As mudanças linguísticas nas crônicas do livro “amor é prosa, sexo

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ALMIR GRIGORIO DOS SANTOS
As mudanças linguísticas nas crônicas do livro “amor
é prosa, sexo é poesia: crônicas afetivas” de Arnaldo
Jabor
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ALMIR GRIGORIO DOS SANTOS
As mudanças linguísticas nas crônicas do livro “amor
é prosa, sexo é poesia: crônicas afetivas” de Arnaldo
Jabor
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação
Examinadora
apresentada
da
Pontifícia
à
Banca
Universidade
Católica de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de MESTRE em
LÍNGUA PORTUGUESA, sob a orientação
da Professora Doutora Dieli Vesaro Palma.
SÃO PAULO
2013
Banca Examinadora
______________________________
______________________________
______________________________
Dedico esta dissertação a minha mãe, ao meu tio, a
minha mulher, ao meu filho, a minha orientadora e a
todos os colegas que acreditaram e colaboraram
durante a elaboração deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
A DEUS, por estar sempre ao meu lado, renovando minhas forças dia após dia durante
a Especialização e agora durante o Mestrado.
A minha mãe Sebastiana, pelo carinho, respeito e compreensão.
A minha mulher Fernanda, por não separar de mim.
Ao meu tio Geraldo, que desde cedo ensinou que devemos estudar.
Aos advogados Dr. Paulo de Souza Campos, Dra. Hedila e Dr. Josué Albuquerque, por
corrigirem meus deslizes de Língua Portuguesa, despertarem e incentivarem o gosto
pela leitura.
Ao meu chefe Paulo Rogério (Paulinho), por possibilitar minha participação nos
eventos acadêmicos que acontecessem durante meu horário de trabalho.
À minha orientadora e mentora professora Dieli Vesaro Palma, por acreditar nesse
aluno que a ela se apresentou cheio de falhas e imperfeições, mas com vontade de
aprender a pesquisar.
À banca de qualificação, Jeni Silva Turazza e Elisa Guimarães pelas sugestões e
observações enriquecedoras para a elaboração deste trabalho.
À secretária do Programa de Língua Portuguesa, Lourdes pela disposição e gentileza
para solucionar problemas e esclarecer minhas dúvidas.
À secretária da professora Dieli, Tânia pela gentileza.
Às professoras, Leonor Lopes Fávero e Neusa Barbosa Bastos (Neusinha) e ao
professor Jarbas pelo apoio e o carinho.
À Capes, pelo auxilio financeiro.
RESUMO
O tema desta dissertação é sobre as mudanças linguísticas nas crônicas do livro
“amor é prosa, sexo é poesia: crônicas afetivas” de Arnaldo Jabor. Nesse contexto,
chama a atenção os movimentos que ocorrem na língua em uso comum durante as
interações comunicativas, mas não são abordados pelas gramáticas normativas e a
habilidade que cada falante tem de interagir socialmente com a língua, pois, é o falante
quem organiza o discurso.
Dessa maneira, é um estudo que focaliza a língua em uso comum no dia a dia,
questionando quais seriam as ocorrências de gramaticalização que o cronista usa em
seus textos para manifestar suas intenções comunicativas com seus leitores e quais
seriam os efeitos de sentidos que essas ocorrências, como marcas da língua em uso,
possibilitam. Para isso, devemos considerar dois processos de criação linguística, a
gramaticalização e a lexicalização, abordando o primeiro a mudanças dos itens lexicais
nas construções linguísticas e o segundo é definido como um processo criador de novos
elementos lexicais, modificando ou combinando os elementos já existentes.
Conforme os resultados obtidos, pode-se afirmar que a maneira como o autor
escreve seus textos é como se estivesse conversando com alguém, ele trás a língua em
uso comum no dia a dia para os textos escritos com a intenção de construir sentidos e
manter a interação comunicativa com o seu leitor, uma língua que não é abordada pelas
gramáticas normativas. É a gramática de base funcionalista, a gramaticalização e a
lexicalização que servem de fundamento para essa abordagem, por envolver as relações
lexicais, semânticas, gramaticais, discursivas e estudo da língua em uso real de
comunicação.
PALAVRAS-CHAVE: Mudança Linguística, Gramaticalização, Funcionalismo e
Discursivização.
ABSTRACT
The topic of this dissertation is about the linguistic change in the chronicles of
the book "amor é prosa, poesia é sexo: crônica afetiva" by Arnaldo Jabor. In this
context, it draws attention to the movements that occur in the language in common use
during communicative interactions, but are not approached by normative grammars and
skill that each speaker has to interact socially with the language because it is the
speaker, who organizes the speech.
Therefore, it is a study that focuses on the language in common use in day by
day, questioning what would be the occurrence of grammaticalization the chronicler
uses in his texts to express their communicative intentions with your readers and what
are the effects of these occurrences meaning that, as language marks in use, enable. For
this, we consider two processes of linguistics creation, grammaticalization and
lexicalization, addressing the first to change the lexical items in the language constructs
and the second is defined as a process of creating new lexical elements, modifying or
combining existing elements.
According to the results, it can be said that the way the author writes his texts is
like talking with someone, it brings the language in common use in day by day to texts
written with the intention of building senses and maintaining the communicative
interaction with its reader, a language that is not approached by normative grammars. It
is the functionalist basis grammar, the grammaticalization and lexicalization that fit the
principles for this approach, for it involves lexical relations, semantic, grammatical,
discursives and language study in real use of communication.
KEY-WORDS:
Grammaticalization,
Discoursivization.
Linguistic
Change,
Functionalism
and
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................
01
CAPÍTULO I. GRAMATICALIZAÇÃO.................................................................
08
1.1 HISTÓRICO E CONCEITO DE GRAMATICALIZAÇÃO..........
10
1.2 PRINCÍPIOS DE GRAMATICALIZAÇÃO...................................
21
1.3 CARACTERÍSTICAS DA GRAMATICALIZAÇÃO.................... 24
CAPÍTULO
1.4 MECANISMOS DE GRAMATICALIZAÇÃO..............................
28
1.5 CRITÉRIOS DE ANÁLISE.............................................................
33
II.
FUNCIONALISMO
LINGUÍSTICO
E
LINGUÍSTICA
COGNITIVA............................................................................................................... 36
2.1 CONCEITO DE LINGUÍSTICA FUNCIONAL.............................. 38
2.2 PRINCÍPIOS DA TEORIA DO FUNCIONALISMO...................... 40
2. 2. 1 GRAMÁTICA E COGNIÇÃO................................................. 47
2.3 CONCEITO DE LINGUÍSTICA COGNITIVA............................... 47
2.4 PRINCÍPIOS DA TEORIA DO COGNITIVISMO.......................... 52
2. 4. 1 CATEGORIZAÇÃO................................................................. 52
2. 4. 2 TEORIA DOS PROTOTIPOS................................................. 53
2. 4. 3 ICONICIDADE......................................................................... 54
2. 4. 4 FRAMES E SCRIPTS............................................................... 55
2. 4. 5 TEORIA DOS ESPAÇOS MENTAIS...................................... 56
2. 4. 6 LINGUAGEM CORPORIFICADA.......................................... 57
2.5 METÁFORA..................................................................................... 58
2.6 ENUNCIAÇÃO................................................................................. 60
CAPÍTULO III. ANÁLISE DO CORPUS.................................................................. 64
3.1 ANÁLISE.......................................................................................... 66
3.1.1GRAMATICALIZAÇÃO DOS SUBSTANTIVOS.................... 66
3.1.2 GRAMATICALIZAÇÃO DOS ADJETIVOS............................ 69
3.1.3 GRAMATICALIZAÇÃO DOS VERBOS................................. 71
3.1.4 GRAMATICALIZAÇÃO DOS ADVÉRBIOS.......................... 80
3.1.5 GRAMATICALIZAÇÃO DOS PRONOMES........................... 84
3.1.6 GRAMATICALIZAÇÃO DOS NUMERAIS............................ 85
3.1.7 GRAMATICALIZAÇÃO DAS PREPOSIÇÕES....................... 87
3.2 EXPRESSÕES LEXICAIS............................................................... 88
3.3 DISCURSIVIZAÇÃO....................................................................... 97
3.4 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS............................................... 100
CONCLUSÃO........................................................................................................... 107
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................... 113
ANEXOS................................................................................................................... 118
1
INTRODUÇÃO
O tema desse trabalho é as mudanças linguísticas nas crônicas do livro “Amor é
prosa, sexo é poesia: crônicas afetivas” de Arnaldo Jabor. Ele insere-se na linha de
pesquisa História e Descrição da Língua Portuguesa do Programa de Estudos PósGraduados em Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Quando falamos em língua, imaginamos a fala de um grupo, às vezes dizemos que
uma língua é mais difícil do que a outra, ou que a língua espanhola é mais fácil, pois é
mais parecida com a língua portuguesa. Nosso conceito de fácil ou difícil é baseado
sempre na gramática da língua, mas nunca no movimento que ocorre durante o processo
de interação comunicativa.
