essa abordagem implica no
abandono da percepção da família como uma estrutura unitária onde as
decisões da unidade familiar representam o que é melhor para todos os
seus membros.
A questão de considerar a família como um lugar de barganha
não é apenas uma questão de interesse teórico, como bem aponta
Agarwal, mas uma questão crucial para a definição de políticas quanto à
concessão de recursos ou programas de apoio às famílias. Na medida em
que tem havido um aumento de mulheres na condição de chefes ou
responsáveis pelo lar, com ou sem cônjuges, torna-se vital reforçar a
retaguarda das mulheres como forma de melhorar não apenas o bemestar da família, mas, também, como forma de valorizar a sua
contribuição, com implicações na auto-estima e no bem-estar pessoal.
A concepção do lar como palco de relações de cooperação ou
conflito, onde se realizam negociações, deverá voltar à tona ao se
analisar o itinerário terapêutico escolhido pela família na busca por
tratamento de saúde. A escolha do itinerário mais adequado será fruto
64
Deere e León (2001) usam o referencial de Agarwal para analisar os direitos de propriedade
e de herança da terra no meio rural das mulheres no Brasil e na América Latina. Esses direitos
estão determinados por um viés de gênero, que exclui as filhas mulheres e as viúvas da herança
da terra, mesmo que nela tenham trabalhado arduamente, e as condena a viver com parentes,
pois não recebem terra como os membros masculinos da família. Ao respeito, ver também
Paulilo (2004).
121
das negociações que ocorram no seio da família, com peculiaridades
próprias no caso das famílias com chefia feminina.
O desenho de políticas públicas que envolvam famílias não pode
ignorar os papéis desempenhados pelos seus membros. Especificamente
no caso da política de saúde, se o novo modelo de saúde pressupõe uma
crescente responsabilidade das famílias, cabe indagar quem, dentro dela,
estará de fato ficando com a incumbência de arcar com esses cuidados.
E ainda, se a nova configuração do sistema de saúde estaria
sobrecarregando mais do que aliviando aqueles que assumem esses
encargos.
4.3 CONTROVÉRSIAS SOBRE O CONCEITO DE FAMÍLIA NAS
POLÍTICAS PÚBLICAS E DISPONIBILIDADE DE APOIO OFICIAL
Inúmeras controvérsias cercam a definição da família.
Extensamente estudada quanto a suas formas e funções ela não escapa
de ser um tema ainda em processo de construção. Na análise de políticas
públicas ficam em evidência a mutiplicidade de conceitos e critérios
operacionais que definem as famílias.
Sem a pretensão de fazer um resgate exaustivo da caracterização
da família, pretende-se aqui assinalar as principais concepções dela para
depois verificar qual a tratamento que os grupos familiares têm recebido
nas políticas públicas mais recentes e quais os mecanismos de apoio que
essas políticas preveem.
Machado (2001) assinala que nos estudos sobre famílias duas
linhagens são dominantes: uma que enfatiza a estrutura das mesmas e
outra que focaliza a família como sistema de valores. Peixoto (20007)
por sua vez remete aos estudos clássicos de François de Singly (2007)
na sociologia francesa, que classifica os estudos sobre as famílias a
partir de dois critérios: o primado do casal com foco nas relações
conjugais e o primado da parentela – em que as relações de parentesco e
os laços construídos entre as gerações ganham relevância sobre as
relações conjugais.
Na literatura brasileira é possível perceber dois grupos de estudos
sobre famílias. O primeiro grupo caracteriza as funções e a estrutura das
famílias a partir dos elementos históricos da formação da sociedade
brasileira, com claros impactos na legislação sobre família e sobre
questões civis a ela relacionada. Nesta linha, o ponto de partida são os
estudos que destacam a importância da família patriarcal como elemento
colonizador do Brasil (FREYRE, 1954; BUARQUE DE HOLANDA,
122
1936) e como organizador da vida social com impactos na configuração
dos serviços públicos como a saúde (COSTA, 1983). A concepção
patriarcal influenciaria de maneira decisiva o marco jurídico que se
regularia a vida em família e em sociedade, como a legislação sobre
casamentos de 1890. De forma semelhante mudanças na concepção da
família no século XIX apontariam para novos marcos legislativos (como
código Civil de 1916) que dessem amparo à família nuclear. (RAUPP,
1996; KROTH, 2008).
Os estudos do segundo grupo concebem os condicionantes
históricos da formação da família brasileira como elemento dado e, na
maioria das vezes, tais estudos não entram no mérito desses aspectos. Se
preocupam mais com questões como provisão das famílias, sua
constituição de forma ampliada ou em rede, desempenho de papéis
sociais, divisão de tarefas domésticas ou questões geracionais
(OLIVEIRA, 2005; GUEDES E LIMA, 2006; SCOTT, 2006; SARTI
2005 e 2007; SERAPIONE, 2005; DIAZ RÍOS, 2006).
Dentro desta segunda linha e, em particular sobre famílias
vulneráveis com monoparentalidade feminina ganham importância os
trabalhos que percebem a família como uma complexa rede de relações
(SARTI 2005 e 2007), aspecto sobre o qual é mister tecer algumas
considerações. A idéia da família em rede se contrapõe à definição
clássica de família de Murdock (1949, apud GERSTEL, 1996, p.297)
quem a definia como “grupo social caracterizado pela residência
conjunta, a cooperação econômica e a reprodução, [a qual incluiria]
adultos de ambos os sexos, pelo menos dois dos quais mantêm um
relacionamento socialmente aprovado, e um ou mais filhos, próprios ou
adotivos, dos adultos que coabitam sexualmente”. Para Gerstel (1996,
p.297) essa definição teria perdido a sua aplicação até mesmo para o
Ocidente65 e que, desde a década de 60 do século XX, ela só daria conta
65
Para Walby (1996) a família descrita por Murdock é um fenômeno etnicamente específico,
pois essa forma raramente foi encontrada entre os povos de ascendência africana. Para a autora
“(...) essa variação étnica é crucial para a análise de algumas feministas negras, tais como
Hooks (1984), a qual afirma que grande parte da teoria feminista partiu para uma generalização
ilegítima das experiências das mulheres brancas para todas as mulheres. A forma do lar
„tradicional‟ é incomum também entre as famílias brancas hoje em dia, em parte devido ao
aumento na proporção de mulheres casadas em empregos assalariados no período do pósguerra e ao aumento dos lares chefiados por um único genitor”. (WALBY, 1996, p.333). Para
Gerstel (1996) o núcleo pai-mãe-filhos morando juntos (ou seus variantes, um dos genitores e
filhos) é a forma típica de sobrevivência no ocidente moderno, e que não mostra
adequadamente o retrato das famílias pobres ou das famílias de algumas regiões da África
Ocidental, onde casais de baixa renda tendem a viver separados com parentes que oferecem
ajuda.
123
de uma minoria de lares. “A família, alegam os críticos de Murdock, em
geral consiste em um único genitor (o típico é que seja a mãe) e filho, ou
adultos coabitando sem filhos”.
A noção de família tem se transformado substancialmente. Além
de haver casais de classe média que vivem em casas separadas (devido a
compromissos de trabalho ou por opção), a própria noção de parentesco,
intimamente ligada à de família, tem sofrido modificações. O
parentesco, principalmente para famílias pobres, supera os laços de
sangue e transforma vizinhos, ou amigos próximos, em parentes. Eles
possibilitarão trocas de dinheiro, de apoio e até de afeto. Sarti (2007,
p.68) assinala que a sobrevivência de grupos familiares chefiados por
mulheres “é possibilitada pela mobilização cotidiana de uma rede
familiar que ultrapassa os limites das casas”. A idéia de família para a
população desfavorecida remete a “(...) uma rede local – não um lar,
nem uma vizinhança (...) é a unidade que permite a sobrevivência e que
organiza o mundo das pessoas” (GERSTEL, 1996, p.298). Dessa forma,
a família ganha novos contornos: A rede familiar difunde-se por vários
lares, com base no parentesco (...). Uma imposição arbitrária de
definições amplamente aceitas sobre família, a família nuclear, ou a
família matrilocal bloqueia o caminho para se compreender como as
pessoas em suas casas descrevem e organizam o seu mundo (STACK,
1974, p. 31).
A família ganha o atributo ou a forma de uma rede local
destinada a garantir a sobrevivência e, ao mesmo tempo, organizar a
vida das pessoas. Dentro dessa rede, os padrões de laços familiares e os
papéis passam a sofrer transformações. Mais especificamente, as
características das famílias (incluindo aí sua condição sócio-econômica
e as redes sociais que possuem) definirão as funções que as mesmas
desempenham.
Para além de questões específicas (e fundamentais) como a
concepção da família como parte de uma rede ou do seu formato
extenso ou nucleado, ou da divisão do trabalho dentro dos lares,
interessa agora resgatar num nível macro a percepção que o Estado tem
das famílias. Nessa direção, Itaboraí (2005) chama a atenção para o fato
de que as famílias historicamente têm sido definidas a partir das suas
funções (políticas, econômicas, de proteção social, reprodução biológica
ou cultural) e que o Estado de uma ou de outra forma tem regulado essas
funções, seja por ação ou omissão, via legislação, políticas públicas ou
currículos escolares. Menciona por exemplo, a preocupação com a
função reprodutiva da família, plasmada em políticas concretas de
124
planejamento familiar ou ações específicas de fornecimento de
condições de amparo para as famílias.
Na sociedade brasileira, a centralidade da família nas políticas
públicas mais recentes ficaria estabelecida na Constituição Federal de
1988, o que não impede que esse conceito esteja rodeado de
controvérsias. Kroth (2008) mostra que, a despeito da centralidade da
família estar prevista na Carta Magna, os juristas questionam o que seja
a família e propõem que a sua compreensão passe por um olhar
multidisciplinar que inclua estudos no campo do direito, da
antropologia, da sociologia, da Psicologia, da Psicanálise e de pesquisas
quantitativas (como o PNAD do IBGE), para “afirmar a complexidade
das relações familiares e para demonstrar a existência de componentes
psicossociais e culturais na compreensão das famílias” (p.119). Para a
autora, a intenção desses estudos seria qualificar a noção quase
imortalizada de que a família é a base universal da sociedade e colocar a
questão da afetividade como elemento integrador da família.
Na Carta Constitucional a família, além de ser considerada a base
da sociedade, passa a gozar de proteção especial por parte do Estado.
Tanto na Constituição quanto na legislação infraconstitucional se
explicitam direitos para a família e seus membros. Outro aspecto que
merece atenção na Constituição se refere à definição de família que lá se
encontra. O artigo 226 (que declara que a “família, base da sociedade,
tem especial proteção do Estado”) passou a definí-la a partir do
casamento, da união estável ou da monoparentalildade. Para Kroth
(2008, p.137) isso mostra que “a estrutura da família continua a ser
configurada pelo tripé pai-mãe-filhos (com exceção da
monoparentalidade, que é constituída por pai e filhos ou mãe e filhos)
evidenciando o núcleo básico presente no modelo nuclear de família”. A
autora considera que o texto constitucional deixou de incluir famílias
que fogem a esse padrão, como as homo afetivas.
Em termos das políticas públicas, há menções específicas à
definição de família e à forma de proteção que é oferecida para as
famílias. Aliás, é nessas políticas que se corporifica o claro chamado
para que as famílias assumam a responsabilidade de parcela da proteção
social.
A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) reconhece
explicitamente a centralidade das famílias “como espaço privilegiado e
insubstituível de proteção e socialização primárias, provedora de
cuidados aos seus membros, mas que precisa também ser cuidada e
125
protegida.” (BRASIL, 2004b, p.34). Para isso estabelece que no seu
trabalho com famílias:
(...) deve considerar novas referências para a
compreensão dos diferentes arranjos familiares,
superando o reconhecimento de um modelo único
baseado na família nuclear, e partindo do suposto
de que são funções básicas das famílias: prover a
proteção e a socialização dos seus membros;
constituir-se como referências morais, de vínculos
afetivos e sociais; de identidade grupal, além de
ser mediadora das relações dos seus membros
com outras instituições sociais e com o Estado.
(...) As novas feições da família estão intrínseca e
dialeticamente condicionadas às transformações
societárias contemporâneas, ou seja, às
transformações econômicas e sociais, de hábitos e
costumes e ao avanço da ciência e da tecnologia
(BRASIL, 2004b, p.29 e 35).
A PNAS trabalha com a compreensão de que as dimensões
clássicas que tradicionalmente definem a família (sexualidade,
procriação e convivência) já não estão tão entrelaçadas entre si. “Nesta
perspectiva, podemos dizer que estamos diante de uma família quando
encontramos um conjunto de pessoas que se acham unidas por laços
consangüíneos, afetivos e, ou, de solidariedade”. (BRASIL, 2004b,
p.35)
Cabe destacar que para essa política a centralidade da família é
essencial para a superação da focalização. O desenvolvimento de uma
política universalista prevê o entrelaçamento das suas ações com
transferências de renda a partir de redes sócio assistências que suportem
as tarefas cotidianas de cuidado e que valorizem a convivência familiar
e comunitária.” (p.35).
A menção às transferências de renda remete a um programa
específico, o Programa Bolsa Família (PBF), dentro das políticas
desenvolvidas pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome (MDS). Na lei que regulamenta esse programa consta que a
família é “a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros
indivíduos que com ela possuam laços de parentesco ou de afinidade,
que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se
mantém pela contribuição de seus membros” (BRASIL, 2004a, p.1).
126
No que se refere à menção de família com que trabalha a ESF,
cabe destacar que
(...) a família passa a ser o objeto precípuo de
atenção, entendida a partir do ambiente onde vive.
Mais que uma delimitação geográfica, é nesse
espaço que se constroem as relações intra e extra
familiares e onde se desenvolve a luta pela
melhoria das condições de vida – permitindo,
ainda, uma compreensão ampliada do processo
saúde/doença e, portanto, da necessidade de
intervenções de maior impacto e significação
social. (BRASIL, 1997, p.9).
A ESF estabelece como um dos seus objetivos básicos: “eleger a
família e o seu espaço social como núcleo básico de abordagem no
atendimento à saúde” (BRASIL, 1997, p.11) .
Embora
conste
explicitamente nos documento da ESF que a família é o objeto da sua
atenção, na prática diária das equipes de saúde muitas imprecisões giram
em torno da sua compreensão e definição, aspectos que serão melhor
detalhados na seguinte seção. Desde já cabe destacar que no documento
que assinala a reorientação do modelo em saúde (BRASIL, 1997) a
ênfase maior está precisamente na reversão do modelo de atenção e na
reorganização da prática assistencial e não em definir o real significado
dela estar centrada na família, nem a forma como esta concretamente
deverá participar.
Em todas as políticas públicas aqui analisadas, em comum
destacam-se a centralidade das famílias e a concepção destas num
sentido mais ampliado que abarca a rede como suporte importante de
suporte às ações de cada política específica.
4.4 A FAMÍLIA NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA
Na atenção básica à saúde a compreensão da família, sua
configuração e atribuições no cuidado são elementos fundamentais para
a definição de diretos e responsabilidades, ou recursos e deveres. Isso
porque, no novo modelo a família é considerada uma aliada na definição
de ações de saúde - quer seja na promoção da saúde, na prevenção ou na
cura. Entretanto, e a despeito da sua centralidade, alguns autores
chamam a atenção para o fato de que as ações em saúde pública nem
sempre têm claro quem é a família, objeto da sua prática (ELSEN, 1994;
127
CARVALHO, 1998; TRAD e BASTOS, 1998; RIBEIRO, 2004;
RESTA e MOTTA, 2005; SERAPIONE, 2005), nem dos laços de
parentesco que se apresentam nela, aspectos que têm implicações no
tratamento terapêutico (SCOTT, 2006). A falta de orientação sobre
como perceber a família está plasmada na configuração do formulário
do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), haja vista a
ausência de campos para registrar o grau de parentesco dos moradores
de uma casa. A noção de que a família em certas comunidades se dilui
na categoria parentesco (que se alarga para agregar vizinhos ou famílias
próximas) - noção esta que guia a prática dos Agentes de Saúde decorre da convivência desses profissionais com a população adstrita e
não das ferramentas e orientações normativas que norteiam o trabalho
com famílias (SCOTT, 2006)
Na tentativa de auxiliar profissionais que lidam com saúde das
famílias, Elsen (1994) resgata as teorias e marcos conceituais que tem
sido desenvolvidos sobre a família, não apenas na área da saúde como
também em outras áreas. Sintetiza num quadro alguns conceitos, suas
bases teóricas e as principais questões abordadas por cada referencial
(Quadro 4). A autora destaca que a “seleção de um conceito de família,
a partir de um referencial teórico, não e uma tarefa simples”. Essa
definição estará condicionada pela visão de mundo dos profissionais
ligados à saúde. Salienta, ainda, que a atuação do profissional da saúde
num atendimento deverá envolver tanto o domínio dessas questões
quanto a situação vivenciada pelas famílias.
Ribeiro (2004) também na tentativa de sanar indefinições na
categoria família, abstrai as percepções da família que têm permeado os
estudos sobre a ESF e propõe que a mesma seja abordada de seis
formas: família/indivíduo, família/domicílio, família/indivíduo/
domicílio, família/comunidade, família/risco social e família/família.
Na abordagem família/indivíduo a família é vista sob a
perspectiva do indivíduo (mulher, criança, idoso, portador de
hipertensão, etc.). Como o indivíduo é o foco da atenção, a família mesmo sendo o cliente nominal - não é “objeto” do cuidado. Nesta
abordagem a família tanto é responsável pelo cumprimento de deveres
quanto é responsabilizada por interferir positiva ou negativamente no
tratamento do indivíduo.
128
Quadro 4. Diferentes linhas teóricas de família: conceitos e áreas de interesse.
LINHA
TEÓRICA
REFERENCIAL
Interacionismo
simbólico
Desenvolvimento
da família
Sistêmica
Conflito
Materialismo
histórico
CONCEITO
ÁREAS DE INTERESSE
A família é uma unidade de
pessoas
em
interação
(Burgess, 1968)
A família é um sistema semiaberto com uma história
natural composta por vários
estágios sendo que a cada um
deles correspondem tarefas
específicas por parte da
família (ROGERS, 1964)
A família é um sistema
formado de
subsistemas
diferentes e maior do que a
soma de suas partes, em
interação
com
outros
sistemas.
Família é uma arena na qual
ocorrem conflitos de interesse
e alianças à procura de uma
ordem negociável (SPREY,
1979).
A família é uma instituição
social, um todo articulado,
relacional, constituído pelo
homem
social,
ativo,
permeado pela
estrutura
social de classes (GHIORZI,
1991).
Interações; papéis; significados;
socialização;
grupos
de
referência.
Tarefas da família, diferentes
estágios da vida familiar;
adaptação da família à entrada e
perda de membros.
Famílias
enfrentado
crises;
mudanças;
comunicação;
interação; interface entre os
diferentes subsistemas na família
e entre a família e o meio
ambiente.
Conflito e competição na família;
poder; negociação; mudança.
Consciência crítica do processo
de saúde/doença; transformação;
situação de classe e família.
Fonte: Elsen (1994, p.64)
Na abordagem família/indivíduo a família é vista sob a
perspectiva do indivíduo (mulher, criança, idoso, portador de
hipertensão, etc.). Como o indivíduo é o foco da atenção, a família mesmo sendo o cliente nominal - não é “objeto” do cuidado. Nesta
abordagem a família tanto é responsável pelo cumprimento de deveres
quanto é responsabilizada por interferir positiva ou negativamente no
tratamento do indivíduo.
Na abordagem família/domicílio, a família é representada pelo
seu espaço ou contexto físico. O foco de atenção se desloca para a infra-
129
estrutura material da família e as condições de cuidado desse ambiente.
Normalmente dados epidemiológicos têm por base o domicílio, como a
definição de famílias que precisam de auxílio ou das que estão em
condição de risco sócio-ambiental.
Na abordagem família/indivíduo/domicílio unem-se os sentidos
família/indivíduo e família/domicílio, só que desta vez focado em um
indivíduo doente nesse domicílio ou de indivíduos passando por
processo específico de saúde/doença (recém nascido, portador de
diabetes, etc.)
[Nestas famílias] intensifica-se a expectativa
quanto a papéis, deveres, responsabilidades da
família e a educação em saúde para o tratamento
e cuidados do paciente. Muitas vezes essa
família, envolvida
em argumentos
de
humanização da
assistência, recebe a
incumbência de aliviar o oficial de sistema de
saúde, enxugado/contido pelas exigências do
modelo neoliberal. A exaustão da família e os
efeitos nocivos dessa condição nem sempre são
percebidos ou considerados. Também há
resistências em se fazer correlações entre a
deterioração da saúde física ou mental de
membros da família (que vão desembocar nos
serviços de saúde) e as situações vividas de
excesso de deveres x recursos limitados.
(RIBEIRO, 2004, p. 662).
Na abordagem família/comunidade prevalece o conceito de
família ampliada em que a individualidade da família e a sua identidade
se diluem sob parâmetros definidos em função da inserção social ou do
ambiente físico e social da comunidade. Nesta abordagem “(...) as
medidas cuidativas são aplicadas às famílias. As famílias têm
responsabilidade para com os problemas locais da comunidade, tais
como marginalidade, violência, ou seja, agrega o enfoque de
família/agente, que deve viabilizar ações através de voluntariado,
associações, etc.” (p. 662).
Na abordagem família/risco social a atenção se dirige para
famílias em condição de exclusão social, moradoras de comunidades
periféricas. A família, pelas suas condições de precariedade, pela sua
estrutura, ou pelas suas condições sociais ou materiais não desempenha
de maneira adequada sua missão, e para isso requer ajuda “para voltar a
130
funcionar” (p.662). Nelas os profissionais de saúde sofrerão o impacto
de concepções polares que vão da concepção protetora/solidária à
discriminadora/julgadora/fóbica.
Na abordagem família/família: a identidade da família estará
determinada pelos seus simbolismos, suas racionalidades, seus pactos,
seus saberes ou necessidades. Neste caso ela é mais do que a soma das
individualidades.
Essa abordagem requer consideração: das
condições materiais e simbólicas, conseqüentes à
inserção social da família, a sua organização e
dinâmica, à disponibilidade de redes de proteção,
ao desempenho social esperado, dentre outras.
Requer ainda a definição do real-funcional e
simbólico dos seus recursos afetivos/emocionais,
espirituais, da capacidade de cuidar e cuidar-se,
da sua história de fracasso x sucesso para atender
as demandas requisitadas em suas diferentes
fases/momentos, da capacidade de avaliar, de
fazer julgamentos e escolhas. Enfim a família é
considerada em seu ser e viver, conseqüentes à
sua inserção no contexto social, historicamente
contextualizada, imersa na complexidade de ser
família na pós-modernidade (p.663).
Ribeiro (2004) conclui que o fato de colocar a família como foco
da atenção básica, não garante a sua concretização, pois os atores que
trabalham com as famílias podem estar fazendo-o com diferentes
perspectivas e diferentes abordagens e mais: “(...) não se encontram,
em documentos oficiais, orientações sobre como conduzir a ação
profissional frente às questões levantadas sobre dinâmica familiar,
ou como aplicar a Teoria de Sistemas, adotada pelo PSF, mantendo a
evidencia de que a família é predominantemente uma referência na
atenção básica de saúde” (p.663, grifos nossos). Por esse motivo é
pertinente a observação de Cianciarullo (2002, p.33) sobre a necessidade
de estabelecer um significado de família “válido e validado pelos
profissionais e pelos agentes comunitários que atendem [as] famílias”. A
autora alerta que, dependendo do contexto, o termo pode ter vários
significados: (i) pode estar associado à descendência (filhos, netos,
bisnetos), mas não a membros colaterais como primos e tios; (ii) pode se
referir àqueles que moram sob o mesmo teto (avós/tias que criam
netos/sobrinhos ou mesmo pessoas sem parentesco que residem ali); ou
131
ainda, (iii) inquilinos que passam a ser considerados parte da família.
Para ela o conceito de família deve emergir de pesquisas qualitativas
feitas junto a moradores de micro áreas, a fim de compreender o
significado que o termo tem no âmbito dos que se consideram como
“sendo da família” 66. A busca de definição da família numa dada
realidade em estudo pode até levar à mesma conclusão de Guedes e
Lima (2006, p.134): “a casa delimita a família”. Só que como advertem
Bruschini e Ridenti (1971, citadas por SILVEIRA, 2000) a confusão
entre moradia e família pode levar a um conceito naturalizado de família
(e consolidado por órgãos censitários) pois o fato de morar na mesma
casa não significa necessariamente que os seus componentes constituam
uma família. Este grupo a rigor deve remeter a laços afetivos e aglutina
um grupo de pessoas que não necessariamente deverão estar
circunscritos à unidade material de produção e/ou consumo – o
domicílio.
Assim como não há registro dos níveis de parentesco no interior
das famílias, as necessidades das gerações que a compõem são mais um
dos enigmas que cercam a aproximação das unidades de saúde com as
famílias. A esse respeito, Scott (2006) alerta sobre a superinclusão da
díade mãe-bebês, em detrimento de adolescentes, idosos e homens
jovens e adultos, os quais ocupam lugar subalterno nas ações da saúde
da família 67. Mesmo a mulher, que faz parte dessa díade, não está
incluída de modo integral: enquanto eixo importante da saúde maternoinfantil, ela é tratada como reprodutora e essa condição prevalece sobre
outras demandas de saúde integral da mulher.
a mãe é objeto de atenção justamente por ser mãe,
muito mais do que por ser mulher adulta, com
múltiplos papéis sociais na sua comunidade (...) a
mulher trabalhadora se envolve em muitas outras
atividades, além das que a identificam como mãe
(...) sua inserção na comunidade apresenta bem
mais facetas do que aquela que é vista com
máxima prioridade pelas equipes de saúde
(SCOTT, 2006, p. 117)
66
Duarte e Cianciarullo (2002) sugerem usar a classificação dos sistemas familiares proposta
por Pintos (1997) para entender a forma como os idosos são cuidados pelas suas famílias,
aspecto que deve ser levado em consideração pelas equipes da ESF. A saber: (a) sistemas
maduros ou funcionais (família normal); (b) sistemas imaturos (famílias tipo clãs,
superprotetoras, abandonadoras ou distantes).
67
Isso se explica pela importância que tem a mortalidade infantil, como indicador de saúde da
população.
132
Se as mulheres adultas (fora da ação mãe-filho) ocupam um lugar
subalterno, os homens, por sua vez, vêem as unidades de saúde como
domínio do mundo feminino, do qual só se aproximam quando há muita
necessidade ou por intermédio da mulher 68.
Essas deficiências podem decorrer, no entender de Scott (2006),
da necessidade de simplificar a realidade a fim de intervir nela. E no
fato dessa simplificação estar fortemente amparada na lógica médicosanitarista e biológica, em que o ciclo de vida com maior destaque é a
fase reprodutiva. No tratamento geracional, ao contrário da situação em
que não há normatividade sobre a definição de família, aspectos
normativos da execução das atividades das equipes parecem ter definido
prioridades no atendimento a segmentos da família, em detrimento de
outros. Entretanto, essa “normatividade” não necessariamente é
explícita, e pode estar condicionada pela concepção de modelos ideais
de família, amparada por concepções de moral amplamente aceitas pela
sociedade, como por exemplo, o fato de que as famílias devem cuidar
dos seus idosos. Esta idéia, por sinal, visaria confrontar a noção de que
famílias de baixa renda normalmente exploram ou abandonam os
idosos, ou os alojam em cubículos desconfortáveis. A questão que se
coloca é que ao entrar na intimidade da família as equipes de saúde
estariam em certa forma determinando o que a família deve ou não
fazer, sem compreender a ordem moral dessas famílias 69 e os
condicionantes que a sua situação de vulnerabilidade pode estar lhes
impondo. Scott é enfático sobre isto:
Sobressai [nessa retórica] a relativa ausência de
referências à integração complexa entre idosos e
seus familiares, com base nas noções populares
sobre ordem moral das famílias, o que favoreceria
um discurso no qual a compreensão do idoso
remetesse à noção de pobreza e de exclusão
reinante nas comunidades atendidas por equipes
de PSF, e apontaria a tensão subjacente à relação
entre camadas sociais desiguais (SCOTT, 2006, p.
123).
68
Somente desde 2009 há ações concretas destinadas à saúde dos homens com a criação da
Política Nacional de Saúde do Homem.
69
Sobre a moral das famílias pobres, ver Sarti (2007).
