rio (faculdade de exigir tributos), poder jurídico (faculdade de agir e reagir em face da lei), poder legal ou competência (faculdade de exercer certa função); d) o poder como instrumento (que serve para alguma coisa), como por exemplo, no “poder público” (conjunto de órgãos pelos quais o Estado exerce sua função e mantém sua soberania). Assim, conclui que “podem-se extrair três associações da idéia de po- der: (1) poder como algo (substância); (2) poder como faculdade (humana) de produzir obediência; (3) poder como instrumento de exercício de império e de soberania.”6 Por sua vez, Miguel Reale7 entende que o estudo das relações entre o direito e o poder pode ser tomado por diversas perspectivas (história, psicologia, ciência política e outras), mas que na perspectiva jurídica interessa a análise da estrutura e funcionalidade do poder no âmbito dos ordenamentos jurídicos positivos, ou seja, demandando “o estudo do conceito de soberania e das relações entre a competência dos órgãos do Estado e os campos reservados à liberdade dos indivíduos e dos grupos que a ele pertencem”. Miguel Reale8 nos convida a pensar num prévio problema ôntico: o de saber se o direito é pensável sem o poder e vice-versa? Para Miguel Reale “pensar o direito com abstração do poder é esvaziá-lo de uma de suas componentes essenciais, com o resultado de conceber-se algo que não é o direito”. Assim, Reale9 para investigar o caráter essencial da correlação direitopoder sugere que se parta da análise do elemento essencial ao jurista: a noção de norma jurídica em sua expressão mais simples, como enunciado de comando (que aponta para um sentido de ação ou comportamento), tutelando o caminho escolhido (cominando uma pena/sanção ao transgressor ou conferindo vantagem a quem respeita a norma: a chamada “validade objetiva da norma”). Neste sentido, a norma jurídica é uma proposição lógica que envolve uma opção e decisão dentre múltiplos caminhos possíveis, o que nos revela o que há de essencial na correlação direito-poder. Reale demonstra o processo de “nomogênese jurídica” (processo de formação de uma norma legal), onde todos legisladores estão condicionados por um complexo de circunstâncias de fato (F), que é o conjunto de interesses, situações jurídicas, fatores naturais e tudo que se tornou momento objetivado da experiência histórica. Por sua vez, cada legislador, cada partido político ou cada grupo enunciam diversos juízos de valor e as tomadas de 6 FERRAZ JR., Tércio. “Poder e Direito” in Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2009, p. 6. REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 219-220. 8 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 220-222. 9 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 221-222. 7 168 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 posição axiológica dependem de um complexo de valores (V), de modo que cada uma dessas posições corresponde a uma proposição normativa (P) 10. Para Miguel Reale11, chega-se a um momento no processo legislativo onde se opta por um caminho com sacrifício dos outros mil possíveis. Dessa forma, o Congresso vota e o governo sanciona o projeto vencedor, sendo que uma das proposições normativas (P) se converte em norma legal (N). E é justamente nesta escolha (dotada de validade objetiva e de força constitutiva de direito novo) é que se revela a co-participação do poder (P), “o qual é um fato que determina uma solução normativa em função de um complexo de outros fatos, mas já é, por sua vez, condicionado pela tensão axiológica do processo normogenético como tal”. E assim, “(...) chega o momento do fiat lex, átimo culminante de uma decisão (...) é este o momento por excelência do poder”12. Assim, considerando o direito em elaboração numa representação gráfica: há diversas pressões axiológicas (V) incidindo sobre um prisma (fatos sociais, econômicos, técnicos, etc.), situação fática (F), refratando-se em diversas proposições normativas (P), onde apenas uma se converterá em norma jurídica (N) pela interferência do poder (P): Fonte: REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 226, onde: F: fato; V: valor; P: poder; N: norma-jurídica. 10 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 223-224. 11 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 224-225. 12 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 224-225. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 169 Quanto à relação entre o poder e a objetividade da decisão, nos lembra Miguel Reale13, que cada norma corresponde a um momento de integração de fatos segundo determinados valores e representa uma solução temporária de uma tensão dialética entre fatos e valores, estatuída e objetivada pela interferência decisória do poder. E que, apesar do exemplo acima da figura, ser de decisão do poder estatal (processo legislativo), poderia valer também ao “poder social difuso” em uma comunidade (como é o caso do direito costumeiro). Miguel Reale14 no que diz respeito à questão da implicação de direito e de poder (quem origina quem? o poder origina o direito ou vice-versa?) entende que, do ponto de vista lógico, não se pode falar em anterioridade do direito ou do poder, já que os dois fatores se implicam numa relação de polaridade (“há polaridade entre dois fatores quando o conceito de um é essen- cial à plena determinação conceitual do outro, sem que um possa, no entanto, ser reduzido ao outro, mantendo-se pois, sempre distintos e complementares”15). De outro lado, Reale nos mostra que a relação entre direito e poder é vista pelo pensamento jurídico contemporâneo da estatalidade (todo direito nasce do Estado ou é por ele reconhecido) ou da socialidade (chamado também de pluralismo, que reconhece diversos ordenamentos jurídicos), firmando a posição de que existem diversos ordenamentos jurídicos, mas que existe “entre eles uma gradação de positividade, cujo ápice é representado pelo ordenamento do Estado”.16 Neste sentido, Celso Lafer17 tratando da “teoria dos modelos jurídicos” , nos lembra que em “O Direito como Experiência”18 (e depois em “Fontes e Modelos do Direito”) Miguel Reale propõe a substituição da teoria das fontes pela dos modelos jurídicos, em virtude de sua concepção tridimensional do Direito (como produto inseparável do fato, do valor e da norma) e da crítica às teorias clássicas das fontes formais e materiais, por uma ótica retrospectiva19 e não prospectiva do Direito. Para Reale os modelos jurídicos 20 se estruturam da integração de fatos e valores através de normas postas por atos 13 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 226-227. REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 229-231. 15 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 230. 16 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 230. 17 LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 164-166. 18 REALE, Miguel. O Direito como experiência, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1992. p. 147-226. 19 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico, São Paulo: Saraiva, 1999. P. 23-24. 20 REALE, Miguel. O Direito como experiência, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1992. p. 192-209. 14 170 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 de escolha dentre diversos caminhos possíveis (o ato de escolha é um momento de poder na experiência jurídica). Assim, os modelos jurídicos teriam distintos índices de obrigatoriedade e sua positividade está correlacionada com uma gradação21 de poder, onde a soberania é o poder de declarar, em última instância, a positividade do Direito. Assim, “a norma posta pela inter- ferência decisória do poder converte-se numa intencionalidade objetivada, pois, para Miguel Reale, ‘a norma jurídica é sempre uma medida racional ou teleológica de conduta ou de organização’”. 22 Miguel Reale23, analisando a correlação direito-poder de um ponto de vista dinâmico, critica as teorias que pretendem eliminar o poder do direito, tendo em vista a juridicidade progressiva do poder, e o fato de o direito nunca ter um processo de elaboração espontâneo (não há surgimento automático das normas jurídicas pela pressão das “representações jurídicas”) sem a participação de uma autoridade estatal. Tal posicionamento de que o direito é sempre obra do poder, também pode ser encontrado em Maurice Hauriou24, Gény e Pascal. Reale defende o pluralismo (existência de multiplicidade de ordenamentos jurídicos internos em cada país), mas reconhece uma gradação de positividade, onde para se atingir o bem comum, se impõe o sistema de direito estatal sobre os demais. Assim, seu conceito de “soberania, não é (...), porém, um poder absoluto, mas o poder de declarar; em última instância a positividade do direito, superando os possíveis conflitos; existentes entre os círculos sociais internos, que não podem deixar de se subordinar à ordem jurídica estatal que, se de um lado os condiciona e limita, de outro lado lhes assegura paz e coexistência”. 25 Para Reale há um processo de institucionalização progressiva do poder, que pode ser demonstrado historicamente, por ex., pela institucionalização das contendas individuais (aparelhamento judiciário e garantias legais, solução de conflitos pelo judiciário). Assim, “o que caracteriza o progresso jurí- dico não é o desaparecimento (...) das lutas entre indivíduos (...), mas a 21 REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000. p. 303-338. LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 166. 23 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 232-233. 