Capítulo 4 Importância da Fauna de Solo para a Ciclagem de Nutrientes Maria Elizabeth Fernandes Correia Luís Cláudio Marques de Oliveira Introdução A degradação dos detritos vegetais e animais no solo é um processo biológico fundamental para o ecossistema, onde o carbono é reciclado para a atmosfera como dióxido de carbono, o nitrogênio se torna disponível como amônia e nitrato, e outros elementos associados (fósforo, enxofre e vários micronutrientes) assumem formas inorgânicas e podem então ser assimilados pelas plantas (STEVENSON; COLE, 1999). A abundância e diversidade dos organismos que compõem a teia alimentar decompositora determinam a velocidade e a magnitude de processos como a mineralização e imobilização desses nutrientes. Conseqüentemente, a assimilação de nutrientes pelas plantas e a produtividade das culturas podem ser fortemente afetadas pelos organismos do solo, mesmo quando é feita uma adubação mineral. Miolo_Biota.pmd 77 1/12/2006, 12:32 78 Capítulo 4 Apesar de os microrganismos serem os principais responsáveis pelo processo de mineralização dos nutrientes, é a fauna de solo que exerce um papel de regulação das populações microbianas. A predação seletiva de fungos e bactérias, feita especialmente pela microfauna; a estimulação, digestão e disseminação de microrganismos ingeridos pela macrofauna e a fragmentação dos detritos realizada pelas meso e macrofauna interferem na decomposição da matéria orgânica e alteram a disponibilidade de nutrientes para as plantas (CRAGG; BARDGETT, 2001). Por sua vez, a vegetação determina em grande parte o estabelecimento da comunidade da fauna de solo. A qualidade e a quantidade do material decíduo, especialmente em ambientes tropicais, podem afetar as populações da macrofauna do solo, resultando em uma mobilização diferencial dos nutrientes, com conseqüências para a ciclagem de nutrientes e a fertilidade do solo (WARREN; ZOU, 2002). As interações da fauna de solo com os microrganismos e a sua ação sobre a decomposição e ciclagem de nutrientes variam entre os diferentes grupos, sendo resultantes de características intrínsecas de cada grupo e, por vezes, de cada espécie da fauna de solo. A morfologia, aliada a características fisiológicas e comportamentais, é fundamental na determinação de onde e como a fauna de solo irá intervir na decomposição e na ciclagem de nutrientes. O tipo de deslocamento apresentado por um animal do solo, se preponderantemente horizontal, promove a redistribuição de nutrientes e matéria orgânica em uma determinada área, como no caso dos macroartrópodes que vivem na serapilheira, tais como isópodes e diplópodes. Se esse deslocamento for preferencialmente vertical, essa redistribuição ocorre no perfil do solo, enquanto ocorre um aumento da heterogeneidade na área como um todo, com a formação de um mosaico de pequenas manchas de solo mais ou menos fértil. Um bom exemplo disso são os corós (larvas de besouros escarabeídeos), que se enterram no solo e levam consigo uma grande quantidade de matéria orgânica (BROWN et al., 2002). Além disso, o tamanho do organismo e a sua capacidade de deslocamento determinam qual o alcance da sua influência sobre a ciclagem de nutrientes. Um invertebrado que seja capaz de deslocarse apenas poucos centímetros terá a sua área de influência mais restrita. Miolo_Biota.pmd 78 1/12/2006, 12:32 Importância da Fauna de Solo para a Ciclagem de Nutrientes 79 Esse é o caso da maioria dos animais da microfauna (diâmetro corporal < 0,2 mm) e mesofauna (diâmetro corporal entre 0,2 e 2,0 mm), que, no entanto, compensam essa restrição com populações muito numerosas. No entanto, muitos invertebrados da macrofauna do solo (diâmetro > 2,0 mm) são capazes de deslocamentos consideravelmente maiores, de poucas dezenas de metros, como no caso de alguns diplópodes. As minhocas geófagas muitas vezes apresentam uma grande capacidade de deslocamento tanto horizontal quanto vertical e são capazes de modificar todo um horizonte do solo. É o caso da minhoca geófaga Millsonia anomala, encontrada em savanas da Costa do Marfim, que em apenas um ano é capaz de processar 70% da matéria orgânica do solo de 0-10 cm (LAVELLE, 1978 apud FRAGOSO et al., 1997). Esse tipo de ação apresentada por algumas minhocas promove uma homogeneização do solo, já que praticamente todo o solo de um determinado estrato é modificado. No