A gramática funcional define a língua como sendo um instrumento de interação
social, cuja principal função é a comunicação. Dessa forma, a competência
comunicativa é a habilidade que cada falante tem de interagir socialmente com a língua.
As pessoas valorizam demasiadamente a norma culta, esquecendo-se de prestarem
atenção ao meio social em que estão situadas, ao meio social do qual fazem parte. Elas
não observam a língua em uso no dia a dia, cheia de expressões, funções e sentidos que
fornecem a descrição do funcionamento da língua num dado contexto.
A estrutura de uma língua é motivada pelas diversas situações comunicativas. O
usuário é quem organiza seu discurso de acordo com a aceitação ou não de seu
interlocutor. O objetivo do falante é, em geral, fazer com que o ouvinte mude seu ponto
de vista em relação à informação que está sendo transmitida pelo falante, em outras
palavras, nada mais é do que buscar convencê-lo em relação a algum ponto de vista,
fazendo uso de meios criativos para alcançar seu objetivo, rompendo com as estruturas
existentes e criando novas estruturas, para conseguir mudar o conhecimento do ouvinte.
De acordo com Coseriu (2004, p. 101), “constitui aspecto fundamental da
linguagem o manifestar-se ela sempre como língua: conquanto criação, isto é, produção
contínua de elementos novos, e, portanto, neste sentido, „liberdade‟...”
A língua em uso é um sistema que se adapta de acordo com as necessidades
comunicativas, ou seja, ela sofre alterações continuamente. Este trabalho existe e está
desenvolvido, por conta desses movimentos que existem na língua em uso, mas que a
2
maioria das pessoas os rejeitam, não lhes dão valor, valorizando em contra partida uma
língua que existe, nos manuais de gramática normativa e no imaginário dos usuários,
porque, nas situações quotidianas, o falante desconsidera as mudanças que ocorrem na
língua em uso.
Para Coseriu (1979, p. 33), “a língua não existe senão no falar dos indivíduos, e o
falar é sempre falar uma língua. Como já dizia Platão, o falar é o ato que utiliza palavras
postas à sua disposição pelo „uso‟. E é necessário acrescentar que o ato manifesta
concretamente o uso e, ao manifestá-lo, supera-o e modifica-o.”
Foi pensando nos movimentos que existem na língua em uso e que estão sendo
transferidos para a língua escrita em diversos gêneros, como os anúncios publicitários,
que, em 2004, foi elaborado por Amadora Fraiz Vilar, na PUC/SP, o trabalho A
Multiplicidade de Usos do Numeral: Uma Abordagem Funcionalista. Esse trabalho teve
como objetivo estudar o comportamento do numeral, mostrando como ele está sendo
usado na língua em uso no dia a dia e na Propaganda. Os resultados da pesquisa
mostram que ele distanciou-se muito da noção de quantidade, fato que não é apontado
pela gramática tradicional, nem pelos professores de Língua Portuguesa que insistem
em dizer que o numeral indica quantidade e não outro valor semântico ou outra função,
conforme foi constatado quando cursei o Grupo de Pesquisa: Gramaticalização,
Gramática Emergente, Construção de Sentidos e Ensino da Língua: Estudos de Alguns
Casos de Gramaticalização, ministrado pela Profª. Dra. Dieli Vesaro Palma, na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no segundo semestre de 2012. Na sala
de aula, exceto eu, os demais alunos eram professores, porém, pelo fato de ter estudado
os fenômenos de gramaticalização no Curso de Especialização em Língua Portuguesa
na PUC/SP, em 2009, não me causou tanta estranheza quanto causou aos meus colegas
que, mesmo sendo professores de Língua materna, detinham-se basicamente no ensino
da norma padrão culta, deixando de lado questões particulares da língua em uso no dia a
dia comum. Em síntese, esses profissionais da área educacional fazem parte de um
determinado meio social, comunicam-se provavelmente de acordo com a língua em uso
e não de acordo com as regras previstas pela gramática tradicional, mas desconhecem os
movimentos que existem na língua em uso ou insistem em ignorá-los e, portanto,
reiteradamente, ministram suas aulas de Português, enfatizando uma língua idealizada e
irreal.
3
Nas palavras de Bechara (2004, p. 13),
cada modalidade da língua tomada homogênea e unitariamente, ou em outros
termos, toda língua funcional – como entende o lingüista Eugenio Coseriu –
tem a sua gramática como reflexo de uma técnica lingüística que o falante
domina e que lhe serve de intercomunicação na comunidade a que pertence
ou em que se acha inserido.
Continua o autor (2004), afirmando que antigamente o professor somente aceitava
como língua a modalidade culta, não levava em consideração a língua que o aluno
aprendia em casa com seus pais e familiares, repudiando o saber linguístico prévio do
aluno.
Conforme podemos observar nas palavras de Evanildo Bechara (2004), os
professores de Língua Portuguesa devem saber que seus alunos têm conhecimentos
prévios da Língua, que foram adquiridos em seus lares com sua família e que não
devem ser deixados de lado, mas que deve, sim, ser respeitado e considerado nas aulas
de Português.
Nosso trabalho é mais abrangente do que o de Amadora Vilar Fraiz, pois tem
como objetivo estudar todas as ocorrências de gramaticalização no nível da Morfologia
no livro: Amor é Prosa, Sexo é Poesia: Crônicas Afetivas, de Arnaldo Jabor. Isso
significa não somente estudar os numerais que sofreram o processo de gramaticalização,
mas também estudar os substantivos, os pronomes, os verbos, os advérbios, as
preposições que sofreram gramaticalização, além de expressões lexicais que sofreram os
processos de gramaticalização e dos casos de discursivização encontrados nos textos de
Aranaldo Jabor.
A língua é renovada diariamente e esse é o objetivo deste trabalho, mostrar a
renovação que ocorre na língua e que não é registrada pela gramática tradicional.
As mudanças na língua acontecem com muita frequência, de forma gradativa e
são o resultado de um longo e contínuo processo histórico. Elas estão ocorrendo,
embora imperceptíveis aos falantes, somente são perceptíveis aos pesquisadores que
dedicam horas e horas de pesquisa voltada para a língua em uso no dia a dia, em
situação real de comunicação.
De acordo com Luft (2008: 22),
a verdadeira gramática, imanente à linguagem, é algo vivo, por isso
flexível, dinâmico. Não assim a Gramática disciplina, código
normativo, que tende à fixação e inflexibilidade, portanto à morte. A
4
Gramática completa de uma língua viva deveria registrar sua
variabilidade e as tendências evolutivas das regras gramaticais.
Gonçalves et alii (2007) dizem que a constante renovação do sistema linguístico
– percebida, sobretudo, pelo surgimento de novas funções para formas já existentes e de
novas formas para funções já existentes – traz à tona a noção de “gramática emergente”
(Hopper, 1987), uma concepção assumida de modo explícito por diversos estudiosos da
gramaticalização.
Foi Antoine Meillet (1912) quem primeiro empregou o termo gramaticalização
definindo esse processo como a atribuição de um caráter gramatical a uma palavra
anteriormente autônoma. Esse estudioso também observou em suas pesquisas que, em
todos os casos de gramaticalização, era possível chegar-se à fonte primária de uma
forma gramatical.
