1 Em busca de subsídios para uma pedagogia da variação linguística nos documentos curriculares nacionais César Augusto González 1 Jorama de Quadros Stein2 Resumo Este texto tem por objetivo buscar nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de ensino fundamental (BRASIL, 1998) e médio (BRASIL, 2000) subsídios para uma pedagogia da variação linguística. Especificamente, investigamos se e como esses documentos abordam a questão da variação. Nossa investigação parte das propostas de Faraco (2008) e Zilles (2008), ambos autores que contribuem significativamente para a construção de uma pedagogia da variação. Vale dizer que consideramos necessária uma prática educativa atenta aos fenômenos de variação, de forma a oferecer aos alunos meios para que eles sejam capazes de avaliar a adequação das formas linguísticas a sua disposição a cada nova situação interlocutiva. Acreditamos que, por meio de um ensino que privilegie a norma culta em detrimento da norma-padrão e leve em conta as variedades linguísticas conhecidas pelos alunos, é possível promover uma educação linguística em que se combata o preconceito linguístico e se possibilite aos educandos o aprimoramento de sua competência linguísticodiscursiva. Nossa leitura dos PCN permitiu-nos observar que, apesar de preocupados com a questão da variação linguística, os documentos não diferenciam claramente as noções de norma-padrão e norma culta. Há, também, uma certa inconsistência no que diz respeito aos usos dos termos sociolinguísticos e uma enorme quantidade de conceitos advindos de variadas áreas da linguística, o que torna a leitura dos documentos altamente complexa. Palavras-chave: norma culta, norma-padrão, pedagogia da variação linguística. 1 Preliminares Este texto surgiu no decorrer da disciplina Seminários de Leituras Avançadas: por uma variação da pedagogia linguística, do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), ministrada pela Profa. Dra. Ana Zilles3. Ele tem por objetivo buscar nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de ensino fundamental (BRASIL, 1998) e médio (BRASIL, 2000) subsídios para uma pedagogia da variação linguística. Essencialmente, pretendemos investigar se e como os documentos que parametrizam o currículo escolar nacional de língua portuguesa abordam a questão da variação linguística. 1 Mestrando pelo PPG em Letras da UFRGS. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 Doutoranda pelo PPG em Linguística Aplicada da UNISINOS. Bolsista CAPES/FAPERGS. E-mail: [email protected] 3 Agradecemos à Profa. Dra. Ana Zilles e à colega Gisele Benck (UPF) pela partilha de saberes em produtivos debates, que nos permitiram (re) significar nosso conhecimento. 2 Para proceder a uma investigação dessa natureza, convém começar o texto explicitando alguns pressupostos que aqui assumimos, baseados em Faraco (2008) e Zilles (2008)4. Posteriormente, procederemos à leitura dos PCN de ensino fundamental e médio, tentando explicitar a concepção de língua que ambos apresentam. Finalmente, vamos apresentar algumas críticas e questionamentos que surgiram durante nossa leitura dos documentos oficiais de currículo. Faraco (2008) propõe-se a “desatar alguns nós” com relação à norma culta brasileira. Ele o faz na medida em que recupera a noção de norma, proposta pelo linguista Eugênio Coseriu como um nível intermediário entre a fala (entendida como a realização individual do sistema linguístico) e a língua (o sistema linguístico socialmente compartilhado). A norma seria, nesta visão, o que é normalmente falado por uma determinada comunidade de fala. A norma culta seria caracterizada pelas formas linguísticas de fato empregadas por falantes posicionados mais acima na hierarquia social e com amplo acesso à cultura letrada em situações de comunicação que exigem maior monitoramento. Acima da norma culta, existiria ainda a norma-padrão – uma norma artificialmente produzida. A norma-padrão teria sua origem moderna na criação dos Estados Centrais entre os séculos XV e XVI, que viam com maus olhos a diversidade linguística resultante da sociedade feudal – na qual as forças que operavam em favor da diversidade linguística (distância geográfica e pouca circulação de pessoas, por exemplo) haviam produzido uma série de línguas distintas. A norma-padrão surgiu, portanto, como uma política linguística que visava a unificar a língua do Estado. No caso brasileiro, a constituição da norma-padrão foi objeto de disputas políticas e ideológicas entre nossas elites letradas de meados do século XIX e início do século XX. Duas correntes majoritárias podem ser identificadas: uma mais conservadora, que buscava se distanciar do português falado pelo povo e se aproximar do português europeu, caracterizado imaginariamente como língua pura, que os brasileiros só faziam corromper; e uma menos conservadora, que admitia a entrada de um léxico caracteristicamente brasileiro para dizer as coisas d'aquém mar (nas palavras de José de Alencar, “o povo que chupa o caju, a manga, o cumbucá e a jabuticaba pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?”5). É verdade, contudo, que essa última posição não admitia qualquer inovação: tudo deveria ser antes lapidado pelos escritores, que atuariam como árbitros daquilo que feria ou não o “espírito da língua” – como se vê, mesmo 4 Ainda que saibamos da relevância de diversos outros estudos, focaremos nestes textos devido à oportunidade que tivemos de debatê-los na disciplina. 5 ALENCAR, José. Bênção paterna. In.: _____. Sonhos d'ouro. [S.l.]: eBooksBrasil.com, 2006. E-book disponível em <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/sonhosdoro.html>. Acesso dia 20/06/2012. 