caso dos térmitas de montículo, há também um grande deslocamento horizontal e vertical dos indivíduos, mas como a matéria orgânica é concentrada no interior dos ninhos, há a formação de mosaicos de solo, com pontos de elevada concentração de nutrientes. Arshad (1982), em estudo realizado na África, constatou que em solos com presença de térmitas, a razão C/N tende a ser mais baixa, entre 5 e 12, nos ninhos e solos adjacentes, enquanto em solos sem térmitas essa razão aumenta e alcança valores de 15 e até maiores que 20. A movimentação de um animal no interior do solo pode ocorrer de quatro formas: • Pela ingestão do solo, que atravessa todo o tubo digestivo e é eliminado na forma de fezes, tendo como resultado a formação de galerias. Essa é a estratégia utilizada pelas minhocas geófagas e pelos térmitas humívoros e, neste caso, a fonte alimentar é a matéria orgânica do solo. • Pela retirada de partículas ou pequenos agregados, como ocorre com os cupins de terra solta (e.g. Syntermes sp.) e formigas saúvas (Atta sp.). O tamanho das partículas é determinado pelo tamanho das mandíbulas desses insetos, já que é por meio delas que ocorre o transporte desse material. Essa atividade é capaz de modificar pontualmente o horizonte Miolo_Biota.pmd 79 1/12/2006, 12:32 80 Capítulo 4 superficial do solo, alterando suas características, tais como a classe textural, a quantidade de matéria orgânica e a umidade. • Pela pressão de perfuração, que é bem observada em diplópodes da subclasse Chilognatha. Esses invertebrados, vulgarmente conhecidos como gongolos ou piolhos-de-cobra, possuem uma cápsula cefálica bastante calcificada que é pressionada para o interior do solo com a ajuda dos duplos pares de pernas presentes em cada segmento (HOPKIN; READ, 1992). Esse tipo de escavação é bastante dispendiosa em termos energéticos e se torna inviável para grandes deslocamentos. No entanto, esses animais habitam preferencialmente a serapilheira ou troncos em decomposição e enterram-se no solo apenas para fugir de condições adversas ou para a troca do exoesqueleto. • Por escavação, muito utilizada por artrópodes de um modo geral, e que consiste na utilização das pernas, que podem ser ou não especializadas para essa atividade. Esse tipo de locomoção é facilitado em solos arenosos, que não oferecem muita resistência ao deslocamento. Ação das diferentes associações da fauna de solo sobre a ciclagem de nutrientes Os microrganismos são os principais agentes da atividade bioquímica do solo, estando envolvidos diretamente em todos os processos biológicos e influenciando processos físicos e químicos. A fauna do solo, no entanto, pode influenciar os processos do solo por mio de duas vias principais: diretamente, pela modificação física da serapilheira e do ambiente do solo, e indiretamente, pelas interações com a comunidade microbiana (GONZÁLEZ et al., 2001). Seus efeitos diretos na ciclagem biogeoquímica ocorrem por meio da fragmentação e incorporação ao solo de detritos vegetais, promovendo um aumento na disponibilidade de recursos para os microrganismos e mediando a transferência de solutos e particulados profundamente no perfil do solo. Eles também afetam a ciclagem biogeoquímica pelo rearranjo físico das partículas do solo, mudando a Miolo_Biota.pmd 80 1/12/2006, 12:32 Importância da Fauna de Solo para a Ciclagem de Nutrientes 81 distribuição de tamanho de poros e, como resultado, os padrões de infiltração e emissão de gases (BEARE et al., 1995). Os efeitos das minhocas são universalmente conhecidos, mas o turn over do solo promovido por formigas e cupins pode ser igualmente importante (LOBRY DE BRUYN; CONACHER, 1990). A fauna do solo, particularmente a macrofauna, exerce um papel fundamental na fragmentação dos resíduos vegetais e na regulação indireta dos processos biológicos do solo, estabelecendo interações em diferentes níveis com os microrganismos (SWIFT et al., 1979). Em poucos casos, essas simbioses são do tipo mutualista, sendo mais freqüentes as simbioses acidentais, onde os microrganismos são ingeridos junto com o solo ou serapilheira e encontram no tubo digestivo e/ou nas fezes um hábitat favorável. O efeito dos animais sobre os microrganismos podem tanto ser estimuladores quanto inibidores (THEENHAUS; SCHEU, 1996). É esse balanço que promove uma regulação dos processos de decomposição e conseqüentemente