24 “A regra de direito ‘não emana dos fatos sociais do mesmo modo que as leis físicas emanam dos fenômenos físicos; ela é sempre obra de um poder que, até certo ponto, a impõe às forças sociais; ela tem necessidade de ser mantida por este poder para vencer as resistências que encontra; convém desconfiar de todos os sistemas que afirmam o império do direito (...) o direito não reina por si mesmo (...) atrás da regra de direito é preciso encontrar o poder que a sanciona". Maurice Hauriou, Precis de Droit Constitutionnel, Bordeus, 1ª Ed., pags. 8 e 9. apud in REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 233. 25 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 233. 22 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 171 transladação cada vez maior da solução dos conflitos do plano da força bruta para o plano da força ética”.26 Assim, a institucionalização do poder 27 ocorre por processos de duas ordens, que se polarizam e de quando e quando se harmonizam em equilíbrio instável: de um lado as aspirações por mudanças e inovações (dos revolucionários), e de outro, a manutenção do status quo e a conformidade para o que já existe (dos conservadores), sendo que estas duas forças não se elidem, e sim, resultam na linha do progresso civil. Do mesmo modo, aponta Reale28 para o fenômeno da integração dos ordenamentos jurídicos, onde se verifica a expansão das áreas de interesses de classes e grupos, que se convertem em interesses da coletividade e do Estado. Esta é a função objetivante do poder (conversão de um direito local em direito estatal). Este processo se dá pela constituição de ideais ou aspirações (“representações jurídicas”) nas situações histórico-sociais, sendo a “representação jurídica” dotada de força de expansão, e que por isto tende a tornar-se norma jurídica positiva. Também aponta Miguel Reale29 que os processos de institucionalização do poder são acompanhados da despersonalização 30 e transpersonalização do poder, uma vez que quando se passa da “nua força” para formas disciplinadas do exercício da autoridade, o poder decorre dos imperativos legais e deixa de ser mera ordem subjetiva dos chefes. Miguel Reale31 entende o conceito de Estado e de Direito como elementos co-implicados numa relação de polaridade que os mantém distintos e complementares. Assim, defende a idéia de Estado pluralista democrático (o ordenamento jurídico resultaria de um complexo de relação entre partes e o todo, e vice-versa, num sistema que atende ao que há de específico e próprio nos indivíduos e associações, assim como os valores da exigência do todo), como o mais desejável, quando posto em comparação ao Estado totalitário (ordenamento jurídico que exprime uma totalidade de querer correspondente a um objetivo único, seja a conquista de interesses de uma classe, de uma raça ou de um ideário nacional). Como ensina Miguel Reale: 26 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 234. 27 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 236-237. 28 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 238-239. 29 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 241-242. 30 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico, São Paulo: Saraiva, 1999. p. 53-54. 31 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 242-246. 172 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 “daí a necessidade de compreender-se o Estado pluralista como aquele que reconhece o sentido objetivo e em si válido do processo histórico como tal, e, ao mesmo tempo, preserva a posição autônoma e crítica dos indivíduos em relação ao todo: é a irrenunciabilidade à liberdade originária e ao conseqüente poder de crítica dos indivíduos que assegura continuidade e autenticidade ao direito que se objetiva mediante o poder estatal”.32 Bagolini33 (Universidade de Bolonha) assinala que a primeira característica do pensamento de Miguel Reale é a natureza sistemática da sua concepção: um grande edifício harmonioso provido por diferentes requisitos teóricos e práticos que são construídos de modo que cada parte não pode ser claramente compreendida independente das outras partes e do todo. De acordo com Bagolini34, para Reale o direito não seria apenas norma, ou apenas fato social, sendo que o monismo e reducionismo normativista (ou sociológico) são superados por Reale em uma tridimensionalidade de valor, norma e fato (tridimensionalidade concreta que se contrapõe à tridimensionalidade abstrata, onde valor, norma e fato são considerados de forma isolada e transformados em objeto de três ciências distintas: dogmática jurídica – norma, sociologia jurídica – fato, política do direito - valor). Miguel Reale35 entende que os tridimensionalistas, em geral, têm-se limitado a afirmar o caráter fático-axiológico-normativo do direito, sem explorar todas as suas conseqüências para a ciência do direito. Assim, para Reale “a teoria tridimensional (...) representa a tomada de consciência de todas as implicações que aquela verificação estabelece para qualquer gênero de pesquisa sobre o direito e suas conseqüentes correlações nos distintos planos da Jurisprudência, da Sociologia Jurídica ou da Filosofia do Direito” .36 32 REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 245. BAGOLINI, Luigi. “Pensieri, Rileggendo Miguel Reale” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 55. 34 “Il diritto non è soltanto norma nè soltanto fatto sociale. Il monismo ed il riduttivismo normativistico o sociologico vogliono essere da Reale superati in una tridimensionalità di valore, norma e fatto. Ma questa tridimensionalità non è un 'già dato' ma è continuo ‘da farsi’; è una tridimensionalità concreta e Reale si contrappone ai sostenitori della tridimensionalità astratta. (...) Secondo i sostenitore di quella che Reale chiama per l'appunto "tridimensionalità astratta", valore, norma e fatto sono considerati isolatamente e trasformati in oggetti dì tre scienze distinte. Per costoro "la norma costituirebbe l'oggetto della giurisprudenza dommatica o, secondo la terminologia anglosassone, della giurisprudenza analitica; il fatto sarebbe studiato dalla sociologia o psicologia giuridica ecc.; e infine il valore del diritto costituirebbe l'oggetto della teoria della giustizia o assiologia o politica del diritto”. BAGOLINI, Luigi. “Pensieri, Rileggendo Miguel Reale” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 57. 35 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 53-55. 36 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 54. 33 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 173 Dessa forma, para Reale, dada a natureza essencialmente triádica do direito, não se pode isolar absolutamente um dos fatores para torná-lo objeto de pesquisa, e dessa forma surgem importantes questionamentos: “a) Se há três fatores correlacionados no direito, o que é que garante a unidade do processo de elaboração jurídica, e em que essa unidade consiste? b) Se no direito há três fatores, como é que eles se correlacionam, ou, por outras palavras, como atuam uns sobre os outros? Pode-se falar em fator dominante que subordine os demais ao ângulo de sua perspectiva? c) Se todo estudo do direito é tridimensional, como se distinguirão entre si, respectivamente, as investigações filosófica, sociológica e dogmática que tenham por objeto a experiência jurídica?”37 Reale critica os cientistas do direito que caem na tentação de apresentar a experiência jurídica sob forma unitária e englobante, como se fosse uma única ciência. Entende Reale, “ao contrário, que o saber jurídico não se apresenta, em seu todo, como uma espécie de scientia omnibus, na qual todas as investigações se justaponham, mas que ele se desdobra em planos lógicos que não podem e não devem ser confundidos, o plano transcendental e o empírico-positivo”.38 Celso Lafer39, por sua vez, analisando Norberto Bobbio, nos lembra dos três campos da Filosofia do Direito: (i) Deontologia (Filosofia Política e Teoria da Justiça): reflexão sobre a reforma e transformação da sociedade orientada por valores; (ii) Ontologia (Teoria Geral do Direito): análise e definição de noções gerais (ex.: validade, eficácia, direito subjetivos, etc.) sobre o que todos os ordenamentos jurídicos contem (delimitação do campo do Direito); (iii) Sociologia do Direito: estudo do Direito enquanto fenômeno de controle social. Daí, concluí-se que “também na perspectiva de Bobbio, existe uma visão tridimensional da Filosofia do Direito, pois a Deontologia corresponde ao valor, a Ontologia à norma e a Sociologia Jurídica ao fato”.40 Celso Lafer, assim, aponta sobre o ponto de vista do poder, o risco de uma tridimensionalidade articulada sem interconexões mais profundas, onde o poder tende a ser encarado (i) como um dado externo à norma (correntes positivistas); (ii) como um dado independente da norma (na Sociologia Jurídica); (iii) ou ainda como um meio para se alcançar a norma desejável (Deontologia). Por isto, “a relevância da passagem de um tridimensionalismo abstra- 37 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 54. REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 56. LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 171-172. 40 LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 172. 38 39 174 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 to para um tridimensionalismo concreto, tal como propõe Miguel Reale, que internaliza o poder na norma”.41 Miguel Reale afirma que sua Teoria Tridimensional do Direito distingue-se das demais de caráter genérico ou específico, por ser concreta e dinâmica, isto é, por afirmar que: “a) Fato, valor e norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou o sociólogo do direito, ou pelo jurista como tal, ao passo que ,na tridimensionalidade genérica ou abstrata, caberia ao filósofo apenas o estudo do valor, ao sociólogo o do fato e ao jurista o da norma (tridimensionalidade como requisito essencial ao direito). b) A correlação entre aqueles três elementos é de natureza funcional e dialética, dada a "implicação-polaridade" existente entre fato e valor, de cuja tensão resulta o momento normativo, como solução superadora e integrante nos limites circunstanciais de lugar e de tempo (concreção histórica do processo jurídico, numa dialética de complementaridade)”. 