3 essa posição menos conservadora, que entendia que a língua portuguesa enriquecera no Brasil, insistia na diferença entre o português do vulgo e o “seu” português. Saiu vitoriosa do debate a corrente mais conservadora, que produziu seus instrumentos normativos (gramáticas e dicionários) com base em uma série de escritores românticos portugueses, o que fez de nossa norma-padrão extremamente artificial e anacrônica. Nem mesmo nossos falantes mais letrados são capazes de seguir todas suas regras dado o enorme fosso existente entre nossa norma-padrão e nossa norma culta real. Esses conceitos se mostram relevantes para a discussão dos PCN na medida em que os Parâmetros propõem que o ensino de língua deve seguir o ciclo uso-reflexão-uso. Quando falamos de uso, não estamos falando da norma-padrão, que, apesar de ser o tradicionalmente valorizado pela escola, não passa de uma codificação taxonômica de formas linguísticas tidas como belas por terem figurado na escrita de cânones da literatura. Quando falamos de uso, em específico do uso público da língua em situações altamente monitoradas, estamos falando da norma culta. Essa diferenciação entre norma-padrão e norma culta não é feita pelos documentos oficiais de currículo. Como consequência, o leitor não-versado na literatura sociolinguística pode vir a entender que o ensino de língua materna deve se pautar pela norma-padrão. Isso é equivocado, pois a concepção de língua defendida pelos documentos oficiais, como mostraremos, vê na interação social o motivo maior dos atos de linguagem. A norma-padrão, porque é artificial, não é verificável nas interações sociais. Zilles (2008), por sua vez, destaca que não podemos dissociar a língua das práticas sociais dos falantes no uso que dela fazem seja oral ou escrito. Uma vez que a língua só existe de fato e de forma plena no seio da vida social, desvinculá-la de seu contexto de uso, da ocasião, do propósito, da relação entre os interlocutores (“quem disse o que a quem”), é tirarlhe a razão de ser. Ainda de acordo com a autora, saber uma língua implica ter a capacidade de interpretar e de fazer uso dela de acordo com o contexto sociointeracional. Para aprender uma língua, é necessário aprender a participar desses usos, que são co-construídos a cada interação social. O usuário da língua monitora mais ou menos a sua produção linguística, conforme a necessidade, levando em conta a situação de interlocução. O aluno, portanto, é plenamente capaz de selecionar o grau de monitoramento adequado a cada situação de interlocução. Para o educador atento à variação linguística, esse pode ser um ponto de partida para o trabalho que busque a ampliação da mobilidade sociolinguística do aluno. Além dessa, há outras premissas fundamentais ao pensarmos em um ensino que busque promover uma pedagogia da variação. Dentre as mencionadas por Zilles (2008), 4 destacamos o fato de que todas as línguas variam no tempo e no espaço, seja este geográfico, social ou sociointeracional e de que a mudança linguística produz diferenças, que não resultam nem em evolução nem em degradação da língua. Sob esse ponto de vista, é necessário que estejamos conscientes de que toda variedade linguística possui uma organização, uma gramática. Obviamente, isso vai contra o senso comum, que diz que somente a norma-padrão tem gramática, e que essa gramática só tem regras categóricas. Esse senso comum vem sendo perpetrado historicamente com a ajuda da escola, que tem ensinado a norma-padrão como sinônimo de língua portuguesa – um equívoco que está na base do preconceito linguístico, pois faz tomar as regras da norma-padrão como as únicas possíveis em qualquer situação de uso da língua. Nesse processo, de acordo com Faraco (2008), surge a norma curta – isto é, os falantes de norma culta tomam as regras prescritas pela tradição gramatical para a normapadrão como regras absolutas para todos os usos linguísticos e, no afã de se diferenciarem dos falantes de variedades populares, utilizam essas regras como instrumento de discriminação social. Entretanto, como poucos consultam bons instrumentos normativos (i.e. instrumentos normativos produzidos por reconhecidos filólogos e estudiosos da língua) para verificar tais regras, os que promovem a discriminação social o fazem por meio da norma curta; em outras palavras, se baseiam em mitos amplamente difundidos sobre a “norma culta”, mas já revisados pelos nossos melhores dicionários e gramáticas com base na norma culta real. Mitos como os que recaem sobre a regência do verbo namorar: para a norma curta, namorar é verbo transitivo direto, ou seja, se diz que João namora Maria. No entanto, está consagrada na norma culta a regência transitiva indireta, moldada na regência de outros verbos do mesmo campo semântico, como casar com e noivar com, ou seja, para os letrados urbanos de classe média ou alta em situações monitoradas, João namora com Maria. Essas picuinhas gramaticais têm nos afastado da construção de uma pedagogia que leve em conta a variação linguística. É como se tudo que o aluno, sua família, sua comunidade fala/escreve, fosse pouco importante para a escola porque é dito em uma variedade linguística popular. É a partir dessas considerações que começamos a apresentar e discutir o que está posto no texto dos PCN, formulados com o objetivo de criar suporte para a prática de ensino do professor de língua portuguesa. Começamos considerando a questão da variação linguística nos PCN para o ensino fundamental (BRASIL, 1998) para em seguida problematizar as mesmas questões nos PCN para o ensino médio (BRASIL, 2000). 5 2 PCNEF: concepções de língua e de variação linguística Desde logo cumpre esclarecer que os PCN reconhecem a língua como um conjunto de variedades, o que vai ao encontro do proposto por Faraco (2008) e Zilles (2008). A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa. Assim, quando se fala em Língua Portuguesa está se falando de uma unidade que se constitui de muitas variedades. (BRASIL, 1998, p. 29). Quando observamos os usos da língua, vemos que a variação é sistemática: não podemos fazer qualquer coisa com a língua e temos tendências à escolha de certas variantes dados determinados fatores sociais. Além disso, a variação é geral: todos variamos nossos usos linguísticos, mesmo que conheçamos a fundo as prescrições tradicionais, mesmo que estejamos produzindo um texto altamente monitorado. Isso porque nossas escolhas linguísticas são feitas em função das imagens que fazemos de nossos interlocutores, das imagens que fazemos de nós mesmos, do nosso conhecimento sociolinguístico, etc. Por isso, a noção de língua única e invariável é inadequada para o ensino de língua, pois tende a estigmatizar os usos linguísticos dos falantes de variedades populares e a reduzir o ensino à dicotomia pouco produtiva entre o certo e o errado. Essa dicotomia simplista entre o certo e o errado só prejudica o ensino adequado da língua. Os PCN fazem a tentativa de reconhecer que há uma distinção entre a norma prescrita na gramática e a norma culta e que não se pode mais tomar a primeira como modelo no