133
Porque é tão importante compreender a concepção de família
com que trabalha a ESF e a forma como se lida com as questões
geracionais? Será que não é apenas importante o fato de que a mudança
na assistência básica tenha significado uma melhora significativa nos
padrões de atendimento e até mesmo numa aproximação significativa da
população com os serviços de saúde? A chave que justifica a
preocupação com a inclusão do tema na agenda das políticas públicas
está no crescente repasse de responsabilidades para as famílias e o cabal
entendimento de quem, de fato, dentro dela está executando as tarefas de
proteção social. Responsabilidades que em sua maioria parecem estar
recaindo sobre as mulheres. Aí poderia se questionar: antes, quem
assumia essas responsabilidades? As tarefas do cuidado, incluídas aí as
práticas de saúde, sempre tiveram uma cara feminina, só que na
contemporaneidade as mulheres assumem cada vez mais encargos fora
do lar e muitas delas assumem com exclusividade o sustento da família.
Como a ESF parece trabalhar com um modelo de família em extinção
pode não estar notando que a co-responsabilidade prescrita nas suas
normas não tem condições concretas de tornar as famílias parceiras
efetivas no cuidado.
134
135
CAPÍTULO V
AS FAMÍLIAS MONOPARENTAIS ATENDIDAS PELA ESF EM
COMUNIDADES DE FLORIANÓPOLIS
Os capítulos anteriores mostraram as transformações ocorridas na
estrutura produtiva, com reflexos na inserção precária das mulheres no
mercado de trabalho. Em paralelo, evidenciou-se que transformações
societais provocaram mudanças na estrutura das famílias, com destaque
para o crescimento expressivo de famílias chefiadas por mulheres, sendo
que no país desse contingente quase metade se encontra submetido à
pobreza ou vulnerabilidade extremas.
O fio condutor deste trabalho tem sido investigar a configuração
da proteção social no país, com destaque para as ações em saúde. Até
aqui ficou estabelecido que embora o sistema de proteção social
brasileiro não tenha seguido os passos dos sistemas de welfare state
europeus (no sentido de institucionalizar a proteção a ponto de resistir a
embates político-partidários) ele acompanhou as transformações que
esses sistemas sofreram na direção de repassar para a sociedade, e em
particular para as famílias, parte da responsabilidade pela proteção
social.
Pretende-se mostrar neste capítulo que as famílias, originalmente
responsáveis pelos cuidados em saúde tiveram essa capacidade alterada
pelas práticas do modelo hospitalocêntrico e que agora, com o modelo
da Atenção Básica, são novamente chamadas a assumirem os cuidados,
só que em bases diferentes. As famílias pelas transformações pelas quais
têm passado (com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e com
o enfraquecimento das redes de suporte sócio-familiares) podem estar
impedidas de dar conta do que se espera delas no novo modelo em
saúde. Para isso, este capítulo adentra na intimidade de famílias
atendidas pela Saúde da Família a fim de captar as nuanças da
percepção que elas têm da proteção social oferecida pela ESF e a fim de
explorar a compreensão que elas têm do seu chamado à coresponsabilidade. Este capítulo inicia com as considerações éticas e
metodológicas que nortearam a coleta e o tratamento dos dados como
preâmbulo à análise da pesquisa de campo.
136
5.1 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA DE CAMPO
Esta pesquisa se caracteriza pelo seu caráter qualitativo e de
cunho descritivo, analítico e exploratório. As técnicas empregadas para
a coleta dos dados foram a observação participante e a aplicação de
entrevistas semi-estruturadas. A análise qualitativa dos dados foi feita
com base na análise temática de discurso. Antes de detalhar esses
elementos serão feitas considerações sobre os aspectos éticos que
nortearam a pesquisa de campo.
5.1.1 Aspectos éticos da pesquisa com famílias vulneráveis e
monoparentais
Conforme foi salientado na introdução, esta pesquisa se restringe
à população vulnerável atendida pela ESF. A opção pela famílias
vulneráveis justifica-se pelo fato de que a despeito do caráter
pretensamente universal das ações em saúde, na prática elas são
focalizadas. No Capítulo 2 resgatou-se a definição de vulnerabilidade do
Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde (mencionada por
GUIMARÃES e NOVAES, 2009, p.1), que considera vulneráveis as
“pessoas que por condições sociais, culturais, étnicas, políticas,
econômicas, educacionais e de saúde têm as diferenças estabelecidas
entre eles e a sociedade envolvente, transformadas em desigualdade”.
Cabe destacar que, para fins deste trabalho, são consideradas
famílias vulneráveis aquelas que moram em áreas consideradas de
interesse social no município de Florianópolis (Anexo I), conforme
critérios estabelecidos pela Secretaria Municipal de Habitação e
Saneamento Ambiental da Prefeitura do município 70. Essas áreas são
classificadas a partir de seis critérios: baixa renda familiar, precariedade
habitacional, precariedade da rede de infra-estrutura, precariedade
ambiental e áreas de risco, precariedade na posse da terra e precariedade
70
O diagnóstico, com a delimitação das áreas de interesse social, elaborado pela Secretaria de
habitação, Trabalho e Desenvolvimento Social da Prefeitura de Florianópolis, encontra -se em
http://www.pmf.sc.gov.br/habitacao/publicacoes_/planejamento_habitacional/diagnostico_ais_
1.pdf
137
dos equipamentos e serviços urbanos 71. No ano 2006, 13% da população
estimada pelo IBGE para o município (equivalente a 51.603 pessoas) se
encontravam nessa situação (PREFEITURA..., 2006).
Pesquisas com seres humanos devem obedecer a critérios
determinados pela Resolução 196/96 do Conselho nacional de Saúde 72.
Nessa Resolução constam as exigências éticas e científicas que devem
nortear esse tipo de pesquisa. A primeira exigência está posta pela
necessidade de respeitar a decisão dos indivíduos (famílias neste caso)
de participarem da pesquisa. Decisão que de acordo com a Resolução
196/96 do Ministério da Saúde deve ficar cristalizada no Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido – TLCE, no qual os entrevistados
expressem o seu consentimento para participar da pesquisa.
O TLCE (Anexo II) fez parte dos documentos obrigatórios para
obtenção de parecer do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC em
setembro de 2009. Para além das exigências feitas pelo Comitê de Ética,
entende-se aqui que o consentimento das famílias, obtido após o
esclarecimento dos objetivos da pesquisa, fez parte do atuar ético desta
pesquisa. A possibilidade (registrada no Termo) de retirar o seu nome da
pesquisa deixou os entrevistados à vontade para participarem da mesma.
A leitura do TLCE propiciou, também, expor os propósitos do trabalho,
sanar dúvidas e garantir o anonimato dos informantes.
Os centros de saúde aos quais pertencem as famílias entrevistadas
receberam autorização da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do
município após apresentação do projeto de pesquisa, onde constavam os
propósitos da investigação. A autorização concedida pela SMS
constituiu-se em peça chave para aprovação do projeto pelo Comitê de
Ética em Pesquisa desta universidade em setembro de 2009.
A SMS alertou desde o início que por questões éticas os Centros
de saúde não poderiam fornecer uma lista das famílias com o perfil
desejado pela pesquisa (vulneráveis e com monoparentalidade
feminina). Diante disso, a definição das famílias se deu por uma
aproximação com a técnica bola de neve, em que um ia indicando outro.
As visitas iniciais a campo procederam-se acompanhando as visitas das
ACS para ter uma noção mais precisa das muitas dimensões que o
trabalho de campo estava a exigir.
71
A especificação desses critérios está disponível em:
http://www.pmf.sc.gov.br/saude/inf_saude/criterios_para_classificacao_de_ais_setembro_2007
.doc
72
Disponível em http://conselho.saude.gov.br/docs/Resolucoes/Reso196.doc
138
5.1.2 Definição dos sujeitos da pesquisa e entrada no campo
A despeito do crescente número de famílias monoparentais com
chefia feminina foram muitas as dificuldades para encontrar as chefes
dessas famílias nas suas casas a fim de serem entrevistadas. Esse fato
em certa forma condicionaria as estratégias utilizadas para encontrar os
sujeitos da pesquisa.
A intenção inicial era selecionar famílias em pelo menos 5 das
64 áreas atendidas pelas unidades locais de saúde (ULS) das
consideradas de interesse social e que constam no documento Áreas de
Interesse Social por Unidades Locais de Saúde e Regionais de Saúde,
elaborado pela Secretaria Municipal de Saúde (Anexo I). Entretanto, a
seleção se limitou a apenas duas pela dificuldade de ter contato com
mulheres consideradas chefes de família. A primeira (denominada neste
trabalho de Área I) faz parte da Regional Leste e a segunda (Área II)
integra a Regional Centro. De acordo com estimativas feita pelo IBGE
em 2008 as duas áreas são responsáveis por pouco mais de 12 mil
residentes cada uma. Em termos de serviços prestados, em comum
ambas oferecem Clínica Geral, Básico de Enfermagem, Odontologia,
Programa Capital Criança, Vacinação, Teste do Pezinho, Enfermeiro,
Pediatria, Preventivo do Câncer e Ginecologia. A unidade de saúde da
área I é considerada referência pela qualidade do seu atendimento e por
realizar exames para outras unidades da mesma regional de saúde.
Haja vista que não se perseguia um caráter de representatividade
amostral nas entrevistas, selecionar famílias de apenas uma das áreas
teria sido suficiente para satisfazer os objetivos da investigação. No
entanto, o fato de obedecer a prerrogativa posta pela ULS de que as
entrevistas deveriam ser feitas na presença das ACS motivou a procurar
famílias atendidas pela ESF em outra área sem a mediação dos agentes
de saúde, afim de que não estivessem presentes no momento da
entrevista.
Em termos de número de entrevistados, pretendia-se inicialmente
selecionar de forma intencional 10 famílias vulneráveis e que tivessem
como característica a monoparentalidade feminina, a fim de hipotetizar
sobre o impacto que o agir da ESF teria sobre essas famílias, dada a
possível sobrecarga que elas naturalmente já enfrentam. Foi possível
ultrapassar esse número e entrevistar 14 mulheres chefes de família.
Quanto ao número de casos para a coleta de dados havia conhecimento
139
do alerta feito por Gil (2002, p.129) de que essa determinação não
poderia ser feita a priori com muita rigidez:
O procedimento mais adequado para esse fim
consiste na adição progressiva de novos casos,
até o instante em que se alcança a “saturação
teórica”, isto é, quando o incremento de novas
observações não conduz a um aumento
significativo de informações. Embora não se
possa falar em número ideal de casos, costuma-se
utilizar de quatro a dez casos. Com menos de dez
casos, é pouco provável gerar uma teoria, pois o
contexto da pesquisa pode ser inconsistente; com
mais de dez casos, fica muito difícil lidar com a
quantidade e a complexidade das informações.
Foi importante, também, nesse sentido a observação de Minayo
(1994), de que em estudos de natureza qualitativa não há uma
preocupação tão grande com a representatividade numérica da amostra,
mas com o aprofundamento e a abrangência da compreensão da
realidade estudada:
Podemos considerar que uma amostra ideal é
aquela capaz de refletir a totalidade nas suas
múltiplas dimensões. Portanto, podemos propor
alguns critérios básicos para amostragem: (a)
definir claramente o grupo social mais relevante
para as entrevistas e para a observação; (b) não
se esgotar enquanto não delinear o quadro
empírico da pesquisa; (c) embora desenhada
inicialmente como possibilidade, prever um
processo de inclusão progressiva encaminhada
pelas descobertas do campo e seu confronto com
a teoria; (d) prever uma triangulação. Isto é, em
lugar de se restringir a apenas uma fonte de
dados, multiplicara as tentativas de abordagem
(p.102).
Exatamente a fim de diversificar as tentativas de abordagem
houve uma estratégia diferenciada de entrada em cada uma das áreas. Na
primeira, o contato com as famílias foi intermediado pelas equipes de
ESF e na segunda área essa mediação ficou a cargo de uma líder
comunitária.
140
Depois do projeto ter sido aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da UFSC a Secretaria Municipal da Saúde orientou que deveria
ser feito contato com as unidades de saúde, via enfermeira chefe de cada
ULS, a fim de verificar como se realizaria a entrada em campo. Na
primeira ULS selecionada, a acolhida foi muito boa, tendo tido
possibilidade desde o início dos contatos de participar das reuniões
semanais de três equipes de SF, bem como das reuniões de marcação de
consultas e de reuniões de puericultura. Quanto ao contato com as
famílias foi esclarecido (pela direção da unidade de saúde) que o mesmo
deveria ser feito na presença das ACS para garantir a segurança da
entrevistadora, já que se trata de área de risco social com alta incidência
de tráfico de drogas.
Nessa área, a listagem de mães chefes de família que poderiam
ser entrevistadas foi levantada junto às equipes de saúde da família. As
entrevistas eram pré-agendadas pelas ACS para verificar o horário em
que as mães estariam em casa. Algumas entrevistas foram realizadas no
dia em que as crianças tinham encontros de puericultura na ULS,
ocasião em que eram discutidos temas de interesse das mães (como
amamentação ou vacinas) além de realizar controle de peso e tamanho
das crianças.
Da nossa parte, no início houve receio que a presença das ACS
pudesse induzir as pessoas a avaliarem de maneira positiva o trabalho
das Equipes de SF. Fato que não aconteceu, pois as entrevistadas mesmo
na presença das ACS ficaram à vontade e em diversos momentos
fizeram severas críticas aos serviços oferecidos. No decorrer da pesquisa
percebeu-se que a presença das ACS abria uma nova possibilidade para
a investigação: em muitos momentos o roteiro de perguntas cedia lugar
a longas conversas entre as agentes e as usuárias sobre aspectos
específicos da unidade de saúde, como demora na marcação de
consultas ou entrega de medicamentos. Nessas conversas foi possível
captar a percepção das ACS – aspecto que inicialmente não era alvo de
investigação - diante do que era apontado pelas entrevistadas, bem como
a alegria delas quando observações elogiosas ao seu trabalho eram
feitas. Esses momentos, também, possibilitaram perceber laços de afeto
que se manifestam entre as entrevistadas e as ACS, aspecto revelador de
nuanças no vínculo que se estabelece com as famílias.
A fim de isolar o possível efeito que a presença das ACS poderia
ter sobre as entrevistadas, o contato com mães chefes de família da
segunda área foi feito através de uma líder comunitária. Foi ela quem
indicou as mães que atendiam o perfil desejado. A possibilidade de
141
circular por área dominada pelo tráfico foi viabilizada pela companhia
dessa líder comunitária. Enquanto na primeira área a segurança da
pesquisadora era garantida pelas moças de jaleco azul (cor do uniforme
das ACS do município) na segunda área era garantida pela companhia
da líder comunitária. Ela conduziu nossos passos na comunidade mesmo
entre grupos de pessoas que poderiam estar ligadas ao tráfico de drogas.
Embora a líder estivesse sempre presente, ela raramente intervia durante
as entrevistas. Nas palavras dela queria que “a comunidade se
manifestasse”. As entrevistas foram feitas em diversas ocasiões, de
modo a ter contato com essas mães em horários que elas tivessem
retornado dos seus trabalhos. Como a líder expressou: “mulheres chefes
de família é o que mais tem neste morro. O difícil é encontrá-las em
casa”. Fora disso, a coleta de dados com essas mães também foi
possível, porque algumas dessas mães encontravam-se temporariamente
desempregadas.
Em ambas as áreas percebeu-se que a pesquisa conferia
visibilidade social às entrevistadas. De modo semelhante a o que foi
observado pela psicóloga Joana Vilhena de Moraes ao entrevistar
mulheres de várias classes sociais sobre cuidados estéticos (relato feito
por MELLO, 2010), constatou-se que as mulheres das camadas
populares têm pouca reserva ou cautela quanto à sua privacidade. Nas
palavras dessa pesquisadora: “Elas abriam as casas, recebiam no quarto,
trocavam de roupa na frente dela, desfilavam diferentes trajes,
cozinhavam, ralhavam com os filhos (...). Participar da pesquisa confere
visibilidade social para essas mulheres, enquanto as de classe média e
alta preferem dar entrevistas por telefone ou em lugares públicos”
(MELLO, 2010, p14). Nesta investigação, o tratamento franco dado ao
entrar nas residências plasmava-se em frases como “a minha casa é um
ranchinho, mas as portas estão sempre abertas” (U4).
A complexidade da pesquisa de campo e a riqueza de
informações obtidas nessas duas áreas fizeram com que fosse
abandonada a intenção inicial de pesquisar em cinco áreas de risco
social. Com estas duas áreas foi possível atingir a “saturação teórica” a
que Gil (2002) se referiu anteriormente.
Elementos levantados nas entrevistas bem como a construção das
categorias que surgiram das entrevistas mostraram a necessidade de
ouvir as enfermeiras chefes e as assistentes sociais das áreas em estudo.
Estas entrevistas, embora não estivessem previstas inicialmente
constituíram-se em importantes elementos de triangulação das
informações prestadas pelas entrevistadas e de percepção dos agentes
142
das políticas públicas a respeito de elementos abordados pelas famílias
entrevistadas.
A pesquisa de campo junto às famílias foi realizada entre os
meses de novembro de 2009 e abril de 2010 e as entrevistas com os
profissionais ligados às equipes de saúde da família no mês de outubro
de 2010.
5.1.3 Coleta de dados e instrumentos de pesquisa
Quanto à técnica de levantamento de dados, a intenção inicial era
apenas fazer entrevistas semi-estruturadas. Entretanto, o contato com a
realidade estudada trouxe novas possibilidades para melhor
compreender o fenômeno em estudo. Uma delas foi a participação nas
reuniões de equipes de ESF. A participação nessas reuniões era o
primeiro passo para expor os objetivos da pesquisa a fim de que a
equipe pudesse auxiliar na identificação das mulheres a serem
entrevistadas. A pesquisadora assumia nesse momento a condição de
“observadora participante”73, que teria continuidade na participação em
rodas de conversas que eram estruturadas nas reuniões de puericultura 74.
Mais adiante ao acompanhar as ACS nas suas visitas foi possível
observar elementos da interação com as famílias. Todos esses episódios
de observação da realidade estudada foram registrados num diário de
campo.
A participação tanto nas reuniões das equipes quanto nas reuniões
de puericultura possibilitaram o refinamento do roteiro semiestruturado75 de pesquisa que seria aplicado posteriormente (Anexo III).
De acordo Schwartz e Schwartz (1955, apud MINAYO, 1994, p.134): “(...) definimos a
observação participante como um processo no qual a presença do observador numa situação
social é mantida par afins de investigação científica. O observador está em relação face a face
com os observados, e, em participando com eles em seu ambiente natural de vida, coleta dados.
Logo, o observador é parte do contexto sendo observado no qual ele ao mesmo tempo modifica
e é modificado por este contexto”. Ver também ao respeito Haguette (2003) e Lima, Almeida,
e Lima (1999).
74
Percebeu-se que as rodas de conversas, enquanto mecanismo de educação popular em saúde,
possibilitam que os participantes organizados numa roda possam partilhar saberes e construir
de forma conjunta o conhecimento sobre determinadas práticas, mediados pelos agentes de
saúde e pelos médicos das equipes.
75
Minayo (1994, p.99, 100) alerta que “o roteiro de pesquisa difere do sentido tradicional do
questionário. Enquanto este último pressupõe hipóteses e questões bastante fechadas, cujo
ponto de partida são as referências do pesquisador, o roteiro tem outras características. Visando
aprender o ponto de vista dos atores sociais previstos nos objetivos da pesquisa, o roteiro
contem poucas questões (...) Roteiro é sempre um guia, nunca um obstáculo, portanto não pode
prever todas as situações e condições de trabalho de campo. É dentro dessa visão que deve ser
73
143
As questões abertas e fechadas ali elencadas permitiriam captar, a modo
de “fio condutor”, a percepção que as famílias têm da ESF, dos seus
processos de saúde-doença e do papel que a Estratégia Saúde da Família
desempenha neles. A construção do roteiro tentou abarcar as categorias
que davam conta da discussão teórica e empírica proposta. Para isso
foram definidas as variáveis e suas definições operacionais ou
instrumentais76 (Quadro 5).
Quadro 5. Categorias que embasaram a coleta dos dados.
VARIÁVEIS/CATEGORIAS
CRITÉRIOS/DEFINIÇÕES
Família
Vulnerabilidade
(O que é uma família vulnerável? Critérios adotados pela SMS para
definir famílias em áreas de Risco
Social)
Demandas de saúde
Bi ou monoparentalidade
Papéis de gênero
Responsabilidades
Proteção social
- pessoas sob o mesmo teto (casa)
- parentes em geral
- família nuclear ou expandida
- baixa renda familiar
- precariedade habitacional
- precariedade da rede de infra-estrutura
- precariedade ambiental e áreas de risco
- precariedade na posse da terra
- precariedade dos equipamentos e serviços
urbanos
-mecanismos de captação das demandas
(espontâneas e programadas)
- Monoparentalidade – lares conduzidos por
apenas um cônjuge
- Execução de tarefas no lar ligadas ao
gênero
- Cuidados com a saúde
- Responsabilidades repassadas para as
famílias pela ESF
- Responsabilidades das equipes de SF
- forma de satisfação das necessidades de
proteção social em saúde por parte das
famílias monoparentais.
- a proteção social proteção outorgada pelo
Estado e pela família
elaborado e usado. No processo de pesquisa pode surgir a necessidade da elaboração de um
questionário fechado para captar aspectos considerados relevantes para iluminar a compreensão
do objeto, estabelecer relações e generalizações. É importante o uso de várias técnicas e não há
oposição entre elas. O princípio básico para elaboração do questionário é o mesmo que
adotamos em relação ao roteiro: cada questão tenha como pressuposto o marco teórico para a
construção do objeto”.
76
Minayo (1994, na seção “A interação entre o pesquisador e os atores sociais no campo”
cap.3.b) elabora elementos importantes sobre o momento da entrevista, sobre a visão do
entrevistador, sobre sua capacidade (ou incapacidade) para ir além do conteúdo aparente,.
144
De acordo com Minayo (1994), as categorias são os conceitos
mais importantes dentro de uma teoria, pois possuem uma conotação
classificatória, isto é reúnem elementos sob um determinado título.
Vale destacar que as variáveis elencadas acima tratam dos
elementos que demarcam os grandes temas tratados nesta pesquisa e não
propriamente das categorias de análise que emergiram das entrevistas,
aspecto a ser tratado na seção 5.2.
Conforme foi mencionado anteriormente, durante o processo de
pesquisa tornou-se necessário analisar as percepções das coordenadoras
das unidades de saúde e das assistentes sociais. A decisão de incluir
estas últimas deve-se ao fato delas serem mencionadas pelas usuárias
como elementos fundamentais de suporte para acessar direitos. Nessas
entrevistas foram abordados aspectos relativos à configuração das
famílias e as possíveis necessidades de saúde diferenciadas. Houve
interesse especial em inquirir a respeito das demandas das famílias
monoparentais. Os outros aspectos indagados se referiam à questão da
co-responsabilidade e ao conhecimento que as famílias têm sobre os
serviços que as unidades oferecem com o novo modelo de atenção em
saúde.
5.1.4 Técnica de análise dos dados
Os dados foram submetidos à análise temática do discurso. É
importante salientar que tanto para a análise temática quanto para a
análise de discurso há várias definições (GILL, 2002; MINAYO, 1994;
BARDIN, 2004) o que justifica estabelecer os limites dentro dos quais
essa metodologia será empregada neste trabalho.
De acordo com Bardin (2004), a análise por categorias e a análise
do discurso fazem parte das técnicas de análise de conteúdo. Entretanto,
esse não é um fato consensual entre os especialistas em metodologias.
Minayo (1994), por exemplo, esclarece que para os criadores da análise
do discurso (com destaque para Pêcheux, 1969) esse seria um campo do
conhecimento separado da análise de conteúdo. A autora eluicida,
também, que a análise de conteúdo tanto pode significar uma técnica de
tratamento dos dados quanto um conceito historicamente construído em
contraposição a outras técnicas. A despeito dessa polêmica77, para fins
desta pesquisa adota-se a análise do discurso, com ênfase na análise
temática, conforme proposta por Minayo (1994) e Gill (2002). Essa
77
Para mais detalhes sobre essa controvérsia ver Capítulo 4 de Minayo (1994).
145
escolha deve-se a que ela permite compreender os elementos que
possibilitaram a produção do discurso, isto é os elementos sociais que
estão por trás dele e não apenas o discurso em si, enquanto objeto da
análise de conteúdo.
A análise temática prevê a elaboração de categorias temáticas, ou
temas que devem emergir de um texto ou discurso analisado. A noção
de tema está ligada a uma unidade de sentido (BARDIN, 2004). Para
Minayo (op.cit.) fazer análise temática
(...) consiste em descobrir os núcleos de sentido
que compõem uma comunicação cuja presença
ou freqüência signifiquem alguma coisa para o
objetivo
analítico
visado.
Ou
seja,
tradicionalmente a análise temática se encaminha
para a contagem de freqüência das unidades de
significado como definitórias do caráter do
discurso. Ou, ao contrário, qualitativamente a
presença de determinados temas denota os
valores de referência e os modelos de
comportamento presentes no discurso. (p.209,
grifo nosso).
Em termos operacionais, a análise de discurso prevê as seguintes
etapas: transcrição, leitura crítica, codificação e análise (GILL, 2002).
Nesta pesquisa o registro dos dados foi feito de duas formas. As
entrevistas, instrumentalizadas em questionários impressos, foram
gravadas e posteriormente transcritas. Nessa transcrição seguiu-se a
sugestão de Bardin (2004) de registrar tanto a informação lingüística
quanto a paralinguística (anotação dos silêncios, aspectos emocionais
tais como riso, tom irônico, toques e abraços, etc.). Como forma de
registro também foi aberto um diário de campo com observações de
eventos ordinários, que possibilitou compreender o contexto no qual as
entrevistadas se encontram inseridas. As reflexões feitas nesse diário
permitiram captar links teóricos com a situação em estudo. A transcrição
das entrevistas constituiu-se em momento de profunda reflexão em que
intuições analíticas foram surgindo. Reflexões essas que eram inseridas
como comentários à margem do texto. De modo algum foi exagerada a
observação de Gill (op.cit.) quanto ao tempo de transcrição das
entrevistas (10 horas para cada hora gravada). No caso desta pesquisa,
se as entrevistas demoraram entre 15 e 50 minutos, a transcrição de cada
uma delas demorou em torno de 5 horas. Da transcrição das entrevistas
146
e dos comentários ali inseridos surgiram os temas e categorias em torno
dos quais a análise seria feita.
Com o material editado, procedeu-se à leitura crítica, Nessa fase
foi feita uma leitura vertical e depois uma leitura horizontal das
entrevistas. Nesta última a intenção era perceber diferenças ou
semelhanças entre as respostas dadas pelas entrevistadas a cada questão.
Enquanto maneira de organizar a análise, a codificação foi feita
separando as afirmações usadas pelas entrevistadas em torno de
determinados temas.
A análise dos dados propriamente dita levou em consideração as
duas fases propostas por GILL (2002): a primeira, em que se verifica o
padrão dos dados, e a segunda, em que a preocupação está na criação de
hipóteses e de testá-las com os dados (discursos) produzidos. Conforme
assinala Gill (2002), tinha-se conhecimento de que no momento da
análise dos dados se estava produzindo uma versão sobre os fatos. Nessa
direção, o contexto que era acrescido pela pesquisadora às falas era
decorrente de uma leitura atenta tanto dos detalhes da entrevista em si
quanto do lócus em que as mesmas foram realizadas.
5.2 AS FAMÍLIAS MONOPARENTAIS VULNERÁVEIS E A ESF
EM DUAS COMUNIDADES DE FLORIANÓPOLIS
Em termos de localização regional das ULS, a primeira (aqui
denominada Área I) se encontra situada na Regional de Saúde Leste e a
segunda (Área II) na Regional de Saúde Central. Tomando por base o
Diagnóstico das áreas de interesse social elaborado pela Prefeitura
Municipal78, a ULS da Regional Leste está localizada em área
responsável por pouco mais de 8% da população instalada em áreas
irregulares de interesse social do município. Por sua vez, a segunda
encontra-se em região densamente povoada, responsável por mais de
40% desse contingente. Ambas as áreas estão sujeitas a risco de
deslizamento79. Em termos sócio-econômicos, chama a atenção o fato de
que embora a segunda área esteja inserida na região detentora dos
melhores indicadores sócio-econômicos do município (LACERDA,
78
Disponível em:
http://portal.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/24_05_2010_17.26.43.563188c89583efcf3b7
9164708b3cd5c.pdf
79
De acordo com o Sistema Webmapping das Áreas de Risco, ambas as áreas estão sujeitas a
nível médio e alto de risco de deslizamento. Informação disponível em:
http://www.ceped.ufsc.br/webmappingceped/index.html
147
CALVO, & FREITAS, 2002) ao mesmo tempo essa área possua a maior
proporção de população carente dentre os que moram em habitações
simples em áreas com elevada declividade. Esse aparente paradoxo pode
ser explicado pela sua localização no centro de cidade e pelo fator de
atratividade que representa para famílias vulneráveis dada sua
proximidade com as fontes potenciais de trabalho. Desse modo, a
população instalada da área II apresenta uma situação de carência mais
significativa que a ligada à ULS da área I. A carência se manifesta tanto
nas condições de vida quanto no atendimento recebido pela ULS da
região.