42 Miguel Reale, ainda, complementa sua teoria tridimensional, com outros pontos relevantes, expondo diversas teses43 (assuntos versados por 41 LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 172. 42 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 57. 43 “c) As diferentes ciências, destinadas à pesquisa do direito, não se distinguem umas das outras por se distribuírem entre si fato, valor e norma, como se fossem fatias de algo divisível, mas sim pelo sentido dialético das respectivas investigações, pois ora se pode ter em vista prevalecentemente o momento normativo, ora o momento fático, ora o axiológico, mas sempre em função dos outros dois {tridimensionalidade funcional do saber jurídico). d) A Jurisprudência é uma ciência normativa (mais precisamente, compreensivo-normativa) devendo-se, porém, entender por norma jurídica bem mais que uma simples proposição lógica de natureza ideal: é antes uma realidade cultural e não mero instrumento técnico de medida no plano ético da conduta, pois nela e através dela se compõem conflitos de interesses, e se integram renovadas tensões fático-axiológicas, segundo razões de oportunidade e prudência (normativismo jurídico concreto ou integrante). e) A elaboração de uma determinada e particular norma de direito não é mera expressão do arbítrio do poder, nem resulta objetiva e automaticamente da tensão fático-axiológica operante em dada conjuntura históricosocial: é antes um dos momentos culminantes da experiência jurídica, em cujo processo se insere positivamente o poder (quer o poder individualizado em um órgão do Estado, quer o poder anônimo difuso no corpo social, como ocorre na hipótese das normas consuetudinárias), mas sendo sempre o poder condicionado por um complexo de fatos e valores, em função dos quais é feita a opção por uma das soluções regulativas possíveis, armando-se de garantia específica (institucionalização ou jurisfação do poder na nomogênese jurídica). f) A experiência jurídica deve ser compreendida como um processo de objetivação e discriminação de modelos de organização e de conduta, sem perda de seu sentido de unidade, que vai desde as "representações jurídicas" — que são formas espontâneas e elementares de juridicidade (experiência jurídica pré-categorial) — ate ao grau máximo de expansão e incidência normativas representado pelo direito objetivo estatal, com o qual coexistem múltiplos círculos intermédios de juridicidade, segundo formas diversificadas e autônomas de integração social, com a concomitante e complementar determinação de situações e direitos subjetivos (teoria dos modelos jurídicos e da pluralidade gradativa dos ordenamentos jurídicos). RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 175 Reale desde os primeiros livros de 1940 – Fundamentos do Direito e Teoria do Direito e do Estado – até seus últimos estudos de Filosofia Jurídica). Celso Lafer44 analisando o tema das relações entre direito e poder na obra de Miguel Reale, vê no seu tridimensionalismo específico45 (no campo do Direito e do Estado) uma postura epistemológica (a ontognosiologia jurídica), que o leva a entender o fenômeno jurídico como objetivamente tridimensional (unidade integrante de três elementos: fato, valor e norma). Disto deriva conseqüências na apreciação destes elementos: (i) o fato (na concepção de Reale) não é dado externo indiscutível e puramente empírico, pois há uma correlação funcional sujeito/objeto (o sujeito contribui na constituição do objeto); (ii) o valor (na concepção de Reale), quanto especificamente ao ato de conhecimento não seria puramente lógico-formal, mas também estimativo (há potencial axiológico na própria estrutura do conhecimento), sendo que Reale realça, quanto aos valores, as suas características de “realizabilidade” na história e a sua inexauribilidade derivada da abertura, a cada momento histórico (historicismo axiológico); (iii) a norma (na concepção de Reale) é vista como uma expressão dialética que integra fato e valor, em ca- g) A norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode ser interpretada com abstração dos fatos e valores que condicionaram o seu advento, nem dos fatos e valores supervenientes, assim como da totalidade do ordenamento em que ela se insere, o que torna superados os esquemas lógicos tradicionais de compreensão do direito (elasticidade normativa e semântica jurídica). h) A sentença deve ser compreendida como uma experiência axiológica concreta e não apenas como um ato lógico redutível a um silogismo, verificando-se nela, se bem que no sentido da aplicação da norma, um processo análogo ao da integração normativa acima referida. i) Há uma correlação funcional entre fundamento, eficácia e vigência, cujo significado só é possível numa teoria integral da validade do direito. j) Essa compreensão da problemática jurídica pressupõe a consideração do valor como objeto autônomo, irredutível aos objetos ideais, cujo prisma é dado pela categoria do ser. Sendo os valores fundantes do dever ser, a sua objetividade é impensável sem ser referida ao plano da história, entendida como "experiência espiritual", na qual são discerníveis certas “invariantes axiológicas", expressões de um valor-fonte (a pessoa humana) que condiciona todas as formas de convivência juridicamente ordenada (historicismo axiológico). k) Conseqüente reformulação do conceito de experiência jurídica como modalidade de experiência históricocultural, na qual o valor atua como um dos fatores constitutivos dessa realidade (função ôntica) e, concomitantemente, como prisma de compreensão da realidade por ele constituída (função gnoseológica) e como razão determinante da conduta (função deontológica). l) Em virtude da natureza trivalente do valor e da tripla função por ele exercida na experiência histórica, o direito é uma realidade in fieri, refletindo, no seu dinamismo, a historicidade mesma do ser do homem, que é o único ente que, de maneira originária, é enquanto deve ser, sendo o valor da pessoa a condição transcendental de toda a experiência ético-jurídica (personalismo jurídico). m) Necessidade de uma Jurisprudência que, no plano epistemológico, desenvolva-se como experiência cognoscitiva, na qual sujeito e objeto se co-implicam (criticismo ontognoseológico) e, no plano deontológico, não se perca em setorizações axiológicas, mas atenda sempre a solidariedade que une entre si todos os valores, assim como à sua condicionalidade histórica (Jurisprudência histórico-cultural ou axiológica). n) Tudo isto pressupõe, outrossim, uma orientação metodológica própria, caracterizada pelo superamento da reflexão fenomenológica de moldes husserlianos, por uma reflexão transcendental de tipo crítico-histórico, baseada na correspondência entre a intencionalidade da consciência e o significado das "intencionalidades objetivadas" pela espécie humana no processo da experiência histórico-cultural.” REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 60-63. 44 LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 161-164. 45 REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002. 539-561. 176 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 da situação histórica de maneira mais ou menos duradoura (mas não definitiva), sendo esta integração fruto de uma escolha dentre normas possíveis (interferência decisória do poder na nomogênese jurídica). De outro modo, Lourival Vilanova 46 analisando a teoria tridimensional do direito, pela ótica da lógica, entende que a mesma está permeada de kantismo e fenomenologia, ao mesmo tempo em que não deixa de ser uma teoria normativista do direito, uma vez que, os dados fáticos e axiológicos só se qualificam através das normas. Assim, entende que “de Kant provém o repúdio ao empirismo que conduz ao naturalismo”, sendo que já na “Teoria do Direito e do Estado” (1940) Reale já revela seu culturalismo. Assim, o direito teria três constituintes: o substrato fático, o valor e a norma. Posteriormente entende Vilanova que com o livro “Experiência e Cultura” (1977) Reale toma rumo com a fenomenologia, sem desprender-se totalmente da teoria transcendental da experiência de raiz kantiana. Já Lino Rodriguez-Arias Bustamante47 (Universidade Los Andes), analisando a Teoria Tridimensional, entende que Miguel Reale concebe um mundo ideal (com os princípios de direito natural, onde o homem constrói o mundo histórico e cultural) e o mundo real (com os fatos, onde se movem todos os mortais adquirindo experiências). Assim, Reale constrói a Teoria Tridimensional a partir da estrutura social e da experiência jurídica, com um sentido histórico, cultural e normativo realizando uma “sindérisis” entre norma, fato e valor para conjugar adequadamente sua validez formal (ou vigência), dirigida à sua eficácia jurídica e reposando sobre o valor que proporciona sua transcendência ética. Lembra ainda a menção de Hernandés Gil, sobre o pensamento e afirmação de Miguel Reale, que capta esta integração axiológica-fática-normativa: “teorizar a vida e viver a teoria na unidade in- dissolúvel de pensamento e ação”. Segundo Antônio Bráz Teixeira 48, no pensamento de Reale o direito é uma realidade tridimensional constituindo uma triunidade, sendo simultaneamente “facto” (conduta ou agir humano), valor (a que se refere este fato) e norma (que visa ordenar o primeiro em relação ao segundo, encontrando estas três dimensões interligadas). Reale também reconhece que a tridimensionalidade não é específica do direito, pois na religião, na moral e nos usos sociais se pode constatar a dimensão axiológica, o momento normativo e a manifestação empírica. De qualquer forma, a conduta jurídica se individuali46 VILANOVA, Lourival. “A lógica na teoria jurídica de Reale” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 305-306. 