da liberação de nutrientes. Os invertebrados do solo, por sua vez, possuem uma capacidade enzimática limitada, restringindo-se à digestão de proteínas, lipídios e glicídios simples. Como outras classes, a fauna de solo não é capaz de produzir enzimas que degradem compostos como a celulose ou a lignina. No entanto, as associações da fauna com microrganismos, tanto decorrentes da ingestão simultânea com o alimento, ou de simbioses mutualísticas, promovem um sinergismo no sistema de decomposição. Se, por um lado, os microrganismos, ao serem transportados pelos invertebrados do solo, obtêm uma maior dispersão no ambiente, os invertebrados do solo, ao utilizarem as enzimas produzidas pelos microrganismos, ampliam a gama de substratos energéticos a serem explorados. Além de atuarem como reguladores da atividade microbiana, os invertebrados do solo agem como fragmentadores do material vegetal e engenheiros do ecossistema, modificando-o estruturalmente (LAVELLE, 1997). De acordo com Lavelle et al.(1992), a interação da fauna de solo com microrganismos e plantas é capaz de modificar funcional e estruturalmente o sistema de solo, exercendo uma regulação sobre os processos de decomposição e ciclagem de nutrientes. Sulkkava et al. (2001) obtiveram resultados que comprovam essa Miolo_Biota.pmd 81 1/12/2006, 12:32 82 Capítulo 4 afirmação, pois, em experimentos em áreas plantadas com Betula sp., os autores compararam áreas com e sem a fauna de solo e verificaram que na presença da fauna a vegetação cresceu até três vezes mais do que nas áreas defaunadas. Interessante também que, no mesmo experimento, Sulkava et al. (2001) verificaram também que tanto o C como o N foram influenciados pela presença da fauna, permitindo inclusive uma assimilação mais rápida deste último nutriente pela vegetação, principalmente na primeira fase de crescimento. A influência da fauna de solo está fundamentalmente ligada ao tipo de interação que os invertebrados estabelecem com os microrganismos, com a conseqüente digestão de compostos orgânicos complexos e a importância dos dejetos da fauna para a formação de estruturas do solo. Lavelle (1997), na tentativa de identificar a magnitude dessas interações e influências, identificou três associações de invertebrados do solo reguladoras desses processos em diferentes escalas de tempo e espaço (Fig. 1). Uma associação representa um conjunto de Fig. 1. Regulação das atividades microbianas pelas três associações de invertebrados do solo, operando em escalas crescentes de tempo e espaço. Fonte: Modificado a partir de Lavelle (1997). Miolo_Biota.pmd 82 1/12/2006, 12:32 Importância da Fauna de Solo para a Ciclagem de Nutrientes 83 animais que exploram o mesmo recurso, mas o fazem de modo a minimizar a sobreposição de nichos (COLINVAUX, 1993). Tal conceito apresenta semelhanças com o grupo funcional, mais amplamente difundido. No caso das associações propostas por Lavelle (1997), esses três grupos podem ser distinguidos com base na relação que estabelecem com os microrganismos do solo e o tipo de excremento que produzem. Os excrementos dos invertebrados são de fundamental importância na evolução da matéria orgânica (MARTIN; MARINISSEN, 1993), na formação e manutenção da estrutura do solo e, em longo prazo, influenciam em processos pedológicos. As guildas propostas são: Microteias alimentares Compreendem a microfauna predadora de bactérias e fungos e seus predadores. Em virtude do seu tamanho reduzido, a microfauna não é capaz de produzir excrementos sólidos que gerem estruturas duradouras e estáveis após a sua deposição. No entanto, esses organismos possuem um impacto considerável na dinâmica populacional de microrganismos e na liberação de nutrientes imobilizados na biomassa microbiana. Esse processo é especialmente importante na rizosfera. Colêmbolos, ácaros predadores, e até mesmo invertebrados maiores como as minhocas podem estender essa teia alimentar por muitos outros níveis tróficos (LAVELLE, 1997). Transformadores de serapilheira Compreendem a mesofauna e os grandes artrópodes, que normalmente ingerem material orgânico puro e desenvolvem um mutualismo externo com a microflora baseado em um “rúmen externo” (SWIFT et al., 1979). Os artrópodes da serapilheira podem digerir parte da biomassa microbiana ou desenvolver interações mutualísticas nos seus excrementos. Nessas estruturas, os