Conforme foi assinalado anteriormente, o momento de análise foi
um momento de profunda reflexão. Ouvir uma e outra vez as gravações
e rever os textos já transcritos possibilitou refletir sobre aspectos
pontuais de cada entrevista e propiciou perceber perceber certas
semelhanças e diferenças entre as entrevistadas. Com todos esses
elementos, o próprio discurso foi revelando dados que formariam as
categorias de análise, as quais não foram preconcebidas nem faziam
parte da estrutura do questionário. As categorias em torno das quais a
análise dos dados foi construída são:
- As múltiplas facetas da monoparentalidade feminina e a
caracterização da chefia feminina dos lares
- Concepção de família e apoio nos cuidados
- O itinerário terapêutico
- Satisfação com os serviços recebidos
- A questão da co-responsabilidade prevista pela ESF
- Como os profissionais da ESF, especificamente as
coordenadoras das ULS e as assistentes sociais, percebem a
monoparentalidade feminina e o repasse de responsabilidades.
Antes de entrar propriamente nas categorias de análise será
apresentada uma caracterização das famílias.
5.2.1 Caracterização sócio-econômica das famílias
Na seção seguinte será construída uma classificação analítica dos
tipos de famílias representadas pelas usuárias entrevistadas para esta
pesquisa. Neste momento apenas serão mencionados aspectos gerais que
possibilitem traçar uma rápida visão a respeito de quem são essas
usuárias entrevistadas e de que forma estruturam as suas famílias, bem
das redes que as amparam.
148
As entrevistadas têm entre 15 e 85 anos, três delas com mais de
60 anos e aposentadas. A condição de aposentadoria que seria previsível
nessa faixa etária só foi formalmente declarada por duas delas (as de 73
e de 85 anos). A terceira delas, aposentada com 67 anos, se declara “fora
da ativa” e lamenta não poder mais trabalhar pela sua condição de
saúde. Dentre as entrevistadas há uma quarta aposentada com 32 anos,
também por motivo de saúde.
Quanto aos seus níveis de renda, metade das entrevistadas declara
receber um salário mínimo por mês e as restantes até dois salários
mínimos. Em termos de escolaridade, metade afirma ter até quarta série
e somente uma das entrevistadas tem o segundo grau completo. Das 14
entrevistadas, quatro nasceram em Florianópolis, as outras são
migrantes oriundas do interior do estado de Santa Catarina ou do Rio
Grande do Sul. Os dados revelam que o fato migratório não é recente:
93% delas está há mais de cinco anos em Florianópolis e somente duas
(das dez migrantes) mudaram de bairro nesse período. Este detalhe é
importante para qualificar as informações que as usuárias forneceram,
pois revela que as famílias representadas pelas entrevistadas não são
novatas nas comunidades onde se encontram inseridas. Além disso, o
tempo que levam nas comunidades seria suficiente, a princípio, para
terem desenvolvido uma rede de contatos e para conhecerem a rotina
dos serviços de saúde do bairro.
Dos lares entrevistados, 36% eram sustentados exclusivamente
pelos rendimentos da mulher. Nos outros havia complementação de
renda por parte de filhos/amigos que moravam na mesma residência, ou
recebiam pensão de cônjuge aposentado por doença ou, ainda, recebiam
pensão por divórcio. Entretanto, o fato de receberem auxílio financeiro
não descaracterizava a condição de chefia do lar, isto é de responsável
pelas decisões do seu núcleo familiar.
Quanto à composição das famílias e sobre a compreensão que as
entrevistadas têm da sua condição de chefe do núcleo familiar, duas
delas externaram a sua condição de dependentes de outra pessoa: uma
senhora de 85 anos que se considerava “morando com os filhos” e outra
entrevistada de 32, com problemas de saúde. As doze restantes
consideravam-se cabeça do núcleo familiar, mesmo as aposentadas de
73 e 67 anos.
O pesquisa abordou famílias com crianças pequenas, adolescentes
ou adultos, mulheres idosas, de meia idade ou extremamente jovens,
famílias desestruturadas ou famílias em que pareciam primar relações
harmônicas e equilibradas. Em comum, a vulnerabilidade como pano de
149
fundo e a percepção de serem famílias monoparentais femininas. Cabe
esclarecer que a rigor o termo “monoparentalidade” implicaria a
existência de apenas um dos genitores no núcleo familiar. Entretanto,
neste trabalho essa noção também incluirá famílias em que a figura
masculina se faz presente, só que despida da sua condição de chefia do
lar, quer seja pela sua ausência temporária por problemas com a lei, ou
por causa de doença, em cujas situações a mulher assume a condição de
chefia.
5.2.2 As múltiplas facetas da monoparentalidade feminina caracterização da chefia feminina dos lares
Esta seção pretende chamar a atenção para a diversidade de
situações que há por trás da categoria “famílias monoparentais”, bem
como os múltiplos sentidos que podem caracterizar a chefia feminina
dos lares. A classificação é importante para compreender os
mecanismos de suporte que dispõem as famílias, sua rede de
relacionamentos e as trocas de auxílios e cuidados que se realizam nelas.
Essa classificação é importante, também, para levantar elementos que
contribuam para verificar se a política pública leva em consideração
essa multiplicidade, fato que poderia potencializar o vínculo entre as
famílias e as equipes de saúde da família, elemento importante para o
repasse da responsabilidade. Postula-se aqui que o formato da família e
da rede de suporte que a cerca condicionará a forma como se relaciona
com os serviços de saúde e isso terá reflexo no itinerário terapêutico a
ser seguido quando da busca de atenção para sanar moléstias ou
doenças.
Falar em chefia feminina dos lares (ou famílias chefiadas por
mulheres) remete a um conjunto de situações, condicionadas pela idade
da mulher, pelo número e idade dos filhos, pela rede social que lhe dá
suporte, e pelos vínculos com o mercado de trabalho ou o recebimento
de pensões ou aposentadorias. Esta caracterização é importante para
compreender que quando se trata com famílias não está se lidando com
uma categoria homogênea. Cabe salientar que a tipificação aqui
construída possui limites flexíveis e que algumas das entrevistadas a
rigor poderiam estar em mais de uma das tipologias apresentadas. A
despeito disso, entende-se que tipificar a diversidade de situações que se
abrigam na categoria monoparentalidade feminina é fundamental para
esclarecer os seguintes aspectos: compreender os percursos terapêuticos
dessas famílias, se elas interagem com os agentes da política pública (e a
150
forma como se dá essa interação), os elementos que dispõem para
cumprir a sua parte da co-responsabilidade e o tipo de proteção social
em saúde que essas famílias precisariam receber.
5.2.2.1 Mulheres chefes do lar idosas, com doentes acamados ou em
situação de vulnerabilidade
Neste grupo se inserem mulheres que têm sob os seus cuidados
pacientes (quase sempre filhos) com doenças ou condições de saúde
incapacitantes (que podem ir desde acidentes que causaram paralisia e
que mantém o paciente num leito até situações de pacientes com
distúrbios mentais severos). Neste grupo encontram-se também mães
chefes de família que assumiram essa condição quando jovens, por
ocasião da separação ou falecimento do companheiro 80 e que agora se
encontram aposentadas ou recebem algum tipo de pensão.
Quanto às mães com pacientes acamados, se de um lado a
situação destas mulheres é mais precária do que aquelas mais jovens que
se encontram no mercado de trabalho, por outro lado, percebe-se que
elas recebem uma atenção maior por parte das equipes da Saúde da
Família, nos quesitos marcação de consultas e entrega de medicamentos
no lar. Elas relatam receber visitas com mais freqüência do que as mais
jovens, fato que se justifica pela presença de doentes acamados e
também pela disponibilidade da usuária no domicílio em horário
comercial.
Durante as entrevistas às chefes de família com pacientes
acamados foi possível perceber profundos laços afetivos com as ACS.
Nas entrevistas em que as ACS estavam presentes as usuárias as tratam
como se fossem filhas. Dão-lhes apelidos carinhosos e durante a
entrevista é comum o toque como demonstração de afeto. Especial
alegria demonstrava uma usuária viúva de 73 anos com a visita da ACS.
Ela morava com três filhos, dois deles com problemas de saúde: uma
acamada com deficiência mental congênita, que fica se arrastando pelo
chão e usa fraldas, e o outro, surdo-mudo dependente de drogas.
Percebe-se um elevado grau de dependência deste tipo de usuária em
relação às visitas das ACS. Para essa usuária a presença da ACS é uma
das poucas “janelas” de contato com o mundo, pois a deficiência que a
filha tem a impede de sair de casa, pelo qual vai pouco à ULS. Observa-
80
Não foi intenção de este trabalho inquirir a respeito do vínculo legal existente na formação
do casal.
151
se que o laço afetivo criado não parece estar ligado necessariamente à
resolutividade de todas as demandas apresentadas.
Eu sou assim, quando posso me arrumo. Tomo um chá, um
comprimidinho que tenho em casa. Às vezes compro (o
remédio), porque nem sempre dá para ir lá, né? Não é
fazer pouco do pessoal do posto, que eles são legais. É
difícil ir ao posto por causa da minha filha [olha para a
ACS e diz rindo que todos são legais menos ela, ao tempo
de lhe fazer um carinho na mão]. E, além disso, tenho
dificuldade de sair sozinha para a rua. Quem vai sair
comigo?(U1)
Cabe destacar que não foi possível perceber o mesmo laço afetivo
entre as ACS e as mulheres mais novas. Fato que pode levar a
questionar se a efetividade da proteção social outorgada pela ESF não
estaria atrelada ao desenvolvimento de vínculos afetivos. Isto é, se
haveria mais proteção para idosas que se encontram praticamente
confinadas em casa e para as suas famílias do que para as mais jovens
que se encontram no mercado de trabalho. Essa hipótese ganhou força
ao ouvir de uma ACS, numa reunião de equipe, que algumas mulheres
teriam pedido que as visitas das ACS fossem realizadas nos fins de
semana. A essa fala seguiram-se vários comentários das outras ACS,
tais como o fato de estar fora do horário de trabalho delas, ou ainda de
que os fins de semana são destinados a cuidarem das suas próprias
casas. A forma como o tema foi abordado pela equipe denota que a
própria condição de mães e trabalhadoras das ACS lhes restringe a
possibilidade de dar um atendimento diferenciado para as usuárias que
estão ausentes dos lares em horário comercial.
Quanto às mães chefes de família que assumiram essa condição
quando jovens, por ocasião da separação ou falecimento do
companheiro percebe-se que, apesar da idade, ainda exibem o papel de
“chefe” do grupo familiar. É o caso específico de mulheres que acolhem
os filhos (e netos) que também tenham passado por um processo de
ruptura familiar. Ou ainda, trata-se daquelas que acolhem os filhos que
não conseguem morar sozinhos pelas suas precárias condições
financeiras. Nesses casos, como será visto na subseção seguinte, o
desgaste físico e emocional provocado pela incorporação de filhos com
suas proles parece ser compensado pelo apoio que estes podem
proporcionar para a matriarca em casos de doença.
152
5.2.2.2. Mulheres chefes de família que se encontram subordinadas a
outras mulheres – famílias inseridas em outras famílias
Neste grupo encontram-se aquelas que pela ausência de cônjuge
(por separação ou casos de mães solteiras) foram morar com as mães. A
noção da chefia familiar neste caso merece ser qualificada. Woortmann
(1987) em estudo sobre famílias carentes de Salvador, Bahia, chama a
atenção para a distinção entre “chefe de família” e “chefe da casa”. Para
ele “a chefia da casa depende da propriedade da casa e esta muitas vezes
pertence à mulher, seja por tê-la construído, herdado dos pais ou em
obediência ao padrão segundo o qual a mulher retém a casa na
eventualidade de um rompimento do vínculo conjugal” e conclui “é
significativo que o mesmo termo designa simultaneamente o grupo
doméstico e o prédio que o abriga, base material de sua realização.”
(p.68). O autor chama a atenção, ainda, para casos como famílias
compostas por mãe e filhos em que a chefia familiar e da casa é
desempenhada simultaneamente pela mulher. E também para casos em
que a mulher, ao construir um novo vínculo conjugal, continuará com a
chefia da família, situação em que o novo marido poderá vir a ser
considerado chefe da casa (e nunca da família) em função do seu
desempenho como provedor.
No caso específico do grupo ora analisado fica claro quem é a
figura da chefia da casa e da família. As próprias avós reconhecem suas
filhas como chefes de família por arcarem com a manutenção das suas
respectivas proles. O cuidado dos filhos por parte das avós – as chefes
da casa - possibilita a inserção das mulheres mais jovens no mercado de
trabalho, haja vista que uma das maiores dificuldades é a obtenção de
vaga em creches. Essa solidariedade inter-geracional, se expressa numa
mão dupla de cuidados. Se, de um lado, as filhas estão ao tanto das
necessidades da matriarca esta, por sua vez, cuida dos netos e em casos
de doença será ela quem aplicará o tratamento terapêutico mais indicado
– desde a prescrição de remédios caseiros até o deslocamento com as
crianças ao Centro de Saúde ou hospital - para que a filha não perca o
dia de trabalho.
Entretanto, há um outro grupo de mulheres que apesar de mais
velhas não se constituem chefes da casa. É o caso de mulheres que em
função da idade ou de doença vão morar com os filhos, mas que não
perdem a sua característica de chefes de família, por ainda terem filhos
ao seu encargo. É o caso de senhora de 85 anos, que mora com os 5
153
filhos, quatro deles casados e uma com 30 anos com deficiência mental
que exige cuidados intensos, já que “desde pequena tem que cuidar
porque não se movimenta muito” (U2). Nesse caso, a aposentadoria e a
pensão que a filha recebe lhe possibilitam ter certa autonomia financeira
e consegue administrar a “sua” família, que em sentido lato se restringe
a ela e à filha que moram dentro de outra família. Entretanto, se parece
haver uma certa autonomia financeira, a responsabilidade nos cuidados
da saúde é dividida: enquanto ela se vê na responsabilidade de cuidar
dos problemas de saúde (e da medicação) da filha deficiente, por outro
lado, quem administra a medicação de uso contínuo que ela ingere é de
responsabilidade do filho. Antes de ir trabalhar, ele deixa separados os
medicamentos que a mãe deve tomar ao longo do dia.
Independente do motivo que tenha levado à constituição destas
“famílias inseridas em outras famílias” tem que se atentar para o fato
que a disponibilidade da família ampliada se constitui em mecanismo de
suporte diante de adversidades, dentre elas a doença. Além disso estas
famílias certamente têm contato com as ACS, pois sempre haverá
alguém em casa para recebê-las, o que pode potencializar os recursos
terapêuticos oferecidos pela ESF.
5.2.2.3 Mulheres chefes com cônjuges em situação de risco social
decorrentes do uso ou tráfico de drogas ou mulheres com cônjuges com
problemas de saúde
Neste grupo encontram-se mulheres que arcam com a
responsabilidade familiar, mas que não necessariamente tem ausência de
cônjuge. Eles tanto podem estar enfrentando dependência de drogas,
estar presos por problemas com a lei, ou ainda, estar enfrentando
problemas de saúde que os impeçam de trabalhar.
Nestas famílias, mesmo que as mulheres se sintam subordinadas à
figura do cônjuge, a responsabilidade financeira e emocional recai sobre
elas. No caso daquelas cuja ausência forçada do marido por conflitos
com a lei as leva a assumir quase que integralmente a função de pai e
mãe, elas se vêm diante da preocupação de cuidar dos vários aspectos da
vida cotidiana (entre eles a saúde), além de enfrentar o medo diante de
incursões policiais efetuadas na região em busca de traficantes. A
ausência da figura masculina possibilita que em muitas situações a força
policial invada a residência sem maior oposição. A situação dessas
mulheres é muito frágil, pois a condição de esposas de presidiários as
leva a temer que qualquer esboço de reação durante essas incursões
154
possa redundar em “castigos” para os seus cônjuges lá na prisão, como
não recebimento de visitas durante um determinado período.
Para estas mulheres são mínimas as possibilidades de encontro
com as agentes de saúde, pois elas passam boa parte do dia fora e
relatam não conhecer como se procede o trabalho delas.
No caso daquelas que têm maridos com problemas de saúde,
mesmo tecendo críticas à ESF, algumas reconhecem a efetividade do
“sistema de visitas” das ACS, pois garantem o suprimento de remédios
de uso contínuo.
Pra mim o posto não resolve nada. Só resolve para o meu
marido porque quando ele precisa já falo: fulano está
precisando de remédio, eles não fazem esperar, vai já
consulta e já dão o remédio. só para isso mesmo que o
posto serve para o resto não serve. (U10)
Já outra entrevistada confessa que o marido não recebe as visitas, mas é
porque ele “deu um corridão nelas”
Meu marido não tem mais condições de trabalhar. Tem
épocas que ele não enxerga... e, para dizer a verdade, o
pessoal do posto não vem vê-lo. Eu ia ao posto, fazia a
ficha para eles virem ver ele em casa, eles nunca vinham.
Teve uma vez que deu uma crise tão forte que tive que
chamar o SAMU. Ficou desacordado desde as 4 da tarde
até as 6 horas [questiono se o pessoal da SF vem fazer
visitas]. Uma vez eles vieram e ele estava atacado da
diabete, ele as destratou. Disse um monte para elas. Tão
bravo que ele ficou porque vai lá ao posto e só o vêem lá.
Nunca mais vieram. (U13)
O desentendimento do cônjuge com as ACS significou uma
sobrecarga para esta usuária, pois não apenas passou a ter que ir à ULS e
buscar os remédios - coisa que as ACS fariam - como também tem que
tentar se impor, num jogo de força desigual, para que o marido siga o
tratamento e com isso executar de modo adequado a sua parte na coresponsabilidade nos cuidados.
Tem épocas que está bom, tem épocas que não está bom.
Aí quer dizer ele não está fazendo tratamento nenhum, por
155
que não está mais nem tomando insulina, porque eu dou
insulina nele, mas ele não quer mais tomar. [pergunto se é
porque não tem o medicamento]. Não, é porque ele não
quer mesmo. Ele não quer mais tomar. Eu não posso fazer
nada... Ele tem 50 anos e ele sabe o que faz. A minha parte
eu faço, eu vou ao posto, eu pego, dou a insulina nele, já
se ele não quer, não é criança tu vê, não vou ficar me
preocupando, o problema é dele. Não posso fazer mais
nada. Não vou ficar me preocupando. Já disse mesmo
para ele. Eu tenho que me preocupar com o que eu faço.
(U13)
O peso da responsabilidade que ela tem no seio familiar a torna
ciente de que tem que se cuidar bem para dar conta dos cuidados da
família.
Não posso ficar me preocupando com tudo. Quem vai
cuidar dos meus filhos se me dá alguma coisa? Ninguém
né? (U13)
Nestas famílias com chefia feminina em que aparece a figura do
cônjuge percebe-se uma situação paradoxal. Se, de um lado, são elas
que assumem as rédeas da casa (pela ausência do par ou por doença do
mesmo), por outro lado, elas têm dificuldade de impor certas práticas ou
proteger as suas famílias de maneira adequada. Como será visto mais
adiante, isso envolve a questão das negociações que se desenvolvem
dentro do núcleo familiar para decidir qual o itinerário terapêutico mais
adequado.
5.2.2.4 Mulheres chefes de família com filhos pequenos
Dentre os vários tipos de famílias encontrados este parece ser o
mais vulnerável. Se para as categorias anteriores o apoio público é
importante, para esta categoria as ações de proteção social são essenciais
para garantir a sobrevivência. No dia-a-dia, a difícil articulação entre
trabalho e encargos familiares condicionará a inserção destas mulheres
no mercado de trabalho e a forma como lidarão com seus problemas de
saúde, aspecto que também será tratado mais adiante ao discutir o
itinerário terapêutico seguido pelas famílias na busca por tratamento.
156
Especificamente nesta seção se tratará das estratégias da sua inserção no
mercado de trabalho e da forma que organizam sua estrutura familiar.
A inserção no mercado de trabalho das entrevistadas está
claramente condicionada pelas responsabilidades familiares e mais
especificamente estará condicionada por três fatores: o número e a idade
dos filhos e a disponibilidade de apoio para os cuidados. Tendo em
vista esses elementos, perguntou-se às entrevistadas como se processava
o cuidado com a casa e dos filhos, quem ficava com eles, o que eles
faziam no horário inverso ao das aulas, quem cuidava deles quando
estavam doentes e elas precisavam trabalhar, além de verificar como
essas mulheres adaptavam a sua inserção no mercado de trabalho para
adequá-la ao atendimento aos filhos.
As entrevistadas deste tipo de famílias relataram que executam as
tarefas do lar geralmente à noite e algumas contam com auxílio de
algum familiar próximo, normalmente menor de idade que mora na
mesma casa. No horário inverso ao das aulas, os filhos estarão aos
cuidados desses familiares, permanecem num projeto educacional ou
creche do bairro ou, ainda, há o caso daqueles que praticamente ficam
na casa sozinhos 81, sob o olhar mesmo que distante de alguma vizinha
nos dias em que a mãe precisa fazer faxinas82.
O mundo das entrevistadas parece estar composto por dois
círculos concêntricos, em que os vínculos de trabalho estão inseridos (ou
aprisionados?) na esfera dos vínculos familiares. Os vínculos de
trabalho obedecem à lógica e às necessidades impostas pelos vínculos
familiares. Embora as entrevistadas reconheçam que dependem do
trabalho para sustentar a prole, se a saúde dos filhos assim exigir estão
dispostas a abrir mão de vínculos de trabalho mais estáveis ou até deixar
de auferir renda (caso das diaristas) para poder atender os filhos.
Mesmo para aquelas que têm cônjuge em casa, se a
responsabilidade dos cuidados de saúde dos filhos recai unicamente
sobre elas, só lhes resta ausentar-se do trabalho quando os filhos estão
doentes e impossibilitados de ir à escola. “Quando vejo que não posso ir
(trabalhar) mando recado no meu serviço, eu ligo e digo que não vou
porque os meus filhos estão doentes. Não vou mesmo. Vou deixar os
81
Uma usuária confessou que com muito sacrifício conseguiu comprar um Play Station para
assegurar que os filhos ficassem em casa e não na rua durante a sua ausência.
82
Em trabalho anterior (GELINSKI, 2003) foi salientado o receio das mães, que deixam os
seus filhos sem a supervisão de um adulto, de serem denunciadas ao Conselho Tutelar - fato
que pode até levar à perda da guarda dos filhos.
157
meus filhos para ir na casa dos outros ? Não mesmo!” (U13). Fica
claro que prevalece o papel de mãe sobre o de provedora.
A questão dos cuidados é um dos elementos mais sensíveis na
vida das mulheres monoparentais. Se para algumas significa
readequação no mercado de trabalho para outras pode ocasionar a saída
do mercado de trabalho. Conforme se constatou numa reunião de grupo
de puericultura de uma equipe, algumas usuárias pararam de trabalhar
pela falta de creche para os filhos 83 ou mesmo por opção para se
dedicarem ao cuidado dos filhos. Nesta última situação se encontra a
usuária 7, mãe de quatro crianças pequenas, atualmente desempregada,
que sobrevive de faxinas e da pensão que recebe do pai da última filha.
Finda a licença-gestação decidiu desligar-se do emprego porque a
criança “não desgrudava dela”. No encontro de puericultura foi
destacada a sua tenacidade para que a filha (na ocasião já com nove
meses) amamentasse o maior tempo possível. Ao retornar da licençagestação a filha começou a adoecer e perder peso, motivo pelo qual
decidiu afastar-se do emprego. Ela teria optado por deixar o trabalho,
pois as faltas ao serviço eram muito freqüentes e as empresas não
estariam mais aceitando atestados.
Agora está difícil porque as firmas não estão mais
aceitando atestado do posto. Porque tem muita gente que
não passa pela situação que eu tenho, de cuidar tudo
sozinha, e às vezes vão lá e pegam atestado sem precisar.
Daí a gente acaba pagando por isso, né. Daí hoje em dia
está difícil até para dar atestado (U7).
A lacuna deixada pelo emprego formal e mais regular, na vida
desta e de outras mães, é suprida por faxinas eventuais. A faxina é tida
como “carta na manga” diante de perda repentina de uma ocupação
regular ou da passagem de uma atividade para outra e se constitui em
expediente importante de sobrevivência das famílias vulneráveis.
Além das faxinas há uma multiplicidade de ocupações/atividades
que garantem o sustento destas famílias e ao mesmo tempo
compatibilizar os cuidados.
83
A falta de creches é apontada por várias mães como o motivo pelo qual se encontram
desempregadas. Mãe de quatro filhos reclama da falta de creche: “Todos os outros 3 filhos vão
para a escola. Só a bebezinha está esperando a creche. Enquanto isso faço faxina uma vez por
semana” (U6).Outra mãe com bebê de 2 meses cogita deixar a filha com a mãe a partir dos
seis meses, para não tirar o lugar de creche de outra mãe que precise mais do que ela.
158
Geralmente vendo roupas também e também trabalho aqui
ao lado com a minha irmã numa cozinha industrial. Nós
fazemos pizzas. Também faço tapetes para vender, não
tenho sossego, é bem corridinho. (U9, que trabalha em
turnos de 12 h seguidas a cada 48 h).
A situação de precariedade destas famílias é muito grande em
função do cuidado que elas têm em relação aos filhos. As que cuidam
sozinhas do sustento do seu núcleo familiar e dos filhos ao mesmo
tempo nem sempre conseguem cuidar adequadamente das duas coisas e
acabam saindo do emprego para uma atividade mais esporádica. Isso
amplia a possibilidade de ter uma situação mais precária no futuro, pois
trilham um caminho que lhes veda o acesso à aposentadoria e a outros
benefícios sociais. Os trabalhos eventuais são de fato para estas
mulheres uma “carta na manga” cujas conseqüências poderão ser um
aumento da precarização.
5.2.3 Concepção de família e apoio nos cuidados
Conforme foi assinalado anteriormente, as entrevistadas
encontram-se morando nas suas comunidades por tempo suficiente para
terem construído uma rede de relacionamentos que, dentre outros
aspectos, lhes possibilitasse contar com auxílio em casos de doença. A
configuração dessa rede e o entrelaçamento dela com a família
consangüínea são elementos cruciais para entender os mecanismos de
apoio que dispõem as famílias monoparentais.
Ao se referirem à família, algumas entrevistadas fizeram menção
ao núcleo familiar restrito composto pelas pessoas que moram na
mesma residência (ela, filhos, sobrinhos menores, algum amigo e o
cônjuge em alguns casos) ou, ainda, por parentes que moram nas
proximidades. Outras se referiam à família num sentido ampliado que
também incluía os moradores próximos sem grau de parentesco direto,
com os quais foram estabelecidos vínculos estreitos.
Geralmente aqui no morro a gente tem mais de uma família. Tem
a minha mãe, meu pai e meus irmãos, que moram lá em cima. Aí
aqui é só eu e minha filha e meu marido que está preso. De
família tenho a Dona XXX e a Dona YYY (vizinhas da
comunidade). Aqui a gente tem várias famílias. Morando no
159
morro a gente não tem só uma família, né? Tem várias. A gente
tem mais contato, fica mais próximo da gente. (U11)
A pesquisa possibilitou constatar que a infra-estrutura que cerca
as moradias pode ter influência na percepção da idéia de família. A
noção de família ampliada parece ser mais freqüente entre aqueles
moradores que vivem em condições mais precárias. Talvez a exiguidade
dos terrenos e a proximidade física em que os moradores dessas áreas se
encontram criem condições para que se formem laços de solidariedade,
que poderiam se manifestar em ações concretas em situações de doença,
cuidados dos filhos e até mesmo apoio emocional ou financeiro. Na
contramão dessa situação, percebeu-se que nas moradias com melhores
condições de renda parece primar a noção de família como uma entidade
individual e quase auto-suficiente.