Hopper (apud GONÇALVES 2007: 15),
entende a gramática das línguas como constituída de partes cujo estatuto vai
sendo constantemente negociado na fala, não podendo em princípio ser
separado das estratégias de construção do discurso. Subjazem a esse
entendimento uma concepção de língua como atividade em tempo real e a
postulação de que, a rigor, não há gramática como produto acabado, mas sim
em constante processo de gramaticalização.
Para Martelotta (2011, p. 92), por sua vez, “a gramaticalização é definida como
um processo de mudança linguística unidirecional, segundo o qual itens lexicais e
construções sintáticas, em determinados contextos, passam a assumir funções
gramaticais e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções
gramaticais”.
Em face do exposto, vemos que a gramaticalização caracteriza-se como um tipo
especial de mudança linguística que revela como unidades ou construções de base
lexical, em determinados contextos linguísticos, passam a exercer funções gramaticais
e, se já gramaticalizadas, podem vir a desenvolver funções ainda mais gramaticais. É
importante destacar que há na língua um movimento constante que transforma os itens
lexicais em palavras gramaticais, e esse movimento vai sendo constantemente
negociado na fala, por meio do discurso e os falantes, sem se darem conta do que está
acontecendo, vão renovando a língua dia após dia. A partir de 1980, os pesquisadores da
linguagem adquirem novo fôlego aumentando o interesse pelas investigações sobre o
processo de gramaticalização, suas motivações e desenvolvimento de forma gradual.
5
Nosso interesse pelo tema surgiu quando a elaboração da monografia no Curso
de Especialização em Língua Portuguesa da PUC/SP. Nesse momento, estudamos o
tema o processo de gramaticalização dos advérbios nas crônicas jornalísticas, que
resultou no trabalho O Processo de Gramaticalização dos Advérbios no Gênero
Jornalístico Crônica. No curso de Mestrado, demos continuidade a essa investigação,
agora focalizando as ocorrências de gramaticalização na obra Amor é prosa, sexo é
poesia: crônicas afetivas, de Arnaldo Jabor.
As questões que direcionaram nosso estudo foram:
- Nas crônicas de Arnaldo Jabor, na obra Amor é prosa, sexo é poesia: crônicas
afetivas, quais seriam as ocorrências de gramaticalização de que ele faz uso para
manifestar suas intenções comunicativas e que caracterizariam o gênero jornalístico
crônica?
- Quais seriam os efeitos de sentido que essas ocorrências, como marcas da
língua em uso, possibilitam?
Com base nessas questões, o trabalho tem como objetivos:
- Aprofundar conhecimentos, com base nas crônicas de Arnaldo Jabor, sobre os
diversos tipos de ocorrências de gramaticalização presentes no gênero jornalístico
crônica.
- Identificar as ocorrências de gramaticalização nas crônicas de Arnaldo Jabor,
como marcas da língua em uso.
- Analisá-las de acordo com os princípios de gramaticalização, propostos por
Castilho (1997) e critérios de gramaticalização, levantados por Gonçalves et alii (2007),
a fim de estabelecer um quadro tipológico dessas ocorrências.
- Verificar qual a intenção comunicativa do autor ao utilizar essas ocorrências
e qual o efeito delas na construção de sentidos do texto.
Para que possamos entender melhor parte da mudança que ocorre na língua em
uso, precisamos de um corpus para análise e o que melhor se enquadra na língua falada
é a crônica.
As crônicas são gêneros textuais que muito se aproximam da língua falada. Os
textos que concretizam esse gênero geralmente são textos curtos, com linguagem
6
simples e espontânea, relatam fatos do cotidiano e o cronista tenta aproximar-se ao
máximo possível da língua em uso comum no dia a dia.
Quando lemos as crônicas do escritor Arnaldo Jabor às terças-feiras no jornal “O
Estado de São Paulo”, no Caderno2, ou os livros que foram publicados pelo autor, por
exemplo, a obra focalizada neste trabalho, que é uma coletânea de crônicas publicadas
na imprensa escrita e que o autor resolveu reunir em um livro. Nessa obra, notamos que
ele faz uso de um grande número de ocorrências de gramaticalização, mostrando a
instabilidade da língua e as características próprias da língua em uso. Lembra a língua
do dia a dia, da conversa de bar, da fala descontraída sem preocupações com correções
gramaticais, ou seja, é uma linguagem livre das barreiras dos puristas. Assim, foi
considerando essa quantidade de casos de gramaticalização que escolhemos o livro
Amor é Prosa, Sexo é Poesia: Crônicas Afetivas como nosso corpus para análise. Não é
nosso objetivo desenvolver um estudo aprofundado de cada ocorrência selecionada,
mas, sim, descrevê-lo e a partir de sua descrição chegar ao ponto de alcançar os efeitos
de sentido que a gramaticalização proporciona, explicando-os tendo como base teórica
as teorias da gramaticalização, da linguística funcional e da linguística cognitiva.
O autor frequentemente faz o uso da língua falada em seus textos escritos.
Arnaldo Jabor assume posições diferentes nos textos, ou seja, não escreve sempre do
mesmo jeito e, em decorrência do posicionamento que assume, vai escolher
determinados elementos gramaticalizados que darão destaque à posição que ele assume
como interlocutor, construindo, assim, os sentidos do texto. O cronista valoriza a
expressão coloquial, livre de preocupações gramaticais, pois, no fim das contas, ele se
comunica de acordo com a língua em uso e de acordo com o meio social com quem
interage.
Os textos de Arnaldo Jabor, apesar de conterem muitas expressões que são
usadas na fala, são coerentes e coesos. Logo, as construções gramaticalizadas presentes
em seus trabalhos não impedem que sejam produções textuais bem elaboradas. Elas
tornam evidente que a língua não é uma realidade estática. Por estar na boca do povo,
seus falantes inovam-na e renovam-na, a cada momento em que participam de situações
comunicativas em interação social. A gramática normativa não dá importância para as
diferenças que existem entre a língua falada e a língua escrita, não aborda a renovação,
inovação, transformação e mudança do sistema linguístico e muito menos questões da
fala e da língua em uso no dia a dia. Ela simplesmente registra o uso da norma padrão
7
da língua, prescrevendo como correto somente o que está nela, ou seja, aquilo que segue
as regras de bom uso, sem levar em consideração que a língua é um instrumento vivo e
que as pessoas estão sempre interagindo umas com as outras de forma espontânea.
A gramática tradicional não reconhece esse caráter mutável da língua. Notamos,
muitas vezes, que as classes gramaticais, em muitos textos escritos, não exercem de fato
a sua função segundo a gramática normativa, ou seja, advérbios não exercem a função
de advérbio, adjetivos não exercem a função de adjetivo e assim por diante. Esse caráter
de instabilidade de uma língua viva, como veremos na análise, caracteriza um dos casos
de gramaticalização, o dos advérbios, no gênero jornalístico “crônica”.
Para atingirmos os objetivos propostos, este trabalho está organizado em três
capítulos. No capítulo 1, caracterizamos a gramaticalização, abordando sua
conceituação e seu percurso histórico. Tratamos também dos princípios de
gramaticalização, das características da gramaticalização, dos mecanismos de
gramaticalização e dos critérios de análise.
No capítulo 2, focalizamos em primeiro lugar o funcionalismo linguístico, seu
conceito e os princípios da teoria do funcionalismo, em segundo lugar a linguística
cognitiva, seu conceito e os princípios da teoria do cognitivismo, a metáfora e, por
último, focalizamos a enunciação.
No capítulo 3, com base nos conceitos estudados nos capítulos 1 e 2, analisamos
as crônicas jornalísticas do livro de Arnaldo Jabor, com o objetivo de discutir as
ocorrências de gramaticalização presentes na obra citada. É importante lembrarmos que
ao selecionarmos os textos para a análise, optamos por fazer uma análise no nível
morfológico. Devido à quantidade de ocorrências de gramaticalização repetidas que
encontramos ao longo de nossa leitura, selecionamos os exemplos que apareceram com
maior frequência nos textos.
A seguir apresentamos considerações sobre a gramaticalização.