47 BUSTAMANTE, Lino Rodriguez-Arias. “De la Teoría Tridimensional de Miguel Reale al Derecho Comunitário” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 193-195. 48 BRÁZ TEIXEIRA, Antônio. “Miguel Reale e o Diálogo Filosófico Luso-Brasileiro” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 261-262. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 177 za em relação às demais por configurar um momento bilateral-atributivo da experiência social. Cretella Júnior49 nos chama a atenção sobre a influência de Miguel Reale em todos os campos do direito: do direito privado (direito civil, comercial, internacional privado) ao direito público (direito constitucional, tributário e administrativo). Em especial, comenta o entusiasmo de Miguel Reale em relação ao Direito Administrativo, onde se poder falar que Miguel Reale estruturou um sistema de direito administrativo, com diversas publicações esparsas que formam um conjunto ordenado, que trataram dos principais assuntos deste ramo jurídico (tais como: conceito de direito administrativo e seus princípios, ato administrativo, contrato administrativo, interpretação no direito administrativo, o reconhecimento da elaboração de institutos próprios neste campo jurídico e de modelos peculiares ao direito administrativo, criticando a transposição incorreta de esquemas privatísticos, bem como tratou de diversos outros assuntos). Por sua vez, Ruy Barbosa Nogueira50 (primeiro catedrático de Direito Tributário da USP) também assinala no campo do direito público, especificamente no Direito Tributário, a profunda contribuição de Miguel Reale, não apenas ao campo dogmático do direito tributário, mas, sobretudo, à Ciência e à Filosofia do Direito Tributário. Lembra que o direito tributário brasileiro em seu normativismo entre Estado e seus juridicionados necessita precipuamente de humanização, somente alcançável pelo progresso das ciências fiscais e, sobretudo, pela humanística e humanizadora filosofia do direito tributário. Assim, cita em seu artigo “Miguel Real e o Direito Tributário” alguns trabalhos de Miguel Reale, com objetivos de humanização da tributação nacional. Clóvis do Couto e Silva51 (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) nos atenta para a importância de Reale e da teoria tridimensional no campo do direito civil, onde Miguel Reale assumiu dois papéis importantíssimos: o de jurisconsulto (nos pretórios do país) e também como codificador, como Coordenador da Comissão de Reforma do Código Civil. Em suas obras e pareceres publicados no direito civil é possível analisar suas inclinações e seu modo de trabalhar com os modelos jurídicos, perseguindo, sempre, uma solução que integre, de modo harmônico, o fato, o valor e a norma. 49 CRETELLA JÚNIOR, J. “A Ótica Administrativa de Miguel Reale” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 354-362. 50 BARBOSA NOGUEIRA, Ruy. “Miguel Real e o Direito Tributário” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 392-395. 51 COUTO E SILVA, Clóvis. “Miguel Reale, Civilista” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 414-415. 178 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 Para se compreender o papel do poder social e da coação jurídica na obra de Reale, tem-se que voltar a uma indagação fundamental, quanto à distinção entre o Direito e a Moral. Miguel Reale nos explica no capítulo V de “Lições Preliminares de Direito”, a diferença entre a Moral e o Direito. Recorda inicialmente a “teoria do mínimo ético” (especialmente desenvolvida por Jeremias Bentham e Georg Jellinek), que consiste em afirmar que o Direito representa apenas o mínimo moral obrigatório para a sobrevivência da sociedade, mas como nem todos realizam as obrigações morais, se armam de força certos preceitos éticos, sendo o Direito nesta teoria envolvido pela Moral (figura de dois círculos concêntricos). Por isto, Reale52 tece algumas críticas a esta idéia, mostrando que nem tudo que é jurídico é moral (dada existência de direito amoral, bem como de direito imoral), apesar do “desejo incoercível de que o Direito tutele só o ‘lí- cito moral’” Assim, de acordo com Miguel Reale, o Direito e a Moral poderiam ser representados por dois círculos secantes, conforme a figura abaixo desenhada para representar esta idéia: Assevera, ainda, Miguel Reale53 que há regras sociais de cumprimento espontâneo e outras de cumprimento obrigatório (ou forçado). Neste sentido, a Moral se situa no mundo das condutas espontâneas, sendo que o ato moral implica na adesão do espírito ao conteúdo da regra (o ato moral não é fruto da força ou da coação, mesmo quando a força se manifesta juridica52 53 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 41-43. REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 44-46. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 179 mente). Já em relação ao Direito não há necessariamente uma adequação entre a forma de pensar do sujeito e o fim que a norma jurídica prescreve. Na verdade, o sujeito por vezes cumpre o direito espontaneamente, mas por vezes, só o cumpre porque obrigado juridicamente. Miguel Reale54 observa atentamente uma importante diferença entre a Moral e o Direito: a Moral é incoercível e o Direito é coercível, sendo a coercibilidade (expressão que denota a plena compatibilidade que existe entre o Direito e a força) algo que distingue o Direito da Moral. Observa a existência de três teorias da relação Direito e a Força: (i) uma que sustenta o eticismo absoluto (o Direito, assim como a Moral nada tem a ver com a força, o que é uma idealização do mundo jurídico); (ii) a teoria da coação, que vê o Direito como efetiva expressão de força (aceita por Jhering e Tobias Barreto, vendo o direito como “norma + coação”, como “a organização da força”); (iii) e por fim, a teoria da coercibilidade acatada por Reale, onde o Direito seria a ordenação coercível da conduta humana (a coação no direito não seria efetiva, mas potencial, como garantia da execução da norma, apenas quando os interessados não a querem cumprir). Miguel Reale55 relembra o ensinamento de Kant em relação à Moral autônoma e o Direito heterônomo. Isto porque, as normas jurídicas (Direito) valem independentemente do querer e da opinião dos obrigados. Assim, a validade objetiva e transpessoal das normas jurídicas se põem acima das pretensões dos sujeitos numa relação. Deste modo, o Direito seria “a ordenação heterônoma e coercível da conduta humana”. Miguel Reale56 para explicar melhor a nota distintiva essencial do direito, aprofunda esta noção de “coação potencial” (do coercível) passando à teoria da bilateralidade atributiva. Haveria “bilateralidade atributiva quando duas ou mais pessoas se relacionam segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente algo” . Daí, este fato social passa a ser jurídico. O conceito de bilateralidade atributiva se desdobraria nos seguintes elementos complementares: “a) sem relação que una duas ou mais pessoas não há Direito (bilateralidade em sentido social, como intersubjetividade); b) para que haja Direito é indispensável que a relação entre os sujeitos seja objetiva, isto é, insuscetível de ser reduzida, unilateralmente, a qualquer dos sujeitos da relação (bilateralidade em sentido axiológico); c) da proporção estabelecida deve resultar a atribuição garantida de uma pretensão ou ação, que podem se limitar aos sujeitos da relação ou es57 tender-se a terceiros (atributividade)”. 54 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 46-48. REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 48-49. REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 50-52. 57 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 51. 55 56 180 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 Miguel Reale58, ainda, para explicar melhor a nota distintiva essencial do direito, lembra da existência das regras costumeiras (ou normas de trato social: regras de decoro, de etiqueta, de cortesia) que estão numa situação intermediária entre a Moral e o Direito (não há possibilidade de coação, são heterônomas e bilaterais, mas não atributivas). Assim, traça interessante quadro, resumindo as notas distintivas dos três campos da Ética: Coercibilidade Heteronomia Bilateralidade Atributividade MORAL - - + - DIREITO + + + + COSTUME - + + - Fonte: REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p.57. Reale59 nos explica no capítulo VII de “Lições Preliminares de Direito”, os conceitos de sanção e coação. Começando a tratar das acepções da palavra “coação”, lembra que o termo “coação” tem para os juristas dois significados bem diferentes. Em primeiro lugar, significaria apenas violência (física ou psíquica) contra uma pessoa ou um grupo, e que se contrapondo ao Direito, torna anuláveis os atos jurídicos. Neste sentido, tratado inclusive no Código Civil como vício do ato jurídico, “o ato jurídico, praticado sob coação, é anulável; tem existência jurídica, mas de natureza provisória, até que o ofendido prove que agiu compelido, sob ameaça física ou psíquica” . Todavia, não é neste primeiro sentido, que o termo “coação” serve para distinguir o Direito da Moral. Neste segundo sentido, “coação” é entendida como força organizada para fins do próprio Direito, uma vez que as normas jurídicas têm como objetivo preservar a convivência humana, e não poderiam depender da simples adesão espontânea dos obrigados (cumprimento obrigatório do Direito). Assim, “quando a força se organiza em defesa do cum- primento do Direito mesmo é que nós temos a segunda acepção da palavra coação”.60 58 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 56-57. REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 69-70. 