A condição de auxiliadoras das famílias carentes já foi apontada
por pesquisas realizadas no país84 e mesmo em relatos de outros países
essa faceta se faz presente85. Entretanto, chamou a atenção nas
declarações das entrevistadas das duas comunidades (mesmo que em
gradações diferentes) que, a despeito de muitas afirmarem se sentir parte
de uma grande família, a sensação de segurança que essa rede
poderia lhes proporcionar em situações de doença só é perceptível
nas declarações daquelas que têm famílias consangüíneas morando
nas proximidades. Quando questionadas diretamente a respeito de
quem recebem auxílio em caso de doença afirmaram:
Minha mãe ajuda. A gente corre em primeiro lugar para a
mãe. Pego direto o morro, em direção à casa dela.
Quando eles (os filhos) ficam doentes é a minha mãe
mesmo. Eles não podem ir à creche. Não aceitam. Tem que
levar um atestado dizendo que já está melhor (U11).
84
Ver por exemplo: Lima (2006), Woortmann (1997), Guedes e Lima (2006) e Sarti (2007).
Em estudo realizado na Espanha, De Miguel (1998, citado por SÁNCHEZ VERA e BOTE
DÍAZ, 2009, p.130), destaca que há evidências empíricas que mostram que as famílias de
classe baixa são mais “ajudadoras” que as de classes altas. Ele aponta quatro motivos que
explicariam essa condição: “(a) As famílias pobres tendem a ser mais ajudadoras porque elas
têm mais situações de precariedade entre os seus membros; b) a isso deve se acrescentar que
são mais extensas têm mais membros em situações de insegurança e menor renda per capita; c)
talvez seja que as famílias das classes mais baixas são mais generosas; d) podem estar mais
pobres precisamente porque são mais altruístas. A realidade é uma combinação dessas quatro
hipóteses”.
85
160
Qualquer coisa, pergunto para minha mãe. Isso é
indispensável. A mãe ajuda sempre. (U12)
Quem fica com os meus dois filhos pequenos quando estou
doente é mais velha (de 15 anos).(U3)
Conto com a ajuda dos filhos. Às vezes é a caçula, às vezes
é a filha mais velha. Numa emergência até dá para
chamar a avizinha. (U1)
Conto com os meus filhos. Todos trabalham. Se precisar
eles me ajudam. (U2)
Às vezes posso contar com a minha irmã. Quando as
crianças dela ficam doentes a ajudo. Dos vizinhos se
precisar de alguma coisa que a gente não tenha, eles
ajudam. (U6)
Quando meu filho tem problema de saúde ele fica muito
com a avó dele, a mãe do pai. Quando está doentinho que
preciso trabalhar mesmo assim eu o levo lá, daí ela cuida.
(U8, mulher que mesmo separada conta com a ajuda da
ex-sogra)
Se meu marido fica doente a comunidade ajuda né? Pra
buscar, pra pegar um carro. Na última crise que ele teve
quem ajudou foi a prima dele. (U10)
Nos depoimentos das entrevistadas percebe-se que há dois tipos
de necessidades: quanto ao tratamento terapêutico e quanto ao cuidado
dos filhos para não perder o dia de trabalho. Aquelas que expressam ter
mãe ou irmãs por perto se sentem mais amparadas do que aquelas que
não dispõem desse apoio:
Quando meus filhos têm problema de saúde quem cuida
sou eu mesma. Não tenho parentes. Conto mesmo é com a
ajuda de Deus... Com os vizinhos posso contar um pouco.
Quando fui para ganhar neném meus outros filhos ficaram
com a vizinha (U7).
161
[com quem posso contar?] só com meu marido mesmo
(U5)
È difícil receber ajuda. Tem uma filha que lá uma vez ou
outra vem. Ela mora aqui perto, mas trabalha todos os
dias. Só no final de semana vem por aqui. Quando fico
doente me cuido sozinha. (U4)
Eu não posso contar com as irmãs, que tem os filhos,
trabalham fora, aí também não posso contar. Quando vejo
que não posso ir trabalhar mando recado no meu serviço,
eu ligo e digo que não vou porque os meus filhos estão
doentes. Não vou mesmo. Vou deixar os meus filhos para
ir à casa dos outros? Não mesmo! (U13)
Nas declarações das entrevistadas que moram distante dos
familiares, das que não têm outros parentes além do núcleo familiar
restrito, ou daquelas que não conseguiram formar uma rede que
substitua a família, fica patente o sentimento de desamparo. Na hora dos
cuidados se declaram estar sós ou afirmam contar apenas “com a ajuda
de Deus”, afirmação que longe de ser um simples aforismo parecia se
referir a convicções profundas das entrevistadas.
Detalhe importante é que as possibilidades de auxílio parecem
estar sempre atreladas a outras mulheres (WOORTMANN, 1987;
BOEHS, GRISOTTI e AQUINO, 2007). Na formação de vínculos, as
mulheres atuam como verdadeiros nós de uma rede. São elas que
detectam as necessidades umas das outras e criam um ambiente propício
à ocorrência de trocas. Essa rede funciona até mesmo para aquelas que
têm cônjuges, mas afirmaram não poder contar com eles:
O meu marido só sabe gritar; Quem fica com os dois
pequenos quando estou doente é a minha filha mais velha
de 15 anos (U13).
Independente de contarem ou não com o auxílio de parentes ou
de membros da comunidade, chamou a atenção que somente uma das
entrevistadas incluiu a ULS na hora de responder quem a auxiliava nos
cuidados em saúde:
162
Isso aí é comigo mesmo. Às vezes quando tem um
problema de saúde, alguma febre, já corro no posto, pego
remédios (U3).
Essa resposta chamou a atenção para a ausência do poder público
na hora de conceder apoio às mães trabalhadoras. Além de elas
enfrentarem dificuldades para conseguir vagas nas creches, diante de
casos de doença têm que “fazer toda um ginástica” (na expressão delas)
para deixarem os filhos com alguém ou faltarem ao serviço, pois não
podem levar os filhos á escola com quadro de doença.
Pelo papel central que as mulheres desempenham na dinâmica
dos cuidados familiares elas não se entregam facilmente quando a
doença as alcança. Quando questionadas a respeito do que fazem
quando adoecem e quem lhes cuida, as respostas selecionadas são
emblemáticas:
(o que faz quando adoece?) Ai meu Deus... Eu cuido da
minha irmã (que é vizinha) e ela cuida de mim. (U8)
Eu mesma me cuido. Eu sou uma pessoa que se estou
doente não deito, não durmo. (U13)
As mulheres não podem adoecer. A mãe não pode
adoecer. Eu fico irritada quando fico doente, uma dor de
garganta, uma dor de cabeça porque tenho que trabalhar
mesmo assim. As mães têm que ser um polvo, tem que ter
vários braços. Um (filho) grita, outro chama. Agora os
meus já estão bem grandinhos, já ajudam bastante. (U6,
mãe de quatro filhos, com idades entre 7 meses e 8 anos,
migrante e sem parentes).
Mesmo as que têm marido em casa, acamados ou aposentados
por problemas de saúde, percebem o quanto precisam estar bem de
saúde para atender a sua família
Eu tenho que me preocupar com o que eu faço. Não posso
ficar me preocupando com tudo. Quem vai cuidar dos
meus filhos se me dá alguma coisa? Ninguém né? (U13)
163
Em estudo feito entre mulheres de camadas populares em
Manaus, Gutierrez e Minayo (2009) assinalam o quanto o adoecimento
da mãe/esposa pode ser um evento perturbador para uma família
nuclear. Situação que, sem dúvida, é mais perturbadora para as famílias
monoparentais. Se no primeiro caso elas se sentem compelidas a
continuarem ativas, no caso das chefes monoparentais elas
simplesmente “se recusam” a ficar doentes, muito mais se levar em
consideração um aspecto citado por Gutierrez e Minayo (ibid.) a
respeito de que normalmente a ajuda recebida é direcionada a cuidar dos
serviços domésticos ou da rotina da casa e não da doente em si, que se
vê na contingência de ir sozinha ao médico. A negativa de aceitar a
doença pode estar relacionada ao aspecto destacado por Aureliano
(2010) entre mulheres mastectomizadas, vítimas de câncer de mama.
Para elas, o fato de pararem por causa da doença e não se dedicarem ao
que sempre faziam (lavar, cozinhar, varrer) mais do que um alívio das
suas estafantes atividades, significaria uma inutilização ou
desvalorização de si mesmas.
Retornando à interligação da configuração da família e as
possibilidades de apoio, Boehs, Ribeiro, Grisotti et al (2009) destacam
que as condições de vida atuais têm reduzido a rede de apoio para o
cuidado dos filhos, pois as mães precisam voltar logo ao trabalho 86 e as
avós e outras pessoas da rede familiar também trabalham fora ou moram
distantes. Essa situação impede que as mães aprendam os cuidados
básicos de saúde no sistema familiar87. “O vínculo familiar favorecia a
manutenção de uma rede de saberes e práticas (...) a experiência familiar
de aprendizagem cultural do cuidado que perpassava entre as gerações,
86
Com o conseqüente desmame precoce dos filhos apesar da existência de programas federais
de incentivo à amamentação.
87
De acordo com Grisotti (1998), com base em Loyola (1984a, 1984b e 1987), Boltanski
(1984) e Buchillet (1991), a medicina familiar configura as práticas terapêuticas que são fruto
da experiência acumulada por amigos, vizinhos ou familiares que em algum momento puderam
aferir a eficácia de algum tratamento ou medicamento. Seu caráter é essencialmente imitativo.
Esse tipo de medicina se revela no uso de remédios caseiros, na busca por curas através de
orações ou preces, ou até mesmo na automedicação com medicamentos pesados como
antibióticos. A medicina oficial trata das práticas envolvidas na oferta de serviços públicos de
saúde destinados à população de baixa renda. Nesse segmento operam médicos que irão lidar
com doentes das classes populares que embora recorram à medicina popular reconhecem a
oficial como superior. Dadas suas limitações no atendimento e diagnóstico essa assistência
médica é mais voltada para o registro dos sintomas e não das suas causas. Já a medicina
paralela se refere a um conjunto de práticas que abarca desde tratamentos com ervas
medicinais até aqueles com fundo religioso praticados pela umbanda, candomblé, espiritismo
ou mesmo as oriundas do catolicismo ou do protestantismo.
164
foram se reduzindo, tornando as mães inseguras em relação ao cuidado
dos filhos” (p.6).
Como será visto na próxima seção, a ausência dessa rede de
saberes e práticas terá impacto no processo terapêutico ou na busca de
tratamento por parte dessas mulheres trabalhadoras. Por enquanto, o que
se quer destacar aqui numa perspectiva mais ampla é a dificuldade que
as mães trabalhadoras enfrentam quando surge um quadro de doença.
Elas têm que contar com esquemas próprios ou redes que lhes dêem
suporte tanto no que se refere ao tratamento terapêutico mais adequado
quanto à possibilidade de obtenção de ajuda para ficar com os filhos, ou
cuidar delas mesmas.
Esses elementos remetem aos aspectos apontados por Martin
(1995) e Nunes (1995) no terceiro capítulo desta tese, ao discutir os
limites da nova configuração dos sistemas de proteção social. Mais
especificamente, aos riscos da proteção estar assentada em bases tão
frágeis como as redes de solidariedade primárias ou sócio-familiares,
que não se constituem em mecanismos sólidos e duradouros de proteção
social, nos moldes da proteção outorgada pelo Estado. Fragilidade essa
que é potencializada pelas transformações pelas quais as famílias vêm
passando, com destaque para a crescente inserção das mulheres ao
mercado de trabalho e o seu distanciamento geográfico com as gerações
anteriores, ditado pela disponibilidade de fontes de trabalho em outras
regiões. O caráter anônimo e ligado à noção de cidadania da proteção
estatal contrasta com o apoio outorgado no espaço doméstico que
precisa de constantes mecanismos de ancoragem88. Martin (1995)
destacou, também, que a solidariedade baseada no papel dos parentes
pode acentuar as desigualdades em vez de compensá-las, haja vista que
pode haver pessoas que não contam com ninguém, para as quais morar
sozinhas não é uma opção, mas uma situação imposta por circunstâncias
da vida. Para elas “pobreza e precariedade se coadunam com isolamento
e solidão” (p.65). Nesse sentido, alerta que segmentos sociais com redes
de suporte mais restritas estariam automaticamente excluídos dos
mecanismos de proteção via solidariedade familiar.
“As práticas de ancoragem correspondem a uma atividade de classificação sujeita a
permanente revisão, e que se realiza praticamente através de um conjunto de atividade
destinadas a confirmar ou redefinir as condições de pertença a uma rede de solidariedades
primárias e o grau de proximidade entre os seus diferentes membros. Assim, o recrutamento
para uma rede por nascimento, casamento ou afinidade não garante um estatuto estável no seio
de uma rede de solidariedades primárias” (NUNES, 1995, p.11).
88
165
Se a solidariedade familiar tem os seus limites, a ausência dela
impõe às famílias um elevado encargo. Mesmo com as suas fragilidades
ou deficiências, as famílias ampliadas se constituem em mecanismos
importantes de proteção social na tentativa de sanar o vazio do Estado
como elemento efetivo de proteção via políticas públicas.
5.2.4 O itinerário terapêutico
A opção que as entrevistadas fazem na busca por tratamento
deriva da sua própria concepção do processo saúde-doença. Langdon
(1995) mostra as possibilidades que a antropologia da saúde oferece
para entender esse processo em contraposição às abordagens propostas
pela biomedicina. Enquanto a biomedicina vê a “doença como um
processo biológico universal” (p.1) a antropologia da saúde, e em
especial a etnomedicina, concebe a experiência subjetiva da doença
dentro do seu contexto social e cultural. A etnomedicina se detém no
estudo “das crenças, as práticas terapêuticas, os [diferentes] especialistas
em cura, as instituições sociais, os papéis sociais dos especialistas e
[dos] pacientes, as relações interpessoais, e o contexto econômico e
político” (p.10). A antropologia da saúde considera os aspectos
levantados pela etnomedicina e trabalha na perspectiva de relativizar a
biomedicina ao tempo que se preocupa com a dinâmica da doença e o
processo terapêutico.
O enfoque tradicional na etnomedicina era a
identificação das categorias das doenças segundo
o grupo estudado, reconhecendo-se que o que é
definido como doença, como estas são
classificadas, e quais sintomas são identificados
como sinais das doenças, variam de cultura para
cultura e não necessariamente correspondem com
as categorias da biomedicina. (...) Porém para a
visão simbólica, o significado da doença em
outras culturas
não se limita aos sistemas
diferentes de nomeação e classificação de doença.
Doença como processo não é um momento
único nem uma categoria fixa, mas uma
seqüência de eventos que tem dois objetivos (...)
(1) entender o sofrimento no sentido de organizar
a experiência vivida, e (2) se possível, avaliar o
sofrimento. A interpretação do significado da
doença emerge através do seu processo. Assim,
166
para entender a percepção e o significado é
necessário acompanhar todo o episódio da doença:
o seu itinerário terapêutico e os discursos dos
atores envolvidos em cada passo da seqüência
de eventos. O significado emerge deste processo
entre percepção e ação. Um episódio apresenta um
drama social que se expressa e se resolve através
de estratégias pragmáticas de decisão e ação
(LANGDON, 1995, p.12-13)
Langdon (1995) ainda esclarece que a compreensão da doença
como processo pressupõe analisar três passos: “(a) o reconhecimento
dos sintomas do distúrbio como doença, (b) o diagnóstico e a escolha do
tratamento, e (c) a avaliação do tratamento”. (p.13). E, com base em
Kleinman (1980; 1990), reitera a importância da família como lugar
proprivilegiado para a realização desses três passos. A família é onde se
processa o início do processo terapêutico. E lá que se constrói o
entendimento do processo saúde doença e onde se discute o lugar mais
adequado para procurar atendimento quer seja para doenças graves ou
simples.
Para fins desta análise se destacará como se dá a o processo ou
itinerário terapêutico em situações de doença em famílias lideradas por
mulheres. Mais especificamente busca-se saber como é feito o primeiro
diagnóstico da situação por parte das mulheres chefes de famílias e
quais serão os elementos que irão definir a procura por tratamento. Vale
destacar que a discussão nesta seção sobre o itinerário terapêutico
escolhido pelas famílias se refere à demanda espontânea, isto é aquela
oriunda na procura por serviços de saúde a partir da constatação de um
agravo e não daquela decorrente de tratamento com medicamentos de
uso contínuo ou da que é feita na busca por serviços de alta
complexidade89.
Na linha da análise proposta por Langdon, o processo do
diagnóstico envolve escolhas por parte das pessoas que compõem a
família quanto ao que fazer. A autora sugere que o diagnóstico é fruto
de uma negociação feita no seio do grupo familiar. “O processo
terapêutico não é caracterizado por um simples consenso; é melhor
entendido como uma seqüência de decisões e negociações entre várias
89
Conforme será visto ao discutir a questão da satisfação com os serviços, essa classificação da
demanda (espontânea, para medicamentos de uso contínuo e por alta complexidade) não
corresponde necessariamente aos tipos de demandas que aparecem na literatura sobre o tema.
167
pessoas e grupos com interpretações divergentes ao respeito da
identificação da doença e da escolha da terapia adequada” (LANGDON,
1995, p.15)
No caso das famílias monoparentais entrevistadas, percebeu-se
que essa “negociação”, quando existe, envolve as pessoas que darão
suporte (parentes, quase sempre mães, irmãs, ou vizinhas). No entanto, a
maioria das vezes é uma decisão que recai unicamente sobre a mãe. Será
ela quem, após ter constatado a afecção e ter feito uma avaliação prévia
do que se trata, decide pelo itinerário terapêutico mais adequado, desde
chás ou remédios até a decisão de levar o filho à ULS ou ao hospital.
No âmbito deste trabalho, acredita-se que a decisão a respeito de
qual o itinerário terapêutico a ser seguido estará condicionada pelas
informações que essas mulheres disponham sobre dois elementos:
quanto ao uso/conhecimento dos medicamentos mais adequados e
quanto ao tipo de unidade de saúde a ser acessada (ULS, hospital, ou
medicina paralela).
(1) No que se refere ao uso dos medicamentos mais
adequados, retorna-se a aspecto alinhavado na seção anterior, cuja
discussão não deve esgotar-se tão cedo neste trabalho. Trata-se da
peculiaridade levantada por Boehs, Ribeiro, Grisotti et al (2009)
referente ao afastamento das práticas e saberes que eram transmitidos
pelas gerações mais velhas. A ausência dessa base de apoio substrai das
mulheres a possibilidade de aprenderem práticas de cuidados que eram
passadas de geração em geração. Esse aspecto, ligado à crescente
hegemonia do modelo hospitalocêntrico e dos atuais estilos de vida e
trabalho das mulheres (não apenas das chefes de família), estaria
aumentando a dependência da população de medicamentos e dos
serviços de saúde, quando da busca por tratamento. Os relatos das
entrevistadas abordadas por esta pesquisa a respeito dos tratamentos que
as mães (ou gerações passadas) empregavam dão conta de situações
pautadas pela falta de postos de saúde (para acessar os serviços
disponíveis “tinha que ir para a cidade”, U1) e pelo uso de remédios
caseiros:
Não tinha posto antigamente. As pessoas corriam para os
hospitais mais distantes. Faziam os tratamentos em casa,
né? Se era um machucado lavavam com ervas, era algo
mais imediato, mas que funcionava, né? (U10)
168
Minha mãe tinha dor de estômago – quando batia aquela
dor, quase morria. Ela só esmagava alho e tomava chá
quente. (U2)
Em contraste com o tipo de medicamento usado no tempo das
mães e avós, de todas as entrevistadas somente quatro (ver depoimentos
a seguir) afirmaram tomarem chás como primeiro recurso terapêutico,
seguido muitas vezes por automedicação ou combinado com ela. Notese que essas quatro usuárias estão numa faixa etária superior aos 50 anos
o que induz a pensar que sejam detentoras de conhecimentos da
medicina familiar ou popular, repassados de mãe para filha, não
disponíveis para as mais novas pelo seu escasso contato com pessoas
mais velhas da família.
Quando posso me arrumo. Tomo um chá, um
comprimidinho que tenho em casa. Às vezes compro (o
remédio), porque nem sempre dá para ir lá no posto, né?
(U1, usuária de 73 anos)
Quando vê que não dá, tomo chá. Se não melhoro vou ao
posto. (U2, usuária de 85 anos, hipertensa)
Quando é coisa mínima resolvo em casa mesmo. Não vou
para o hospital (note que para esta entrevistada a
alternativa ao tratamento caseiro é o Hospital e não a
ULS). Faço um chá caseiro, uma dor de barriga, uma dor
de ouvido. (U10, 50 anos)
Tomo chás ou compro remédios na farmácia (...). Eu tenho
uma dor de cabeça muito forte. Hoje amanheci sentada
com dor de cabeça. Essa dor eu tenho há muitos anos. O
médico diz que é enxaqueca. Então tem que agüentar. Não
me deu remédio por causa do estômago, porque tenho
úlcera. Então compro na farmácia. Mas o remédio da
farmácia eu compro e tomo, melhoro um pouquinho e daí
a pouco volta tudo de novo. (U4, 67 anos, aposentada por
motivo de saúde, reclama de dores crônicas e suspeita ter
câncer no coração e nos pulmões).
169
As outras dez entrevistadas manifestaram acessar a ULS ou os
hospitais, ou ainda utilizar medicamentos disponíveis em casa ou
aqueles indicados por alguma conhecida. Não foi indagado
especificamente sobre o tipo de medicamento que seria utilizado para
cada situação. A esse respeito, Boehs, Ribeiro, Grisotti et al. (2009)
destacam, em pesquisa realizada entre mães de crianças de 0 a 6 anos,
que a resolução de pequenos desconfortos na saúde das crianças têm
sido feita via analgésicos ou antitérmicos, situações que antigamente
teriam sido tratadas com recursos da medicina familiar ou popular, tais
como uso de calor/frio, banhos e chás. Para as autoras isso teria
desenvolvido uma nova cultura: a “cultura da dipirona e do
paracetamol”, ditada pela necessidade de recuperação rápida. Conforme
relato de uma profissional de saúde daquela pesquisa:
As mães tendem a não compreender mais que há
um tempo de espera para o tratamento fazer
efeito e o corpo se recuperar. (...) as mães
querem a solução rápida, se estão tomando
antibiótico, querem estar recuperados no dia
seguinte. As mães hoje não têm paciência. Se
você não quer ver a pessoa todo dia aqui no
posto, tem que explicar muito bem o que pode
acontecer. Se souber que febre vai continuar nas
próximas 48 horas, a mãe então espera por isso.
Tudo está mais rápido, o computador está mais
rápido, mas o tempo biológico não mudou. A
cura da gripe tem seu tempo, assim como da
diarreia (profissional de saúde em BOEHS,
RIBEIRO, GRISOTTI et al., 2009, p.8)
Embora essa pesquisa tivesse restrito o seu foco nas mães de
crianças de zero a seis anos, a automedicação indiscriminada é fato
inconteste em qualquer faixa etária e tem configurado a chamada
“medicalização da doença”. Ao respeito, Grisotti (1998, p.56) destaca
que dentro da medicina familiar a automedicação “tem se acentuado
principalmente em populações jovens que tendem a relegar os remédios
caseiros e considerar os antibióticos, por exemplo, como mais eficazes
porque curam mais rápido”.
A automedicação também é o recurso paliativo utilizado para
amenizar o sofrimento enquanto as usuárias aguardam a realização de
exames. É o que revela usuária com suspeita de câncer que aguarda para
fazer biopsia e reclama da demora.
170
Durante esse tempo todo tem que ficar parada tomando
chá ou comprando remédio para tirar a dor (U4).
A mesma usuária declara ter dores de cabeça crônicas. O médico
teria dito que é enxaqueca e que não poderia medicá-la por causa da
úlcera. Como não lhe deram remédios, quando a dor atinge níveis
insuportáveis, afirma que ela mesma os compra.
(2) Quanto ao tipo de unidade de saúde apropriada para cada
situação, percebe-se que essa escolha estará fortemente atrelada às
experiências anteriores das usuárias. Nos relatos das entrevistadas,
listados a seguir, vem à tona que a unidade terapêutica mais utilizada é o
hospital. As ULS só seriam acessadas quando da necessidade de exames
ou serviços complementares (como nebulização) receitados nos
Hospitais. No caso de mães com crianças pequenas que sofrem com
agravos periódicos (afecções respiratórias principalmente) quando do
seu aparecimento vão direto para o hospital, mesmo sendo mais distante
que a ULS. Procuram o atendimento hospitalar porque acreditam que lá
haverá um grau maior de resolutividade para o problema de saúde
apresentado. As entrevistadas acham que além de ser incerta a
possibilidade do filho consultar na ULS, o processo terapêutico nesses
locais é demorado e burocratizado.
Quando meu filho tem problemas de saúde o levo direto
para o hospital (U8).
[O que fez para enfrentar essa dor? Como tratou?] Fui a
tudo quanto é lugar. Fui ao HU, Fui no [Hospital] Celso
Ramos. Aí eles me mandaram para o [Hospital] Nereu
Ramos. Eu tenho uma pilha de exames, mas nada feito.
(U4)
Olha, para falar a verdade, para ir ao posto só se for
muito necessário... Porque a gente vai lá e é difícil
conseguir as coisas. Então quando é muito necessário eu
vou ao posto de saúde só pra me garantir, né? (U5)
[o que faz quando chegam as crises] Como ontem era
domingo e o meu filho já estava muito cansado, eu pensei:
não vou levá-lo no Hospital Infantil . Porque (quando têm
171
as crises) não procuro o posto, vou direto ao Infantil. Eu
vou ao posto depois que lá no Infantil eles dão um papel
receitando para ele fazer a nebulização. Aí eu vou ao
posto. Vou direto para o Infantil. Não vou perder o meu
tempo ali no posto. Já vou direto para o Infantil. Não
adianta ir para o posto. Porque vai ao posto, aí passa pela
enfermeira, pela triagem para depois consultar com o
médico. Ah, pára! (com ar de enfado). Até fazer isso a
criança já morreu. Se a enfermeira disser que ele está
ruim ele consulta, se não, se dizer que está bem, vai para
casa. Vou direto no Infantil. Só vou ao posto quando o
médico dá o papel para fazer nebulização aqui no posto.
Aí sim, eu vou no posto. Lá no Infantil eles têm os médicos
que conhecem ele, porque ele já foi queimado. Eu vou e
eles ficam acompanhando ele. Porque quando dá a
bronquite dele, ele fica um mês dois meses no hospital.
Abaixa a temperatura e já dá bronquite. No Natal fiquei lá
menina, passei trabalho. Ele fica pior quando o tempo está
para mudar. E ele muda junto com o tempo. O tempo
mudou e XX está mudando. O outro que tem também já
não é tanto porque está com 13 anos. Mas este não, o
tempo mudou e ele muda junto. Na praia ontem, mal ele
entrou na água um pouco e já começou arf, arf, arf
(arfando). Falei: então tu não entras mais. Tive que ir
embora porque já estava com catarro. (U13)
Neste último depoimento dois aspectos chamam a atenção. O
primeiro é que a ULS ao invés de ser porta de entrada para o sistema, se
constitui em complemento para o tratamento iniciado no hospital. O
segundo é o fato da ULS ter perdido para o hospital a condição de local
onde deveriam se desenvolver laços de reciprocidade com as famílias
(pelo menos para esta usuária). Nota-se que a usuária em questão sentese mais segura no hospital porque sabe que terá garantida a consulta
para o filho e deposita sua confiança nesse local porque sabe que lá “o
conhecem”, isto é, reconhecem o paciente na sua individualidade. Tal
fato contrasta com o tratamento na unidade de saúde, onde é posta em
questão a necessidade do filho ser tratado. O fato da enfermeira decidir
se o filho está ruim ou não, para a mãe significa uma subtração da sua
autoridade pois ela “fez” um primeiro diagnóstico e concluiu que era
necessário levar o filho à ULS para ser visto por um médico.
172
No caso acima, o que se coloca em questão é por que a ULS não
conseguiu desenvolver a relação de confiança que parece haver com o
hospital se faz parte da nova estratégia de atendimento a construção de
vínculos com as famílias. Muito mais, em se tratando de doença que se
repete periodicamente, fato que poderia propiciar encontros freqüentes.
A hipótese com que se trabalha é que a despeito das estratégias de
acolhimento e de formação de vínculos estreitos com as famílias do
novo modelo, o que de fato estabelece um vínculo real de confiança e de
responsabilidade para com as famílias é a disponibilidade de médico ou
especialista que possa dar prosseguimento ao itinerário terapêutico
escolhido pela família. Quando a enfermeira toma para si a prerrogativa
de decidir se o paciente será objeto de consulta quebra o itinerário
mentalizado pela mãe. Isso pode ter implicações, pois como será visto
ao discutir a questão da co-responsabilidade dos cuidados, o
reconhecimento da autoridade que a mãe tem nessa primeira avaliação e
a valorização dos saberes que ela tem a respeito do processo mórbido e
do processo de cura (mesmo que de modo empírico) são elementos que
poderiam ser aproveitados para consolidar a construção da coresponsabilidade.