recursos orgânicos que foram fragmentados e umedecidos durante a passagem pelo tubo digestivo são ativamente digeridos pela microflora. Após alguns dias de incubação, Miolo_Biota.pmd 83 1/12/2006, 12:32 84 Capítulo 4 os artrópodes freqüentemente reingerem esses excrementos e absorvem os compostos orgânicos assimiláveis que foram disponibilizados pela atividade microbiana, e ocasionalmente parte da biomassa microbiana (HASSAL; RUSHTON, 1982). Outra importante característica dos transformadores de serapilheira é sua habilidade de estimular a mineralização do nitrogênio, liberando amônia, podendo ocorrer três possíveis cenários: pode ser nitrificada e capturada pelas plantas; temporariamente acumulada antes de sua volatilização; imobilizada na biomassa microbiana (LAVELLE, 1997). Como exemplos de transformadores de serapilheira, serão apresentados a seguir alguns dados da atividade de diplópodes e de larvas de besouros escarabeídeos (corós) na decomposição de serapilheira e liberação de nutrientes para o solo. Os diplópodes, conhecidos vulgarmente como gongolos, são um grupo saprófago importante encontrado em todos os tipos de ecossistemas, sejam florestais, agrícolas ou de pastagens. Os corós são bem conhecidos como pragas agrícolas em cultivos de grãos. No entanto, nem todas as espécies atuam como pragas, tendo, pelo contrário, um efeito benéfico sobre a fertilidade do solo. Diplópodes Experimentos de laboratório demonstram que estes “transformadores de serapilheira” exibem uma preferência alimentar pela serapilheira de determinadas espécies de plantas (KHEIRALLAH, 1990). Tal capacidade de seleção está relacionada diretamente à palatabilidade do material e, indiretamente, à sua qualidade nutricional. A Tabela 1 mostra que a serapilheira de Eucalyptus grandis foi muito menos palatável para duas espécies de diplópodes que a de Mimosa caesalpiniifolia, conhecida vulgarmente como sabiá, uma leguminosa arbórea de elevada qualidade nutricional e rápida decomposição (CORREIA; ANDRADE, 1999). Em muitos casos, o animal morre de fome, mas não consome materiais que apresentem elevados teores de lignina ou polifenóis. Esse comportamento também foi observado para serapilheiras contaminadas com elevados teores de zinco, cádmio e chumbo (READ; MARTIN, 1990). Miolo_Biota.pmd 84 1/12/2006, 12:32 Importância da Fauna de Solo para a Ciclagem de Nutrientes 85 Tabela 1. Consumo de serapilheira (em mg de serapilheira ingerida/g de diplópode/dia) por duas espécies de diplópodes estudadas em laboratório. Serapilheira Eucalyptus grandis (camada L1) Eucalyptus grandis (camada F2) Acacia mangium (camada L) Acacia mangium (camada F) Mimosa caesalpiniifolia (camada L) Mimosa caesalpiniifolia (camada F) Rhinocricus padbergi Trigoniulus corallinus 13,52B 9,01B 10,46 B 16,10B 45,22A 55,47A 34,57B 27,61B 48,32B 53,31B 136,45A 237,86A Médias seguidas de mesma letra em uma mesma coluna não diferem significativamente (p < 0,05), pelo teste de Tukey. 1 Camada superior da serapilheira composta por folhas recém-caídas e ainda sem sinais de ataque por microrganismos e fauna de solo. 2 Camada da serapilheira subjacente à camada L e que apresenta sinais de ataque por microrganismos e fauna de solo. Fonte: Correia; Andrade (1999). Existem poucas estimativas da quantidade de serapilheira consumida pelos “transformadores de serapilheira”. Em geral, esses dados são relativos a poucas espécies e são oriundos de experimentos de laboratório. Correia (1994) estimou que o consumo de serapilheira de quatro espécies de diplópodes em uma área de Mata Atlântica no norte do Espírito Santo era da ordem de 27g/ha/dia. No entanto, acredita-se que para esse ecossistema existam mais de 20 espécies de diplópodes, além de todos os demais grupos saprófagos da fauna de solo. Dangerfield & Milner (1996) estimaram que o consumo de serapilheira também de quatro espécies de diplópodes em florestas e savanas do sul da África era respectivamente de 6% e 39% da serapilheira depositada. Os mesmos autores verificaram que para plantações o consumo era de menos de 1% da serapilheira depositada. Os diplópodes mobilizam nutrientes presos na serapilheira e enriquecem o solo com N, C, Ca, Mg, P e K, em situações de microcosmos (SMITT; VAN AARDE, 2001). Esse enriquecimento é fruto de uma elevada capacidade de consumo de serapilheira, aliada a uma elevada