60 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 70-71. 59 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 181 Tércio Sampaio Ferraz 61 tratando da “violência razoável” (que seria jurídica, em contraponto à violência não-razoável e antijurídica), nos fala que a violência (enquanto vis, força) está ligada à natureza do homem, sendo um dado palpável a agressividade do homem, e por isto a importância da fixação de limites no seu uso. Neste sentido, caberia à autoridade utilizar a força apenas em certa margem e no interesse público, que sendo uma noção vaga torna a vinculação direito e violência constantemente instável. Mas reconhece que o poder não se apóia somente na violência, mas também no prestígio, no conhecimento e na lealdade. De qualquer forma, para Tércio Sampaio Ferraz 62 “o que define o cará- ter jurídico de um ato concreto de autoridade é, também, o grau de consenso público que ele admite”. Assim, tal consenso pode ser obtido de modos variados, tais como por procedimentos: políticos (ex.: eleições), interindividuais (ex.: contrato), avaliativos (ex.: sentença judicial) e outros. De qualquer forma, a violência legal tem caráter jurídico, na medida, que corresponde a certos procedimentos institucionais que presumem o consenso de terceiros.63 Ao tratar do conceito de “sanção”, Miguel Reale64 nos explica que as regras (jurídicas, religiosas, morais, de etiqueta, etc.) existem para ser cumpridas, implicando certa obediência e respeito para que não fiquem sós no papel. Neste sentido, as “sanções” são formas de garantia do cumprimento das regras, existindo tantas formas de garantia quantas são as espécies dos distintos preceitos. Dá o exemplo, das sanções no descumprimento de ordem moral (remorso, arrependimento) ou de ordem social (sanção social da opinião pública sobre a conduta reprovada), mas lembra que há aqueles (tão embrutecidos) que não se incomodam nem com o remorso, nem com a reação social. Daí se torna necessário a organização das sanções, representando o fenômeno jurídico uma forma de organização da sanção. A sanção jurídica é caracterizada pela predeterminação e organização (existência do judiciário, aparelhamento policial e outros exemplos). O próprio Código Civil (de 1916) em seu artigo 75 rezava que a “todo direito corresponde uma ação que o assegura”. Miguel Reale65 (2006, pg. 75) afirma que “o progresso da cultura hu- mana, que anda pari passu com o da vida jurídica, obedece a esta lei fundamental: verifica-se uma passagem gradual na solução dos conflitos, do plano da força bruta para o plano da força jurídica” . Assim, atualmente “ao lado 61 FERRAZ JR., Tércio. “Poder e Direito” in Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2009, p. 81-83. 62 FERRAZ JR., Tércio. “Poder e Direito” in Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2009, p. 82. 63 FERRAZ JR., Tércio. “Poder e Direito” in Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2009, p. 82-83. 64 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 72-76. 65 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 75. 182 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 das sanções penais, temos as sanções premiais que oferecem um benefício ao destinatário, como, por exemplo, um desconto ao contribuinte que paga o tributo antes da data do vencimento”. Neste sentido, Miguel Reale66 enxerga o Estado como ordenação objetiva e unitária da sanção (o Estado seria a organização da Nação em uma unidade de poder com a finalidade da aplicação das sanções numa proporção objetiva e transpessoal). Por isto, que alguns constitucionalistas definem o Estado como instituição detentora da coação incondicionada (monopólio da coação na distribuição da justiça), uma vez que o Estado como ordenação do poder, disciplina as formas e os processos de execução coercitiva do Direito. Os exemplos são vários no cotidiano jurídico: uma sentença que retira um bem do patrimônio do indivíduo; a prisão no direito penal (perda da liberdade) e outros exemplos do dia a dia jurídico. Miguel Reale também reconhece as ordenações jurídicas não-estatais, defendendo no livro “Teoria do Direito e Do Estado” que a coação também existe fora do Estado, apesar do Estado ser o detentor da coação em última instância. Assim, também o direito existe em outros grupos e instituições (os exemplos são vários: a Igreja, as ONG´s, as organizações internacionais, etc.), procedendo para Reale a teoria da pluralidade das ordens jurídicas positivas. Por outro lado, Reale67 reconhece também que existe uma gradação no Direito, segundo o índice de organização e de generalidade da coação. Neste sentido, o Estado em comparação às outras ordens jurídicas apresenta a universalidade da sanção com força impositiva mais eficaz. Martín Lacau68 (da Universidade de Buenos Aires) nos lembra acerca da discussão do caráter coercitivo do direito, havendo juristas que negam a coação como nota distintiva do mundo jurídico, enquanto outros acreditam não poder haver direito sem coação (ordem coativa do comportamento humano). Lacau assevera que para Miguel Reale quando se fala de coação deve-se distingui-la na sua acepção sociológica e técnico-dogmática e entre coação atual (coercitividade) e coação virtual (coercibilidade, entendida como coação possível e relacionada ao conceito denominado por Reale de “bilateralidade atributiva”). Lacau (2004, p. 281-282) entende que os conceitos de sanção e coação são relacionados, mas distintos, sendo que a coação é uma das possíveis sanções pelas quais se tenta assegurar o cumprimento do comportamento prescrito por normas jurídicas, lembrando que as sanções podem ser pre- 66 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 76. REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 77-80. LACAU, Martín. “Coercibilidad y Bilaterilidad Atributiva em La Filosofia del Derecho de Miguel Reale” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 281. 67 68 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 183 ventivas, repressivas ou até que premiam comportamentos desejáveis, sendo que a coação caracteriza a sanção repressiva. 69 Martín Lacau70 lembra que para Reale a coação deve ser distinguida em sua acepção sociológica e jurídica, sendo que o meio social manifesta reações coletivas (conjunto de sanções) contra os infratores das regras, podendo ser reações sociais difusas ou socialmente organizadas. Assim, na coação jurídica há dois elementos, uma pressão de ordem física ou psíquica, e de outro lado, uma forma estruturada que permite diferenciar a coação jurídica da força bruta. Neste sentido há coação quando se impõe uma alternativa, com exclusão de outras alternativas possíveis, que resultam descartadas ab initio. Na coação jurídica há substituição do querer do sujeito pelo querer objetivo da lei, quando, por exemplo, o indivíduo se encontra obrigado a um determinado comportamento. Lacau71 também observa que Reale faz distinção entre coação virtual (coercibilidade) e atual (coercitividade). Assim, rememora que tal distinção tem um paralelo na distinção de Aristóteles entre ato e potência. Todavia, há autores (grande maioria) que defendem que o direito é coercitivo e que não há direito sem um efeito ato de coação. Lembra a posição de Ihering, para quem o direito é constituído por um conjunto de normas e estas se realizam através da coação exercida pelo Estado; a posição de Hans Kelsen, que na Teoria Geral do Direito e do Estado considera a coação como elemento essencial do direito e coloca o problema em nível normativo (desvincula-se das motivações psicológicas); a posição de Alf Ross, para quem há íntima relação entre direito e força (a força não é um elemento extrínseco ao direito, sendo o ordenamento jurídico um corpo de regras que determinam as condições pelas quais a força física deve ser exercida contra uma pessoa). Como bem assinala Martín Lacau72, Miguel Reale, por sua vez, critica a teoria da coação por trazer uma idéia de conflito entre direito e cumprimento espontâneo das normas jurídicas, por perceber que na maioria dos casos os indivíduos se comportam espontaneamente de acordo com o prescrito nas 69 Segundo Martín Lacau “la coaccíon es la nota que caracteriza al segundo tipo de sancíon, esto es, a aquella que castiga um comportamiento al que se estima disvalioso (...) em ella, el uso de la fuerza resulta ineludible; pero se trata – según expressa Reale – de uma fuerza disciplinada, esto es, de uma fuerza ejercida dentro de los limites legitimados por la tutela de los bienes de la convivência, de un fuerza que se hace presente de conformidad con los fines del derecho y dentro de los limites que este le ortoga”. LACAU, Martín. “Coercibilidad y Bilaterilidad Atributiva em La Filosofia del Derecho de Miguel Reale” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 282. 70 LACAU, Martín. “Coercibilidad y Bilaterilidad Atributiva em La Filosofia del Derecho de Miguel Reale” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 282-283. 71 LACAU, Martín. “Coercibilidad y Bilaterilidad Atributiva em La Filosofia del Derecho de Miguel Reale” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 282-285. 72 LACAU, Martín. “Coercibilidad y Bilaterilidad Atributiva em La Filosofia del Derecho de Miguel Reale” in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 285-288. 