Ao fechar esta subseção volta-se à hipótese a respeito de que a
decisão pela medicação e pelo tipo de unidade de saúde estará
fortemente atrelada ao conhecimento que as usuárias têm a respeito
do que seria mais adequado para elas ou, em outras palavras, ao
nível de informações que as usuárias dispõem, fato fortemente
condicionado pelas experiências anteriores das usuárias. A questão a ser
enfatizada é que o leque de opções que elas consideram não reflete
necessariamente o itinerário terapêutico pretendido pela ESF para elas.
Ocorre aqui o que no referencial de economia neoclássica é denominado
de “escolha com informações imperfeitas”
Quando fazemos escolhas (...) temos que nos
basear em informações imperfeitas para nos
orientar. Em um mundo ideal, saberíamos
exatamente quais eram as nossas alternativas ao
fazermos escolhas. Na realidade, porém, quase
sempre fazemos escolhas sem informações
completas sobre nossas alternativas. Em outras
palavras, os problemas de escolha, em sua maior
parte, baseiam-se em informações imperfeitas:
não conhecemos a lista completa de informações
disponíveis (EATON e EATON, 1999, p.69,70).
173
Além disso, há uma “assimetria de informações”, que é a situação
em que um dos lados dispõe de mais informação que o outro. Entendese que há desencontro entre o itinerário terapêutico escolhido pelas
famílias e aquele preconizado pelo sistema oficial de saúde. Conforme
ficará evidente nas seções subsequentes, as famílias desconhecem
elementos importantes da ESF. O fim desse desequilíbrio (ou
assimetria) de informações poderia ser um dos elementos que
possibilitem construir a noção de co-responsabilidade.
É importante acrescentar que as usuárias pré-definem a que
estabelecimento hospitalar levarão os seus doentes mesmo sem ter
ciência de que oficialmente existe um fluxo de encaminhamento para
cada tipo de emergência, conforme pode ser visto no quadro 6,
informação que consta em folheto com a relação de centros de saúde do
município.
QUADRO 6: Fluxo de encaminhamento para serviços de
emergência 24 horas – município de Florianópolis
174
Cabe destacar que as unidades de saúde elencadas nesse fluxo
também podem atender certas situações de emergência dos convênios de
saúde. O paradoxal nessa situação é que os usuários dos planos
desconhecem o que fazer em casos de emergência e, em tese, podem
enxergar o aparente caos dos hospitais públicos e pensar, com certo
alívio, que por ter plano não precisarão desse “tumultuado” serviço.
Levantamento informal feito para fins desta tese junto a usuários de
planos de saúde revelou que esses usuários desconhecem o itinerário
terapêutico adequado para casos de emergência, o que implica que não
sabem que dependendo da gravidade da emergência precisarão acessar a
rede pública, de cujo caos aparentemente se sentem livres. Alguns
planos em grandes centros urbanos do país criaram núcleos de
emergência que se bem sanam a demanda por atendimento de certas
queixas imediatas não resolvem a demanda por serviços de emergência
mais complexos.
5.2.5 Satisfação com os serviços recebidos
Os relatos feitos na seção anterior poderiam assinalar que a opção
pelo tratamento hospitalocêntrico se constituiria num indicativo de que
em toda e qualquer circunstância haveria preferência por esse tipo de
atendimento, em detrimento dos serviços oferecidos pelas ULS.
Entretanto, percebeu-se nas entrevistas que a satisfação dos usuários
com os serviços de saúde vai além da possibilidade de acessarem os
hospitais e está também associada a dois elementos correlatos: a
estrutura que as ULS disponibilizam e o tipo de demanda que a
população manifesta.
A relação entre estrutura da ULS e tipo de demanda está
representada no Quadro 7. Nas colunas estão elencados os tipos de
demandas que a população traz até as ULS: espontânea, para
tratamentos com medicação de uso contínuo e demanda por serviços de
alta complexidade. Esta tipificação foi criada apenas para fins desta
análise e difere da classificação oficial de demandas 90. A Intenção não
foi criar categorias paralelas ou semelhantes às oficiais, mas apenas
90
Os serviços de saúde classificam as demandas da população em três categorias. Demanda
espontânea, aquela que decorrente da procura aos serviços de saúde a partir da constatação,
pelo próprio paciente, da existência de um agravo. Demanda reprimida, a que decorre de
trabalho concentrado de diagnóstico situacional por parte dos profissionais de saúde em uma
área antes desprovida desse tipo de atenção. E a demanda organizada ou direcionada, a que
ocorre em uma área permanentemente monitorada por equipe ou serviço de saúde capaz de
diagnosticar a existência de um agravo com antecedência.
175
retratar as demandas que pareciam emanar das entrevistas. Nas linhas
está expressa a qualidade das duas ULS analisadas91. No que se refere à
estrutura das unidades, conforme foi destacado no início deste capítulo,
a ULS da área I é considerada vitrine de boas práticas se comparada a
outras unidades de saúde, em parte por fazer parte do Programa Docente
Assistencial e também pelo atendimento estendido (até as 22 h). A ULS
da área II encerra seu atendimento às 17 h.
Quadro 7. Usuários satisfeitos por tipo de tratamento demandado e por
qualidade da ULS
TIPO DE DEMANDA
Qualidade
da ULS
DEMANDA
ESPONTÂNEA
TRATAMENTOS
DE USO
CONTÍNUO
SERVIÇOS DE
ALTA
COMPLEXIDAD
E
Boa
Média
Nota: Áreas sombradas = ocorrência de usuários satisfeitos
No caso do posto com melhor infraestrutura há uma relativa
satisfação com o atendimento de demandas espontâneas, fato que ocorre
em menor proporção no posto com menor infra-estrutura. Na demanda
por medicamentos de uso contínuo ambas as unidades parecem atender
as demandas da população. Já o terceiro tipo de demanda (por serviços
de alta complexidade) é deficitário em ambas as ULS.
91
Desde já cabe alertar para os limites desta categorização, pois a rigor não foram levantados
elementos objetivos que possibilitassem definir com precisão o quesito qualidade das unidades
de saúde. A comparação entre elas foi feita pela pesquisadora. A classificação das unidades em
“boa” e “média” foi elaborada a partir dos próprios relatos das entrevistadas tendo como
critérios horários de atendimento ou leque de serviços disponibilizados. Mesmo reconhecendo
a fragilidade dessa classificação ela se fez necessária para identificar grosso modo se as
unidades estariam dando conta das demandas da população adscrita.
176
 Demandas espontâneas relativas à atenção básica
Para aqueles usuários que vão à busca de atendimento de modo
espontâneo pode-se perceber duas realidades: a dos que estão na
circunscrição da unidade de saúde com melhor estrutura e aqueles que
estão numa unidade com condições mais precárias. Na primeira, os
pacientes sabem que há dias específicos para marcação de consultas e
que naqueles casos em que se apresenta uma dor repentina (de
garganta/ouvido ou febre) é possível ter acesso ao setor de emergência
do posto, mesmo fora do horário comercial porque ele tem um horário
de atendimento estendido (até as 22 h). Já no segundo, percebe-se uma
clara opção por levar os doentes aos hospitais mais próximos, pela
precariedade dos serviços emergenciais oferecidos, o que não impede as
usuárias de elogiarem a unidade em outros aspectos. Exemplo disso é o
caso de usuária da área II cujo esposo sofre de distúrbio psicótico e que
também acessa os serviços de saúde para doenças ocasionais ou crônicas
dos filhos.
Quando tenho problemas vou para o hospital Infantil. Os
meus filhos estão bem servidos lá. Quando é coisa mínima
resolvo em casa mesmo. Não vou para o hospital, faço um
chá caseiro em caso de uma dor de barriga ou de uma dor
de ouvido. No posto uma vez eles deram um remédio
[para o meu filho], mas não ficou bom. Tive que leva-lo ao
Hospital Infantil. Pra mim o posto não resolve nada. Só
resolve para o meu marido porque quando ele precisa. Já
falo: fulano está precisando de remédio. Eles não fazem
esperar, vai já consulta e já dão o remédio. Só para isso
mesmo que o posto serve para o resto não serve. (U 10,
Área II)
A avaliação que ela faz dos serviços da unidade de saúde se
desdobra em dois aspectos. De satisfação quanto à medicação que o
marido recebe, pois afirma que nunca lhe faltam os medicamentos e que
a ACS o visita para ver o que está faltando. E de indignação quanto
precisa atendimento para ela ou para os filhos, um deles com doença
crônica (asma). Foge ao escopo desta investigação, mas poderia se
questionar se não estaria em tela uma provável hierarquização de
doenças em que problemas mentais teriam prioridade sobre outras
afecções? No caso específico dos filhos, a entrevistada afirma que
177
prefere levá-los ao Hospital Infantil. No depoimento da usuária
contrasta, também, a opinião que tem a respeito da ULS e da ACS. Se
de um lado é extremamente crítica sobre a unidade, faz menção ao
tratamento adequado recebido pelas ACS:
O problema em si está no posto não no ACS. Quando têm
acamados, ou pessoal que fez cirurgia, elas vem. Vem até
com a enfermeira se for necessário. Fora isso é o ACS que
toma conta. . (U 10, Área II)
O caminho terapêutico é o Hospital Infantil e alternativamente
remédios caseiros. Na área em que a ULS tem menos condições de
atender a demanda espontânea a unidade só é acessada quando da
necessidade de dentista, de exames ou de serviços complementares
(como nebulização) receitados no Hospital. Quando ocorrem as crises a
usuária mencionada vai direto para o hospital. A despeito dele ser mais
distante que a ULS, a usuária acredita que lá haja um grau maior de
resolutividade para o problema de saúde apresentado. Na unidade de
saúde, além do processo terapêutico ser mais demorado e burocratizado,
a possibilidade de obter consulta é incerta.
Meu filho quando tem as crises não procuro o posto, vou
direto ao Hospital Infantil. Eu vou ao posto depois que lá
no Infantil eles dão um papel receitando para ele fazer a
nebulização. Aí eu vou no posto. (U 13, Área II)
Em contraposição, usuárias da área I, com posto mais estruturado
afirmam:
Quando a gente fica doente corre para o posto (U2, Área
I)
Depois que o posto começou a atender à noite ficou mais
prático porque às vezes a gente tinha que trabalhar e a
criança tinha que ir para a escola e precisava de uma
urgência de noite e às vezes não podia ir ou a criança
estava com febre, alguma coisa, aí tinha que esperar até o
outro dia para levar a criança ao posto ou se automedicar
em casa para esperar que no outro dia pudesse levar a
criança ao posto de saúde. Mas aí, depois que o posto
178
começou a funcionar até mais tarde melhorou. Às vezes
quando as crianças passam mal na creche, tipo o meu
menino na outra semana teve dor de barriga, daí saí direto
da creche para o posto, Já facilitou, entende? Porque
antes o posto funcionava só até as 6 da tarde e agora fica
até as 9 da noite. Fica prático para a gente. Mesmo quem
trabalha pode levar os filhos à noite (U 6, Área I).
Além do horário estendido, a melhor percepção das usuárias da
ULS da área I pode estar condicionada pelo fato de que a estrutura dessa
unidade ficou parecida com um mini-hospital e, portanto seriam
serviços mais próximos do modelo hospitalocêntrico.
2) Demanda para tratamentos com medicação de uso contínuo
Neste tipo de demanda encontram-se os acamados, pessoas com
problemas mentais ou distúrbios psicóticos. Os pacientes nestas
situações ou as usuárias que deles cuidam parecem estar satisfeitos no
que se refere ao item recebimento de medicação de uso continuo desde
que haja um diagnóstico claro. A função das ACS nestes casos é clara:
fazer as visitas, entregar os medicamentos e verificar como anda o
tratamento. A exceção neste grupo fica para aqueles que ainda não têm
um diagnóstico e precisam conseguir os exames ou as consultas
especializadas. Mesmo no caso daqueles pacientes que estão na esfera
da unidade de saúde mais precária manifestaram que suas necessidades
eram supridas. É exemplo disso, trecho do depoimento da Usuária 10,
destacado anteriormente:
Pra mim o posto não resolve nada. Só resolve para o meu
marido porque quando ele precisa. Já falo: fulano está
precisando de remédio. Eles não fazem esperar, vai já
consulta e já dão o remédio. Só para isso mesmo que o
posto serve para o resto não serve. (U 10, Área II).
3) Demanda por serviços de média e alta complexidade
Conforme foi assinalado anteriormente, é frequente que as
pessoas se direcionem aos hospitais e lá sejam solicitados exames
complementares que deverão ser marcados nas ULS. Em ambas as áreas
percebe-se a grande insatisfação quando se apresentam doenças de
179
maior complexidade ou que dependem de atenção especializada. Nesse
sentido é emblemático o depoimento da usuária 5 da Área I, ao ser
questionada sobre o seu problema de saúde:
USUÁRIA 5: (tenho) dor no ombro, dói bastante. É uma
dor “cansada”. Sinto no corpo todo. Fiz os exames e
dizem que é miopatia. Tenho que fazer outros exames, que
é a biopsia do músculo. Esse é o problema. Essa biopsia
tem que ser marcada.
[A ACS se interpõe e explica] É um exame de alta
complexidade que não é feito aqui. Tem que ser feito em
Curitiba. Só encaminhar e esperar pelo INSS, que são os
que fazem exames especiais como os dela. É uma doença
difícil. E no caso dela tem que fazer essa biopsia. Tem que
tirar um “naquinho” do músculo para pode fazer a
biópsia e ver se é isso que ela tem mesmo...
USUÁRIA 5: Já faz uns 5 meses que está para ser
marcado. O dia que eu levei lá, eles falaram que com 15
dias me davam uma resposta mas não me deram ainda.
Estou esperando. Não fui lá porque é só eu e o meu
marido, né? Se ele começar a faltar ao serviço não vão
gostar, aí eu não posso sair. Então o recurso é esperar...
[pergunto à ACS se o posto poderia fazer algo para
apressar a realização do exame e ela afirma]: estou
tentando saber com ela o local onde deixou o pedido para
o exame. Ela foi procurar o papel do encaminhamento, ver
se tinha endereço ou telefone. Se tinha alguma coisa, pois
como não foi via posto a gente não sabe onde está.
USUÁRIA 5: Do posto foi mandado para a Secretaria da
Saúde, me pediram para levar esse papel lá..
ACS: eu pedi para ela tentar marcar consulta de novo no
posto para acessar o prontuário dela
Situação semelhante é observada no diálogo entre a ACS e a
Usuária 4, também da Área I. Percebe-se o cansaço que parece ter
180
tomado conta da usuária diante da impossibilidade de conseguir os
exames que precisa. Fato que inclusive a levou a aceitar indicação da
patroa para submeter-se a tratamento num centro espírita:
USUÁRIA 4: [o que fez para enfrentar essa dor? Como
tratou?] Fui a tudo quanto é lugar. Fui no HU, Fui no
Celso Ramos. Aí eles me mandaram para o Nereu Ramos.
Eu tenho uma pilha de exames, mas nada feito.
[lembra de outra dor/incômodo]: Uma das vistas eu já
não enxergo mais também.
ACS: não foi marcado? A Sra. chegou a fazer a triagem?
USUÁRIA 4: Fiz, só não sei onde tem o papelzinho aí.
ACS: Pois é, eu perguntei e eles disseram que tem que
aguardar. Pois às vezes demora mais de um ano.
USUÁRIA 4: mas eu já faz mais de um ano.
ACS: às vezes demora mais ainda
USUÁRIA 4: a primeira demorou um ano e 8 meses.
Depois eu perdi porque eles avisaram a minha neta e ela
esqueceu de me dar o recado.
ACS: Se perder é pior, porque aí vai para o final da fila.
..........
ACS: sobre aqueles outros exames de fezes, já foram
marcados?
USUÁRIA 4: não, já estou bem. Agora já nem vou fazer
porque já estou boa.
ACS: está melhor? Mas mesmo se marcar não vai fazer?
USUÁRIA 4: Agora não vou mais. Agora vou esperar vir a
dor de novo. Eu tenho uma espécie de diarréia. Fiquei 10
181
dias assim. Fui no posto no terceiro dia e contei para o
médico. Ele falou “é urgente, vá para o HU”, porque
também vinha sangue né? Eu estava fraca, fraca já não
agüentava mais nem andar. Fui com um papel de urgente
para o HU. Cheguei lá na frente (do HU) e disseram que
não, que não dava, que só estava marcado em cima como
urgente e que teriam que ter mandado com um carimbo de
urgente. Eu voltei para o HU. Estava até sem café naquele
dia. Voltei lá no HU. Peguei a cartinha, falei como médico
e até hoje não marcaram consulta. Fiquei 10 dias com isso
direto. Não agüentava nem andar mais. [e qual a
explicação lhe deram, questiono]. Nada. Porque agora já
nem perguntei mais nada. Agora melhorei. Eu fui num
centro espírita. Minha patroa me disse “vou te levar num
centro espírita em que fui operada em Forquilhinha”. Eu
disse “vamos que não estou agüentando mais”. Daí eles
me levaram lá. Eles me deram umas orações (mostra uns
papéis)... Deixei aqui (em cima da mesa) porque não
acredito muito nessas coisas. Disseram que era para fazer.
Eu fiz naquele dia. Mas eu tinha muito sono. Eu fiquei
toda mole de sono. Disseram que era para deitar numa
cama toda branca. Eu arrumei, fiz tudo que me
mandaram. Fiquei boa, não precisei voltar mais para o
posto.
ACS: cheguei a perguntar sobre isso. Aí o certo seria a
Sra. voltar no grupo de marcação na quarta-feira e
marcar uma consulta com a Dra. XXX (médica da
microárea). Foi isso que me disseram.
USUÁRIA 4:Mas eu já tinha consultado com o Dr. YYY
(que não é dessa microárea ...
ACS: mesmo assim... eu acho é a minha opinião. Se foi
marcado seria bom a Sra. Fazer o exame.
USUÁRIA 4:Agora nem faço mais, vou esperar, porque
isso aqui me dá lá de vez em quando . Às vezes um ano,
dois. Isso aqui me deu quando engravidei de gêmeos.
Tiraram os meninos, porque não deu tempo. Faltavam 20
182
dias para nascerem. O médico tirou porque estava
morrendo, já estava com anemia. Aí passa um ano, dois ou
até três anos e me dá de novo. Mas antes era 2 dias, 3 dias
e passava, mas agora foi 10 dias
ACS: Mesmo assim devia fazer os exames.
USUÁRIA 4: Eu acho que quando é uma coisa com
urgência, acho que tem tantos médicos que se não dá com
um dá com outro. Eles são obrigados a procurar mas não
dão a mínima.
ACS: Não é marcado.
USUÁRIA 4: faz mais de um mês que está lá.
ACS: é, eu cheguei a perguntar.
USUÁRIA 4: ainda falei para o Dr. YYY (que não é dessa
microárea): eu já estou assim há 4 dias e não estou
agüentando mais. Então acho que era para eles me
procurarem, né? Não tem consulta num lugar (se referindo
à rigidez de vagas na microárea) tem que ter em outra. A
gente paga isso aí, né?
Usuária sabe que ela deveria ter sido incluída nas visitas
domiciliares e não foi, ou ainda ter sido procurada pelas ACS para
marcação de consulta. A insatisfação da usuária é maior pela rigidez na
marcação de consultas na micro área específica, o que impede que a
usuária seja atendida em outra92. Quando a entrevistada afirma que
92
Nessa ULS a marcação de consultas é feita de forma separada para os moradores de cada
micro-área. Isto é, há um horário específico num dia por semana no qual os moradores devem
(por ordem de chegada) agendar consultas, que normalmente serão realizadas no decorrer dessa
semana. A novidade dessa micro área é que nesse dia há uma espécie de pré-atendimento pelos
médicos da equipe que em muitos casos já resolverão no dia a necessidade apresentada, ou
aqueles que estão comparecendo à consulta apenas para renovação de uma receita já podem
obtê-la nesse dia. Se por um lado, há certa facilidade para os moradores de determinada micro
área na obtenção de consultas ou renovação de receitas nesse dia de marcação, por outro lado
há pessoas que requerem renovação de receita em dias que não correspondem a sua micro-área
e têm dificuldade para conseguir o que procuram. Outro problema dessa sistemática de
marcação de consulta em dia pré-definido para cada micro área se refere à necessidade que às
vezes um determinado pai ou mãe têm de agendar consulta para mais do que um membro da
183
deveria ter sido procurada e que “a gente paga por isso” denota o
profundo empoderamento que representam as políticas públicas, pois
embora mais adiante na entrevista a usuária afirme desconhecer a ESF e
o seu funcionamento, sabe que tem direito à saúde93. Entretanto,
percebe-se um paradoxo no depoimento da usuária. Se de um lado ela
expressa que tem direito, mais adiante afirma “consulta com
especialista é mais difícil... a gente tem que esperar porque é pobre”, o
que denota sentimento de resignação ou uma quase aceitação da demora
pela sua condição de pobreza. Nos depoimentos de outras entrevistadas
também apareceu a concepção de que o SUS é uma política de saúde
para os pobres, focalizada portanto.
Um dos pontos de maior insatisfação entre os pacientes se refere
à marcação de consultas. Em mais de uma ocasião em que as ACS
estavam presentes e os pacientes reclamavam da demora as primeiras
insistiam em que eles deveriam continuar tentando, insistindo.
A insatisfação manifesta pelos usuários formalmente não tem
como chegar aos gestores da política pública. Normalmente ela só se
torna pública quando a mídia traz à tona a insatisfação da população por
essa demora. A política pública não prevê um mecanismo de captação
da percepção do usuário quanto à qualidade do serviço prestado. O
agente de saúde como ponto de ligação da política pública com o
usuário tenta conseguir a consulta ou exame solicitado e em certas
situações repassa a responsabilidade por conseguir a consulta para o
próprio paciente.
Quanto à resolutividade das ações desenvolvidas pelos ACS os
usuários reconhecem que em, muito casos, eles são fundamentais para
acessar serviços da ULS
Na semana passada que precisava de anticoncepcional,
precisava pegar a receita e não tinha. Falei com ela (a
ACS), encontrei ela e falou “não precisa ficar esperando o
família. Como só é permitido marcar uma consulta por pessoa ele/ela se vê impossibilitado de
fazê-lo.
93
Dentre outros, Martins et al. (2009) destacam a importância do PSF como instrumento de
empoderamento da população no que se refere à área da saúde. Ao respeito deve ser destacado
o alerta feito por Cotta et al. (2007. p.2) de que a capacidade de empoderamento do PSF não
está associada a maior participação nas atividades do programa nem a atividades dos conselhos
de saúde mas, apenas, à facilidade de agendamento prévio das consultas pelos ACS, que
facilitam o acesso ao atendimento médico. Os autores destacam, ainda, que “nenhum
entrevistado mencionou a possibilidade de participar como um ator ativo na formulação de
políticas e ações de saúde ligadas à comunidade onde vive”.
184
dia da consulta, vai lá e fala tal dia com a médica que ela
consegue para ti”. Aí fui lá e consegui. (U6)
Por tudo o que foi exposto nesta seção percebe-se que o grau de
satisfação parece estar ligado ao tipo de demanda realizada e à
possibilidade das ULS atenderem essas demandas. Se as demandas estão
na categoria da atenção básica e a ULS dá conta desses requerimentos as
entrevistadas se mostram satisfeitas. No caso da ULS com melhor
infraestrutura há uma relativa satisfação com o atendimento de
demandas espontâneas relativas à atenção básica, fato que ocorre em
proporção reduzida no posto com estrutura mais incipiente. O problema
se apresenta quando as famílias demandam atenção de média e alta
complexidade, atendimento para o qual as ULS não estão preparadas
para responder. Ao que tudo indica quanto mais deficiente é a ULS mais
evidente se torna a desproteção que a família enfrenta. Na demanda por
medicamentos de uso contínuo, ambas as unidades parecem atender as
demandas da população. Já o terceiro tipo de demanda (por serviços de
alta complexidade) é deficitário em ambas as ULS.
Silva Júnior e Almeida (2007, p.37) assinalam que um dos
problemas do atual modelo amparado na ESF é exatamente que
(...) não se assegura a retaguarda necessária para
garantir à atenção básica a capacidade de
enfrentar efetivamente uma série de situações e
agravos. Foi ampliada a cobertura da atenção
básica, mas são sérias as limitações para exames
laboratoriais e radiológicos ou para apoio nas
áreas de reabilitação, saúde mental e outras,
indispensáveis para a continuidade da atenção.
Um serviço que não consegue assegurar esse tipo
de apoio acaba se desmoralizando. Muitas
pessoas preferem procurar diretamente os
hospitais, pois sabem que o acesso a esse tipo de
retaguarda será menos complicado. (o problema
nessa direção, é que) os hospitais estão
organizados de acordo com uma concepção
restrita de saúde, que desconhece a subjetividade,
o contexto e a história de vida das pessoas. Além
disso, a atenção organizada por especialidades
leva à fragmentação do cuidado e à
desresponsabilização, já que cada qual cuida da
sua parte e ninguém se responsabiliza pelo todo.
185
Há, também, um profundo desconhecimento
sobre a atenção básica e seu potencial de
cuidado. Como consequência, descontinuidade
da atenção, ambulatórios sobrecarregados,
população cativa.
Essa situação não permite, no entanto, omitir o fato de que a
ampliação da cobertura tem possibilitado o acesso a serviços de saúde
impensáveis para gerações anteriores. O que o padrão de proteção social
em saúde no Brasil não conseguiu ainda superar (e isso a despeito do
seu caráter universal) é a estratificação dos usuários e dos serviços.
Como salienta Fleury (2002, p.34, 35), pelo caráter pluralista e
abrangente da proteção social do sistema de saúde
Há um movimento em direção à estratificação da
população, conforme o poder aquisitivo de cada
grupo. O resultado possível é que cada indivíduo
usufrua a direitos e serviços, em maior ou menor
grau, segundo o grupo de população ao que
pertença. Embora a condição de cidadão se funda
numa noção igualitária dos direitos, a proteção
social na região ainda é baseada em mecanismos
institucionais de discriminação.
5.2.6 A questão da co-responsabilidade prevista pela ESF
Conforme foi salientado anteriormente a ESF enquanto
estratégia organizativa da Atenção Primária à Saúde no SUS foca suas
ações na promoção e na prevenção da saúde. Configura um novo modo
de agir em saúde em que as responsabilidades pelos cuidados passam a
ser compartilhadas pelas famílias e pelas equipes de SF. Cabe lembrar
que a delegação de responsabilidades faz parte de toda uma estratégia de
gestão do Estado de repassar os custos para a sociedade.
Responsabilidade, co-responsabilidade, autonomia ou co-gestão
são termos que aparecem com freqüência nos documentos oficiais que
tratam da saúde da família. Percebe-se que essas citações são feitas em
dois sentidos: como delimitação das competências de cada unidade da
federação (governo central, estados e municípios) e como
estabelecimento das responsabilidades entre os agentes envolvidos,
notadamente os usuários e os trabalhadores em saúde. Conforme será
186
visto nesta seção, no primeiro sentido há uma clara definição das
funções que cada nível da federação deve desempenhar 94. Já no segundo
sentido há uma situação polar: enquanto os trabalhadores em saúde
(médicos, enfermeiros, ACS) têm as suas funções claramente
delimitadas, parece não haver o mesmo nível de clareza no que tange
aos encargos das famílias na co-responsabilidades pelos cuidados em
saúde. Diante disso, alguns questionamentos são pertinentes: Será que as
famílias sabem mesmo o que é serem co-responsáveis pelos cuidados?
Será que elas estão cientes dos direitos e das obrigações que elas têm no
novo formato da Atenção Básica? E mais, será que elas possuem os
recursos (sociais, emocionais e técnicos) para dar conta da sua parte na
co-responsabilidade? Esses questionamentos servem de guia para a
reflexão a ser elaborada nesta seção.
No dicionário o termo responsabilidade se refere a 1. Qualidade
ou condição de responsável. 2. Condição de causador de algo; culpa. 3.
Aquilo (tarefa, ação) pelo qual alguém é responsável; obrigação, dever.
4. Condição jurídica de quem, sendo considerado capaz de conhecer e
entender as regras e leis e de determinar a própria vontade e ações, pode
ser julgado e punido por algum ato que cometeu (FERREIRA, 2008). A
última das definições fornece os elementos a partir dos quais
pretende-se discutir a questão da co-responsabilidade prevista na
Estratégia Saúde da Família: a noção de que alguém só pode ser
julgado a partir do conhecimento ou entendimento que tenha das
regras ou leis às quais se encontre submetido.