atividade microbiana nas fezes dos diplópodes. Durante a passagem Miolo_Biota.pmd 85 1/12/2006, 12:32 86 Capítulo 4 da serapilheira pelo tubo digestivo dos diplópodes, esse material é triturado, o que aumenta a sua superfície específica, umedecido e enriquecido com microrganismos. Esse efeito catalisador é comparado ao que acontece no rúmen de alguns mamíferos, com a particularidade de estar fora do corpo do animal, mais precisamente nas suas fezes, sendo chamado de “rúmen externo” (SWIFT et al., 1979). Corós e fertilidade do solo Os corós, também conhecidos como bicho-bolo, capitão ou pãode-galinha, são larvas de besouros escarabeídeos, que se caracterizam como insetos de solo subterrâneos. Em áreas agrícolas, algumas espécies podem atingir o status de praga, por alimentarem-se das raízes de culturas como o trigo e a soja (GASSEN, 2000). A prática do plantio direto promove um ambiente favorável, pois assegura alimento, microclima propício e, como não há preparo do solo, as galerias construídas pelas larvas não são destruídas. O Diloboderus abderus ou coró-da-pastagem é uma dessas espécies que podem ser pragas de lavouras e pastagens, mas que também ganhou a denominação de praga útil, pelos benefícios que traz à fertilidade e à física do solo (GASSEN, 2000). Amostras de solo coletadas no perfil de solo até 25 cm e dos resíduos encontrados nas câmaras de larvas de D. abderus, em lavouras de Santa Rosa e Giruá, RS, demonstraram que o pH e os teores de nutrientes, matéria orgânica e argila são semelhantes aos da camada superficial (Tabela 2). As galerias construídas por essa e outras espécies de corós podem atingir mais de 1 m de profundidade. Em áreas de plantio direto no Paraná, constatou-se a existência de galerias com diâmetro de 33,5 mm e profundidade de 117 cm (BROWN et al., 2002). Essas galerias constituem-se em canais abertos para a infiltração da água da chuva, diminuindo o escoamento superficial que pode levar a um processo erosivo intenso. Outras espécies de corós, como o Bothynus sp. (conhecido como coró-da-palha) e Cyclocephala flavipennis, não causam danos às plantas cultivadas, mesmo em densidades elevadas, mas apresentam os mesmos efeitos benéficos de construção de galerias e incorporação da matéria orgânica (GASSEN, 2000) (Fig. 2). Miolo_Biota.pmd 86 1/12/2006, 12:32 87 Importância da Fauna de Solo para a Ciclagem de Nutrientes Tabela 2. Teores de acidez (pH), alumínio (Al), cálcio (Ca), magnésio (Mg), fósforo (P), potássio (K), matéria orgânica (M.O.) e argila no perfil do solo e nas câmaras de D. abderus. Profundidade cm 0-5 5 - 10 10 - 15 15 - 20 20 - 25 Câmara C.V.% pH 5,6 a 5,5 a 5,4 a 4,9 b 4,7 b 5,5 a 7,1 Al Ca Mg me/100 g me/100 g me/100 g 0,13 0,26 0,41 1,41 2,24 0,20 6,2 c c c b a c 5,7 ab 5,1 b 4,4 b 2,6 c 1,8 c 6,6 a 4,9 1,9 ab 1,6 b 1,6 b 1,1 c 0,9 c 2,1 a 15,6 P ppm 55,4 26,5 17,7 7,8 3,5 46,0 3,6 a bc cd de e a K ppm M.O. % 194 a 3,4 b 126 ab 2,5 c 79 bc 2,3 cd 50 c 2,1 cd 33 c 2,0 cd 172 a 4,7 a 7,5 19,6 Argila % 30,8 34,6 41,6 46,0 47,0 35,5 8,9 c c ab a a bc Médias seguidas da mesma letra na coluna são equivalentes por meio do teste de Tukey 95%. Fonte: Gassen e Kochhann (1993). Fig. 2. Larva de Bothynus sp. com palha armazenada no solo. Fonte: Gassen (2000). Miolo_Biota.pmd 87 1/12/2006, 12:32 88 Capítulo 4 Engenheiros do ecossistema Nesta guilda, encontram-se organismos da macrofauna, principalmente, minhocas e térmitas, que são grandes o bastante para desenvolver relações mutualísticas com os microrganismos, no interior do seu próprio tubo digestivo. Essas interações podem ser obrigatórias (como no caso dos protozoários flagelados e dos térmitas inferiores) ou simbioses facultativas, como as que ocorrem no tubo digestivo dos térmitas superiores e minhocas (BREZNAK, 1984). Esses animais geralmente ingerem uma mistura de materiais orgânicos e minerais. Os ácidos orgânicos produzidos pela digestão, e a subseqüente incubação da matéria orgânica nos coprólitos, são normalmente floculados na presença de minerais de argila e elevada atividade microbiana (LAVELLE, 1997). Os excrementos produzidos, que são grandes (na faixa de 0,1-2 cm ou mais), podem fazer parte da estrutura dos macroagregados e participar proeminentemente da formação de estruturas estáveis por meio da regulação da porosidade, densidade e outras propriedades do solo (BAL, 1982). A atividade