184 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 normas jurídicas. Isto não significa que não haja possibilidade de violar o direito, com eventual coação, que permanece latente, sendo esta coação potencial denominada por Reale de “coercibilidade” (característica do direito). Para Reale há compatibilidade lógica entre direito e força, mas o direito utiliza a força como uma segunda instância de garantia. Assim, a noção de coação está vinculada com a “bilateridade atributiva” (nota distintiva do mundo jurídico), sendo que o direito implicaria numa relação entre duas ou mais pessoas segundo certo critério objetivo de exigibilidade, pois quando uma parte não cumpre sua prestação a outra pode exigir seu cumprimento. Daí é que surge o caráter atributivo da relação bilateral e conseqüentemente a exigibilidade das prestações mutuamente devidas, uma vez que, o direito é coercível porque é exigível, e é exigível porque é bilateral atributivo. O presente trabalho tratou do poder social e da coação jurídica na Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale, partindo: (i) da correlação Direito-Poder sob a ótica do papel do poder na democracia (ajustamento entre a lei e as aspirações da coletividade - poder social – para dar concretização jurídica aos valores que se vão objetivando em cada momento da história da cultura); (ii) da análise do nascimento da norma jurídica (nomogênese jurídica) em face dos valores e dos fatos, através da participação de um quarto elemento catalisador, ou seja, o poder; (iii) da abordagem da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale em sua tridimensionalidade concreta (diferente da tridimensionalidade abstrata) de fato, valor e norma em uma correlação de natureza funcional e dialética, dada a "implicaçãopolaridade" existente entre fato e valor, de cuja tensão resulta o momento normativo; (iv) da diferenciação entre o Direito e a Moral em Miguel Reale (existência de regras sociais de cumprimento espontâneo e outras de cumprimento obrigatório), para se chegar aos conceitos de coação jurídica (onde são apontados dois sentidos jurídicos); coercibilidade (coação potencial); de bilateralidade atributiva (o direito implicaria numa relação entre duas ou mais pessoas segundo certo critério objetivo de exigibilidade); de sanção (repressivas ou premiais) em Miguel Reale (caracterizada pela predeterminação e organização), ressaltando-se a visão realeana da compatibilidade lógica entre direito e força, com uma passagem gradual na solução dos conflitos, do plano da força bruta para o plano da força jurídica. Também passamos por alguns aspectos importantes da doutrina de Miguel Reale, como a consideração da existência de pluralidade de ordenamentos jurídicos, a integração entre ordenamentos em um contexto democrático (onde se verifica a expansão das áreas de interesses de classes e grupos, que se convertem em interesses da coletividade e do Estado), a idéia de RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 185 uma gradação de positividade entre os ordenamentos (onde no topo está o Estado em virtude da soberania), a teoria dos modelos jurídicos (pela qual Reale propõe a substituição da teoria das fontes), o processo de institucionalização progressiva do poder (acompanhados da despersonalização e transpersonalização do poder), registrando também a influência de Miguel Reale em todos os campos da dogmática jurídica (do direito privado ao direito público). 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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 187 188 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 Rui Carlo Dissenha Professor de Direitos Humanos e Direito Penal do Curso de Direito da Universidade Positivo e Coordenador do Grupo de Estudos sobre Tribunais Internacionais, Jurisdições Internacionais e Direito Internacional Criminal “Os animais e as crianças são terrivelmente resistentes às deduções: um cavalo se mostra extremamente surpreso quando é forçado a um volteio incomum. Quando o homem começou a raciocinar, tentou justificar as deduções que havia feito irracionalmente em tempos passados. Boa dose de má filosofia e de má ciência resultou dessa propensão. Os ‘grandes princípios’, tais como o da ‘uniformidade da Natureza’, a ‘lei da causalidade universal’ e assim por diante, constituem tentativas de apoiar a nossa crença de que o que tenha acontecido freqüentemente antes voltará a acontecer, o que constitui uma atitude mental em nada superior à do cavalo ao admitir que você deva fazer os volteios que já tenha feito antes. Não é fácil saber-se o que deva substituir esses pseudoprincípios na prática da ciência; mas talvez a teoria da relatividade nos permita um vislumbre do que devemos esperar. A causalidade, no velho sentido, não tem mais lugar na Física teórica. Há, naturalmente, algo que a substitui, e o substitutivo parece ter base empírica melhor do que o velho princípio substituído1”. 1 RUSSEL, Bertrand. ABC da Relatividade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 211. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 189 “O colapso do tempo onienvolvente, segundo o qual todos os acontecimentos havidos no universo podem ser datados, deverá, a longo prazo, afetar os nossos pontos de vista quanto a causa e efeito, a evolução e a muitas outras coisas2”. Essa idéia, apresentada por RUSSEL, parece também ter marcado REALE. Conforme se pode ver em sua filosofia, a questão do tempo muda de acordo com uma certa evolução do pensamento. A análise da sua Teoria Tridimensional em dois momentos distintos indica a variação do conceito de “tempo” de forma evidente e, de alguma maneira, similar à mudança do “tempo clássico” ao “tempo quântico”. O presente artigo pretende, com as limitações que a temática impõe e com a certeza da dificuldade que a questão transparece – tanto no que toca à questão do espaço-tempo quanto à Filosofia de REALE – aproximar a análise do tempo na Teoria Tridimensional do Direito com a mudança paradigmática que essa grandeza sofre a partir das teorias da Física contemporânea. Assim, analisar-se-á primeiramente a postura de REALE frente ao tempo, tentando indicar qual é o sentido e importância dessa grandeza na constituição da ontognoseologia realeana e, em seguida, como se deu a mudança de compreensão da idéia de tempo da Física clássica para a Física contemporânea, de fundamentos einstenianos. O objetivo que se procura é indicar traços de que, eventualmente, a Filosofia de REALE esteve mais próxima da Física do que um incauto leitor possa imaginar. Não se pode negar que REALE foi o grande nome do tridimensionalismo brasileiro. Embora não seja possível afirmar que se trate de uma posição inovadora, já que pensar o Direito de forma tridimensional é algo que se fazia desde o século XIX3, é certo que a sua leitura do tridimensionalismo é efetivamente diferenciada em determinadas pontos, caracterizando-se, por isso, certa inovação em sua obra. Uma dessas questões é certamente a sua visão sobre o tempo na inter-relação entre os elementos do fenômeno jurídico e importa, nestas linhas, discutir diretamente essa questão como fator diferenciador na filosofia realeana. A idéia de que o direito envolvia os três elementos era algo corrente. As obras dos antecessores de REALE já falavam do direito cultural e social como fenômeno que envolvia a teoria dos valores e, dessa forma, já se preo2 RUSSEL, Bertrand. ABC da Relatividade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 211. Nesse contexto, a obra do próprio Miguel REALE, ao apresentar os tridimensionalismos historicamente existentes, é bastante rica. Ver REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 511 e seguintes. 3 190 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 cupavam com o significado de valor e como ele se relacionava com os fatos. Corrente, sobretudo, era o debate acerca da natureza da justiça como um determinativo objetivo ou como resultante do ato subjetivo pelo qual se caracteriza a valoração. Nesse sentido, o caldo filosófico do início do século XX, com a recuperação de KANT e HEGEL, com algumas tendências ao realismo e outras à identificação do valor no Direito, vão influenciar o pensamento realeano e vão dar subsídios para o seu tridimensionalismo. É nesse contexto culturalista que REALE constrói sua filosofia e elabora seu raciocínio com teorias dos fatos e teorias dos valores. E é também nesse contexto que REALE discute a questão do tempo, inicialmente de forma estática e, depois, de forma dinâmica. A noção de tempo em REALE é tema recorrente. A idéia de temporalidade, essencial à construção da historicidade que vai marcar seu tridimensionalismo, ainda que com ela não se confunda, é debatida em vários momentos da sua obra e tem relação especial com o valor na tríade que compõe o fenômeno jurídico. No chamado tridimensionalismo estático realeano, o tempo é um elemento eminentemente inerte (daí a idéia de “estático”). Nesse sentido, embora um determinado contexto temporal envolva uma miríade de valores – ou seja, esses valores que interessam diretamente ao Direito, como qualquer outra coisa, estão necessariamente ligados a uma temporalidade específica – eles existem independentemente do tempo. Isso não significa, obviamente, que tais valores existam fora do tempo. Tal condição implica, apenas, uma compreensão desses valores, bem como dos demais elementos do Direito (o fato e a norma), em determinado espaço temporal, certamente, e, aí, dentro do tempo, portanto. Mas todos eles apenas existem no tempo e dele estão abstraídos, pois lhes são independentes. REALE chamava essa teoria estática, ou genérica, pois nela se trabalhavam os elementos em separado, ainda que correlacionados: fato é uma coisa, valor é outra e norma, uma terceira. Assim, todos esses elementos estariam evidentemente correlacionados, mas ainda manteriam as suas singularidades. Nesse contexto, o tempo, em REALE, é meramente uma variável cronológica que identifica fato, valor e norma em um conjunto de eixos e vetores e lhes dão a sua chamada temporalidade. Por isso se trata de um tempo numérico e quantitativo, inerte como um cenário onde se desenrola uma peça. Nas suas palavras, “quando se procuram combinar os três pontos de vista unilaterais e, mais precisamente, os resultados decorrentes de estudos levados a cabo separadamente, segundo aqueles pontos de vista, configura-se o que chamamos de tridimensionalidade genérica do Direito4”. Adiante na sua filosofia, no tridimensionalismo dinâmico, REALE rompe com esse modelo estático e com a visão meramente quantitativa de tempo. 