8
CAPÍTULO I
GRAMATICALIZAÇÃO
É fato que todas as Línguas têm suas particularidades. A Língua Portuguesa tem
suas particularidades, a Língua Inglesa tem suas particularidades, a Língua Espanhola
também tem suas particularidades etc. e elas podem ser melhor observadas no seu uso
comum, no dia a dia, nas situações de interação comunicativa em tempo real. Todas as
línguas têm uma gramática que prescreve o uso da norma culta, entretanto podemos
perceber que, na língua usada nas conversas diárias, nos bares, nas rodas de amigos, nas
falas descontraídas, espontâneas e dinâmicas, nenhum usuário comunica-se como está
prescrito na gramática normativa. Ele comunica-se de forma que o entendam, ou seja,
na comunicação diária não existe a necessidade de falar de acordo com as regras
gramaticais normativas, mas somente em determinadas situações comunicativas que
assim o exijam, pois, fora desses casos especiais, o usuário não tem necessidade de
fazer uso de um conjunto de regras gramaticais prescritivas para se comunicar.
A gramática normativa, quando foi criada, ela tinha o objetivo de registrar o uso
da língua, de preservá-la de alterações e de mostrar as regras para bem falar e escrever,
com bases nos textos clássicos da Literatura. Essa tradição de se preservar o bem
escrever encontra-se, por exemplo, em Machado de Assis e Olavo Bilac, pois esses
autores brasileiros escreviam de forma conservadora, ou seja, eles idealizavam uma
Língua Portuguesa que seria perfeita, sem alterações, sem variações no seu uso falado
ou escrito, sem se preocuparem com o usuário. Hoje, estamos mudando essa visão, pois
sabemos que a língua só existe por causa do usuário, do falante e é ele quem a muda,
transforma e adapta de acordo com o contexto em que está inserido. O usuário da
língua adapta sua maneira de falar de acordo com o meio social do qual faz parte para
ser entendido e entender e compreender o que outros usuários estão falando, qual é a
mensagem que eles pretendem transmitir.
A partir do momento em que o pesquisador começa a prestar mais atenção no
usuário da língua, na maneira como esse indivíduo comunica-se, no modo como faz
uso dos elementos linguísticos e constrói sentido com suas sentenças que se adaptam
de acordo com o ambiente em que ele está inserido, ele percebe que falar uma
determinada língua não é simplesmente falar de acordo com o que está prescrito na
9
gramática normativa, mas sim fazer uso da língua de tal forma que seja compreendido
por quem o está ouvindo. O falante durante um processo comunicativo faz adaptações
praticamente o tempo todo para ser entendido, para que aquilo que está falando seja
entendido, porque ele tem uma mensagem a ser transmitida e, por trás dela, há uma
intenção que também deve ser percebida pelo ouvinte. Por isso, ele faz adaptações o
tempo todo em sua maneira de falar.
A gramaticalização tem por objetivo estudar essas mudanças, alterações e
transformações que ocorrem na língua em uso no dia a dia, mas que não fazem parte e
não são citadas em nenhum momento pelas gramáticas normativas, ou seja, elas
ocorrem somente na língua em uso. Entretanto, essas ocorrências podem ser percebidas
em alguns textos escritos, pois, de tanto aparecerem na língua falada, estão também
começando a aparecer nos textos escritos, por exemplo, crônicas, tirinhas de jornal, ou
seja, em quadrinhos e em anúncios publicitários. As mudanças e transformações da
língua não acontecem da noite para o dia, elas levam algum tempo para fazer parte do
uso comum de vários usuários para então serem consideradas de fato uma mudança
linguística e poderem ser objeto de estudo, ou seja, após institucionalizada, aquela
mudança linguística pode ser estudada por pesquisadores da linguagem que estão
interessados em saber como determinada alteração se deu na língua em uso, o que
motivou essa mudança e quando, ou melhor, em que época teve início determinada
mudança linguística por meio de registros escritos.
Nas palavras de Martelotta (2011, p. 92),
a gramaticalização é definida como um processo de mudança
linguística unidirecional, segundo o qual itens lexicais e construções
sintáticas, em determinados contextos, passam assumir funções
gramaticais e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver
novas funções gramaticais. Seguindo esse processo, o elemento deixa
de atuar no nível representacional, característico dos elementos que
fazem referência a dados mais objetivos associados ao nosso mundo
biossocial, para atuar no nível interpessoal, que engloba as
expressões de valor processual, ou seja, aquelas cujas funções estão
relacionadas aos processos através dos quais o falante elabora seu
enunciado para um determinado ouvinte em um contexto específico
de uso.
Neste capítulo, abordamos a gramaticalização. Nosso objetivo é caracterizar a
gramaticalização fazendo um percurso que a contemple em sua totalidade, ou seja,
focalizamos o conceito de gramaticalização, seu percurso histórico, os princípios que
dizem respeito a estágios da gramaticalização, algumas de suas características seus
10
mecanismos e sua contribuição para a construção de sentidos, propostos pelos
estudiosos da Gramaticalização, Antonie Meillet (1948); Mário Eduardo Martelotta
(1996, 2011); Sebastião Carlos Leite Gonçalves, Maria Célia Lima-Hernandes e Vânia
Cristina Casseb-Galvão (2007); Maria Helena de Moura Neves (1997, 2000, 2009,
2012); Ataliba T. de Castilho (1997), entre outros. A seguir abordamos o histórico e o
conceito de gramaticalização.
1.1. HISTÓRICO E CONCEITO DE GRAMATICALIZAÇÃO
Até o ano de 1980, os estudiosos da linguagem não davam tanta importância para
desenvolver os estudos linguísticos levando em consideração o falante, ou seja, a fala
em tempo real e suas ocorrências espontâneas em função das necessidades
comunicativas. Eles simplesmente acreditavam que a língua era homogênea, perfeita, a
língua que, por exemplo, encontramos nos romances clássicos com sua linguagem
rebuscada. Pensando dessa maneira esses pesquisadores deixavam de lado um
elemento importante para a comunicação sem o qual ela não ocorre, o usuário, o
falante. O falante é o elemento mais importante do processo comunicativo, sem ele não
existe língua, não existe a fala, não podemos afirmar também que há interação, pois
sabemos que a interação ocorre entre pessoas que se comunicam, compartilham
informações e experiências vividas no dia a dia, e é isso que chamamos de interação.
Nos dias atuais não podemos imaginar um estudo sobre a linguagem que não considere
o falante.
Somente a partir da década de 80, a gramaticalização passou a ser objeto de
interesse de muitos estudiosos da Língua, algo que não acontecia até o momento, pois a
Língua sempre foi vista de forma ideal, ou seja, os gramáticos e escritores da época
praticamente idolatravam e cultuavam-na como um objeto valiosíssimo, um objeto que
não apresentava falhas, algo perfeito, haja vista, a ideia que Chomsky tinha de Língua
quando escreveu sua gramática gerativa, acreditando no princípio do inatismo, que diz
“que existe uma estrutura inata, ou seja, existe um conjunto de princípios gerais que
traça limites entre as línguas de forma universal, estão presentes em todas as línguas do
mundo”.
De acordo com Martelotta (2008, p. 60),
outro aspecto importante para a caracterização da gramática gerativa
está no fato de que Chomsky, o criador dessa tradição, propôs uma
11
distinção entre competência e desempenho. O autor define
“competência” como a capacidade – em parte inata e em parte
adquirida – que o falante possui de formular e compreender frases em
uma língua e caracteriza o “desempenho” como a utilização concreta
dessa capacidade. Apenas no conhecimento se encontra o “módulo de
linguagem”, já que no desempenho (o único que é observável
diretamente) podemos notar vários módulos em interação, como
linguagem, memória, emoção, concentração, entre outros. Cabe
mencionar que Chomsky assume uma posição semelhante à de
Saussure ao sustentar que o objeto da linguística deve ser a
competência, e não o desempenho. Isso significa que mais uma vez o
sujeito, como usuário real da língua, e suas habilidades
sociointerativas ficam de fora dos estudos linguísticos. Chomsky
propõe, portanto, uma noção idealizada de competência, característica
de um falante/ouvinte igualmente idealizado, que usaria de modo
regular seu conhecimento linguístico, independente das diferentes
situações reais de comunicação.