de cada organismo modifica o ambiente em que ele vive, de tal forma que, em alguns casos, essas interações podem ser extremamente importantes para a manutenção de certas espécies em um dado ambiente, bem como o funcionamento do ecossistema (BEGON et al., 1997). Os organismos que possuem essa capacidade modificadora e essencial são denominados engenheiros do ecossistema. As modificações exercidas pelos engenheiros é de tal monta que Dawkins (1982) considerou sua ação como uma extensão do seu fenótipo. Esses organismos contribuem de maneira essencial para a diversidade de uma dada comunidade, criando uma gama de nichos utilizáveis que podem ser explorados por determinadas espécies. Dessa maneira, seu efeito primário é permitir o aumento da diversidade na comunidade-alvo. Jones et al. (1994) definiram os engenheiros do ecossistema como organismos que, direta ou indiretamente, modulam a disponibilidade de recursos para outras espécies por meio de modificações no estado físico nos materiais bióticos e abióticos, criando e/ou mantendo hábitats passíveis de utilização pelas espécies beneficiadas. Dois tipos básicos Miolo_Biota.pmd 88 1/12/2006, 12:32 Importância da Fauna de Solo para a Ciclagem de Nutrientes 89 de engenheiros do ecossistema podem ser identificados de acordo com seu modo de atuação e interação com as espécies presentes: os engenheiros autogênicos, que modificam o hábitat com suas próprias estruturas físicas, como por exemplo as árvores e os corais, e os engenheiros alogênicos, que modificam o ambiente pela transformação de materiais vivos ou não, de um estado físico em outro (JONES et al., 1994). Pode-se dizer que esse é o caso de dois dos principais grupos da fauna edáfica: térmitas e oligoquetos. As atividades exercidas por esses táxons, tanto internamente, na construção de ninhos e galerias subterrâneas e no transporte de materiais, como externamente, na construção de ninhos epígeos que servem de abrigo e local de reprodução para algumas espécies, alteram a estrutura edáfica de tal forma que criam artefatos modificadores do ambiente no âmbito da paisagem, servindo inclusive para disponibilizar e redistribuir os recursos às outras espécies (JONES et al., 1994; REDFORD, 1984). Térmitas Os térmitas pertencem à ordem Isoptera dos insetos, com aproximadamente 2.800 espécies. Esse grupo é especializado em uma dieta à base de materiais lignocelulósicos, fato esse que os colocou evolutivamente em contato com um recurso trófico extremamente produtivo (MYLES, 1988). Os térmitas são capazes de fixar o nitrogênio atmosférico a partir das bactérias anaeróbicas que habitam seu trato digestivo (TAYASU et al., 1994), simbiose que, junto com sua superabundância, permite aos térmitas representar o papel de espécie-chave como superdecompositor e “estabilizador do balanço carbono-nitrogênio” (HIGASHI; ABE, 1997). Sobre esse aspecto, os térmitas, ao se alimentarem de matéria orgânica morta, utilizam recursos que apresentam uma relação carbononitrogênio (C/N) muito maior do que a encontrada em seus próprios tecidos, tendo dessa forma que balancear esses inputs (HIGASHI et al., 1992). Isso ocorre porque tanto a celulose como os constituintes da parede celular são abundantes na matéria orgânica morta, enquanto as substâncias citoplasmáticas são raras, o que dificulta a decomposição desse material. Existem dois mecanismos básicos de balanceamento: Miolo_Biota.pmd 89 1/12/2006, 12:32 90 Capítulo 4 o primeiro em que se adiciona N ao recurso alimentar e o segundo, favorecido pela eliminação seletiva de C do recurso trófico. Os térmitas possuem uma série de simbiontes gastrointestinais que possibilitam a esse grupo resolver a questão da elevada razão C/N de seu recurso trófico. Tal fato permitiu a um recurso hiperabundante (matéria orgânica morta) tornar-se um recurso alimentar “bem protegido”, pela sua difícil utilização e assimilação relacionada ao desbalanceamento da relação C/N, abrindo assim um nicho que, ao longo do tempo evolutivo, foi basicamente monopolizado pelos térmitas (HIGASHI et al., 1992). Os mecanismos utilizados pelos térmitas para a “melhoria” na qualidade do recurso via simbiontes intestinais podem ser divididos em dois sistemas básicos: o primeiro, presente em algumas espécies de térmitas, apresenta simbiontes intestinais, no caso bactérias fixadoras de nitrogênio ou também