ensino, pois estaríamos estigmatizando as variedades não-padrão e corroborando o preconceito linguístico: não se pode mais insistir na idéia de que o modelo de correção estabelecido pela gramática tradicional seja o nível padrão de língua ou que corresponda à variedade lingüística de prestígio. Há, isso sim, muito preconceito decorrente do valor atribuído às variedades padrão e ao estigma associado às variedades não-padrão, consideradas inferiores ou erradas pela gramática. (BRASIL, 1998, p. 31) Essa passagem, como vemos, no entanto, produz uma confusão entre os termos “nível padrão de língua”, “variedade linguística de prestígio” e “variedades padrão”. O trecho afirma que a gramática tradicional não propõe o modelo de um “nível padrão de língua” ou de uma “variedade linguística de prestígio”. Por outro lado, também não há indicações sobre o que seria a “variedade linguística de prestígio” nem o que seriam as “variedades padrão” (nem de quais seriam as diferenças entre elas). 6 Essencialmente, utilizando a terminologia que elegemos para nosso trabalho, diríamos que falta estabelecer claramente a distinção entre norma-padrão e norma culta. Essa distinção explica porque “o modelo de correção estabelecido pela gramática tradicional” não corresponde “à variedade linguística de prestígio”: a tradição gramatical propõe uma normapadrão, i.e. uma codificação taxonômica de certas formas linguísticas (ainda que nossos melhores instrumentos normativos tenham avançado muito a partir do momento em que passaram a incorporar fenômenos linguísticos de nossa norma culta real às prescrições tradicionais); ao mesmo tempo, os falantes urbanos letrados em situações de interlocução altamente monitoradas usam alguma das variedades da norma culta, que são prestigiadas por causa de sua associação a esses falantes. Por sua vez, as “variedades não-padrão”, nos termos dos PCN, são estigmatizadas exatamente por sua associação às camadas mais baixas da hierarquia social. Na verdade, não há em lugar algum do documento uma clara distinção entre normapadrão e norma culta, o que sugere que a gramática tradicional seja um instrumento plenamente adequado ao ensino de língua. Essa sugestão, todavia, deve ser pensada criticamente, dadas as inúmeras insuficiências teóricas e metodológicas que se tem apontado na tradição gramatical (ver Perini, 2000 e Hauy, 1987) e dada a enorme distância que há entre o prescrito e os fenômenos de fato verificáveis nos usos linguísticos monitorados dos falantes urbanos letrados em situações de interlocução altamente monitoradas – a norma culta real. Ainda sobre a presença da tradição gramatical em sala de aula, os PCN (BRASIL, 1998, p. 17) lembram que o ensino de língua portuguesa, orientado pela perspectiva gramatical, pareceu adequado durante longos anos, uma vez que os alunos que frequentavam a escola falavam variedades linguísticas bastante próximas da norma culta e traziam representações de mundo e de língua semelhantes às que eram oferecidas por livros e textos didáticos. Entretanto, com a democratização do acesso à educação formal, alunos que se expressam em variedades bastante diversas das cultas passaram a frequentar a escola. É preciso, portanto, proporcionar um ensino da língua que leve em conta as diferentes variedades linguísticas. Nessa proposta de ensino não há espaço para a excessiva valorização da tradição gramatical, uma vez que seus preceitos se reduzem a uma metalinguagem que pouco informa ao aluno sobre os usos da língua. Mais interessante seria observar os usos da língua na sua circulação social em textos orais e escritos. A partir dos textos é possível montar um trabalho que leve os alunos a refletirem sobre as formas linguísticas empregadas, comparando, inclusive, fenômenos linguísticos da norma culta e de variedades linguísticas populares (como no caso da concordância verbal). Essa proposta se 7 encontra nos PCN, que afirmam: “Pode-se dizer que hoje é praticamente consensual que as práticas devem partir do uso possível aos alunos para permitir a conquista de novas habilidades lingüísticas, particularmente daquelas associadas aos padrões da escrita.” (BRASIL, 1998, p. 18). Ora, se os alunos usam variedades linguísticas em que verbo e sujeito raramente concordam, é papel da escola oferecer a eles a oportunidade de aprenderem uma variedade em que a concordância verbal tenda a acontecer, pois é em variedades assim que o debate público acontece. Também diremos que, assim, lidando com diferentes variedades linguísticas de um ponto de vista científico, estaremos contribuindo para o combate ao preconceito linguístico. Ainda mais: é importante perceber que a língua é viva e que é pelo uso que fazemos dela, na variedade em que nos expressamos, que estaremos construindo significações únicas de nós mesmos e da sociedade em que vivemos: Nessa perspectiva, língua é um sistema de signos específico, histórico e social, que possibilita a homens e mulheres significar o mundo e a sociedade. Aprendê-la é aprender não somente palavras e saber combiná-las em expressões complexas, mas apreender pragmaticamente seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e interpretam a realidade e a si mesmas. (BRASIL, 1998, p. 21) Daí se dizer que não basta ensinar o código linguístico. É necessário, nessa perspectiva, que se insiram os alunos em práticas sociais associadas à cultura escrita. O aluno deve aprender a compreender e a produzir diferentes textos; para isso, deve-se lhe oferecer acesso aos bens da cultura escrita, de modo que ele possa vir a participar em esferas de atuação social nas quais eles são valorizados. O código linguístico é, em grande parte, já sabido pelos alunos. Ao professor caberia ensinar os fenômenos linguísticos que se manifestam diferentemente em variedades cultas e populares, como o caso da concordância nominal: enquanto as variedades da norma culta tendem a marcar o plural em todos os elementos do sintagma nominal, as variedades populares tendem a marcar o plural apenas no primeiro elemento do sintagma. Isso justificaria uma atenção especial a esse fenômeno nas práticas de reflexão linguística em sala de aula, não para “corrigir a língua do aluno”, mas para oferecer a ele a oportunidade de aprender outra variedade linguística. É importante observar que falamos de reflexão linguística, isto é, observação sistemática de fenômenos linguísticos que concorrem