A intenção nesta seção é explorar a idéia de que as famílias não
estão cientes das responsabilidades que o novo modelo de atenção em
saúde lhes atribui porque não conhecem o programa que sintetiza essas
diretrizes (no caso a ESF) ou talvez porque não saibam da sua ênfase
94
Sisson (2002, p.20) sintetiza as responsabilidades que no Programa Saúde da Família cabem
às três esferas de governo: “Seria competência do Ministério da Saúde estimular a adoção da
estratégia pelos serviços municipais de saúde; definir prioridades para alocação da parcela
federal dos recursos ao programa e regular e regulamentar o cadastramento das unidades de
Saúde da Família no SIA/SUS. Aos estados caberia ainda (...) definir fontes de recursos
estaduais para compor o financiamento tripartite e o mecanismo de alocação de recursos que
compõe o teto do estado para o programa; pactuar com o Conselho Estadual de Saúde e com a
Comissão Bipartite requisitos de implantação do programa; cadastrar unidades no SIA/SUS;
consolidar e analisar dados de interesse estadual e alimentar o banco de dados nacional. Aos
municípios ainda caberia adequar as unidades para possibilitar maior resolutividade e garantir a
relação da assistência básica com outros níveis do sistema; manter o custeio das unidades;
valorização da família e seu espaço social como núcleo privilegiado da atenção e contribuição
na organização da comunidade para participação e controle social”.
187
preventiva e de promoção à saúde. Para isso, inicialmente será resgatado
em documentos oficiais o sentido outorgado ao termo coresponsabilidade, posteriormente será explorada a compreensão que as
famílias têm sobre o programa bem com se tentará construir, a partir dos
relatos obtidos, quais seriam as responsabilidades que lhes são
atribuídas no contato com as equipes de saúde da família.
5.2.6.1 Mudança de modelo assistencial e a questão da co-responsabilidade na ESF
A Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de
Saúde, realizada em Alma Ata em 1978, é considerada o marco que
define a Atenção Primária como novo modelo de atenção em saúde. O
anterior modelo – o da medicina científica – ficou conhecido como
“medicocêntrico” ou “hospitalocêntrico” pela sua ênfase no médico, na
doença, nos hospitais e nos aspectos curativos, em detrimento dos
preventivos e de promoção à saúde. No relacionamento com os
pacientes, a medicina convencional concebia os usuários como
receptores passivos das prescrições médicas. Nesse sentido, a novidade
no modelo da atenção básica seria a concepção dos indivíduos e famílias
como co-responsáveis pelas ações em saúde.
A partir dos documentos que norteiam a ESF (BRASIL, 1997;
BRASIL, 2010) é possível entender a configuração que a saúde da
família tem e os sentidos que o termo “responsabilidade” assume neles.
Desde já se exclui desta discussão a questão da responsabilidade
institucional de cada esfera gestora a nível federal, estadual ou
municipal. A discussão estará focada na compreensão da coresponsabilidade entre os envolvidos no cotidiano da saúde da família e
nas implicações que esse conceito pode ter na delegação de
responsabilidades para os usuários.
Conforme consta no site do Ministério da Saúde (BRASIL,
2010), a nova visão do trabalho proposta pela atenção básica busca
superar a atuação em saúde centrada unicamente na doença. Dentro dos
princípios fundamentais da atenção básica (integralidade, qualidade,
eqüidade e participação social) “as equipes Saúde da Família
estabelecem vínculo com a população, possibilitando o compromisso e a
co-responsabilidade destes profissionais com os usuários e a
comunidade” (p.1). O ponto central do PSF estaria no “(...)
estabelecimento de vínculos e a criação de laços de compromisso e de
188
co-responsabilidade entre os profissionais de saúde e a população.
(BRASIL, 1997, p.7).
No arcabouço conceitual da Estratégia Saúde da Família é
possível destacar alguns elementos que possibilitam qualificar a
responsabilidade das equipes para com as famílias.
O primeiro elemento de definição da responsabilidade das
equipes é dado pelo território, isto é pela delimitação (adscrição) da
população a ser atendida: “Cada equipe se responsabiliza pelo
acompanhamento de cerca de 3 a 4 mil e 500 pessoas ou de mil famílias
de uma determinada área, e estas passam a ter co-responsabilidade no
cuidado à saúde.” Junto a essa população as equipes teriam por tarefa
“(...) intervir sobre os fatores de risco aos quais a comunidade está
exposta; (...) prestar assistência integral, permanente e de qualidade; (...)
realizar atividades de educação e promoção da saúde”. (BRASIL, 2010,
p.1).
O segundo elemento se refere à atribuição de tarefas das
equipes. O documento de 1997, que destaca as linhas mestras da
reorientação da Saúde da Família (BRASIL, 2007), determina que as
equipes devem estar preparadas para (p.14):
- conhecer a realidade das famílias pelas quais são
responsáveis, com ênfase nas suas características
sociais, demográficas e epidemiológicas
- identificar os problemas de saúde prevalentes e
situações de risco aos quais a população está
exposta
- elaborar, com a participação da comunidade, um
plano local para o enfrentamento dos
determinantes do processo saúde/doença - prestar
assistência integral, respondendo de forma
contínua e racionalizada à demanda organizada ou
espontânea, com ênfase
nas ações de promoção à saúde
- resolver, através da adequada utilização do
sistema de referência e contra-referência, os
principais problemas detectados
- desenvolver processos educativos para a saúde,
voltados à melhoria do autocuidado dos
indivíduos
- promover ações intersetoriais para o
enfrentamento dos problemas identificados
189
Quanto ás atividades das equipes, o mesmo documento define
que as equipes devem realizar visitas domiciliares, internação domiciliar
e participar de grupos comunitários. Depois de definir as atividades das
equipes, o documento passa a detalhar as atribuições de cada um dos
membros (Médico, enfermeiro, ACS). Essas atribuições estão definidas
em torno da população pela qual a equipe é responsável.
O terceiro elemento de definição de responsabilidade se refere à
estreita relação entre responsabilidade e vínculo. Consta no
documento de reorientação do novo modelo assistencial (BRASIL,
1997) que o seu potencial transformador estaria nos vínculos de
compromisso e co-responsabilidade que se estabelecem entre os
serviços de saúde e a população. Ao invés da unidade de saúde “ficar
esperando” pela população, incumbe aos ACS a função de visitar as
famílias nos seus lares de modo a aproximar os serviços de saúde das
famílias. Na atuação da equipe, o ACS desempenha papel fundamental,
pois será ele o principal responsável pelo estabelecimento do vínculo
com as famílias.
A despeito das equipes terem as suas atribuições bem definidas
não há menção nos documentos da Estratégia saúde da Família à parte
que cabe às famílias no exercício da co-responsabilidade. A exceção
está num documento relativamente recente, intitulado Carta dos direitos
dos usuários da saúde (BRASIL, 2007), texto elaborado de modo
conjunto pelo Ministério da Saúde, pelo Conselho Nacional de Saúde e
pela Comissão Intergestora Tripartite. A Carta contém os princípios que
devem assegurar o direito aos sistemas de saúde, quer sejam públicos ou
privados. Dentre os seis direitos que a carta elenca, o quinto “assegura
as responsabilidades que o cidadão também deve ter para que seu
tratamento aconteça de forma adequada” 95. Para isso ele deve se
comprometer a (op. cit., p. 6-7):
I. Prestar informações apropriadas nos
atendimentos, nas consultas e nas internações
Os seis princípios rezam (BRASIL, 2007): “O primeiro assegura ao cidadão o acesso
ordenado e organizado aos sistemas de saúde, visando a um atendimento mais justo e eficaz.
(...) O segundo assegura ao cidadão o tratamento adequado e efetivo para seu problema,
visando à melhoria da qualidade dos serviços prestados. (...) O terceiro assegura ao cidadão o
atendimento acolhedor e livre de discriminação, visando à igualdade de tratamento e a uma
relação mais pessoal e saudável. (...) O quarto assegura ao cidadão o atendimento que respeite
os valores e direitos do paciente, visando a preservar sua cidadania durante o tratamento. (...) O
quinto assegura as responsabilidades que o cidadão também deve ter para que seu tratamento
aconteça de forma adequada. (...) O sexto assegura o comprometimento dos gestores para que
os princípios anteriores sejam cumpridos.”
95
190
sobre queixas, enfermidades e hospitalizações
anteriores, história de uso de medicamentos e/ou
drogas, reações alérgicas e demais indicadores de
sua situação de saúde.
II. Manifestar a compreensão sobre as
informações e/ou orientações recebidas e, caso
subsistam dúvidas, solicitar esclarecimentos sobre
elas.
III. Seguir o plano de tratamento recomendado
pelo profissional e pela equipe de saúde
responsável pelo seu cuidado, se compreendido e
aceito, participando ativamente do projeto
terapêutico.
IV. Informar ao profissional de saúde e/ou à
equipe responsável sobre qualquer mudança
inesperada de sua condição de saúde.
V. Assumir responsabilidades pela recusa a
procedimentos ou tratamentos recomendados e
pela inobservância das orientações fornecidas pela
equipe de saúde.
VI. Contribuir para o bem-estar de todos que
circulam no ambiente de saúde, evitando
principalmente ruídos, uso de fumo, derivados do
tabaco e bebidas alcoólicas, colaborando com a
limpeza do ambiente.
VII. Adotar comportamento respeitoso e cordial
com os demais usuários e trabalhadores da saúde.
VIII. Ter sempre disponíveis para apresentação
seus documentos e resultados de exames que
permanecem em seu poder.
IX. Observar e cumprir o estatuto, o regimento
geral ou outros regulamentos do espaço de saúde,
desde que estejam em consonância com esta carta.
X. Atentar para situações da sua vida cotidiana em
que sua saúde esteja em risco e as possibilidades
de redução da vulnerabilidade ao adoecimento.
XI. Comunicar aos serviços de saúde ou à
vigilância sanitária irregularidades relacionadas ao
uso e à oferta de produtos e serviços que afetem a
saúde em ambientes públicos e privados.
A respeito do documento, alguns destaques merecem ser feitos.
Enquanto elemento normativo ele ainda carece de maior divulgação
entre usuários da saúde. A mera existência de um documento não
191
garante o conhecimento do mesmo por parte dos que deveriam utilizálo. O documento, pelo seu caráter por vezes irrealista e pela sua redação
apurada, própria de um ambiente jurídico, pode ser pouco acessível para
a população alvo. Quanto à noção de seguir o tratamento recomendado
pelo profissional e pela equipe, vale destacar que a ênfase dada recai em
seguir o tratamento e em nenhum momento se fala em compreender o
itinerário terapêutico dos usuários. A ênfase está na questão de como o
usuário tem que se comportar em relação aos serviços oferecidos, mas
falta apontar como os serviços devem se comportar em relação aos
usuários, mais especificamente no que se refere aos aspectos relativos ao
itinerário dos usuários: a quem eles recorrem em casos de doenças,
quais as estratégias que as famílias montam no cotidiano para lidar com
situações de doença e descobrir as dificuldades que elas têm. Quanto à
afirmação de que os usuários devem informar sobre qualquer mudança
inesperada na sua condição de saúde, haveria que se verificar se na
prática cotidiana das unidades de saúde (com horários e dias prédefinidos para cada micro área) e com a realidade do pouco tempo das
famílias se estas teriam condições de relatarem mudanças inesperadas de
saúde. O documento ignora que há problemas que afetam a saúde e que
extrapolam comportamentos individuais ou até mesmo coletivos dos
usuários. A menção é feita a respeito da indefinição sobre a quem os
usuários devem recorrer para resolver problemas que tenham relação
com a saúde. Por exemplo, como o usuário pode cuidar de aspectos
sanitários do seu entorno se tem esgoto a céu aberto correndo nas
proximidades da sua casa? Ou ainda, como conseguir recursos para
resolver certos problemas de infra-estrutura mesmo que em esquema de
mutirão?96 Há indefinição do ponto de vista dos usuários a respeito de
quem pode resolver problemas, de quem pode ser responsabilizado
quando há problemas de infra-estrutura que afetam a saúde. Se o
documento se refere a atentar para situações da vida cotidiana em que
a saúde esteja em risco e as possibilidades de redução da
96
Grisotti e Patrício (2006) relatam a dificuldade de uma comunidade de Florianópolis na
tentativa de obter um pequeno financiamento junto ao Conselho Municipal de Saúde (CMS)
para projeto de educação ambiental que buscava resolver problemas de lixo da comunidade. Os
moradores solicitaram recursos apenas para a compra de material, já que estariam dispostos a
construírem as lixeiras, em regime de mutirão. Como o CMS argüiu que havia limites
burocráticos para viabilizar ajuda financeira foi sinalizada a possibilidade de celebrar convênio
junto à Secretaria da Saúde (SMS) para aprovação do projeto. Foi marcada reunião com o
secretário da SMS, com membros da Comissão de Meio Ambiente e com representantes do
CMS. No entanto até o fim daquela pesquisa (quatro meses depois) ainda não havia relato de
resolutividade para a necessidade apontada.
192
vulnerabilidade ao adoecimento, é impossível ignorar que a saúde está
envolvida com vários setores da vida social que não só o atendimento
médico. A saúde dos moradores de uma comunidade precária implica a
articulação de um conjunto de outros serviços e não apenas dos
oferecidos pelas unidades de saúde. O que, de fato, se constata é que não
existe uma articulação institucional para resolver esses problemas
estruturais. Uma coisa é saber que a população tem direito a uma vida
digna, outra é saber o que o Estado tem feito de concreto e de forma
articulada para atingir isso.
Há uma distância significativa entre as responsabilidades
preconizadas pela Carta dos Direitos dos Usuários e o que de fato as
famílias entendem que precisam saber para melhor aproveitar os
serviços que lhe são oferecidos e atuar de modo sinérgico com as
equipes de saúde da família.
Na tentativa de definir do ponto de vista do usuário quais
seriam as suas incumbências no desempenho da co-responsabilidade,
deduziram-se alguns aspectos práticos que definem as responsabilidades
das famílias:
- seguir orientações quanto à medicação;
- saber os dias de marcação de consulta;
- distinguir entre processos que se configurem em emergência de
processos a serem tratados em consultas agendadas
- seguir orientações preventivas;
- insistir para obter uma marcação de consulta com especialista ou
exame de alta complexidade, pois embora a ESF se insira no modelo da
atenção primária o tratamento das doenças muitas vezes requer
atendimento especializado.
Sobre este último ponto cabe recordar que se trata de um dos
aspectos de maior insatisfação entre os usuários e que melhor retrata a
idéia de que o chamado à co-responsabilidade na realidade pode estar se
tratando de um repasse de responsabilidades para as famílias. Entendese aqui que considerar as famílias como co-responsáveis é diferente de
atribuir-lhes a elas a responsabilidade pela marcação de consultas,
conforme será observado no diálogo entre a ACS e a usuária 4 da Área
I. Note-se que parece como se a parte que foge ao escopo desse nível de
atenção fosse de responsabilidade das famílias. Aí cabe se perguntar:
Será que a ESF está cumprindo de maneira adequada o seu papel de
porta de entrada no sistema? Ou simplesmente se limita aos aspectos
preventivos e de baixa densidade tecnológica?
Em mais de uma
ocasião em que as ACS estavam presentes na entrevista as usuárias
193
reclamavam da demora em conseguir determinadas consultas e as ACS
insistiam em que os usuários deveriam continuar tentando e insistindo.
ACS: (...) Os que não conseguiram têm que continuar tentando
marcar. Eles (a prefeitura) alegam isso: “não tem vaga”. A
gente até tenta. Eu falo com o moço da marcação e ele diz “não
tem vaga”. A gente comenta isso na reunião do grupo, mas é
isso, tem que aguardar.
Usuária 4: mas não adianta ... eles não vão ...
ACS Mas é uma coisa que você tem que insistir. Podem lhe
chamar de chata, não faz mal, volte lá, fique perguntando para
o atendente “meus exames já foram marcados?”. Continue
insistindo.
Usuária 4: o médico do HU(Hospital Universitário) disse assim
“a Sra. vai ter que se internar. Vai ficar internada, mas tem
que ter o „urgente‟ (no documento) para fazer isso aí”. Só que
eu já fiquei boa, não precisou internar e não foi marcado.
ACS: Nós vamos continuar insistindo... o que não pode é ficar
sossegado em casa. Fique lá insistindo. É o que tem que fazer.
Vai perguntando, marca de volta a consulta e diz “o exame não
foi marcado” e fica indo lá. É um direito seu.
Usuária 4: mas se eles dizem qualquer coisa é capaz da gente
responder mal, então não vou. Eu procuro muitas vezes
conversar com a pessoa para não ofender,pois não gosto que
me ofendam.
ACS: as pessoas chegam nervosas...
Usuária 4: eles não querem, não gostam...
ACS: vou continuar tentando...
Usuária 5 recebe da ACS a seguinte sugestão para acelerar a
marcação da sua consulta:
194
ACS:Tenta tirar dúvida do exame. Liga para aquele telefone.
Não vai incomodar ninguém. É teu direito saber o que é.
Alguém te prometeu em 15 dias e já fazem mais de 6 meses e
ainda não apareceu nada. Então tenta ver isso daí. Liga lá e
pergunta. Tenha teu cartão em mãos que eles vão te perguntar
o número do teu prontuário. Se tiver algum número do
encaminhamento que você deixou eles vão perguntar para
você. Tenha em mãos para passar para eles. Pergunte se sabem
quanto tempo vai demorar, se tem previsão. E você precisa,
assim que teu filho entrar em férias e ficar em casa pela
manhã, peça para ele ir lá e marcar.
No limite, parece que a responsabilidade pela marcação da
consulta é de exclusiva competência do paciente. Chega a um ponto que
parece que o insucesso na marcação da consulta foi provocado pela falta
de insistência. O desânimo toma conta das usuárias que não querem
mais insistir, mesmo que essa atitude possa ser interpretada como “ficar
sossegado em casa”. Detalhe importante é que o usuário dos serviços de
saúde teria que dispor de tempo para tentar diversas vezes até conseguir
a tão almejada consulta. Isso é praticamente impossível se levar em
consideração que a encarregada de ir atrás do tratamento terapêutico
quase sempre é a mulher. Ela tentará compatibilizar a tentativa de
marcar as consultas com a sua escassez de tempo, ditada pela sua dupla
condição de mãe e trabalhadora. Na prática, as constantes negativas em
muitos casos levam os usuários a desistirem para evitar atritos e
dissabores. Enquanto ligação do usuário com a política pública, o agente
de saúde tenta conseguir a consulta ou exame solicitado, mas diante da
impossibilidade repassa para o usuário o poder de pressão.
5.2.6.2 Até que ponto as famílias têm conhecimento do novo modelo em
saúde?
Nas discussões propostas sobre as demandas que as famílias
fazem às unidades de saúde, percebe-se que as noções do que é a
atenção básica, secundária e terciária não estão claras para as
entrevistadas. As famílias desconhecem que a função do centro de saúde
é prover serviços próprios da atenção básica e não serviços de alta ou
média complexidade. Na prática, o itinerário das famílias revela que
sabem onde buscar auxílio. Mesmo que elas não saibam detalhes
específicos do funcionamento dos serviços de saúde ou dos nomes que
195
recebem (“atenção básica”, “baixa, média ou alta complexidade”), a
prática lhes fornece elementos que permitem construir esses
conhecimentos. As famílias podem não ter ciência do nome do
programa ou de certos detalhes, isso não quer dizer que elas tenham
ficado inertes. As famílias construíram à sua maneira a representação de
como funcionam os serviços de saúde.
Por desconhecerem os limites de cada nível de atenção, os
usuários passam a exigir algo que não está previsto pelo nível de
atenção que a ULS oferece. O conhecimento que eles têm se limita a
horários para marcação de consultas ou critérios que definem o que seria
objeto de uma consulta ou de um atendimento de emergência 97.
Quando questionadas diretamente sobre se conheciam o
Programa (ou a Estratégia) Saúde da Família, as entrevistadas foram
unânimes ao responder de forma negativa. Afirmam desconhecer o que
seja o programa do mesmo modo que ignoram a existência e a função
dos Conselhos Municipais de Saúde. As respostas obtidas revelam desde
tentativas de explicar o que não sabiam até tentativas das ACS de
esclarecer o significado do programa. Algumas entrevistadas de início
afirmavam “ter ouvido falar” do programa, mas quando solicitadas que
falassem o que sabiam confessavam de fato não saber do que se tratava.
[Sabe o que é o PSF?] Já ouvi falar, mas não sei o que
significa.(U5)
[Sabe o que é o PSF] Mais ou menos [o que a Sra. Sabe?] não
sei nada. (U2)
Outra entrevistada confunde o PSF com a reunião que tem uma
vez por mês do bolsa-escola.
97
Nem sempre a distinção entre consulta e emergência está clara para as usuárias. É o caso de
entrevistada, possuidora de convênio com plano de saúde para dois dos seus quatro filhos, que
confunde entre consulta e emergência “[quando tenho algum problema de saúde] vou com os
meus dois filhos mais velhos pela Unimed. Os outros dois no posto. Particular é bem melhor.
Só chega não precisa marcar e é atendido na hora. Eu levo no Hospital da Polícia ou em
outras clínicas. (U12, Área II)”. A usuária prefere o convênio de saúde porque supostamente
não teria que esperar por uma consulta. Entretanto desconhece que essa atenção imediata no
hospital ou na clínica é considerada de emergência e que se tivesse que marcar exames de
maior complexidade também enfrentaria demora.
196
As vezes tem uma reunião lá. Essa cesta básica tem uma
reunião uma vez por mês. Nessa reunião eles perguntam sobre
saúde, sobre a casa. Essa cesta básica que ganham. Eles
querem saber se os filhos estão comendo, se gostam ou não
gostam (da comida). Nessa cesta vem tudo de quilo: um quilo
de arroz, um de feijão, um de açúcar, um óleo, uma caixinha de
ovos, vem carne, e galinha. E depois vêm as verduras: laranja,
batata. Isso pega no supermercado. Faz tudo a papelada
primeiro direitinho, vai um carimbo, entrega para eles. Se não
tiver com a assinatura do posto e da médica. Passam receita
para os alimentos.(...) As “gurias” que fazem a reunião (da
cesta) perguntam se está tudo bem, falaram se tiver alguma
reclamação tem que ser agora , depois não adianta reclamar.
(U3)
Na frente da ACS, outra entrevistada responde de modo dúbio,
talvez como forma de mascarar o seu desconhecimento:
USUÁRIA: Já ouvi falar, mas nunca ouvi nada. (U4)
Nesse momento, a ACS toma a iniciativa de entregar um
folheto explicativo, como tentativa de sanar uma possível falha de
comunicação:
ACS: vou aproveitar para entregar para a Senhora este folheto
que peguei da Universidade sobre o programa. Fala
exatamente sobre o que é o agente comunitário, sobre o
programa.
Esse diálogo serviu de alerta para refletir sobre o real sentido da
co-responsabilidade prevista pela ESF: aos poucos foi se delineando a
quase impossibilidade de tornar a população co-responsável de um
programa que eles desconhecem. Nas entrevistas percebeu-se o quão
gritante é o desequilíbrio de saberes sobre o funcionamento do programa
e do que pode e não pode ser cobrado dele. Chega a se pensar se os
usuários sabem que as UBS são apenas a porta de entrada para o sistema
O desconhecimento das famílias revela, não apenas
desconhecimento de questões burocráticas relativas ao atendimento nas
UBS, mas, fundamentalmente, desconhecimento de que o modelo de
saúde que o SUS lhes coloca a disposição está ancorado em ações
preventivas e de promoção da saúde. Tal vez por isso algumas
197
entrevistadas desfaçam das visitas das ACS, pela ênfase que essas
visitas têm no repasse de noções gerais de cuidados, e não de tratamento
efetivo de doenças graves ou lesões que estariam fora do foco de
atuação da Atenção Básica. As famílias parecem desconhecer que essas
noções gerais fazem parte de aspectos preventivos que são um dos
pilares da saúde da família.
As prescrições dadas muitas vezes podem ter cunho moralista
ou até desconectado da realidade das famílias98 e não são articuladas
com as demandas, interesses, conhecimentos ou com o itinerário
terapêutico seguido por essas pessoas. Moralista, no sentido de que não
foi criada uma relação em que haja um compartilhamento de saberes. O
que ocorre de fato é que os profissionais de saúde repassam noções de
cuidados que visam mudar comportamentos que teriam impactos no
processo saúde-doença sem levar em consideração que a mudança de
comportamento pode estar associada à compreensão do modo de agir da
população usuária. No fim, isso pode gerar um comportamento
unilateral por parte dos profissionais de saúde. Essa abordagem
unilateral pode ignorar elementos fundamentais do cotidiano das
famílias como a inserção maciça das mulheres no mercado de trabalho
ou o excesso de responsabilidades que recaem sobre as mulheres que
chefiam sozinhas as suas famílias. A desconsideração desses elementos
pode estar provocando uma carga extra para essas mulheres, as quais
talvez não consigam executar de modo adequado o que se espera delas.
A inadequação de expectativas da população quanto aos
serviços que os profissionais de saúde podem prestar e sobre o modelo
em que estão inseridos se refletem em tentativas de explicar o que seria
a Estratégia Saúde da Família e o papel que desempenham nela as ACS.
Mesmo aqueles usuários que dispõem de informações as têm de modo
incompleto. Uma entrevistada se referiu à ACS como a “líder do
bairro”, enquanto outra a denominou de “responsável pela rua”.
Elas vêm uma vez por mês aqui. Todo morro tem uma líder, né?
Aí tem uma pessoa do posto que faz o cadastro das pessoas para saber
como está, como não está. Ela que faz os documentos se precisar fazer
algum exame, alguma coisa ela traz, ela que dá o recado. Os ACS são
os olhos da comunidade perante o posto. (U10)
98
Exemplo disso é a indicação dada com freqüência para ferver a água a ser consumida, sem
levar em consideração se as famílias teriam gás ou vasilhas apropriadas para a fervura e o
armazenamento da água.
198
Uma outra entrevistada - que durante a entrevista havia
reclamado da falta de visitas das ACS - afirmou:
Ouvi falar, mas não saberia dizer o que é. Se elas viessem por
aqui, as pessoas saberiam o que é. Aqui a população cresceu
muito, mudou muito a rotina dos postos de saúde. A equipe que
trabalhava bem saiu. (U11)
A entrevistada faz menção a uma equipe que trabalhava na
região dois anos antes. Considera que essa equipe era mais efetiva e que
em particular a ACS que cuidava dessa micro área se preocupava em dar
palestras ou em trazer pessoas da universidade para fazê-lo. Essa
afirmação revela o quanto a divulgação da informação sobre a estrutura
e o funcionamento do programa está atrelada ao vínculo que se cria
entre a população e os ACS e ao agir dos indivíduos inseridos no
programa. É como se em certa forma a divulgação da ESF dependesse
da “boa vontade” de certos funcionários da unidade de saúde ou dos
membros das equipes e não estivesse ligada a aspectos normativos ou
institucionais da ESF.
Mais do que boa vontade talvez se trate do desconhecimento
que os profissionais engajados no atendimento à população tenham a
respeito do novo modelo assistencial. Como revelam Pinto e Santos
(2010) em pesquisa feita junto a profissionais ligados à ESF, mesmo
eles não têm muita clareza a respeito do SUS, das suas políticas e
práticas. As autoras atribuem parte desse desconhecimento ao fato de
que, dentre os profissionais que compõem as equipes, os únicos que
tiveram formação específica sobre a ESF são as ACS. Os médicos e
técnicos de enfermagem não. E mesmo assim, as ACS desempenham
outras funções para as quais não são qualificadas.
Essa questão da boa vontade ou do desconhecimento das ACS
pode ser percebida também nos momentos em que elas dão às pacientes
sugestões sobre como acelerar a obtenção de exames que já deviam ter
sido feitos e não foram, ou sobre como acessar serviços específicos do
posto. Percebe-se nessa situação como é fundamental para o bom
funcionamento do Programa esse contato entre os ACS e os usuários. A
questão que fica no ar é o que fazem e como obtém informação as
usuárias que por motivos de trabalho não se encontram nas suas casas
em horário comercial para receberem as visitas das ACS?
Importante, nesse sentido, é reforçar a indagação se a Atenção
Básica, enquanto porta de entrada e primeiro contato das mulheres com
199
os serviços de saúde, estaria levando em consideração as peculiaridades
delas na sua dupla condição de mães e trabalhadoras num contexto de
enfraquecimento das redes de suporte familiares. Além do forte caráter
preventivo e de promoção da saúde do novo modelo não ser plenamente
conhecido pelas famílias, a ESF esbarra com a dificuldade que essas
mães têm de comparecer às reuniões ou eventos programados.