recicladoras de N (LEE; WOOD, 1971), e o segundo, via liberação do carbono em excesso, que pode se dar pela liberação de gás metano (CH4) por bactérias metanogênicas simbiônticas ou pela liberação de CO2 produzido por fungos cultivados pelos próprios térmitas (WOOD; SANDS, 1978). As espécies utilizam de diferentes formas esses mecanismos descritos, algumas delas utilizam vários mecanismos de forma conjunta. Tais mecanismos têm profunda influência na manutenção e no sucesso das colônias de térmitas, e quanto mais diversos forem os mecanismos utilizados pela colônia para resolver a questão do balanço C/N de seu recurso alimentar, maior será essa colônia (HIGASHI et al., 1992). Essa capacidade de modificar o recurso disponível a ponto de este tornar-se utilizável é uma das características dos engenheiros do ecossistema. Os térmitas contribuem de forma significativa para o enriquecimento do solo adjacente por meio da construção de ninhos, que acumulam material fecal de importante qualidade, auxiliando na humificação da matéria orgânica do solo, e também pelo aumento da atividade microbiana tanto dentro como na própria área adjacente ao ninho, o que permite uma aceleração da ciclagem e a reabsorção dos nutrientes pelos produtores primários (LAVELLE et al., 1997). Os nutrientes retidos nas estruturas dos térmitas, ninhos e galerias retornam para o solo por erosão, possibilitando que ocorra um mosaico de nutrientes na paisagem, preservando a diversidade ecológica (LAVELLE et al., 1992). Miolo_Biota.pmd 90 1/12/2006, 12:32 Importância da Fauna de Solo para a Ciclagem de Nutrientes 91 Esse mosaico foi relatado em inúmeros ecossistemas, inclusive o amazônico, onde Salick et al. (1983) observaram que a capacidade elevada de retenção e acumulação de nutrientes pelos térmitas faz com que haja um mosaico de nutrientes no solo tipicamente pobre da região do Rio Negro. Como visto anteriormente, térmitas são claramente engenheiros do ecossistema, em ambientes naturais, e, como frisou Redford (1984), espécies-chave (keystone species), em ambientes semi-áridos. Dessa forma, pode-se dizer que os térmitas apresentam um papel principalmente benéfico na promoção dos processos ecológicos em agroecossistemas, em detrimento do seu conhecido papel como praga agrícola. Apesar da importância exercida pelos térmitas em ecossistemas naturais, tanto na ciclagem de nutrientes como na modificação das características físicas e químicas do solo, os estudos em agroecossistemas sempre privilegiaram o aspecto dos térmitas como pragas, não obstante o fato de que um número bastante reduzido de espécies deste grupo seja realmente praga agrícola. Black e Okwakol (1997) fizeram uma extensiva revisão nesse sentido, demonstrando claramente que os térmitas podem apresentar um papel extremamente benéfico em agroecossistemas, se estes forem manejados de forma sustentável. Os autores afirmam que algumas práticas agrícolas como aração, manutenção de monoculturas e utilização de pesticidas podem influenciar negativamente as populações de térmitas preestabelecidas, fazendo com que a diversidade diminua drasticamente, o que possibilitaria a entrada de outras espécies, entre estas as espécies-pragas e, mais importante, alguns processos ecológicos dos quais os térmitas são mediadores essenciais seriam claramente prejudicados. Oligoquetos Estima-se que existam por volta de 7.254 espécies de Oligoqueta, e, destas, 3.627 são terrestres, sendo a taxa anual de descrição de novas espécies próxima de 50, normalmente descobertas em áreas tropicais (FRAGOSO et al., 1997). Miolo_Biota.pmd 91 1/12/2006, 12:32 92 Capítulo 4 A ocorrência e a abundância das minhocas variam em um gradiente termolatitudinal, sendo normalmente excluídas das áreas mais secas, principalmente com pluviosidade abaixo de 800 mm, e, apesar do número de espécies não se modificar muito ao longo desse gradiente, a diversidade funcional aumenta consideravelmente (LAVELLE et al., 1997). O substrato utilizado como alimento e/ou moradia determina os tipos funcionais presentes e os mais comuns são as minhocas que se alimentam de serapilheira, as que se alimentam de matéria orgânica e as que vivem em galerias. Quando presentes no ambiente, as minhocas podem apresentar papel primordial nos processos ecológicos do solo. Os mecanismos de participação nesses processos podem ocorrer a partir