para a construção de sentido em textos 8 específicos. Nesse sentido, não é mais possível pensar um ensino de língua que não esteja baseado nos usos que o falante faz dela em suas práticas sociais: Assim, não se justifica tratar o ensino gramatical desarticulado das práticas de linguagem. É o caso, por exemplo, da gramática que, ensinada de forma descontextualizada, tornou-se emblemática de um conteúdo estritamente escolar, do tipo que só serve para ir bem na prova e passar de ano, uma prática pedagógica que vai da metalíngua para a língua por meio de exemplificação, exercícios de reconhecimento e memorização de terminologia. (BRASIL, 1998, p. 28) Isso não significa, no entanto, que a metalinguagem gramatical está de todo descartada. A metalinguagem tem seu lugar garantido em sala de aula na medida em que auxilia a manipular os fenômenos linguísticos tematizados durante a reflexão linguística. O que não se pode fazer é deixar que a aula de língua portuguesa se torne sinônimo de aulas de metalinguagem gramatical, pois o conhecimento da metalinguagem em si não parece ser capaz de auxiliar na construção de um conhecimento acerca dos usos da língua. A reflexão linguística, para caracterizar-se como reflexão, deve partir da língua em uso nos textos eleitos para a leitura em sala de aula e visar ao uso da língua nos textos que são produzidos pelos alunos. Por fim, os PCN promovem uma reflexão acerca das práticas de linguagem dos adolescentes: Finalmente, é preciso considerar o fato de que os adolescentes desenvolvem um tipo de comportamento e um conjunto de valores que atuam como forma de identidade, tanto no que diz respeito ao lugar que ocupam na sociedade e nas relações que estabelecem com o mundo adulto quanto no que se refere a sua inclusão no interior de grupos específicos de convivência. Esse processo, naturalmente, tem repercussão no tipo de linguagem por eles usada, com a incorporação e criação de modismos, vocabulário específico, formas de expressão etc. São exemplos típicos as falas das tribos, grupos de adolescentes formados em função de uma atividade (surfistas, skatistas, funkeiros etc.). (BRASIL, 1998, p. 47) De fato, as práticas sociais adolescentes (inclusive sua prática linguística) concorrem para a construção de identidades, filiação a grupos sociais, contestação de valores e crenças, etc. Isso deve estar claro para o professor, que, ao entrar em sala de aula, encontra uma série de variedades linguísticas cumprindo um papel importante na socialização dos alunos. Um professor que não compreender isso vai se desesperar frente às “deturpações do idioma” perpetradas pelos alunos. O ensino da norma-padrão, tradicionalmente valorizado pela escola, se torna ainda mais inócuo: a grande distância entre a norma-padrão e as variedades faladas pelos alunos aumenta ainda mais na adolescência, o que só convencerá os alunos de que 9 “português é difícil”, de que eles “não sabem português”, etc.; também, a tentativa da imposição da norma-padrão sobre as variedades linguísticas dos alunos reduz sua mobilidade sociolinguística, pois, na medida em que se insiste sobre o mito de que só há uma forma correta de falar, se está condenando as formas linguísticas eleitas pelos alunos para interagirem entre si, quando é claro que elas são plenamente adequadas para os empregos que lhes dão. Entretanto, pode-se criticar os termos em que essa discussão é colocada. Sugerir que as variedades linguísticas dos adolescentes incorporam “modismos” pode ser interpretado como se as variedades fossem em si modismos, o que sugere que elas são “coisa de adolescente”, que “adultos não variam”, o que, por sua vez, sugere que os adolescentes são seres programados para adquirir a língua dos adultos tal qual os adultos a falam, sem que haja qualquer possibilidade de mudança dessa língua adulta, há muito estabelecida. Contudo, mais adequado seria entender que a língua dos adolescentes está em constante mudança, e, à medida que eles forem expostos ao debate público, eles vão aprender os traços linguísticos relevantes para sua inserção nesse debate – o que não significa de modo algum que eles vão fazer exatamente os mesmos usos linguísticos de seus pais. Como exemplo, podemos pensar na gramaticalização de a gente como pronome de primeira pessoa do plural: dados do NURC e do VARSUL de falantes urbanos altamente letrados (todos com curso superior completo) analisados por Zilles (2007 apud Zilles 2008) mostram que falantes nascidos no primeiro quarto do século passado apresentam baixos percentuais de uso de a gente (apenas 24%) em comparação com o uso de nós, enquanto aqueles nascidos entre 1926 e 1950 chegam a 67% de uso de a gente, e os nascidos entre 1951 e 1975 atingem 82%. Para conduzir o aluno ao desenvolvimento de sua competência linguístico-discursiva em diversos contextos sociointeracionais, é importante, portanto, compreender os usos que o adolescente faz da língua para que, ao sentir que sua variedade não é alvo de preconceito, o aluno possa abrir-se para outros usos orais e escritos da língua. 3 PCNEM: concepção de língua(gem) Os PCNEM assumem que a linguagem é “a capacidade humana de articular significados coletivos e de compartilhá-los, em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade.” (BRASIL, 2000, p. 5) Ora, colocada dessa forma, a definição de linguagem oferecida pelo documento se funda sobre a variabilidade do fenômeno. Isto é: as comunidades humanas, porque essencialmente 10 complexas e heterogêneas, necessitam de sistemas linguísticos também complexos e heterogêneos, capazes de articular os significados relevantes para essas comunidades. Afinal de contas, de acordo com os próprios PCNEM, “A principal razão de ser de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido.” (BRASIL, 2000, p.5). A produção de sentidos se dá entre os sujeitos que inter-agem por meio da linguagem. E é na interação que esses sujeitos criam a linguagem verbal, que surge prenha de avaliações, de visões de mundo. Por isso, quando os sujeitos se comunicam, eles negociam significados, negociam visões de mundo. A língua, por sua vez, é definida pelo documento como um “produto humano e social que organiza e ordena de forma articulada os dados das experiências comuns aos membros de determinada comunidade linguística.” (BRASIL, 2000, p.5) Apesar de o documento não tratar da configuração da comunidade linguística, é