4 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 514. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 191 Nesse novo contexto, o tempo assume uma função maior, pois os elementos que compõem a tríade do Direito não são apenas localizados no tempo, mas são constituídos pelo tempo. Essa é a diferença que REALE apresenta entre a temporalidade (caráter vinculado a uma idéia estática de tempo) e a historicidade (onde o tempo desempenha um papel também construtor da realidade) e que caracteriza uma inovação da sua filosofia 5. Nessa forma, os valores existem em correlação ao elemento temporal, o que é muito mais do que simplesmente imaginá-los no tempo. Mais do que isso, é necessário cogitar que esses fatores se relacionam com o tempo cada vez de uma forma diferente. Nesse contexto, existe uma correlação temporal em si mesma, de forma que não se trata de apenas olhar os fatos no tempo, mesmo porque os fatos não estão no tempo, eles são temporais. Isso ocorre também com os valores e com a norma: eles são enquanto tempo, pois, no momento, se modificam, ajustam, existem e acontecem. Nesse sentido, os elementos do fato jurídico têm a temporalidade dentro de si e, por isso, as suas existências e a correlação entre eles também é inerentemente temporal. Isso produz uma mudança em como se olha a tridimensionalidade, que não pode mais ser olhada genericamente, mas sim de forma específica. Ora, o tempo não é uma simples grandeza que, passada, fica efetivamente para trás. Os fatores que compõem o Direito são resultado de uma construção temporal porque a cultura não trabalha com um processo de esquecimento, mas de acumulação. Daí que o passado não é ignorado, mas se agrega à experiência do hoje e se agregará à experiência do amanhã para construir um presente. Isso se dá com todos os elementos da tríade, pois fato, valor e norma são dessa forma construídos com o tempo e não meramente existentes em um tempo específico. E tais fatores se relacionam de forma tão íntima no tridimensionalismo específico que se torna impossível pensar o direito sem levar em consideração os três fatores de forma concomitante6. Em outras palavras, não se anula o passado, pois o tempo humano não é meramente uma grandeza física, um vetor estático sobre o qual a humanidade acontece – o tempo permanece, se agrega e constitui a própria realidade, é o tempo que dá a significação e caracteriza o processo histórico. Daí a clara diferença entre a temporalidade e a historicidade: “ o que é histórico, assenta Miguel Reale, é aquilo que se inseriu, ou se insere, significativamente nas coordenadas do espaço e do tempo”, de forma que “por não ser mera inserção, mas inserção grávida de significados, a história não se confunde com o mero fluir dos dias e das datas, é interpenetração e simultaneidade, é ‘atualidade constante dos bens culturais7”. Pensar o fenômeno 5 MARTINS-COSTA, Judith. Direito e Cultura: Entre as Veredas da Existência e da História. In investigación y Docencia (p. 90-103), p. 93-95. 6 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 514. 7 MARTINS-COSTA, Judith. Direito e Cultura: Entre as Veredas da Existência e da História. In investigación y Docencia (p. 90-103), p. 93. 192 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 jurídico, nesse contexto, é pensar um todo construído por uma experiência valorativa que é resultado de um tempo e não, apenas, colocado em um tempo. Daí, novamente, MARTINS-COSTA afirmar, referindo-se à figura do tempo cultural em REALE, que “este é constituído por valores, por significa- ções, de modo a poder-se dizer que é da correlação entre tempo e valor que surtirá o caráter dinâmico da sua Teoria Tridimensional do Direito, que o discerne de outros jusfilósofos tridimensionalistas 8”. Essa condição aparece muito evidente como base do pensar de REALE 9. Ao identificar o papel do juiz, inclusive, REALE deixa essa realidade bem clara: “a regra vigente deve ser sempre uma baliza ao comportamento do juiz que, no entanto, não pode deixar de valorar o conteúdo das regras segundo tábua de estimativas em vigor em seu tempo. Ele, juiz, enquanto homem, já participa dela, e pertence às circunstâncias de sua ‘temporalidade’, como se pode ver em nosso livro O Direito como Experiência 10”. Afinal, ainda segundo as palavras de REALE, “os valores não são uma realidade ideal que o homem contemple como se fosse um modelo definitivo, ou que só possa realizar de maneira indireta, como quem faz uma cópia. Os valores são, ao contrário, algo que o homem realiza em sua própria experiência e que vai assumindo expressões diversas e exemplares, projetando-se através do tempo, numa incessante constituição de entes valiosos11”. Em suma, no tridimensionalismo dinâmico de REALE, o tempo não é apenas um número, um parâmetro. Ele desempenha uma função essencial na própria existência do fenômeno jurídico porque condiciona fato, valor e norma, ajudando a construí-los na medida em que são fenômenos culturais que não ignoram o passado e, portanto, o tempo em que existem. Mais do que um simples fundo de cena, o tempo é um elemento efetivamente dinâmico. A leitura da função desempenhada pelo tempo na filosofia realeana remete a uma comparação interessante. Ao indicar que o tempo reage com outros elementos e assim os faz existirem para construir o Direito, REALE 8 MARTINS-COSTA, Judith. Direito e Cultura: Entre as Veredas da Existência e da História. In investigación y Docencia (p. 90-103), p. 95. 9 Nesse sentido, ver REALE, Miguel. Teoria do Conhecimento e Teoria da Cultura. In Cinco temas do culturalismo, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 27 a 37. 10 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 583. 11 REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 157. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 193 parece falar a mesma língua da Física contemporânea ao ponto de se poder cogitar, até, que esse autor tenha sido influenciado por uma leitura assídua da Matemática e dos avanços da Física no século XX. Por isso, a proposta é discutir, neste momento, como muda a visão do fenômeno tempo com as evoluções científicas e, então, comparar essa evolução com a compreensão realeana do mesmo elemento. A Física clássica tendia a ver o tempo como uma grandeza que não sofreria alterações. Componente da natureza, tratava-se talvez de uma das maiores certezas da existência: determinante da morte, o tempo é inexorável e não se altera jamais. Essa construção correspondia ao modelo físico vigente até o início do século XX – o modelo Newtoniano – e assentava-se na idéia de que as leis da natureza, tal qual enunciadas pela Física, comporiam um conhecimento absolutamente certo. Nesses termos, “a natureza é um autô- mato que podemos controlar, pelo menos em princípio. A novidade, a escolha, a atividade espontânea são apenas aparências, relativas apenas ao ponto de vista humano12”. NEWTON fundamentava seu universo em um contexto de espaço e tempo absolutos e independentes da matéria. Nessa construção, a realidade se desenvolvia em um palco inerte e que servia, apenas, para localizar e contextualizar o evento. Essa forma de raciocínio se desenvolve segundo a própria base da filosofia newtoniana, construída a partir de Henry MORE 13: apegado que era à idéia de um Deus eterno e absoluto, também eternas e absolutas deveriam ser essas grandezas que o representavam. É por isso que “tanto Aristóteles quanto Newton acreditavam no tempo absoluto. Isto é, acreditavam que se pode, sem qualquer ambigüidade, medir o intervalo de tempo entre dois eventos, e que o resultado será o mesmo em qualquer mensuração, desde que se use um relógio preciso. O tempo é in14 dependente e completamente separado do espaço ”. Assim, o tempo e o espaço newtonianos são o fundo de cena onde os eventos ocorriam sem jamais serem por eles afetados. O tempo era eterno e infinito, para frente e para trás, como o que se vê ao se olhar os paralelos trilhos de um trem15. Todavia, é certo que a mecânica newtoniana acabou destronada pela mecânica quântica no correr do século XX 16. As evoluções da Física teórica no início do século XX, sobretudo aquelas levadas a cabo por EINSTEIN e pelos outros físicos de seu tempo, colocaram em xeque a realidade estática da 12 PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São Paulo: Unesp, 1996, p. 19-20. 13 GOMIDE, Fernando; BERMAN, Marcelo. Introdução à Cosmologia Relativística. Curitiba: Editora Albert Einstein, 1986, p. 1-2. 14 HAWKING, Stephen. Uma breve história do tempo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 30. 15 HAWKING, Stephen. O Universo numa Casca de Noz. 6ª edição. São Paulo: Arx, 2002, p. 32. 16 PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São Paulo: Unesp, 1996, p. 19. 