A partir da década de 80 os estudiosos da linguagem começaram a observar que
não existe língua ideal, língua perfeita, mas sim uma língua que se adapta e se adequa
de acordo com as necessidades comunicativas, ou seja, a língua é produto do homem,
ele é que a constrói, faz as adaptações e as divulga, sendo assim, com o passar do
tempo determinados termos e expressões cristalizam-se e passam a fazer parte da
língua de um povo, os estudiosos da linguagem começam a prestar mais atenção no
papel desempenhado pelo falante durante o processo comunicativo. Quando
determinados termos ou expressões que são usados constantemente pelas pessoas em
situações cotidianas, ou seja, no uso real são registradas, elas passam a fazer parte
daquela língua e merecem ser estudadas. A gramaticalização passou a ser objeto de
estudo.
A partir desse momento foi detectado um grande número de fenômenos que não
estão registrados nas gramáticas tradicionais, mas que estão presentes em diversos
textos orais e escritos, surge o interesse em pesquisar essas ocorrências e, entre elas, a
gramaticalização. Ou seja, percebe-se que a gramática tradicional não era capaz de dar
conta do grande número de fenômenos linguísticos que ocorrem na fala cotidiana,
descontraída do dia a dia, em tempo real e que de uns tempos tem aparecido também
nos textos escritos, como podemos constatar em análise que foram feitas nas crônicas
do livro “Amor é Prosa, Sexo é Poesia: Crônicas Afetivas”, escrito por Arnaldo Jabor.
Com base no que foi dito até agora percebemos que não existe Língua ideal e
muito menos um falante ideal, um falante modelo, a Língua é viva, espontânea,
dinâmica e está em constante transformação e que essas transformações se dão nas
12
situações reais de comunicação, ou seja, nas interações entre os falantes no dia a dia.
Foi esse caráter espontâneo, dinâmico e mutável da Língua que levou ao aumento do
interesse dos estudiosos da linguagem pelos estudos de gramaticalização nos estudos
linguísticos mais recentes.
Do ponto de vista histórico, Maria Helena de Moura Neves (2004) postula que as
pesquisas e os estudos que foram feitos sobre gramaticalização tiveram seu início no
século X na China e, a partir do século XVII, ocorreram na França, Inglaterra,
Alemanha e Estados Unidos. No século XX, foi Antonie Meillet (1912) o primeiro
estudioso da linguagem a empregar o termo gramaticalização caracterizando esse
processo como a atribuição de um caráter gramatical a uma palavra anteriormente
autônoma. Esse pesquisador da linguagem também observou em seus estudos que, em
todos os casos de gramaticalização, era possível chegar-se à fonte primária de uma
forma gramatical. De acordo com Moura Neves (2004), Meillet observou que, em
todos os casos em que se podia conhecer a fonte primeira de uma forma gramatical,
essa fonte era uma palavra lexical, e que a transição é sempre uma espécie de
continuum. Segundo Poggio (2002), Meillet demonstrou, em seus estudos, que, além
de procurar a etimologia da palavra, procurava também encontrar as transformações
das formas gramaticais. Para o pesquisador, a gramaticalização pode afetar cada
palavra, estendendo-se à sentença, inclusive podendo afetar também a ordem das
palavras nas sentenças. Para ele, existiam três classes de palavras: as principais, as
acessórias e as gramaticais e entre elas ocorre uma transição gradual. Continua Poggio
(2002) afirmando que Meillet deu realce aos fatores de expressividade e uso. Cada vez
que um elemento linguístico é empregado, seu valor expressivo diminui e a repetição
torna-o desgastado. Devido à necessidade de falar com maior força expressiva, são
criadas novas formas gramaticais, em decorrência do desgaste progressivo das
palavras.
A gramaticalização caracteriza-se como um processo de mudança linguística que
revela o movimento que a Língua em uso no dia a dia faz nas diversas situações de
interação comunicativa em momento real de comunicação, ou seja, ela não ocorre
apenas em um determinado momento, mas sim, ao longo de um período de tempo de
forma gradual. De acordo com Saussure (apud MARTELOTTA 2011, p. 16), “tudo
quanto seja diacrônico na língua não o é senão pela fala. É na fala que se acha o germe
de todas as modificações: cada uma delas é lançada a princípio por um certo número de
indivíduos antes de entrar em uso”. Ela nos mostra como unidades ou construções de
13
base lexical, em determinados contextos linguísticos, passam a exercer funções
gramaticais e, se já gramaticalizadas, podem vir a desenvolver funções ainda mais
gramaticais.
Para nomear esse processo e chegar finalmente a um consenso sobre qual nome
seria o mais adequado para designar o que hoje conhecemos como “Gramaticalização”,
não foi uma tarefa muito fácil conforme veremos a seguir. Alguns pesquisadores desse
processo sugeriram vários nomes, inclusive nomes que são características do processo
de gramaticalização, por exemplo, esvaziamento semântico e reanálise, que na verdade
fazem parte do processo de análise das ocorrências de gramaticalização. Em outras
palavras, para que possamos analisar as ocorrências de gramaticalização, devemos
considerar alguns princípios de análise desse processo e entre os vários princípios e
parâmetros de análise do processo de gramaticalização existem o esvaziamento
semântico e a reanálise. A seguir veremos exemplos dos nomes que foram sugeridos
para nomear esse processo.
Neves (2004), afirma que não há um acordo para nomear esse processo:
gramaticalização, gramaticização e gramatização. Poggio (2002), por sua vez, vai um
pouquinho mais longe dizendo que há diversas perspectivas sobre a designação desse
processo. Afirma haver uma confusão para nomeá-lo: gramaticização, gramatização,
gramaticalização, apagamento semântico, condensação, enfraquecimento semântico,
esvaimento semântico, morfologização, reanálise, redução e sintaticização.
Apesar de toda essa discussão, a maioria dos teóricos parece concordar em
utilizar o termo “gramaticalização” que foi empregado primeiramente pelo Linguista
Francês Antoine Meillet em 1912.
Outra questão que gera um pouco de desconforto entre os estudiosos da
linguagem é saber definir o conceito de gramaticalização. A única informação referente
a esse processo que é compartilhada por todos os pesquisadores das ocorrências de
gramaticalização é a de que esse processo se dá e é renovado na língua em uso comum
no dia a dia, ou seja, é fato comprovado por meio de pesquisas que é o falante o
responsável pelas transformações que ocorrem na língua. Nos próximos parágrafos
mostramos que não há consenso em relação à definição desse processo.
Para Martelotta (2011), “a gramaticalização é um processo de mudança
linguística é unidirecional segundo o qual itens lexicais e construções sintáticas, em
determinados contextos, passam a assumir funções gramaticais e, uma vez
14
gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais. Seguindo esse
processo, o elemento deixa de atuar no nível representacional, característico dos
elementos que fazem referência a dados mais objetivos associados ao nosso mundo
biossocial, para atuar no nível interpessoal, que engloba as expressões de valor
processual, ou seja, aquelas cujas funções estão relacionadas aos processos através dos
quais o falante elabora seu enunciado para um determinado ouvinte em um contexto
específico de uso”.
Poggio (2002), com base em Castilho (1997b, p.31 e 32), define gramaticalização
como o trajeto empreendido por uma forma, ao longo do qual, ela muda de categoria
sintática (= recategorização), recebe propriedades funcionais na sentença, sofre
alterações semânticas e fonológicas, deixa de ser uma forma livre e até desaparece como
consequência de uma cristalização extrema. Em sentido mais amplo, o autor define
gramaticalização como o processo de codificação de categorias cognitivas em formas
linguísticas, aí incluindo a percepção de mundo pelas diferentes culturas e o
processamento da informação.
Para Moura Neves (op.cit.), o estudo da gramaticalização põe em evidência a
tensão entre a expressão lexical, relativamente livre de restrições, e a codificação
morfossintática, porém sujeita a restrições, não esquecendo de levar em consideração a
indeterminação relativa da língua e o caráter não-discreto de suas categorias.