importante que fique claro que a comunidade linguística é complexa e heterogênea. Isso significa que a língua organiza e ordena diferentes experiências, diferentes visões de mundo, de uma maneira que a variabilidade é fundamental para a compreensão da língua. Se assumirmos que as comunidades linguísticas são homogêneas, estaremos esperando que as línguas sejam únicas e homogêneas, o que sabemos que não é verdade. Sobre o código (linguístico) é importante ler a seguinte passagem: Nas interações, relações comunicativas de conhecimento e reconhecimento, códigos, símbolos que estão em uso e permitem a adequação de sentidos partilhados são gerados e transformados e representações são convencionadas e padronizadas. Os códigos se mostram no conjunto de escolhas e combinações discursivas, gramaticais, lexicais, fonológicas, gráficas etc. (BRASIL, 2000, p. 6) Isso quer dizer que, quando sujeitos interagem, eles selecionam as marcas linguísticas adequadas à interação. Essas marcas linguísticas indiciam o que é feito entre os interagentes, que visões de mundo de cada um sustenta, quais são as posições sociais relativas entre eles, etc. O conhecimento do código linguístico, portanto, inclui o conhecimento das formas culturais de interação, dos valores sociais das formas linguísticas, dos usos sociais de elementos linguísticos, etc. Ou seja, o código linguístico não é um código fixo idêntico para todos os membros da comunidade linguística. Imaginar que a língua é um código fixo e idêntico para todos os sujeitos é empobrecer nosso conhecimento linguístico. Também por isso, os PCNEM afirmam que “o ato de fala pressupõe uma competência social de utilizar a língua de acordo com as expectativas em jogo” (BRASIL, 2000, p. 6). Deve-se conhecer os meios socioculturais que temos de produzir textos que serão 11 adequados às esferas comunicativas nas quais participamos. Do ponto de vista do ensino de língua materna, não basta, portanto, ensinar aos alunos a norma-padrão. Em primeiro lugar, a norma-padrão, como vimos, não é uma variedade atestável em nossas interações sociais. Por isso mesmo, não parece ser adequado que ela esteja no centro das aulas de português. Mais adequado seria focar o ensino de língua na norma culta, que é atestada em uma série de textos, entre os quais encontramos os artigos de opinião, os requerimentos, os textos científicos, etc. Mas conhecer esses textos todos não é apenas conhecer a norma culta; conhecer esses textos todos inclui o conhecimento de uma série de elementos macro-textuais que os integram, uma série de temas que são comumente abordados por esses textos, as esferas de atuação social em que eles circulam, os produtores e os receptores típicos desses textos, etc. Por isso os PCNEM afirmam que em cada ato de fala pressupõe o conhecimento das expectativas sociais em jogo: a princípio, não vamos ser bem sucedidos na conversa de bar sobre o último jogo de futebol de nosso time se nos esforçarmos na direção da norma culta (a menos que estejamos buscando algum efeito de sentido específico com isso); por outro lado, também não seremos plenamente bem sucedidos na apresentação de um trabalho científico em um congresso se falarmos uma variedade típica das camadas mais populares dos grandes centros urbanos (a menos, novamente, que isso venha a integrar nosso discurso com vistas a um efeito de sentido específico). As variedades linguísticas que empregamos em nossas interações sociais indiciam o que se está fazendo conjuntamente na interação. Elas integram os esquemas interpretativos que conhecemos, auxiliando a intercompreensão. Por isso, o foco da aula de português não é a língua, desprendida das práticas sociais; o foco da aula de português é o texto em sua circulação social. Dentro dessa perspectiva, os PCNEM passam a listar competências mínimas que os alunos de ensino médio deveriam, a princípio, adquirir para poder prosseguir com seus estudos. Analisaremos as mais relevantes do ponto de vista de uma pedagogia da variação na seção que segue. 3.1 PCNEM: competências relevantes para uma pedagogia da variação linguística Do ponto de vista de uma pedagogia da variação linguística, vale a pena comentar as seguintes competências propostas pelos PCNEM como mínimas para que um aluno do ensino médio seja capaz de continuar seus estudos: 12 1) Compreender e usar os sistemas simbólicos das diferentes linguagens como meios de organização cognitiva da realidade para a constituição de significados, expressão, comunicação e informação. (BRASIL, 2000, p. 6) Entender que a linguagem organiza nossa realidade por meio da expressão de nossa visão de mundo demanda que compreendamos que a linguagem varia para se adequar a nossas diferentes visões de mundo. Também nós nos aproveitamos dessa característica da linguagem na tentativa de produzir sentido em nossas interações. Por isso, temos insistido tanto na inocuidade do ensino da norma-padrão. Não sendo uma variedade atestável do português do Brasil, a norma-padrão não se presta ao ensino que busca atar língua e práticas sociais. E mais: a própria norma culta deve ser ensinada em uma perspectiva crítica: não como a forma correta de falar e escrever para todas as situações comunicativas, mas como adequada àquelas situações em que se exige alto grau de monitoramento dos falantes letrados. Também por isso deve-se mostrar que a norma culta recebe seu relevo social de sua associação aos falantes mais acima na hierarquia social e, consequentemente, com maior acesso à cultura escrita. Esse reconhecimento nos permite tematizar o baixo valor social de manifestações de linguagem associadas às camadas mais baixas da hierarquia econômica e social, entendendo que essas manifestações não são por si só ruins, feias ou erradas, mas que, como manifestações linguísticas de grupos sociais menos favorecidos e menos representativos do ponto de vista das relações de poder, elas recebem alta carga de estigma social. Para tanto, é necessário que se examine “o caráter histórico e contextual de determinada manifestação de linguagem” para que se entendam “as razões do uso, da valoração, da representatividade, dos interesses sociais colocados em jogo, das escolhas de atribuição de sentidos, ou seja, a consciência do poder constitutivo da linguagem.” (BRASIL, 2000, p. 7). Novamente, a língua tomada como objeto abstrato, desvinculado das práticas sociais em que emerge, não é adequada para o ensino. Temos que analisar não apenas os fragmentos linguísticos envolvidos na construção do texto que está sendo estudado, mas também sua relação com a construção de sentidos entre interlocutores socialmente situados. Temos que analisar também os termos de sua escolha: que significados veiculam na interação que tentam estabelecer? A que grupos sociais tentam se filiar? De que grupos sociais tentam se distanciar? O que determinadas escolhas formais trazem para o texto? Melhor escrever a reportagem usando “os sem-terra invadiram a propriedade” ou “os sem-terra ocuparam o latifúndio”? Todas essas questões estão envolvidas nas escolhas linguísticas que fazemos para 13 a construção de nossos textos; todas essas questões estão, portanto, na pauta do ensino de língua portuguesa. 2) Analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção. (BRASIL, 2000, p. 8) Do ponto de vista do ensino de língua materna, não se pode tomar o texto como pretexto para o ensino da análise gramatical tradicional. Ao contrário, a análise e a interpretação dos textos que chegam à sala de aula deve ser feita levando em consideração os recursos linguísticos que os compõem em sua relação com as condições de produção e recepção. Assim, artigos de opinião, que, em geral, usam sistematicamente as conjunções (de modo a produzir relações hierárquicas entre ideias, relações de explicação, de conclusão, de adversidade entre proposições, etc.), podem ser usados no ensino de língua para que se produza uma reflexão linguística sobre esses recursos expressivos específicos: as conjunções. Não se trata de fazer análise morfológica tradicional das conjunções empregadas nos textos e ser capaz de diferenciar as conjunções coordenativas adversativas das conjunções subordinativas concessivas, mas de tematizar os usos das conjunções e sua relação com a produção de sentidos em textos como o artigo de opinião. Do mesmo modo, recursos linguísticos variáveis podem ser tematizados em textos concretos. Na leitura e produção de textos monitorados, talvez seja importante tematizar a escolha de “pra eu fazer” em detrimento de “pra mim fazer”, explicitando o alto valor social da primeira forma. Também quando se tematiza a concordância verbal e nominal é importante que se comparem textos escritos monitorados, textos falados monitorados e textos falados não-monitorados. Como a variação deste fenômeno linguístico pode vir a ser alvo de preconceito linguístico, é importante que os alunos compreendam que diferentes textos fazem demandas diferentes quanto à concordância. 3) Confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes linguagens e suas manifestações específicas. (BRASIL, 2000, p. 8) Do ponto de vista de uma pedagogia da variação linguística, essa competência é altamente relevante. Desenvolver nossa competência de confrontar opiniões sobre as manifestações de linguagens, em especial da língua, demanda que nos informemos sobre as 14 linguagens que criticamos. Esse movimento em busca da informação sobre a língua nos oferecerá oportunidades de questionar nossos preconceitos, nossas certezas. Em especial, do ponto de vista da variação linguística, a busca de conhecimento sobre a língua nos permite observar que a variação é geral e sistemática; isto é, todos os falantes variam seus usos linguísticos, e a variação leva em conta condicionamentos linguísticos e extralinguísticos que criam o contexto para sua ocorrência. Também é importante que atentemos para nossos próprios usos linguísticos, de modo a perceber que nós também os variamos. Esclarecendo esses pontos estaremos contribuindo para um confronto de opiniões acerca de diferentes manifestações linguísticas menos preconceituosas. 4) Respeitar e preservar as diferentes manifestações da linguagem utilizadas por diferentes grupos sociais, em suas esferas de socialização; usufruir do patrimônio nacional e internacional, com suas diferentes visões de mundo; e construir categorias de diferenciação, apreciação e criação. (BRASIL, 2000, p. 9) Essa competência se relaciona diretamente com a anterior: o respeito às diferentes manifestações linguísticas exige que possamos confrontar nossas opiniões a respeito delas, o que, por sua vez, demanda que conheçamos as manifestações linguísticas que criticamos. O respeito às manifestações linguísticas é corolário do conhecimento sobre elas, portanto. E o conhecimento sobre elas inclui saber que elas são representativas de grupos sociais, que a escolha de uma ou outra leva à identificação do falante com um ou outro grupo social, que a norma culta não é o único modo certo de falar e de escrever, etc. Na verdade, neste ponto o documento sugere que “a variante padrão [norma culta] pode ser comparada com as outras variantes em seus aspectos fonológicos, sintáticos, semânticos.” Isso porque “ao mesmo tempo que o aluno conhece as várias manifestações, como produto de diferentes esferas sociais, deve aprender a respeitar as linguagens. Em lugar de criar fossos entre as manifestações, esta proposta indica a criação de elos entre elas.” (BRASIL, 2000, p. 9) A superação dos fossos entre as variedades linguísticas se dá por meio da compreensão de que todas são formal e funcionalmente plenas: por um lado, se as analisarmos do ponto de vista do sistema linguístico, notaremos que todas as variedades apresentam uma organização estrutural (são formalmente plenas); por outro lado, do ponto de vista dos usos que se fazem de cada variedade, observamos que elas dão conta de todos os usos a que são submetidas (são funcionalmente plenas). 