da ingestão de uma mistura de partículas orgânicas e minerais, eliminando coprólitos que contêm matéria orgânica estabilizada, por meio de um sistema de simbiose no trato digestivo em associação com a microflora do solo, permitindo que as minhocas se alimentem de substratos complexos, além da criação de estruturas que acarretam modificações físicas e na pedogênese do solo (LAVELLE, 1997). As minhocas apresentam uma gama extensa de preferências alimentares, mas alguns estudos realizados em diferentes plantios comprovaram que boa parte das espécies presentes em agroecossistemas é mais atraída por substratos na forma de matéria orgânica parcialmente decomposta (DOUBE et al., 1994). A digestão da matéria orgânica do solo é feita pelas minhocas por enzimas produzidas parcialmente por elas e, em parte, por associação mutualística com a microflora ingerida. Adicionando 80% a 120% de água ao material e 5% a 30% de muco, a atividade microbiana é estimulada e, junto com enzimas não produzidas pelas minhocas, no caso celulase e mananase, essas enzimas são liberadas no trato intestinal pelos microrganismos, o que facilita a digestão de uma importante fração do material ingerido (LAVELLE, 1997). O resultado da digestão da matéria orgânica do solo resulta na liberação de quantidades significativas de nutrientes assimiláveis (MARTIN et al., 1992). Lee (1985) delineou três possibilidades básicas: a primeira, pela liberação de coprólitos, já que o material, quando passa pelo trato intestinal, é enriquecido por compostos nitrogenados do metabolismo Miolo_Biota.pmd 92 1/12/2006, 12:32 Importância da Fauna de Solo para a Ciclagem de Nutrientes 93 dos oligoquetos, por meio da excreção de urina e pelos tecidos de oligoquetos mortos, já que o peso seco do tecido desses animais é composto de 60% a 70% de proteína com 12% de nitrogênio desse total. Coprólitos frescos de Pontoscolex corethrurus continham 18 vezes mais amônia do que o solo não ingerido e 1,5 vez a quantidade de nitrato. A redução nas concentrações dos coprólitos diminui de forma diferenciada, de acordo com o ambiente analisado, e deve estar relacionada com a reorganização microbiana, que pode ocorrer em diferentes velocidades, já que outras formas de liberação de nutrientes como a lixiviação e a própria reabsorção pela vegetação foram evitadas (LAVELLE et al., 1992). O fósforo (P), outro nutriente especialmente crítico para o crescimento das plantas, também apresentou concentrações altíssimas se comparadas com o solo controle, chegando até a oito vezes a concentração no solo não ingerido. Pashanasi et al. (1992) verificaram que a presença de minhocas influenciou o crescimento de algumas espécies vegetais, enquanto outras espécies não foram influenciadas, o que se supõe estar relacionado com o tamanho e a distribuição do sistema radicular de cada planta, pois existe uma relação direta entre tamanho do sistema radicular e a absorção dos nutrientes liberados via coprólitos. Jégou et al. (1998), analisando os efeitos da presença de minhocas na transferência de carbono no solo, encontraram nas estruturas construídas pelas minhocas e no solo adjacente aos coprólitos um enriquecimento de C de até 40% em comparação com o solo utilizado como controle, comprovando a importância das minhocas na transferência de matéria orgânica do solo. A diversidade de minhocas em agroecossistemas, se comparada a sistemas não perturbados, é bem inferior, com a predominância de espécies endogeicas, o que torna essas espécies extremamente importantes para a regulação das funções edáficas, pois as mesmas atuam como engenheiras do ecossistema, por meio de suas interações mutualísticas com a microflora presente, ingestão seletiva de partículas do solo e produção de coprólitos e galerias, afetando de forma significativa e positiva a liberação de nutrientes antes indisponíveis para a utilização da vegetação, assim como na dinâmica da matéria orgânica e outros processos pedológicos (FRAGOSO et al., 1997). Miolo_Biota.pmd 93 1/12/2006, 12:32 94 Capítulo 4 Referências ARSHAD, M. A. Influence of termite Macrotermes michaelseni on soil fertility and vegetation on semi-arid savannah ecosystem. AgroEcosystems, Amsterdam, v. 8, p. 47-58, 1982. BAL, L. Zoological ripening of soils. Wageningen: Pudoc, 1982. BEARE, M. H.; COLEMAN, D. 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