As vezes eu nem sei o que está acontecendo no posto, na
verdade. Às vezes é muita coisa, tipo quando estava grávida
tinha um grupo de gestantes e participava. Quando minha
menina nasceu tinha um grupo de puericultura, que por sinal
ela está faltando. Sempre quando caía era sempre um dia que
tinha que ir trabalhar, Daí estou uns quatro ou cinco meses
sem ir. Não tenho condições de ir. (U6)
O forte caráter preventivo e de promoção da saúde das ações
desenvolvidas pela ESF esbarra com a dificuldade que essas mães têm
de comparecer às reuniões ou eventos programados. A ESF pensa numa
família nuclear típica, com pai-sustentador, que trabalha fora e mãe que
fica em casa cuidando dos filhos. A mãe, nesse caso, seria o ponto de
contato das famílias com a política pública. Caberia a essa mulher estar
em casa em horário comercial para receber as ACS, bem com ter
disponibilidade de horário para participar dos eventos programados
pelas ULS (como encontros de puericultura ou grupos de gestantes). A
dificuldade de ter contato com agentes de políticas públicas não é
privativo da saúde da família. Por ocasião de aplicação do Censo 2010
recenseadores relataram dificuldades para encontrar as famílias em casa
para fornecerem as informações, sendo necessário em alguns casos
coletar as informações em feriados ou fins de semana 99. A ausência das
pessoas responsáveis pelo contato das famílias com os representantes
das políticas públicas é aspecto não levado em consideração no desenho
do programa. A despeito da forte ênfase no vínculo que deveria
estabelecer-se entre as ACS e as famílias nas suas residências, as
estratégias de formação dos vínculos como a acolhimento nas unidades
99
Matéria jornalística elaborada por Kremer (2010) mostra que os recenseadores enfrentam
dois tipos de dificuldades para coletar os dados nas grandes municípios, lugares onde os
moradores ficam menos nas suas casas. Em bairros de classe média ou alta as pessoas os
responsáveis moram sozinhas ou com apenas um colega ou companheiro, trabalham o dia
inteiro e estudam à noite. Já nas comunidades desfavorecidas a dificuldade encontrada foi a
ausência dos responsáveis – nos lares haviam crianças ou adolescentes que não podiam dar as
informações solicitadas.
200
de saúde ainda estão fortemente atreladas a o que ocorre na unidade de
saúde, que pode configurar um conjunto de procedimentos postocentrados.
O elo da política pública com a comunidade se corporifica na
figura do Agente Comunitário de Saúde, que é a parte mais frágil do
sistema e quem dispõe de menos recursos para resolver as demandas da
população. São eles que “põem a cara para bater” e que muitas vezes
tentam amenizar as deficiências que o sistema tem. O sentimento de
impotência das ACS é frequente. Enquanto elemento mais próximo do
usuário, o ACS se percebe impotente para resolver as demandas da
população.
Sobre a representação das ACS como agentes de políticas
públicas foi emblemática a situação em que, numa determinada tarde, ao
percorrer o bairro com uma ACS esta passou a ser xingada por uma
pessoa pela existência de esgoto ao ar livre e pelas valas mal-cheirosas,
aspecto que configurou um certo clima de hostilidade por parte da
usuária100. A ACS tentou explicar que não era responsabilidade dela,
mas da Prefeitura. Fato que motivou a seguinte resposta por parte da
popular: “Sim, mas você não é funcionária da Prefeitura?”. Mais uma
vez ficou evidente que a população não tem claro quais os limites de
atuação dos agentes envolvidos na saúde da família. Essa fala também
colocou em evidência mais um aspecto da co-responsabilidade com as
famílias: o fato de que o Estado cobra das famílias a participação nos
cuidados, mas não faz a sua parte em termos de melhoria da infraestrutura, aspecto fundamental para ter condições sanitárias adequadas.
Conforme foi destacado anteriormente, a questão é que até mesmo para
os profissionais de saúde existe indefinição a respeito de a quem cabe a
resolução de certos problemas da comunidade. Por sua vez, os usuários
também não sabem a quem recorrer e enxergam os operadores das
políticas públicas como capazes de resolvê-las ou pelo menos
100
A demora no atendimento ou na marcação de consultas tem aumentado episódios de
violência contra servidores da saúde. De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores no Serviço
Público Municipal de Florianópolis (Sintrasem) pelo menos 80% dos servidores da saúde já
sofreram algum tipo de agressão física ou verbal, situação semelhante em todo o estado de
Santa Catarina (TONIAZZO, 2010). No mês de julho de 2010, no município de Correio Pinto
(a 258 km de Florianópolis) aposentado de 65 anos matou funcionária da Secretaria da Saúde
após ter feito boletim de ocorrência para reclamar que em pelo menos cinco ocasiões teria ido à
Secretaria em busca de tratamento e teria voltado para casa sem atendimento. No depoimento à
polícia afirmou que “praticou o crime „em nome do povo‟ e porque não aguentava mais o
descaso no atendimento” (STRUCK, 2010, p.1).
201
encaminhá-las sem ter ciência dos limites de atuação desses
profissionais.
Mesmo que pareça que a luta de forças desiguais (representada
pelo conhecimento que se tem do sistema) penda para o lado das ACS,
estas têm um escopo de ação limitada. Se de um lado se joga a
responsabilidade sobre as famílias, que têm que se adaptar às regras, de
outro as ACS têm pouca ou nenhuma capacidade resolutiva nas questões
que demandem atenção secundária. E que, diga-se de passagem, não é
da sua responsabilidade, mas pela qual são cobrados pela população.
Enquanto os operadores em saúde, notadamente as equipes de
ESF, têm uma lista de atribuições que delimitam a sua atuação, as
famílias não foram capacitadas para executar a sua parte da coresponsabilidade. As famílias parecem apenas esperar mais pelos
aspectos curativos e não estariam cientes das alterações que o novo
modelo de atenção em saúde (com ênfase nos aspectos preventivos)
representado pela ESF trouxe para eles. Em certa forma se espera ocorra
o que destacam Pessanha e Cunha (2009, p.237) que “a
responsabilização (...) provocaria, por parte do indivíduo, o abandono de
uma atitude passiva com relação à sua própria saúde”.
Alonso (2003) chama a atenção para as expectativas
despertadas na população, que nem sempre são cumpridas a despeito da
boa vontade das ACS. Na questão da co-responsabilidade teria que
haver uma definição clara das responsabilidades de cada uma das partes.
Enquanto que os ACS (assim como para os outros membros das
equipes) têm uma lista de atribuições (verificar vacinas, realizar VD,
entregar medicamentos, etc.) as famílias não foram capacitadas para
assumir a sua parte da co-responsabilidade. Como propõem Santos e
Andrade (2008), deveria ser oferecida educação sanitária ao paciente a
fim de fomentar maior responsabilidade do cidadão com a própria
saúde. Se não tiverem qualificação e conhecimento da nova concepção
epistemológica dos serviços de saúde qual será a sua parte na coresponsabilidade? O que lhe cabe? Reclamar? Pressionar?
Muito mais se o modelo biomédico induziu as famílias a
abandonarem suas práticas em saúde e com isso as fez transferirem para
os serviços médicos, e seus recursos tecnológicos e medicamentosos, a
responsabilidade pelos cuidados. As famílias, que ao longo de boa parte
do século XX se tornaram dependentes desses cuidados medicocentrados, agora são chamadas a reassumirem esses cuidados em outras
bases. Elas são convocadas a serem co-responsáveis, mas não têm nem
conhecimento sobre o que se espera delas nem têm condições de aceder
202
a exames ou consultas especializadas que lhes possibilitem ter controle
da sua dor. Pode ajudar a reverter esse quadro a incorporação dentre as
equipes de SF de especialidades médicas que vejam o processo de
saúde-doença desde uma perspectiva mais ampla como a homeopatia,
ou ainda o esforço das equipes de repassar conhecimentos fitoterápicos
para as famílias, que podem dinamizar o processo de auto cuidado.
Na discussão sobre a co-responsabilidade dos cuidados, os
conhecimentos oriundos da medicina familiar poderiam adquirir
relevância para aumentar o compromisso das famílias com o resultado
dos tratamentos e também para aumentar o grau de autonomia das
famílias.
A construção de um tratamento que levasse em consideração o
conhecimento dos usuários (por mínimo que seja) fortaleceria o
sentimento de autonomia e de co-responsabilidade dos mesmos. A
questão que se coloca é: como se pretende aprimorar a autonomia dos
indivíduos se não se resgata e valoriza o conhecimento que eles têm?
A brevidade da consulta coage o médico a extrair o máximo de
informação possível a partir dos sintomas que o paciente lhe relata (o
mesmo ocorre nas visitas das ACS em que elas a partir do relato dos
sintomas farão um quadro mental da situação dos usuários). Com
certeza o profissional da saúde não tem tempo de fazer algumas
perguntas que poderiam ser reveladoras sobre a percepção que o usuário
tem sobre o processo saúde-doença e dos itinerários que ele segue na
busca por cura ou mitigação da dor: de que forma o Sr./Sra. tem tratado
disso? O que o Sr./Sra. faz para mitigar a dor? Que medicamentos o
Sr./Sra. tem na sua casa para tratar disso? Tem procurado tratamentos
alternativos?
Está implícito no modus operandi da medicina oficial a sua
pretensa superioridade, pois ela dita/estabelece o que deve ser feito. A
questão é que talvez não teria como ser diferente pois ela detém
conhecimentos complexos que as famílias não possuem. O dilema posto
é como compatibilizar essa superioridade em termos de conhecimento
com o chamado feito às famílias para que elas se sintam co-responsáveis
por uma prescrição que elas não construíram. Em outras palavras, como
pretender que as famílias assumam uma atitude de co-responsabilidade
diante de um saber que lhes é imposto.
203
5.2.6.3 Como os profissionais da ESF percebem a monoparentalidade
feminina e o repasse de responsabilidades
Embora esta pesquisa tivesse seu objetivo restrito a captar a
percepção que as famílias têm da proteção social oferecida pela ESF e
explorar a sua compreensão do chamado à co-responsabilidade, no
decorrer da pesquisa surgiu a necessidade de ouvir de pessoas ligadas à
coordenação das equipes a sua percepção sobre as famílias
monoparentais e a questão da co-responsabilidade com os usuários. Para
tal fim, foram entrevistadas as coordenadoras e as assistentes sociais das
unidades de saúde em estudo. A justificativa para incluir as assistentes
sociais decorre do fato delas terem sido mencionadas com freqüência
pelas chefes das famílias monoparentais como fonte de orientações para
acessar direitos.
Quando questionadas sobre os tipos de famílias que as unidades
de saúde atendem, as coordenadoras entrevistadas afirmaram que
prestam serviços para vários tipos de famílias: as do modelo tradicional,
aquelas compostas por apenas um dos pais ou ainda aquelas em que a
função de cuidadora é assumida pela avó. As assistentes sociais foram
as que manifestaram a grande representatividade das mães chefes de
família entre as usuárias. Isso se justifica pela atenção que essas
profissionais podem prestar para as famílias. De fato, papel importante
na tarefa de construir a consciência dos indivíduos como objeto das
políticas públicas pode ser creditado à atuação de assistentes sociais
dentro dos NASF (Núcleos de Apoio à Saúde da Família). Enquanto
profissional capacitada para fortalecer os laços de proteção social, a
assistente social tem por objetivo construir uma rede institucional de
suporte social que instrumentalize as famílias quanto aos seus direitos.
As possibilidades de auxílio em entidades próximas ao bairro são
verificadas e caso não existam são procuradas em outras partes da
cidade. Com a mediação dessa profissional, as famílias podem ter
acesso a programas ou serviços que auxiliem em situações como
solicitação de bolsa família, pensão alimentícia ou reconhecimento de
paternidade.
Cabe destacar que a constituição dos NASF é medida
relativamente recente no município, pois a aprovação desses núcleos
pelo Conselho Municipal de Saúde data de fevereiro de 2008 101.
Menciona-se esse fato para destacar o potencial que os Núcleos terão
101
A nível nacional o NASF foi instituído em janeiro de 2008 pela Portaria nº 154/GM/MS.
204
daqui para frente para promover ações de educação em saúde e para
contribuir na compreensão sobre as necessidades dos diversos
segmentos que compõem o universo de usuários da saúde da família,
dentre eles as famílias monoparentais.
De acordo com informações constantes no site da Secretaria
Municipal de Saúde do município de Florianópolis, os NASF foram
criados pelo Ministério da Saúde para fortalecer a Atenção Primária à
Saúde. Elas agregam a um conjunto de equipes de saúde da família
(ESF) de uma unidade de saúde o apoio de profissionais de várias áreas
(profissional de educação física, assistente social, nutricionista,
farmacêutico, psicólogo, pediatra e psiquiatra). A intenção é promover,
via co-responsabilização das NASF com as ESF, a capacidade de
resposta para problemas de saúde mais complexos. Em termos
operacionais, essa co-responsabilização seria possível pelo apoio
matricial, isto é pelo trabalho integrado de ambas as equipes, em que
cada profissional contribui com os saberes da sua área. De concreto, o
apoio matricial se traduz em: “espaços de educação permanente;
discussão de casos e atendimentos conjuntos; construção coletiva de
planos terapêuticos; grupos compartilhados entre apoiadores e ESF;
intervenções conjuntas no território e ações intersetoriais; atendimentos
específicos do apoiador quando necessário” (PREFEITURA..., 2010,
p.1).
De acordo com as entrevistadas, ao setor de serviço social as
famílias apresentam três tipos de demandas. Em primeiro lugar, estão as
que apresentam necessidades primárias, como auxílio para obter a bolsa
família ou procuram o setor relatando situações de carência extrema.
Conforme as profissionais desse setor as caracterizam, trata-se de
famílias muito apreensivas, que vivem sob risco de serem despejadas e
que enfrentam sérias dificuldades para pagar contas essências como
aluguel, luz ou água. Em segundo lugar, o serviço social das unidades de
saúde atende, também, famílias que procuram aquelas necessidades que
uma rede secundária de suporte poderia lhes proporcionar, como
assistência jurídica para solucionar algum pleito. E, em terceiro lugar,
estão as demandas relacionadas ao mundo do trabalho: como direitos
trabalhistas negligenciados ou pedidos de auxílio doença.
Quanto à questão da co-responsabilidade, as entrevistas
manifestaram que é um processo em construção e que se trata de tema
polêmico, pois toca na questão da autonomia ou da emancipação das
famílias.
205
A unidade (de saúde) tem um limite de ação. Tem que ter
também a parcela de responsabilidade das famílias e isso se dá
nas mais diversas situações como, por exemplo, a dependência
química, onde o sujeito usa determinada substância e isso lhe
traz prejuízos sérios. Porém, ele é autônomo para decidir se
quer usar ou não. Nós informamos quanto aos riscos, estamos
abertos ao atendimento, mas muitas vezes esse usuário
continua usando e se prejudicando ou aquele outro usuário que
não faz tratamento adequado de AIDS, de tuberculose, de
diabetes, que sabe que tem um tratamento adequado, mas não o
faz. (...) Nós temos que respeitar a autonomia do sujeito,
porque aí a agente consegue dividir essa responsabilidade,
senão a agente fica muito sobrecarregado, muito absorvido
pela demanda. (Assistente Social, Área I).
Nota-se no depoimento anterior como se daria a divisão de
responsabilidades em casos como a dependência química ou o de
doenças em que a participação do indivíduo é decisiva, pois está posta
diante dele uma tomada de posição. O usuário tem que decidir se irá
parar com o uso de drogas ou se fará de maneira adequada o tratamento
(para AIDS, tuberculose ou outras afecções), mas o que dizer daquelas
situações que fogem a esse padrão? Ou seja, como co-responsabilizar as
famílias se elas se sentem altamente dependentes do sistema de saúde e
o sistema muitas vezes não lhes dá a resposta esperada? E mais, como
torná-las co-responsáveis se, como destacou a mesma entrevistada, “as
famílias não tem muito clara essa questão da co-responsabilidade.
Muitas vezes colocam toda a responsabilidade no posto, para a unidade
de saúde responder”. Para uma das coordenadoras entrevistadas isso
em parte pode ser atribuído à mídia, que estaria prestando um desserviço
à sociedade ao delegar as responsabilidades da saúde aos serviços de
saúde e deixar de mostrar que a família também é responsável pelo autocuidado: “as pessoas além de ter acesso aos serviços de saúde, também
deveriam aprender todos os dias a se cuidar melhor para que cada vez
menos dependam dos serviços de saúde” (coordenadora 1)
No que se refere aos aspectos preventivos e de promoção à
saúde da ESF, as entrevistadas têm clara a necessidade de desenvolver
nos usuários os seus direitos e de conscientizá-los das suas
responsabilidades pela sua saúde. As entrevistadas de ambas as áreas
destacam o forte trabalho que vem sendo desenvolvido de educação em
saúde e chamam a atenção para ações concretas como a divulgação do
206
documento dos direitos dos usuários. Uma das entrevistadas chega a
cogitar que se a população ainda não está ciente dos aspectos
preventivos e de promoção à saúde deve-se a que as ACS no contato que
têm com as famílias não estariam as alertando para isso. Novamente
retorna-se aqui ao ponto de que há muitos aspectos do relacionamento
com as famílias que ainda carecem de uma normatividade e que recai
sobre as ACS (enquanto elementos de contato das famílias com a
política pública) a tarefa de transmitir isso.
207
CAPÍTULO VI
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve por objetivo verificar se a ESF, enquanto
mecanismo chave da atenção básica no Brasil estaria atendendo as
necessidades de proteção social das novas configurações familiares, com
destaque para as famílias vulneráveis com chefia feminina. Já de início,
três aspectos poderiam ser alvo de questionamento: por que focar a
análise nas famílias e, dentre elas, por que se deter nas famílias
vulneráveis e com chefia feminina? Vale recordar que um dos princípios
analíticos que orientou esta tese foi verificar se esta política pública
atinge os seus objetivos, isto é se dá conta daquilo que se propõe a fazer.
Nesse sentido, a Estratégia Saúde da Família, enquanto estratégia
prioritária de reorientação do modelo em saúde deixa bem explícito que
o seu objeto de atenção são as famílias. Nesse contexto, o que
justificaria ter se detido apenas nas famílias vulneráveis, haja vista que a
política de saúde, graças à reforma constitucional de 1988 passou a ter
um caráter universal? Ocorre que na prática, a saúde pública assumiu
um caráter focalizado (nos mais pobres) e excludente (pois exclui do
SUS as classes médias e altas, mesmo que não propositalmente, pela via
do estímulo aos convênios privados). Dentre as famílias, as chefiadas
por mulheres são as que parecem enfrentar maior grau de precariedade,
situação essa manifesta por todo um conjunto de situações adversas que
as cercam. Outro fator que justificou a atenção nas famílias
monoparentais é o seu significativo crescimento dentre o total de
famílias brasileiras, conforme evidenciado nas estatísticas
populacionais.
Este estudo trabalha com a perspectiva de que o fato da ESF focar
as famílias tem duas implicações: a necessidade de uma definição bem
clara do que seja família e o significado e as conseqüências de
considerá-las como co-responsáveis pelos cuidados. Tendo em mente
esses dois aspectos, alguns questionamentos nortearam esta
investigação, tais como: quais os problemas que a ESF busca responder?
Quais as demandas que as famílias fazem ou buscam sanar ao acessar os
serviços de saúde? De que forma os resultados dessa política pública
podem ser impactados pela estrutura das famílias e suas novas
configurações? De que forma as famílias, e mais explicitamente as
mulheres, estão cientes e preparadas para os desafios que a nova
configuração dos serviços de saúde lhes impõe?
208
A hipótese que orienta a discussão proposta é que a falta de clareza
e conhecimento quanto à situação atual das famílias pode afetar a
eficácia da ESF e que a noção da co-responsabilidade nos cuidados pode
estar sobrecarregando as famílias e em particular as mulheres.
A discussão do tema em estudo foi colocada no contexto das
transformações pelas quais as sociedades industrializadas vêm passando,
com destaque para quatro elementos. O primeiro deles, a reestruturação
produtiva, retrata as mudanças ocorridas no âmbito da produção, com o
advento da produção fordista – que se, de um lado, seria responsável
pela recuperação da crise pela qual o capitalismo dos anos 1960
passava, por outro lado estaria acompanhada de desemprego, exclusão e
aumento da vulnerabilidade social. O segundo elemento foca as
transformações dos sistemas de proteção social, que após as crises
fiscais dos países desenvolvidos nos anos 1970 mudam a configuração
da proteção outorgada e chamam setores da sociedade, dentre eles as
famílias para assumirem parte dos encargos que antes cabia ao Estado.
A partir dessa discussão, é que a centralidade da família nas políticas
públicas deve ser compreendida. O terceiro elemento, a reorientação do
modelo de atenção em saúde e o foco nos cuidados primários, deve ser
estudado nessa mesma perspectiva – com o olhar para a família. O
quarto elemento trata das mudanças ocorridas no âmbito da família ou
dos aspectos que a afetam de modo direto, como o ingresso maciço das
mulheres no mercado de trabalho e do surgimento de novos arranjos
familiares com destaque para as famílias com chefia feminina. Estes
dois últimos aspectos são fundamentais para compreender as condições
reais que as famílias têm de dar conta dos encargos que a configuração
mais recente do sistema de proteção em saúde lhes atribui.
O trabalho foi dimensionado de forma a entender se a ESF –
enquanto proposta de mudança no paradigma da saúde-população em
geral para a população-família – estaria levando em consideração as
novas especificidades das famílias contemporâneas. E, nesse sentido, se
ela não estaria mais sobrecarregando as famílias do que resolvendo os
seus problemas de saúde.
A questão da vulnerabilidade social se impôs como categoria
teórica e analítica relevante por manifestar a situação de parcela
crescente da população mundial. O conceito utilizado pretende superar
visões parciais da pobreza que concebem o fenômeno a partir de
características individuais associadas aos pobres, como níveis reduzidos
de renda ou baixa dotação de capital humano. Também busca superar as
visões que, direta ou indiretamente, culpabilizam os pobres pela sua
209
condição ou consideram essa situação como algo passageiro, a ser
automaticamente superado pela via do crescimento econômico. A
vulnerabilidade social, enquanto categoria central nesta tese, é
concebida – a partir dos estudos de Robert Castel – como um fenômeno
estrutural, que desde os anos 1970 retrata a quebra da associação entre
assalariamento e proteção social. A partir dessa época, a desestabilidade
e a precarização passariam a ser a marca característica das sociedades,
mesmo das mais desenvolvidas economicamente.
Se nos anos 1960-70 houve uma transformação em curso no
âmbito produtivo com claros reflexos no aumento da vulnerabilidade
social, os sistemas de proteção social também passaram por
significativas mudanças de foco, decorrentes basicamente da crise do
modelo keynesiano ou da crise da época de ouro do capitalismo (19451970). Restrições orçamentárias passaram a ser a tônica das políticas
econômicas implementadas por países europeus e o padrão de proteção
social implantado após a Segunda Guerra Mundial, com tinha foco
numa proteção ampla, daria lugar a um mix de proteção (ou a um
sistema de proteção plural) que repassa para a sociedade (famílias,
empresas e terceiro setor) os encargos pela proteção social. A
“redescoberta” da família como elemento de proteção social deve ser
entendida nesse contexto.
Em termos de sistemas de proteção social, o Brasil nunca chegou
propriamente a ter um nos moldes dos sistemas de bem-estar europeus.
Houve uma série de avanços entre os 1930 e 1988 (inspirados em certa
forma nos modelos de proteção da Alemanha e da Inglaterra) que seriam
severamente alterados no início dos anos 1990. De modo mais
específico, se as reformas manifestas na Carta Constitucional de 1988
buscavam superar a frágil proteção associada ao trabalho e a tornar
universal nas suas diversas formas (assistência social, educação, saúde),
as reformas neoliberais imporiam o desmonte das incipientes formas de
proteção social e passariam a privilegiar as políticas sociais focalizadas
nos pobres. Ao mesmo tempo em que fixavam seu olhar nos pobres, as
políticas sociais colocavam as famílias como centro da sua atenção.
Dessa forma, o Brasil nos anos 1990, mesmo sem ter passado por uma
fase estruturada de bem-estar social nos moldes europeus, embarcava na
idéia de reformar seu frágil sistema de proteção e convocava as famílias
como parceiras, fato que fica patente ao se analisar políticas específicas
como a da assistência social ou da saúde.
Para compreender cabalmente como o sistema de proteção social
em saúde chegou a esse ponto foi necessário nesta tese resgatar o
210
desenvolvimento do sistema de saúde. Destaque-se que sua peculiar
evolução esteve sujeita a condicionantes históricos do país e a pressões
de atores e movimentos que lutaram pela sua institucionalização. Desde
a época da Colônia até a segunda década do século XX as atividades de
saúde restringiam-se às ações sanitárias, com forte caráter campanhista e
muitas delas limitadas territorialmente ao Rio de Janeiro. O sistema de
saúde passaria a ser gerido pela União em 1920 com a criação do
Departamento Geral de Saúde Pública e o que é mais importante: a
partir desse ato é que a saúde se torna “pública, estatal e nacional” como
destaca Hochmann (1998). A criação desse órgão estatal seria a resposta
ao intenso movimento denominado Liga Pro-Saneamento do Brasil, que
advogava pela interiorização das ações em saúde. A partir desse marco,
que constitui o nascimento da saúde como política pública, este trabalho
resgatou a evolução tanto institucional quanto política que acompanhou
a metamorfose da saúde no país até o grande momento, na Constituição
de 1988, que instituiria a saúde (juntamente com a previdência e a
assistência social) como parte do sistema brasileiro de proteção social. O
SUS, que ali nascia, estabeleceria as bases de um sistema de saúde
público baseado nos princípios da universalidade, da integralidade, da
equidade, da participação popular e da descentralização dos recursos.
Seria exatamente na esteira da descentralização das ações do
Estado para a área e da implantação de um novo modelo de atenção em
saúde que nasceria o Programa Saúde da Família (PSF) em 1994,
denominado a partir de 1997 de Estratégia Saúde da Família (ESF).
A respeito da descentralização das ações em saúde, foi
assinalado nesta pesquisa que essa noção era defendida por dois grupos
com argumentos diferentes. De um lado, a descentralização era proposta
pelo Movimento da Reforma Sanitária como forma de aproximar as
decisões e a gestão dos recursos dos estados e municípios, aspectos
associados à concepção cidadã de universalidade das políticas públicas
prevista pela Constituição de 1988. Por outro lado, a descentralização
era vista, por teóricos alinhados com o discurso neoliberal, como parte
de uma estratégia maior de reforma do Estado associada à redução de
custos. Foi destacado que, em contraste com o caráter universalizante
das políticas sociais pretendido pela descentralização proposta pelo
primeiro grupo, para os defensores da reforma do Estado as políticas
sociais deveriam ter o seu foco apenas nas populações desfavorecidas.
Neste trabalho salientou-se que ambas as concepções tiveram influência
na configuração do sistema de saúde, pois o SUS tanto é resultado da
pactuação infraconstitucional que possibilitaria a participação da
211
sociedade nas decisões quanto na prática é focalizado. Assinalou-se que
essa focalização não se manifesta através de uma atitude deliberada de
atender apenas os pobres, mas pela decisão da saúde pública de cuidar
diretamente da Atenção Básica que é mais barata e de estímulos para
que as classes mais remediadas usem convênio sde saúde. Em outras
palavras, a decisão de deixar para o mercado a atenção secundária e
terciária não deve ser entendida apenas como uma atitude deliberada de
deixar para o mercado os segmentos com maior potencial de lucro, mas
que foi deixada nas mãos de setores com maior capacidade de
investimento. Até hoje a insuficiência de recursos garantidos pelo
Estado para financiar as ações em saúde evidencia a fragilidade dessa
política pública e o quão distante ainda está de constituir-se em parte de
um sistema de proteção sólido capaz de suportar embates políticoeleitorais, semelhante aos dos sistemas europeus de bem-estar social.
Sobre o novo modelo de atenção em saúde é importante frisar que
a atenção básica e o seu foco reducionista não pode ser unicamente
atribuído a uma estratégia deliberada para enxugamento de custos por
parte de políticos ou técnicos alinhados com o neoliberalismo. A
Atenção Básica à Saúde adotada no Brasil (ou “Atenção Primária à
Saúde”, na literatura estrangeira), enquanto modelo, ganharia caráter
prioritário nos serviços de saúde em todo o mundo a partir das
recomendações da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários
de Saúde, realizada em Alma Ata em 1978. Em substituição ao modelo
hospitalocêntrico até então hegemônico e a sua ênfase na medicina
curativa e na especialização, o modelo da atenção primária proposto
privilegiava a saúde através de ações preventivas e educativas.