15 5) Utilizar-se das linguagens como meio de expressão, informação e comunicação em situações intersubjetivas, que exijam graus de distanciamento e reflexão sobre os contextos e estatutos dos interlocutores; e saber colocar-se como protagonista do processo de produção/recepção. (BRASIL, 2000, p. 10) Para utilizarmos a língua adequadamente com relação à situação de interlocução devemos ser capazes de nos distanciar dela para refletir sobre quem são, quais suas posições com relação a nós e que imagens queremos que façam de nós nossos interlocutores. Sendo capazes de refletir sobre isso, poderemos escolher adequadamente as variedades linguísticas que empregaremos na interlocução, tornando-nos protagonistas do processo de produção textual. Do ponto de vista do ensino de língua materna, é importante que entendamos que sempre que produzimos um texto fazemos escolhas linguísticas. E, quanto mais informadas essas escolhas forem, mais adequadamente diremos o que buscamos dizer. Na escola, portanto, deve-se buscar oferecer aos alunos oportunidades de aprendizagem de diferentes formas linguísticas (de preferência, formas às quais eles já não tenham acesso, como, para a maior parte da população escolar de baixa renda, as da norma culta), de modo que os alunos possam vir a escolher quais formas mais se adéquam à situação de interlocução. De acordo com os PCNEM: Às escolhas individuais impõem-se os limites do social, que envolvem esquemas cognitivos complexos daqueles que podem escolher, porque tiveram a oportunidade de aprender a escolher. Para a maioria, a aprendizagem dessas disposições na escola é fundamental. (BRASIL, 2000, p. 10) 6) Compreender e usar a Língua Portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora da organização de mundo e da própria identidade. (BRASIL, 2000, p. 10) Para atingirmos essa compreensão, não podemos entender a língua como um sistema homogêneo abstrato, pois a fixidez dessa concepção de língua impõe restrições às possibilidades do sistema linguístico de se adequar aos empregos que se lhe dá. Uma visão de língua como conjunto de variedades é bastante mais adequada, pois abre espaço para a compreensão dos diferentes usos linguísticos em diferentes contextos. Abre espaço também para o entendimento das nossas escolhas linguísticas como escolhas que 16 propõem e sustentam diferentes identidades sociais, escolhas que nos identificam ou desidentificam com diferentes grupos sociais. 4 Críticas e questionamentos Neste ponto de nosso texto queremos pensar algumas questões que emergiram da leitura dos PCN e dos PCNEM que fizemos, buscando subsídios para uma pedagogia da variação: (i) o tratamento dos conceitos tomados da teoria sociolinguística é, pelo menos, superficial, deixando lacunas no conhecimento necessário à aplicação das propostas dos PCN e PCNEM; (ii) a aplicação das propostas feitas pelos documentos com relação à variação exige treinamento em uma pedagogia da variação linguística, o que não parece ser oferecido aos professores, nem a nível de formação prévia, nem a nível de formação continuada. Para exemplificar a crítica (i), tomemos o excerto dos PCN para o ensino fundamental criticado à página 4. Naquele excerto, identificamos um problema relacionado à não diferenciação entre norma-padrão e norma culta. No trecho que segue, por outro lado, a língua portuguesa é apresentada como a “única língua nacional”, o que contribui para o mito de que não há outras línguas no Brasil. Entretanto, sabemos que há dezenas de línguas de imigração e centenas de línguas indígenas. Além disso, a variação linguística é, antes de mais nada, identificada com a variação diatópica, muito embora saibamos que o eixo diatópico seja apenas um dos eixos nos quais a língua varia. Finalmente, se afirma que as variedades linguísticas “se multiplicam em uma mesma comunidade de fala”, sem que haja quaisquer considerações acerca dos diferentes eixos em que a língua varia. Vejamos: Embora no Brasil haja relativa unidade lingüística e apenas uma língua nacional, notam-se diferenças de pronúncia, de emprego de palavras, de morfologia e de construções sintáticas, as quais não somente identificam os falantes de comunidades lingüísticas em diferentes regiões, como ainda se multiplicam em uma mesma comunidade de fala. (BRASIL, 1998, p. 29) Sendo a variação diatópica a mais evidente socialmente, sua utilização para exemplificar o fenômeno da variação nos PCN acaba por legitimar estereótipos linguísticos de variedades baianas, gaúchas, paulistas, etc., abordados sistematicamente em livros didáticos, 17 por exemplo. Estereótipos, contudo, não auxiliam na compreensão do fenômeno da variação de um ponto de vista objetivo, pois, ao generalizar determinadas características linguísticas das variedades estereotipadas, obscurecem outras características, justificando uma visão equivocada acerca da variação diatópica. Some-se a isso a falta de exemplificação da variação no eixo diastrático, no eixo diassexual, no eixo diagenérico, no eixo diageracional, etc., que sugere que a variação é encontrável apenas no eixo diatópico. Além disso, a afirmação não explicada de que “em um mesmo espaço social convivem mescladas diferentes variedades linguísticas, geralmente associadas a diferentes valores sociais” (BRASIL, 1998, p. 29) e a já referida falta de exemplificação dos diferentes eixos em que a língua varia tornam o discurso acerca da variação linguística dogmático: como leitores, somos obrigados a aceitar uma série de proposições acerca da variação linguística sem que haja qualquer evidência para que as julguemos verdadeiras. Contudo, como sociolinguistas, sabemos que os diferentes eixos em que a língua varia são amplamente estudados tanto no exterior quanto no Brasil, e poderiam ser amplamente exemplificados no texto dos PCN e PCNEM. Para pensar a questão que levantamos em (ii), sobre a falta de preparo dos professores, vamos tomar o seguinte excerto dos PCNEM: O desenvolvimento da competência lingüística do aluno no Ensino Médio, dentro dessa perspectiva, não está pautado na exclusividade do domínio técnico de uso da língua legitimada pela norma padrão, mas, principalmente, no saber utilizar a língua, em situações subjetivas e/ou objetivas que exijam graus de distanciamento e reflexão sobre contextos e estatutos de interlocutores – a competência comunicativa vista pelo prisma da referência do valor social e simbólico da atividade lingüística e dos inúmeros discursos concorrentes. (BRASIL, 2000, p. 11) Esse excerto demanda que o leitor esteja familiarizado com, pelo menos, os seguintes conceitos: competência linguística, língua, norma-padrão, contextos, interlocutores, competência comunicativa, atividade linguística, discurso. Do ponto de vista dos pesquisadores em ensino de língua, talvez esses conceitos estejam relativamente bem assentados – mesmo que eles tenham nascido em sub-áreas distintas da linguística, como o conceito de competência linguística, que se originou na linguística gerativa, e o conceito de norma-padrão, que advém da sociologia da linguagem. Já, do ponto de vista do professor de língua, a leitura de um texto que mobilize tantos conceitos, advindos de tantas áreas distintas, pode vir a se tornar um problema. O professor, ainda que idealmente deva conhecer e manipular conceitos como os de texto, língua, linguagem, etc., não tem obrigação de conhecer 18 a fundo todas as áreas da línguística que possam oferecer-lhe subsídios para uma prática informada. Nesse sentido, sem que se aborde uma pedagogia da variação linguística a nível de formação do professor de língua, a simples leitura dos PCN e dos PCNEM não garante a aplicabilidade das propostas oferecidas pelos documentos. Por isso, esperamos que este texto tenha contribuído para pensar subsídios para uma pedagogia da variação a partir dos documentos oficiais que parametrizam o currículo nacional de língua materna. 