É importante destacar que há na língua um movimento constante e dinâmico que
transforma os itens lexicais em palavras gramaticais e que esse movimento vai sendo
constantemente negociado na fala por meio do discurso. Em outras palavras esse
movimento ocorre por conta da necessidade comunicativa de cada pessoa ou grupo de
pessoas no meio social em que estão inseridos é o que chamamos de necessidade
comunicativa ou de acordo com Maria Helena de Moura Neves (2004) pressão de
informatividade e os falantes vão renovando a língua dia após dia, de forma intuitiva
por meio de mecanismos cognitivos, concretizando o que já foi dito anteriormente, que
a língua é dinâmica, espontânea e viva, os falantes percebem a necessidade
comunicativa de forma intuitiva e o fato de eles perceberem toda essa necessidade
comunicativa e isso dá oportunidades aos falantes para que façam suas criações,
renovações e transformações. O fato de eles realizarem suas escolhas e criarem novas
formas para poderem se comunicar de forma eficiente, não significa que eles não
saibam a Língua, mas que simplesmente fazem adequações e constroem sentido em
15
suas falas de acordo com o meio em que estão inseridos, usando da criatividade para
tal.
Esse tipo de mudança linguística requer do pesquisador ou estudioso da
linguagem uma concepção não-estática da gramática das línguas humanas. Nesse
sentido, ele deve saber que o sistema linguístico está em constante renovação e não
pode pensar que fazer uso ou bom uso da Língua significa saber falar e escrever da
forma como prescreve a Gramática Normativa, pois, sabe-se que o usuário tem
liberdade no emprego da Língua e que ele fala e escreve sem nenhum tipo de
impedimento, mas, é obvio, fazendo as adequações para que não seja ignorado pelos
outros falantes. Esse aspecto só serve para reforçar a afirmação de que os sistemas
linguísticos passam por uma constante renovação.
Desse modo, não podemos afirmar que existe gramática como produto acabado,
finalizado e que as pessoas falam e escrevem de acordo com o que está prescrito nela,
mas devemos entendê-la como em movimento constante de mudança, contribuindo
para essa situação a gramaticalização. Assim, esse processo nos prova e mostra que a
língua é viva, é espontânea e está em constante processo de transformação e evolução
que se dá por meio do processo interacional entre as pessoas na convivência diária em
sociedade. Viver em sociedade significa interagir a todo instante com pessoas, trocar
ideias, informações, descontrair praticando algum tipo de atividade física etc. Nas
palavras de P. Bange (apud KOCH 2006, p.75), “um ato de linguagem não é apenas
um ato de dizer e de querer dizer, mas, sobretudo e essencialmente um ato social pelo
qual os membros de uma comunidade inter-agem”.
Todo esse movimento de renovação da Língua em uso no dia a dia pode ser
explicado pela teoria da interação social da qual a gramática funcional faz parte porque
seu objeto de estudo é a Língua em uso, ou seja, a língua em seu estado puro,
espontânea, dinâmica sem estar presa ou ligada às regras e correções gramaticais que
os gramáticos tanto prezam e cultuam.
De acordo com Neves (2004, p. 15),
por gramática funcional entende-se, em geral, uma teoria da
organização gramatical das línguas naturais que procura integrar-se
em uma teoria global da interação social. Trata-se de uma teoria que
assenta que as relações entre as unidades e as funções das unidades
têm prioridades sobre seus limites e sua posição, e que entende a
gramática como acessível às pressões do uso. Quando se diz que a
gramática funcional considera a competência comunicativa, diz-se
exatamente que o que ela considera é a capacidade que os indivíduos
têm não apenas de codificar e decodificar expressões, mas também de
16
usar e interpretar essas expressões de uma maneira interacional
satisfatória.
Essa modalidade de gramática concebe a língua como um instrumento de ação
social entre as pessoas, entendendo que ela é usada principalmente para estabelecer
relações de interação comunicativa entre os usuários nas diversas situações
comunicativas. Ela possibilita estabelecer contato com diferentes pessoas que fazem
uso de elementos linguísticos diferentes dos demais falantes para se comunicar e estes,
por sua vez, aprendem outras formas da Língua em uso que eram desconhecidas,
porém, por meio do contato, tornaram-se também conhecidas. Essa situação repete-se
inúmeras vezes até que um número grande de falantes faça uso dessas formas
linguísticas e passem a usá-las com frequência. No decorrer do tempo, esses novos
usos institucionalizam-se, vindo a fazer parte dos dicionários e do Vocabulário
Ortográfico de Língua Portuguesa.
Para Martelotta (2011), os usuários durante o processo de interação manipulam
termos e expressões disponíveis em sua língua para usar as diferentes estratégias
comunicativas, marcando sua posição subjetiva em relação ao conteúdo que querem
transmitir e sua preocupação em relação à forma como será recebida esse conteúdo
pelos seus ouvintes de acordo com as condições contextuais em que ocorre o processo
comunicativo.
De acordo com Brait (2003, p. 220, 222),
o processo da interação é um componente do processo de comunicação, de
significação, de construção de sentido e que faz parte de todo ato de
linguagem. É um fenômeno sociocultural, com características linguísticas e
discursivas passíveis de serem observadas, descritas, analisadas e
interpretadas. Os falantes não somente trocam informações e expressam
ideias, mas também, durante um diálogo, constroem juntos o texto,
desempenhando papéis que, exatamente como uma partida de um jogo
qualquer, visam à atuação sobre o outro.
Como interação e gramática apresentam estreita relação, para Martelotta (2011,
p.64,65),
a gramática é um fenômeno sociocultural, o que sugere que sua estrutura e
sua regularidade vêm do discurso, sendo moldadas em um processo contínuo.
Dominar a gramática de uma língua, então, significa não apenas dominar
mecanismos de natureza sintática, mas também processos associados a
organização textual (planos discursivos, coesão e coerência etc. e fenômenos
interacionais (intenções e expectativas dos participantes, leituras de intenção,
implicaturas conversacionais etc., há uma relação muito estreita entre esses
dois pontos, já que o texto é organizado contextualmente, ou seja, para um
interlocutor determinado em uma situação determinada.
17
Em face do exposto podemos afirmar que o texto é um lugar de interação com os
próprios interlocutores negociando a todo o momento os sentidos de maneira interativa.
Os falantes adaptam suas formas e maneiras de expressarem-se aos diferentes
contextos textuais de acordo com sua intenção e com a aceitação e reação do ouvinte
em relação a tudo o que está ouvindo do falante. Para que haja o caráter interacional, é
necessário que haja essa troca, ou melhor, essa resposta ou reação do ouvinte em
relação a tudo que é dito pelo falante. Somente dessa maneira, o locutor poderá alterar
seu discurso, sempre de acordo com as reações expressas pelo ouvinte, mostrando que
a fala se dá por meio do caráter interacional. Isso ocorre porque a Língua é um
fenômeno sócio-histórico-cultural, ou seja, faz parte da cultura de determinado país ou
nação, não podendo ser imaginada separada do usuário, pois é ele quem dá vida à
língua, aos falares, às transformações e criações linguísticas, ou seja, é o falante que faz
com que haja um grande movimento na língua.
A gramaticalização é um processo que pode ser situado numa perspectiva
sincrônica, diacrônica e também pancrônica as quais são maneiras de se estudar a
língua. A sincronia refere-se a um recorte no tempo para estudo da língua, a diacronia
refere-se ao eixo histórico e a comparação evolutiva da língua, a pancronia,
corresponde à união da sincronia e diacronia. Por um lado, quando verificamos como
determinado elemento linguístico é usado na língua em uso nos dias atuais, fazemos
uma análise sincrônica, por exemplo, quando analisamos o uso da expressão “a gente”
como pronome pessoal do caso reto “nós”, percebemos que, nos dias atuais, em
situações de língua real, usada no dia a dia, o pronome pessoal do caso reto “nós” está
sendo substituído na língua oral e também na escrita pela expressão “a gente”.
Por outro lado, quando verificamos, por exemplo, determinados usos que
fazemos nos dias atuais de alguns verbos, estamos fazendo uma análise diacrônica, ou
seja, estudamos seu comportamento desde sua origem até seus sentidos nos dias atuais.