194 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 natureza e demonstraram – inicialmente através de modelos teóricos e, posteriormente, através de experiências práticas 17 – que a Física newtoniana podia explicar a realidade em determinadas situações, mas que para o muito grande ou para o muito pequeno, seus axiomas não funcionavam. As dificuldades teóricas encontradas pelos físicos o início do século XX foram aos poucos minando a Física assim chamada de clássica. Teorias novas surgiram e novos princípios, como o da co-variância18, passaram a representar a realidade e a indicar novas necessidades para a Física. Mudava, sobretudo, a concepção do tempo e do espaço. Em outras palavras, “ ...Newton imaginou espaço e tempo como um referencial absoluto para todos os movimentos. Contudo, para Einstein, espaço e tempo podiam assumir um papel dinâmico19”. Nesse contexto, tempo e espaço não são mais independentes. A identificação de um ponto no espaço, que até então era feita com quatro quantidades específicas (como os eixos cartesianos mais a identificação do momento em que algo se dá), ainda é feita com as mesmas unidades. Todavia, não se pode mais pensá-las como independentes: todos os quatro elementos dependem, necessariamente, uns dos outros 20. Se na física newtoniana, espaço e tempo eram dados que existiam por si mesmos (os três eixos cartesianos são compostos de medidas independentes e o tempo, idem), na relatividade, essa condição muda completamente, pois “o espaço e o tempo tomam parte da ação”. Como conseqüência, “a própria divisão do tempo entre passado, presente e futuro parece carente de significado físico 21”. Aliás, a relatividade (não no sentido que Einstein lhe dá) do tempo é tal que alguns autores contemporâneos chegam a afirmá-lo como “um acidente do espaço22”. Em outras palavras, se “antes de 1915, espaço e tempo eram conside- rados como um palco fixo no qual os eventos ocorriam, sem que fossem afetados pelo que nele acontecesse”, para a Teoria Geral da Relatividade de EINSTEIN, a situação é bastante diferente: 17 “Toda a Física relativista está mais ligada a etapas sucessivas de o que a Física e a Geometria dos velhos tempos. As linhas retas de Euclides têm de ser substituídas por raios de luz, os quais não se enquadram bem nos padrões euclidianos de retilidade quando passam por perto do Sol ou de qualquer outro corpo muito pesado. Ainda se considera a soma dos ângulos retos em regiões muito pequenas do espaço vazio, mas não em qualquer região extensa. Não podemos encontrar em parte alguma um lugar em que Euclides esteja exatamente certo. As proposições que eram provadas pelo raciocínio tornaram-se agora ou convenções ou meras verdades aproximadas verificadas pela observação”. RUSSEL, Bertrand. ABC da Relatividade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 210. 18 KAKU, Michio. O Cosmo de Einstein: como a visão de Albert Einstein transformou nossa compreensão de espaço e tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 81. 19 KAKU, Michio. O Cosmo de Einstein: como a visão de Albert Einstein transformou nossa compreensão de espaço e tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 79. 20 RUSSEL, Bertrand. ABC da Relatividade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 59. 21 PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: UNESP, 1996, p. 172. 22 PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São Paulo: Unesp, 1996, p. 23, referindo-se à célebre obra de Stephen HAWKING, “Uma breve história do tempo”. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 195 “espaço e tempo são atualmente considerados quantidades dinâmicas: quando um corpo se move ou uma força atual, afeta a curva do espaço e do tempo – e, por sua vez, a estrutura do espaço-tempo afeta a forma como os corpos se movem e as forças atuam. Espaço e tempo não apenas afetam, mas também são afetados por qualquer coisa que aconteça no universo23”. Não se pode ignorar como essa complexa forma contemporânea da grandeza tempo se aproxima da imagem de tempo para REALE. Ora, ao indicar que os elementos do fenômeno jurídico se constroem em uma eterna dialética de implicação-polaridade24 dentro da qual o tempo – não como mera escala de medida, como temporalidade simples, mas como uma condição de historicidade – desempenha um papel cuja existência se confunde com os próprios elementos fato, valor e norma, então o tempo realeano nessa medida é mais do que um palco: é, na verdade, algo com o que os elementos-atores se relacionam extensa, ampla e intrinsecamente. É, em outras palavras, o tempo quântico, não o tempo clássico; é uma temporalidade inerente à condição segundo a qual os “fatos se subordinam a exigências eletivas de valor e se compõem na unidade integrante das normas de direito ” para as quais existe, sim, uma inerente temporalidade certa, mas que “como diz L. Bagolini, não é a do tempo do relógio25”. Nesse contexto, REALE, tratando da condicionante cultural que se põe na raiz do ato de conhecer e que lhe caracteriza, critica KANT mesmo quanto à terminologia usada. Afinal, KANT se refere ao “espaço e tempo” enquanto, para REALE, mais certa estaria a expressão einsteniana “espaço-tempo”, justamente aquela que se vincula adequadamente ao conceito de um tempo que se relaciona intrinsecamente com o espaço (ao ponto de chegar a dobrar-se, inclusive, segundo as demonstrações físicas contemporâneas) e, portanto, com todas as coisas, inclusive, naquela crítica, com o sujeito cognoscente 26. Para afastar KANT e o seu sujeito situado in abstrato, a alegação de REALE torna praticamente expressa a sua vinculação ao novo modelo físico, donde se extrai que abarca essa nova visão de tempo: “Na realidade, o que se dá é uma substituição de modelo cognoscitivo. É sabido que a Gnoseologia kantiana se situa no contexto epistêmico da Física de Newton, representando o propósito de se alcançar, em todos os domínios do conhecimento, a certeza de resultados atingida naquele 23 HAWKING, Stephen. Uma breve história do tempo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 45. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. O Problema das Lacunas e a Filosofia Jurídica de Miguel Reale. In Direito Política Filosofia Poesia: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale em seu octogésimo aniversário (p. 271-279), São Paulo: Saraiva, 1992, p. 275/276. 25 REALE, Miguel. Estrutura e fundamento da ordem jurídica. In “Estudos de filosofia e ciência do direito”. São Paulo: Saraiva, 1978 (p. 26 a 34), p. 27. 26 REALE, Miguel. Teoria do Conhecimento e Teoria da Cultura. In Cinco temas do culturalismo, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 27 a 37, p. 30. 24 196 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 campo, devendo ser estabelecidas as bases universais do conhecimento positivo, que, segundo o mestre do criticismo, só poderia ficar adstrito ao mundo fenomenal, próprio das ciências naturais, sendo transcendentalmente condicionadas pelas condições subjetivas a priori por ele apontadas. É natural que, alterada a visão da Ciência – quer pela nova compreensão da Física, cada vez mais teorizada em termos lógicos e matemáticos, culminando no relativismo de Einstein, à margem do indutivismo antes reinante, quer em razão do advento das ciências sociais e antropológicas – é natural que ocorra também a substituição do modelo, em função do qual são postos os problemas do conhecimento27”. Do que foi escrito anteriormente e da análise da figura de tempo que REALE usa em sua filosofia, é possível uma aproximação entre a filosofia realeana e as novidades trazidas pela Física contemporânea, sobretudo aquelas indicadas pelas teorias de EINSTEIN. Ao reconhecer o fenômeno jurídico como algo que se constrói a partir da inter-relação entre fato, valor e norma, e ao indicar que essa tríade se constitui não como um agrupamento de caracteres, mas, sim como um complexo conjunto de elementos necessariamente dependentes, ainda que reconhecíveis em separado, REALE também se refere ao entorno dessa relação como algo que com ela se imiscui. Ora, ao pensar o fenômeno jurídico como algo que existe dentro da cultura e, portanto, dentro de um tempo que constrói essa cultura, também reconhece que o próprio tempo – e, conseqüentemente, ao seguir a idéia einsteniana de “espaço-tempo”, o espaço – é condicionante dessa relação. Assim, o tempo em REALE não é o tempo estático de NEWTON ou da física clássica, mas, sim, o tempo dinâmico de EINSTEIN e seus contemporâneos. Importa lembrar que essa idéia de tempo é essencial para que se compreenda o real sentido que REALE quer dar à sua filosofia e, talvez, seja um dos maiores diferenciadores do modelo tridimensional realeano em comparação com outros modelos tridimensionais. Aliás, a descrição desse tempo por REALE e a sua expressa vinculação ao novo modelo físico fazem crer que, talvez, sua filosofia tenha sido animada, desde sempre, por uma leitura ávida de físicos e matemáticos. É possível que, nesse sentido, as belas ciências exatas tenham dado um impulso substancial a um dos maiores filósofos brasileiros. E talvez uma centelha do pensamento de EINSTEIN se tenha espalhado em toda a filosofia do Direito nacional. 27 REALE, Miguel. Teoria do Conhecimento e Teoria da Cultura. In Cinco temas do culturalismo, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 27 a 37, p. 33 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 197 “A conclusão final é que conhecemos pouquíssimo, sendo, contudo, surpreendente que conheçamos tanto, e mais surpreendente ainda que tão pouco conhecimento nos possa proporcionar tamanho poder28”. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. O Problema das Lacunas e a Filosofia Jurídica de Miguel Reale. In Direito Política Filosofia Poesia: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale em seu octogésimo aniversário (p. 271-279), São Paulo: Saraiva, 1992. GOMIDE, Fernando; BERMAN, Marcelo. Introdução à Cosmologia Relativística. Curitiba: Editora Albert Einstein, 1986. HAWKING, Stephen. O Universo numa Casca de Noz. 6ª edição. São Paulo: Arx, 2002. _____. Uma breve história do tempo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988. KAKU, Michio. O Cosmo de Einstein: como a visão de Albert Einstein transformou nossa compreensão de espaço e tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 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