5 Considerações finais Neste texto, buscamos investigar se e como os documentos oficiais acerca do currículo escolar de língua materna (PCN e PCNEM) trabalham com a noção de variação linguística. Nossa investigação mostrou que ambos os documentos trabalham com concepções de língua que se fundam sobre a variabilidade dos fenômenos linguísticos. Nos PCN (BRASIL, 1998), identificamos uma preocupação explícita com a questão da variação linguística, o que leva o documento a questionar explicitamente a dicotomia certo x errado. A própria tradição gramatical é questionada do ponto de vista do ensino de língua: mais importante que ensinar as análises gramaticais tradicionais seria ensinar a usar a língua em variadas situações de interlocução. O ensino de língua voltado para o uso, em especial o uso da língua em situações públicas altamente monitoradas, exige que se faça uma distinção entre a norma culta (entendida como os usos linguísticos normais em situações monitoradas entre os falantes mais acima na hierarquia social e, consequentemente, com maior acesso à cultura letrada) e a norma-padrão (entendida como uma classificação taxonômica das formas linguísticas tidas como belas por terem figurado na escrita dos cânones literários). Tal distinção não é claramente feita em qualquer ponto do documento. O documento também demanda que o ensino parta daquilo que é conhecido pelos alunos. Do ponto de vista de uma pedagogia da variação, isso significa que o ensino de língua deve partir das variedades linguísticas já conhecidas pelos alunos e visar ao ensino da norma culta. Os PCN chegam a sugerir que, no processo de ensino-aprendizagem, se comparem recursos expressivos de diferentes variedades da língua, não com o objetivo de evidenciar “o quão errada” a língua do aluno é, mas com o objetivo de mostrar a sistematicidade da variação linguística. Como exemplo, tomemos o caso da concordância nominal, que se manifesta diferentemente em textos escritos altamente monitorados, em textos orais monitorados e em textos orais pouco monitorados. Esse tipo de reflexão linguística não se confunde com a 19 análise gramatical tradicional. Pelo contrário: a reflexão linguística é a observação sistemática de recursos linguísticos que concorrem para a construção de sentidos em textos específicos. A reflexão, portanto, parte dos usos linguísticos identificados nos textos lidos em sala de aula e visa ao uso dos mesmos recursos em textos produzidos pelos alunos. Por fim, os PCN se voltam às práticas linguísticas adolescentes, atentando para o fato de que as variedades linguísticas usadas por esse grupo social são muito distintas daquelas prescritas pela norma-padrão. Essa distância pode vir a criar empecilhos para o ensinoaprendizagem de língua materna, mas uma pedagogia atenta às questões de variação linguística busca acolher os usos linguísticos dos alunos de modo que, não sendo acusados de ignorância, por desconhecerem a norma-padrão, possam abrir-se para a norma culta. Por sua vez, os PCNEM concebem linguagem e língua como fundamentalmente variáveis. Linguagem é definida como a capacidade de articular significados coletivos em sistemas arbitrários de representação que variam de acordo com as experiências sociais. Ora, uma sociedade complexa e heterogênea como a nossa exige que os sistemas de representação que criamos sejam complexos e heterogêneos, comportando a variedade e a variabilidade de visões de mundo e de avaliações sociais que manifestamos em nossas interações. Também é importante perceber que o documento estabelece como parte de nosso conhecimento linguístico o conhecimento da variação linguística (responsável, entre outras coisas, por indiciar a atividade linguística a que visamos em nossas interações), das formas culturalmente construídas de interação social, dos valores sociais das formas linguísticas que usamos, etc. Dessa forma, o ensino de língua como proposto pelo documento toma como unidade de ensino o texto em sua circulação social. Buscamos também relacionar as competências listadas pelo documento a uma pedagogia da variação linguística, mostrando que o documento prevê um trabalho de adequação das formas linguísticas empregadas às situações interlocutivas, o que passa pelo reconhecimento dos interlocutores, pela consciência dos objetivos da interlocução, pelo conhecimento de uma variedade de recursos linguísticos, etc. Por fim, levantamos duas críticas aos PCN e PCNEM: a primeira, de que os documentos oferecem um tratamento, no mínimo, superficial aos conceitos advindos da teoria da variação linguística, e a segunda, de que os documentos fazem uso de tantos termos de diferentes áreas da linguística e da linguística aplicada que sua leitura exige profundo conhecimento de todas as áreas que contribuíram para sua construção. Essas críticas mostram que os PCN e os PCNEM, apesar de serem capazes de oferecer subsídios para uma pedagogia 20 da variação linguística, o fazem de um modo confuso, o que coloca em cheque a aplicabilidade das propostas. Referências bibliográficas BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. ______. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio: Parte II – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2000. FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. HAUY, A. B. Da necessidade de uma gramática-padrão da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 1987. PERINI, M. A. Para uma nova gramática do português. São Paulo: Ática, 2000. ZILLES, A. M. S.. A variação no português falado e escrito no Brasil. In.: BRASIL. Secretaria de Educação a Distância. Português: um nome, muitas línguas. Programa Salto para o futuro: TV escola. Brasília: MEC/SED, 2008.