Percebemos que os usuários da língua construíram outros sentidos, por exemplo, o
verbo “tomar” significava em seu primeiro sentido – apossar-se de algo alheio, tirar e
arrebatar – por exemplo: Tomou a fazenda para o MST, ou seja, tinha um sentido mais
concreto, nos dias atuais seu sentido pode ser também mais abstrato – levar em
consideração, considerar – por exemplo: Tomou as dores para si. Por meio dessa
pequena análise comparativa entre os diferentes usos do verbo “tomar”, podemos
constatar que seu comportamento assumiu diferentes sentidos ao longo dos anos e, nos
18
dias atuais, não podemos mais afirmar que esse verbo tem apenas o sentido original,
pois ele adquiriu outros sentidos totalmente diferentes do primeiro.
Nas palavras de Alencar (2009, p.35),
o estudo de gramaticalização numa perspectiva sincrônica, objetiva estudar o
fenômeno do ponto de vista de padrões fluidos do uso linguístico, já a
linguística diacrônica incorpora a gramaticalização como um meio para
analisar a evolução e reconstruir a história de uma determinada língua ou
grupos de língua, além de relacionar as estruturas linguísticas do momento
com padrões anteriores e de uso linguístico e por último a perspectiva
pancrônica que nada mais é do que a união da sincronia e da diacronia
mostrando que uma não pode ser entendida sem a outra, que a
gramaticalização é impraticável se houver separação rígida entre sincronia e
diacronia.
A gramaticalização é um processo que faz parte da cognição humana, conforme
afirma Givón (apud NEVES 2006), que a considera como um processo instantâneo,
envolvendo um ato mental pelo qual uma relação de similaridade é reconhecida e é
explorada. Por meio dele, um item primitivamente lexical gramaticaliza-se pelo uso
como uma unidade gramatical em um novo contexto. Vê-se, portanto, que os atos
mentais são capazes de criar e construir novas formas linguísticas para os elementos
linguísticos nos mais variados contextos, ou melhor, nas diversas situações
comunicativas.
Para Alencar (2009), o estudo da gramaticalização, numa perspectiva histórica,
tem como objetivo as origens das formas gramaticais, as transformações pelas quais
passaram as línguas ao longo do tempo, bem como as mudanças típicas que as afetam
nesse percurso temporal, pois nenhuma língua é estável, sempre sofre alterações e
transformações em sua estrutura, daí todas as línguas serem mutáveis e sofrerem
transformações com o passar do tempo. A. Meillet (apud ALENCAR 2009) afirma
que, havendo gramaticalização em todos os casos em que se podia conhecer a fonte
primeira de uma forma gramatical, essa fonte era uma palavra lexical e que a transição
do lexical para o gramatical é sempre uma espécie de continuum.
De acordo com as pesquisas desenvolvidas na área de gramaticalização, Moura
Neves (2004) concluiu que, antes de Antonie Meillet, Wihelm Von Humboldt, filósofo
e humanista alemão, publicou no ano de 1822 uma obra intitulada Sobre a gênese das
formas gramaticais e a influência dessas formas na evolução das ideias na qual
propunha um estágio de evolução da língua no qual só as ideias concretas podiam ser
expressas pelo léxico, ou seja, as ideias abstratas não eram exprimidas lexicalmente,
sendo assim, a estrutura gramatical das línguas humanas teria resultado da
19
gramaticalização de expressões de ideias concretas. Poggio (2002), a partir dessas
ideias, mostra que a evolução da gramática ocorreu por diferentes estágios, a saber:
pragmático, sintático, aglutinação e morfológico:
1º estágio: pragmático (sentido denotativo/ objetos concretos).
2º estágio: sintático (palavras oscilam entre sentido concreto e o formal).
3º estágio: aglutinação (palavras funcionais afixadas às palavras materiais).
4º estágio: morfológico (pares aglutinados fundem-se em uma só palavra/
raiz e afixos contêm significado material e gramatical).
Antonie Meillet conseguiu com seus estudos, suas pesquisas mostrar, provar e
demonstrar as transformações das formas gramaticais. De acordo com Poggio (2002, p.
66), para esse autor, as novas formas gramaticais surgem através de dois processos: a
analogia e a gramaticalização. Já para autores contemporâneos como Mário Eduardo
Martelotta (2011) e Sebastião Carlos Leite Gonçalves, Maria Célia Lima-Hernandes e
Vânia Cristina Casseb-Galvão (orgs.) (2007), os principais motivadores da
gramaticalização são o processo metafórico e o processo metonímico que serão
abordados mais adiante. Enquanto a analogia renova as formas e deixa o sistema
intacto, ou seja, sem criar novas formas, sem criar novas funções, não levando em
consideração a gramática emergente da língua, a gramaticalização cria novas funções
para formas já existentes e novas formas para funções já existentes, que nada mais é do
que evidenciar a noção de gramática emergente, resultando em mudança no sistema de
comunicação social, na fala em seu estado real de comunicação.
A gramaticalização, por se tratar de um processo contínuo de mudança
linguística, pode afetar a palavra, estendendo-se à sentença dando-lhes funções novas,
formas novas e sentidos novos ocorrendo na interação cotidiana, na fala diária, livre,
dinâmica e espontânea. Ainda de acordo com Poggio (2002, p. 59), “a gramaticalização
tem sido um dos temas mais discutidos na investigação funcionalista, vem sendo
considerada como um aspecto das mudanças que afetam a gramática e é vista como um
processo de criação da gramática através da necessidade discursiva”.
20
O processo de gramaticalização objetiva mostrar que o sistema linguístico, por
mais que os falantes e usuários não prestem atenção ao que estão fazendo com a língua,
ela está em constante transformação, mudança e renovação que são negociadas na fala
em momento real, ou melhor, em tempo real de comunicação. Nesse processo, as novas
formas ou expressões linguísticas podem, em alguns casos conviver com as antigas sem
que, necessariamente devam sumir ou ser apagadas do sistema linguístico. Ela é
percebida, sobretudo pelo surgimento de novas funções para formas já existentes e de
novas formas para funções já existentes, aspecto que está, em princípio, ligado às
estratégias de construção do discurso e também que nos traz à tona a noção de
gramática emergente da língua.
Ainda, segundo Poggio (2002), há três grupos de conceitos de gramaticalização, a
partir de épocas e perspectivas diferentes. O primeiro grupo trata do léxico e da
gramática e a gramaticalização é vista como um processo por meio do qual uma unidade
léxica ou uma estrutura lexical assume uma função gramatical. O item lexical vai de
uma classe aberta para uma classe fechada. De acordo com a autora, os pesquisadores J.
Kurylowicz, G. Sankoff e J. Bybee entendem que a gramaticalização é decorrente de
alterações morfológicas. Essa concepção se estendeu até a década de 70.
O segundo grupo trabalha com o discurso e a gramática: a partir de meados de
1970, o discurso pragmático foi considerado como um parâmetro para o entendimento
da estrutura linguística e para o desenvolvimento de estruturas sintáticas e categorias
gramaticais. Essa nova forma de se conceber a relação do usuário com a linguagem
compreende a gramaticalização como reanálise dos moldes do discurso para os moldes
gramaticais.
O terceiro grupo que é o dos cognitivistas, desenvolvido por E. Sweetesr
(1988), Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991), S. Svorou (1933), entre outros que vê a
gramaticalização como um fenômeno externo à estrutura da língua e que pertence ao
domínio cognitivo. Esses linguistas enfatizam também que a gramaticalização é
proveniente de alterações semânticas.
De acordo com Poggio (2002), depois de 1970, deu-se realce ao potencial que os
estudos de gramaticalização oferecem para o entendimento sincrônico da gramática.
Hopper e Traugott (apud POGGIO 2002), assinalam que o estudo da gramaticalização
é também sincrônico, centrado no uso da linguagem, estando voltado para a
investigação dos fenômenos sintáticos e pragmáticos-discursivos. Atualmente, a
21
gramaticalização pode ser encarada como um processo pancrônico que apresenta uma
perspectiva diacrônica, porque envolve mudança, e uma perspectiva sincrônica, porque
implica variação, podendo ser descrita como um processo em referência ao tempo.