Assim, o Programa Saúde da Família foi condicionado pelas
discussões assinaladas, tanto da descentralização das políticas públicas,
quanto da orientação para a adoção de um novo modelo em saúde,
questões essas que modulariam experiências já existentes no país de
medicina familiar ou comunitária, que tinham caráter mais restrito ou
regionalizado.
Assentado no modelo da atenção básica, a ESF, enquanto substituta
do PSF, adota como objeto central da sua atuação as famílias e se
empenha em estabelecer laços de compromisso e de co-responsabilidade
entre as famílias e os profissionais da saúde. Esta tese chamou a atenção
para o fato do tripé de sustentação desta política pública (promoção,
prevenção e trabalho com famílias) não ter levado em consideração
mudanças profundas que se operam nas famílias. Desconhecimento esse
que pode ser crítico para a efetividade da política pública. A ESF
212
concretiza a promoção e a prevenção não necessariamente na unidade de
saúde, mas preferencialmente no contato das ACS com as famílias nas
residências. Só que se as famílias têm mudado de perfil – e aqui pode-se
falar que a mudança mais significativa tem sido a maciça participação
das mulheres no mercado de trabalho e a monoparentalidade feminina –
questiona-se por que a ESF ainda trabalha com um modelo de família
tradicional em que a mãe, como principal cuidadora teria tempo para se
dedicar à sua parte do exercício da co-responsabilidade e estaria no
domicílio boa parte do dia, o que facilitaria o contato com as ACS.
A discussão feita nesta tese sobre os papéis sociais que cabem aos
membros da família foi necessária para compreender quem, dentro da
família, estaria arcando com a responsabilidade crescente que as
políticas públicas atribuem às famílias. Chamou-se atenção para o fato
de que os cuidados que envolvem a vida familiar recaem principalmente
sobre as mulheres. Aspecto esse que deve ser levado em consideração
pelos serviços de saúde. O fato é que quando o serviço de saúde tem em
mente fazer contato com a família deve ter presente que quem a
representa é quase sempre a mulher. Os serviços de saúde não podem
desconhecer, sob pena de comprometer os seus resultados, que a mulher,
enquanto elemento fundamental para o êxito do tratamento de saúde
preconizado, tem ampliado seu universo de atividades para além do
circuito dos cuidados domésticos.
Como ser multifacetado, a mulher se inseriu no mercado de
trabalho maciçamente e muitas vezes em condições mais precárias que
as dos homens. Se para a geração anterior de mulheres a inserção no
mundo produtivo era uma forma de emancipação contra a dominação
patriarcal ou uma opção para a reafirmação da auto-estima feminina, na
atualidade a incorporação das mulheres ao mercado de trabalho é algo
natural e necessário para a sobrevivência do grupo familiar. Entretanto,
a naturalidade com que deve ser vista a participação feminina no mundo
do trabalho deve ser compreendida de acordo com o grupo social ao
qual as mulheres pertencem. Se as de classes mais remediadas o fazem
depois de ter-se qualificado ou em idade mais tardia, para as mulheres
das classes subalternas o imperativo de garantir ou de contribuir para a
sobrevivência do seu grupo familiar lhes impõe a inserção precoce em
atividades precárias com escassas garantias trabalhistas, como o trabalho
doméstico ou as faxinas. Tais observações são importantes para situar as
usuárias dos serviços de saúde, pois da forma como na prática esses
serviços tem sido configurados (com foco nas populações mais
desfavorecidas) serão essas mães as que preferencialmente acessarão as
213
unidades básicas de saúde. Conforme foi destacado, o sistema de saúde
não pode se isentar de conhecer quem são as famílias que buscam os
seus serviços e, em particular quem são as usuárias que representam
essas famílias, nem podem ignorar a forma como essas mulheres
equilibram (se é que conseguem fazê-lo) as diversas funções que lhes
cabe desempenhar.
As transformações das famílias, com destaque para a
monoparentalidade feminina, parecem não ter influência na elaboração
das políticas que a elas dizem respeito, pois são elaboradas a partir de
um modelo geral, sem atenção nas especificidades e nos processos
dinâmicos da vida familiar. A ausência de percepção dos novos perfis
familiares (no caso a monoparentalidade) pode ter dois impactos. Em
primeiro lugar, pode impedir de dimensionar de maneira adequada as
consequências que tem a transferência de responsabilidades sobre as
famílias, as quais recaem principalmente sobre a mulher chefe de
família, que já tem uma sobrecarga em relação àquelas mulheres que
compartilham os cuidados com o seu cônjuge. O que se observa na
prática é que a política pública está assentada num tipo de família
tradicional – nuclear – em que a mãe, por permanecer mais tempo no
lar, teria condições de executar a cota de atribuições que cabe à família
no modelo da ESF. Em segundo lugar, o desconhecimento da
diversidade de situações que se abrigam na categoria
“monoparentalidade feminina” e na redes que oferecem suporte a essas
mães impede que o sistema de saúde saiba quais os itinerários
terapêuticos que essas famílias seguem na busca por tratamento médico.
A questão da co-responsabilidade da família foi analisada neste
trabalho com atenção. A discussão partiu da idéia de que alguém só
pode ser julgado ou responsabilizado a partir do conhecimento que
tenha das regras às quais se encontra submetido.
Destacou-se que enquanto os profissionais envolvidos com a saúde
da família (médicos, enfermeiros, ACS) têm suas funções claramente
definidas não há, nos documentos oficiais, elementos que definam o
exercício da co-responsabilidade por parte dos usuários. A preocupação
maior dos documentos que orientam a reorganização da saúde da família
está exatamente nos elementos organizacionais que devem estruturar o
novo modelo. Nesse contexto, a família só é mencionada como “objeto
principal da sua prática” e “chamada a ser co-responsável pelos
cuidados em saúde”. Não há menção a elementos que orientem como o
grupo familiar deve proceder para cuidar da sua parte da coresponsabilidade.
214
A pesquisa apontou que os usuários não sabem definir o que é o
Programa (ou Estratégia) Saúde da Família, nem têm ciência da sua
ênfase nos aspectos preventivos e de promoção à saúde. Na perspectiva
da proteção social em saúde que as famílias recebem merece destaque o
fato de que as famílias ignoram o que se espera delas. De maneira
intuitiva, as famílias parecem entender o que lhes cabe na delimitação
de responsabilidades: seguir orientações quanto à medicação; saber se
determinada queixa de saúde deve ser encaminhada pra um setor de
emergência ou tentar agendar uma consulta; seguir orientações
preventivas e insistir na marcação de consultas com especialistas ou de
exames de média e alta complexidade. Este último aspecto revela o
quanto os serviços de saúde desconhecem as peculiaridades dos
usuários. Por serem basicamente mulheres, mães e trabalhadoras, são
limitadas as possibilidades que elas têm de ficar insistindo na unidade de
saúde para obter a consulta ou o exame almejado. Além disso, o repasse
da responsabilidade se daria hipoteticamente no contato entre a política
pública – via ACS – e as usuárias. Só que como as ACS fazem as visitas
em horário comercial esse contato tem reduzidas possibilidades de se
concretizar no caso das mulheres que trabalham fora o dia todo.
Sobre o desenho da ESF e a sua ênfase nos aspectos preventivos,
cabe destacar que se, por um lado, tem correspondido à necessidade de
superação do modelo hospitalocêntrico e à necessidade de criação de um
sistema bem estruturado de atenção primária à saúde, por outro lado,
carece de um olhar mais preciso sobre o objeto da sua prática – a
família. As famílias por sua vez, parecem não compreender o caráter
preventivo das ações em saúde propostas. Pela urgência das condições
de vida que enfrentam – com pouco tempo disponível fora do trabalho e
enxugamento da rede de suporte familiar – as usuárias mostraram-se
mais interessadas em ações de efetividade mais imediata. Em outras
palavras, parecem buscar serviços que o sistema de saúde não está apto
a lhes oferecer e que poderiam ser resumidos a uma seqüência simples:
consulta-medicamentos-cura. É importante salientar que a população
usuária não tem condições de dimensionar o quanto o modelo de AB
com o seu caráter preventivo tem sido responsável pela queda de
diversos indicadores – mortalidade infantil, desnutrição, diversos tipos
de doenças – e também não se pode exigir que saiba dessas estatísticas.
Nesse sentido, ações de educação em saúde poderiam potencialmente
alterar essa situação.
A Atenção Básica supõe-se uma superação do modelo
hospitalocêntrico ou médico-centrado. Entretanto ela tem limites. Pois
215
mesmo que se proponha superar o modelo curativo e enfatizar o
preventivo, o que se vê em certas situações é o reforço de ações
medicalizadas. Ao mesmo tempo, apesar da AB ser propalada como
solução para a queda desses indicadores questiona-se o seu papel no
caso de epidemias. Vale destacar a escassa participação dos serviços da
AB no caso da gripe AH1N1 (inadequadamente chamada de “gripe
suína”) quando se esperava maior envolvimento e resolutividade nos
processos de notificação de casos na comunidade.
Quanto à proteção social em saúde que o país disponibiliza
constata-se, com certo alívio, que em contraste com o caráter restrito em
termos geográficos e meritocráticos do acesso das políticas de saúde dos
anos 1930, na atualidade todos os municípios (em seus diversos bairros)
contam com unidades de saúde que atendem a população. Trata-se de
milhões de pessoas que têm acesso à saúde não mais por possuir carteira
assinada, mas porque constitucionalmente a saúde é um direito para
todos os cidadãos do país. Os dilemas enfrentados pela saúde hoje são
mais complexos. As famílias passam por transformações, a mulher se
incorporou definitivamente ao mercado de trabalho e o quadro de
vulnerabilidades econômicas e sociais se aprofunda. O sistema de saúde
brasileiro além de ter que cuidar de endemias rurais e urbanas ainda não
debeladas tem que dar conta da crescente demanda por atendimento
médico que lota hospitais e ganha destaque negativo na mídia.
********
Nos agradecimentos das páginas iniciais desta tese fiz menção à
situação da jovem mãe que no ano 2003 trabalhava na minha casa como
empregada doméstica e perdia dias de trabalho quando os filhos
adoeciam, pois precisava fazer fila de madrugada para conseguir uma
consulta médica no “posto”. Não tenho mais contato com ela, mas com
certeza não deve estar mais fazendo fila de madrugada quando precisa
de atenção médica. A despeito de a mídia mostrar hospitais lotados e
usuários insatisfeitos, a atenção básica oferecida nas unidades de saúde
dá conta de muitas das demandas das famílias, como as que a moça
referida fazia. Dores de garganta, febres repentinas ou gripes certamente
devem receber atenção no mesmo dia nas unidades de saúde. Os
gargalos permanecem no atendimento com especialistas e na obtenção
de exames de média e alta complexidade. Do mesmo modo que os
usuários do SUS, a população como um todo está sujeita a enfrentar
dificuldades ao procurar atendimento hospitalar de emergência para
216
casos graves, como traumas, AVCs, queimaduras ou, ainda, em serviços
que mesmo despidos do caráter de emergência são executados pelo setor
público, como os transplantes de órgãos. Portanto, muitas dificuldades
no acesso a serviços de saúde que estão presentes entre famílias
vulneráveis são extensivas para aqueles que se consideram “protegidos”
pelos planos de saúde. O falso sentimento de proteção dos usuários
desses planos provém da sua percepção a respeito da relativa facilidade
com que conseguem marcar consultas ou exames. Essas pessoas não se
dão conta que lutar pelo SUS e pelos seus constantes aprimoramentos é
dever de todos. Nesse sentido, espera-se que deficiências apontadas por
esta tese sirvam na tarefa de construir um serviço de saúde cada vez
melhor.
217
REFERÊNCIAS
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252
253
ANEXOS
254
255
ANEXO I
Prefeitura Municipal de Florianópolis
Secretaria Municipal de Saúde
Assessoria de Desenvolvimento Institucional
Assessoria Técnica de Geoprocessamento
Áreas de Interesse Social por Unidades Locais de Saúde
e Regionais de Saúde
Setembro 2007
MICRO-ÁREAS
CORRELATAS
POPULAÇÃO
COBRAPE /
SMHSA/ PMF
2006
REGIONAL
UNIDADE
LOCAL DE
SAÚDE
ÁREAS DE
INTERESSE
SOCIAL
Centro
4
17
46
16053
7
20
36
15114
Leste
3
6
18
5327
Norte
3
7
11
2127
Sul
7
14
40
12982
24
64
151
51603
Continente
TOTAL
Nº de Regionais = 5
Nº de ULS = 48
Nº de Áreas = 90 (Nº de Equipes PSF = 85 e Nº de Equipes PACS = 5)
Nº de Micro-Áreas = 639
Nº Micro-Áreas correlatas às Áreas de Interesse Social = 151 (24%)
População Florianópolis = 396 723 pessoas
( Fonte: Censo Demográfico IBGE 2000 Projeção 2007)
População Áreas de Interesse Social = 51603 pessoas (13%)
( Fonte: COBRAPE / Secretaria Municipal de Habitação e Saneamento
Ambiental / PMF / 2006)
256
Localização das Áreas de Interesse Social por Unidades Locais de
Saúde e Regionais de Saúde
Regional Centro - Setembro 2007 -
REGIONAL
UNIDADE
LOCAL DE
SAÚDE
Agronômica
Subtotal
Centro
CENTRO
Monte Serrat
ÁREAS DE
INTERESSE
SOCIAL
69102,69103
Morro do Horácio 69104,69105
69106,69107
69004,69005
Morro do 25
69006
Vila Santa Rosa
69205
2422
1669
176
69201,69202
69203,69204
4
Ângelo La Porta
José Boiteux
14
12102
12106,12007*
5550
Laudelina Cruz
Lemos
Morro do Céu
12004*,12006
*
12107,12105
12001*,12003
12004*,12005
12006*,12008
, 12009*
12006*,12007
*
12
137
Santa Clara /
Mons. Topp
6
Morro da
Mariquinha
Prainha
POPULAÇÃO
COBRAPE /
SMHSA
2006
Vila Santa Vitória
Monte Serrat
Subtotal
MICROÁREAS
CORRELATAS
Morro da
Queimada
Morro do Mocotó
12001* (ULS
M.
Serrat),13001
13004,13005*
13103,13106
13107*
13007,13002
13003,13107*
1283
66
776
257
2816
176
4228
636
725
1330
257
Morro do Tico
Tico
Subtotal
4
Morro da
Penitenciária
Trindade
Serrinha I
Serrinha II
Subtotal
TOTAL
4
12001*,12009
* (ULS M.
Serrat)
13005*
9
85001,85002
85003,85004
85010
85102,85103
85110
85108,85107
85109
569
3260
1131
1533
351
3
11
3015
17
46
16053
* Micro –área presente em mais de uma Área de Interesse Social
258
Localização das Áreas de Interesse Social por Unidades Locais de
Saúde e Regionais de Saúde
Regional Continente - Setembro 2007 -
REGIONAL
UNIDADE
LOCAL DE
SAÚDE
Abraão
Balneário
Subtotal
Capoeiras
Subtotal
Coloninha
Subtotal
Estreito
Jardim
Atlântico
CONTINE
NTE
Subtotal
ÁREAS DE
INTERESSE
SOCIAL
Ponta do Leal
1
Morro do
Flamengo
1
Nossa
Senhora do
Rosário
1
-
MICROÁREAS
CORRELATAS
02102
1
1
257
257
06005
1
07005,03103
(ULS Sapé)
2
01007
PC3
POPULAÇÃO
COBRAPE /
SMHSA
2006
472
472
491
491
148
1
04101,04102
04104,04105
Chico Mendes
04106,04402
04404*
04001,04004
Monte Cristo
04007
Nossa Senhora 04401,04403
Monte
da Glória
04404*
Cristo
Nova
04201*
Esperança
Novo
04103
Horizonte
Santa
04003,04006
Terezinha I
Santa
04201*,04206
Terezinha II
17
Subtotal
7
10003*
Morro
da CCI
Caixa
Jardim Ilha
10007,10009
Morro
da Continente
10010
148
2188
753
499
226
909
866
558
5999
176
710
259
Caixa
Morro da
Caixa I
10001,10002
10006
Morro da
Caixa II
10003*
831
7
3796
Subtotal
4
Policlínica II
Sapé
-
Vila
Aparecida
2079
-
Arranha Céu
09006*
472
Maclaren
Nova
Jerusalém
09002*
09006*,09009
09010
452
Vila
Aparecida I
09001,09004
1209
Vila
Aparecida II
09002*,09007
940
878
7
Subtotal
TOTAL
5
3951
7
20
36
15114
* Micro–área presente em mais de uma Área de Interesse Social
260
Localização das Áreas de Interesse Social por Unidades Locais
de Saúde e Regionais de Saúde
Regional Leste - Setembro 2007 -
REGIONAL
UNIDADE
LOCAL DE
SAÚDE
Barra
da
Lagoa
Canto
da
Lagoa
Córrego
Grande
Costa
da
Lagoa
Itacorubi
LESTE
ÁREAS DE
INTERESSE
SOCIAL
Morro do
Quilombo
Subtotal
1
João Paulo
Lagoa
da
Conceição
Pantanal
Pantanal
Subtotal
1
Morro do
Janga
Sol
Nascente
(Morro do
Atanásio,
Saco Grande
Caju, Belo
Horizonte)
Morro do
Balão
Vila
Cachoeira
TOTAL
MICROÁREAS
CORRELATAS
POPULAÇÃO
COBRAPE /
SMHSA
2006
19001,19010
2
-
628
628
16002,16003
398
2
33304,33305
398
893
33001,33002
33004,33005
33006,33007
33202,33201
2184
33303,33306
417
33301,33307
807
Subtotal
4
14
4301
3
6
18
5327
261
Localização das Áreas de Interesse Social por Unidades Locais de
Saúde e Regionais de Saúde
Regional Norte - Setembro 2007 -
REGIONAL
UNIDADE
LOCAL DE
SAÚDE
ÁREAS DE
INTERESSE
SOCIAL
Cartódromo
Cachoeira
I
do
Bom
Jesus
Vila União
Subtotal
MICROÁREAS
CORRELATAS
40101*
40101*,40102
40103,40104
4
2
Canasvieiras 38004
invasão
Morro do
38202,38203
Mosquito
Canasvieiras
Rio
38106
Papaquara
(São
Bernardo)
4
Subtotal
3
NORTE
Ingleses
Subtotal
Jurerê
Ponta
das
Canas
Ratones
Rio
Vermelho
Santo
Antônio de
Lisboa
Vargem
Grande
Vargem
Pequena
TOTAL
3
Adão dos
Reis
Rua do Siri
(Vila
Arvoredo)
2
-
POPULAÇÃO
COBRAPE /
SMHSA
2006
328
683
1011
39
199
137
375
43101
125
43102,43103
616
3
741
-
7
11
2127
262
Localização das Áreas de Interesse Social por Unidades
Locais de Saúde e Regionais de Saúde - Regional Sul Setembro 2007 -
REGIONAL
UNIDADE
LOCAL DE
SAÚDE
ÁREAS DE
INTERESSE
SOCIAL
Armação
Alto
Ribeirão
Caeira
da
Barra do Sul
Campeche
Carianos
Panaia
Subtotal
1
Costeira do
Pirajubaé
27102
1
121
121
359
Costeira III
30104,30105
207
Costeira IV
30001,30007
30102,30104
30103
30201,30202
601
267
5
Fazenda do Rio Tavares
Rio Tavares II
Subtotal
1
Morro das Areias dos
Pedras
Campeche
Subtotal
1
Pântano do Rio das
Sul
Pacas
Subtotal
1
Ribeirão da
Ilha
Rio Tavares
-
30005
Rio Tavares
(Seta)
Subtotal
POPULAÇÃO
COBRAPE /
SMHSA
2006
Costeira II
Costeira V
SUL
MICRO-ÁREAS
CORRELATAS
-
542
10
30203 ( ULS C.
Pirajubaé)
78001,78003
3
25004,25007
1976
2
562
23005
433
433
562
23
1
-
23
263
Costeira I
Caeira da
Vila
Saco
dos
Operária
Limões
I,II,III
Carvoeira
(Boa Vista)
Subtotal
3
Tapera I
Tapera
Subtotal
TOTAL
7
Tapera II
2
14
31003,31005
31004
31101,31107
31203,31204
31205,31206
31207
31006
218
2831
324
11
26001,26002
26003,26004
26006,26201
26202,26203
26204,26205
3373
26104,26105
12
944
6494
40
5550
12982
264
265
ANEXO II
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
Prezada Senhora:
Pedimos sua gentileza de colaborar com a pesquisa que tem por título
“Proteção social para famílias vulneráveis com monoparentalidade feminina
via Estratégia Saúde da Família”. Trata-se de pesquisa, para curso de
Doutorado em Sociologia da UFSC, que pretende levantar dois aspectos
principais:
1. Entender se as necessidades de saúde da sua família têm sido
atendidas de maneira adequada pelo pessoal da Saúde da Família.
2. As dificuldades enfrentadas pelas famílias chefiadas por mulheres, no
que se refere às questões de saúde.
Caso a Sra. aceite participar estaremos solicitando que responda um
questionário, em que não haverão questões que a identifiquem. A Sra. pode dar
uma olhada no questionário antes e ver o tipo de questões que serão feitas. Suas
dúvidas serão esclarecidas durante a pesquisa e fique à vontade para recusar, ou
até solicitar sua retirada do grupo entrevistado, mesmo depois de ter respondido
às questões. Suas respostas serão utilizadas somente para esta pesquisa.
Desde já agradecemos e nos colocamos à sua disposição para qualquer
informação.
Profa. Dr. Márcia Grisotti (orientadora)
Curso de Pós-graduação em Sociologia Política
Centro de Filosofia e Ciências Humanas - UFSC
Telefone: xxxx-xxxx ramal xx e-mail: [email protected]
Carmen Gelinski (pesquisadora)
Telefones: xxxx-xxxx (res.) xxxx-xxxx(com.) e-mail: [email protected]
Nome da Sra: ........................................................................................................
Sua assinatura : ......................................................................................................
266
267
ANEXO III
ROTEIRO PARA ENTREVISTAS
Público Alvo: (1) mulheres que pertencem a famílias que podem ter os
dois cônjuges e (2) famílias com chefia feminina (aqueles em que só
tem a figura da mulher)
PERFIL
SOCIO-ECONÔMICO:
estrutura
das
famílias,
funcionamento das famílias em rede- ver se dá para caracterizar o
tipo
de
família
(família/indivíduo,
família/domicílio,
família/comunidade, família/risco social)
1. Qual a sua idade? .........
2. Até que série estudou?
1( ) até quinta série
2( ) da sexta à oitava série
3( ) segundo grau incompleto
4( ) segundo grau completo
5 ( ) nível superior
6( ) Não sabe/ não responde
3. Qual a sua cidade de nascimento?
............................................................
4. Desde quando mora aqui, nesta cidade e neste bairro?
(considerar o fato de que pode estar morando no município
mais tempo e que tenha mudado de bairro algumas vezes)
...........................................................................................
5. Qual o seu nível de renda em salários mínimos?
1( ) até 2 salários mínimos
2( ) 2 a 4 SM
3( ) acima de 4 SM
268
6. Que pessoas compõem sua família?
......................................................................................................
......................................................................................................
7. Só a Sra. tem renda na família?
.............................................................................................................
.............................................................................................................
8. Quantas pessoas moram nesta casa? Quem são elas? (Pais,
sobrinhos, amigos/conhecidos)
.............................................................................................................
.............................................................................................................
9. A sra é casada/juntada ( )1
Separada? ( )2
Viúva ( )3
10. Em que atividade trabalha? .............................................
11. Quantos dias por semana? .............................................
12. (Para as que têm cônjuge) Em que atividade trabalha o seu
esposo?
......................................................................................................
13. Tem filhos? Qual a idade deles. Eles vão para a escola? Qual o
turno?
14. O que fazem seus filhos fora do horário de aula? Quem cuida
deles quando a Sra vai para o seu trabalho?
......................................................................................................
......................................................................................................
15. Me conte um pouco da sua rotina diária. (a que horas levanta,
como vai para o trabalho, quanto tempo demora no ônibus,
quando ou quem faz as atividades domésticas, a que horas
dorme) – se for o caso: o que faz no fim de semana
......................................................................................................
......................................................................................................
269
......................................................................................................
......................................................................................................
NECESSIDADES/DEMANDAS DE SAÚDE E ASPECTOS
ORGANIZACIONAIS DA ESF - carências referidas, demandas
associadas com a saúde, transferência de responsabilidades, visita
do ACS, percepção cognitiva do programa e dos processos de
saúde-doença.
16. Você, ou alguém da sua família, sofre de alguma doença ou
alguma dor frequente? (inquirir sobre possíveis doenças
crônicas) ou Que problemas de saúde tem tido ultimamente?
(itinerário terapêutico - depende da gravidade da doença?)
......................................................................................................
......................................................................................................
17. Como resolve os problemas de saúde?
......................................................................................................
......................................................................................................
18. Com quem você pode contar para lhe dar uma mão quando tem
problemas de saúde? Quem lhe ajuda a cuidar dos seus quando
ficam doentes?
......................................................................................................
......................................................................................................
19. Você lembra como era na época da sua mãe? Quem ajudava a
cuidar dos doentes?
......................................................................................................
......................................................................................................
20. Quem cuida dos seus filhos quando eles adoecem e você precisa
trabalhar?
......................................................................................................
......................................................................................................
21. - Quem os leva ao posto de saúde?
......................................................................................................
......................................................................................................
270
22. - Quem cuida de você quando você mesma tem problemas de
saúde?
......................................................................................................
......................................................................................................
23. O que o pessoal do posto vem fazer na sua casa?
......................................................................................................
......................................................................................................
24. Com que freqüência recebe as visitas dos ACS?
( ) uma vez por semana
( ) a cada 15 dias
( ) uma vez por mês
( ) uma ou duas vezes por ano
25. Desde quando eles fazem visitas à sua casa?
......................................................................................................
......................................................................................................
................................................................
26. Quando a sra. ou alguém da sua família adoece o que faz o
pessoal do posto?
......................................................................................................
......................................................................................................
27. É fácil conseguir consulta? Quando precisa de uma consulta é
só chegar no posto e ser atendida? Demora a conseguir
consulta?
......................................................................................................
......................................................................................................
28. E consulta com especialista, é fácil ou difícil?
.....................................................................................
29. Quando tem problemas de saúde, fica à vontade para ir ao posto
ou prefere se tratar sozinha e só vai em último caso?
......................................................................................................
......................................................................................................
271
30. Quando se consulta segue direitinho as indicações do que deve
fazer? (tomar os remédios, seguir uma dieta, etc.)
......................................................................................................
......................................................................................................
......................................................................................................
31. É cobrada pelo pessoal do posto a seguir as indicações? Se
sente cobrada?
......................................................................................................
......................................................................................................
ASPECTOS ORGANIZACIONAIS DO PSF – a visita do ACS e a
percepção sobre o PSF
32. Com que freqüência recebe as visitas dos ACS?
(
(
(
(
(
) uma vez por semana
) a cada 15 dias
) uma vez por mês
) uma ou duas vezes por ano
) nunca recebeu
33. Como se procede a visita? (como a entrevistada vê o trabalho
dos ACS – ver se dá para captar um possível aspecto invasivo
da visita)
......................................................................................................
......................................................................................................
34. Recebe visitas do médico?
........................................................................................
35. Recebe visitas da enfermeira?
................................................................................
36. Você sabe o que é o Programa Saúde da Família?
...................................................
272
37. Quando implantaram o PSF houve algum programa/palestra
explicando como seria o funcionamento do programa?
......................................................................................................
38. A Sra acha que eles estão mais preocupados em prevenir
doenças (e explicar como não pega-las) ou em curar as doenças
existentes?
......................................................................................................
......................................................................................................
39. Assiste às palestras proferidas pelas equipes de SF? Essas
palestras tem sido úteis para você e sua família?
......................................................................................................
......................................................................................................
40. Na unidade de saúde do bairro que tipo de serviços tem usado?
......................................................................................................
......................................................................................................
41. Tem facilidade de acesso aos serviços que a Unidade lhe
oferece?
......................................................................................................
......................................................................................................
42. Desde quando recebe atenção do posto? (ver se dá para captar
mudanças no funcionamento com o PSF – datar)
......................................................................................................
......................................................................................................
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