Em face do que foi exposto até agora, podemos verificar que a gramaticalização
faz parte do nosso dia a dia nos processo de interação comunicativa com as pessoas de
nosso convívio social. Constatamos esse movimento da língua quando fazemos
adaptações, a fim de que entendamos e nos façamos entender por nossos ouvintes.
Nesse trabalho, entendemos que o conceito de gramaticalização que está mais próximo
das questões ligadas à língua em uso e que deve ser seguido ao longo dele é o proposto
por Martelotta (2011).
Não podemos esquecer que Martelotta (2011, p. 24) faz observações também
sobre o processo de interação dos usuários como podemos observar na seguinte
afirmação desse autor, “basicamente, a mudança língua, de acordo com a concepção
centrada no uso, motiva-se a partir do ato de comunicação. Ou seja, é na interação que
os usuários manipulam os termos e as expressões disponíveis em sua língua, a fim de
veicular estratégias comunicativas, que marquem sua posição subjetiva em relação ao
conteúdo que querem transmitir ou sua preocupação com a recepção desse conteúdo por
seus interlocutores, dadas as condições contextuais em que se dá a comunicação”. A
seguir abordamos os princípios de gramaticalização.
1.2. PRINCÍPIOS DE GRAMATICALIZAÇÃO
Gonçalves et alii (2007) entende princípio como um preceito ou uma lei geral
determinante da constituição/identificação de um fenômeno. Nesse sentido, parece que
ao processo de gramaticalização só poderia ser atribuído um único e fundamental
princípio: o princípio da unidirecionalidade, que ele ocorre de acordo com a seguinte
escala de abstração crescente, sempre da esquerda para a direita, fazendo com que
estruturas lexicais se tornem gramaticais e estruturas menos gramaticais se tornem mais
gramaticais: pessoa > objeto > processo > espaço > tempo > qualidade, verificável,
como hipótese, por meio da atuação de vários mecanismos, partes constitutivas do
fenômeno da gramaticalização, que podem ser entendidas como suas causas ou
motivações.
22
Poggio (2002) afirma que, entre os autores, não há unanimidade, no que se refere
ao estabelecimento dos princípios de gramaticalização e apresenta aqueles apontados
por C. Lehmann, P. J. Hopper e Ataliba T. de Castilho.
C. Lehmann (apud POGGIO 2002, p. 72) aponta cinco princípios de
gramaticalização:
1- Princípio da paradigmatização: há integração de construções sintáticas
como formas perifrásticas em paradigmas morfológicos, o que as
conduz a paradigmas pequenos e homogêneos.
2- Princípio da obrigatoriedade: a escolha entre os membros do
paradigma submete-se a regras gramaticais.
3- Princípio da condensação: com a gramaticalização do signo, os
constituintes, com os quais ele se pode combinar, tornam-se menos
complexos.
4- Princípio da coalescência: junção de partes; vai da justaposição para
uma alternância simbólica.
5- Princípio da fixação: quando os elementos se gramaticalizam, ocupam
uma posição fixa, primeiro na sintaxe e depois na morfologia, como
preenchedor de espaços gramaticais.
P. J. Hopper (apud POGGIO 2002, p.72-73) também aponta cinco princípios de
gramaticalização:
1- Princípio da estratificação: novas camadas emergem num domínio
funcional amplo; há gramáticas que convivem, isso é a base e
consequência da variação linguística; quando uma forma se
gramaticaliza passa a coexistir com outras formas similares; assim, há
formas diferentes para codificar o mesmo significado. Por exemplo, a
expressão “a gente” que era inicialmente substantivo feminino e
passou exercer a função de pronome pessoal do caso reto “nós”.
2- Princípio da divergência: trata-se da bifurcação de um item; quando
uma forma lexical se gramaticaliza em clítico ou afixo, a original
continua autônoma, sofrendo mudança como as demais formas.
23
3- Princípio da especialização: quando há gramaticalização, dá-se o
estreitamento da variedade de escolhas formais com nuances
semânticas diferentes; nesse caso, um menor número de formas
assume significados semânticos gerais; há possibilidade de que um
item se torne obrigatório.
4- Princípio da persistência: quando uma forma se gramaticaliza, alguns
traços do significado lexical original aderem à nova forma gramatical;
portanto, há permanência de vestígios do significado lexical original.
5- Princípio da descategorização: as formas podem perder ou neutralizar
as marcas morfológicas e propriedades sintáticas das categorias plenas
N e V e assumir os atributos das categorias secundárias (adjetivo,
particípio, preposição etc). Há uma perda de marcadores opcionais e
perda de autonomia discursiva, isto é, diminuição do estatuto
categorial de itens gramaticalizados. Por exemplo, o adjetivo “claro”
que além da função de adjetivo expressa valor de modalizador.
Para Ataliba T. de Castilho (apud POGGIO 2002, p. 73-74), apenas quatro
princípios podem dar conta dos processos e estágios de gramaticalização:
1- Princípio da paradigmatização e analogia: a analogia opera no eixo
paradigmático.
2- Princípio da sintagmatização e reanálise: desenvolvimento de novas
estruturas a partir de estruturas antigas. Por exemplo, o advérbio “aí”
que de acordo com a perspectiva funcionalista está funcionando como
conectivo
no
começo
das
orações,
dando
seqüência
aos
acontecimentos.
3- Princípio da continuidade e gradualismo: a gramatização tende à
inovação da estrutura das línguas. Por exemplo o item lexical “bem”
que do ponto de vista gramatical é um advérbio que nos dias atuais
passou a desenvolver a função de marcador discursivo.
4- Princípio da unidirecionalidade: a gramaticalização é unidirecional,
isto é, irreversível, desenvolvendo-se apenas da esquerda para a
direita.
24
Neste trabalho, usamos como base para nossas análises os princípios de
gramaticalização propostos por P. J. Hopper (apud POGGIO 2002) que são: - Princípio
da Estratificação; - Princípio da Divergência; - Princípio da Especialização; - Princípio
da Persistência; - Princípio da Descategorização e os princípios propostos por Ataliba T.
de Castilho (apud POGGIO 2002) que são: - Princípio da Paradigmatização; - Princípio
da Sintagmatização e Reanálise; - Princípio da Continuidade e Gradualismo e o
Princípio da Unidirecionalidade. Escolhemos esses autores, pois a nosso ver, são os que
contemplam de forma mais concreta as ocorrências de gramaticalização que ocorrem na
língua em uso no dia a dia e seus princípios estão muito ligados aos parâmetros de
gramaticalização que aparecem no item seguinte.
O pesquisador C. Lehmann (apud POGGIO 2002) teve uma contribuição muito
importante para o desenvolvimento dos estudos de gramaticalização. Seus estudos
visam a analisar os estágios já avançados de gramaticalização e parecem ser abstratos e
sem relação com o início do processo das ocorrências de gramaticalização que
encontramos na língua em uso no dia a dia em situação real de comunicação, ou seja,
durante o processo de interação comunicativa entre os usuários da língua, e que nos dias
atuais constatamos estarem presentes também na língua escrita.
Por esse motivo, escolhemos os pesquisadores contemporâneos P. J. Hopper e
Ataliba T. de Castilhos ao pesquisador C. Lehmann (apud POGGIO 2002). Com base
em suas pesquisas, concluímos que eles lograram maior êxito propondo princípios para
analisar as ocorrências de gramaticalização em seu início, ou seja, eles não analisam o
estágio já avançado de gramaticalização, mas, sim, procuraram analisar todo o processo
das ocorrências de gramaticalização desde seu estágio inicial tentando encontrar o que
motivou esse processo e as mudanças na língua e também percebemos que seus
princípios estão muito ligados aos parâmetros de análises que caracterizam os elementos
de gramaticalização. A seguir abordamos as características de gramaticalização.
1.3. CARACTERÍSTICAS DA GRAMATICALIZAÇÃO
Alguns autores adotam como parâmetros alguns elementos que caracterizam a
gramaticalização, como por exemplo:
25
A- Manipulação
conceitual:
a
gramaticalização
implica
alteração
do
significado da forma fonte;
B- Unidirecionalidade: a direção da mudança se dá das formas lexicais para as
gramaticais ou das menos gramaticais para as mais gramaticais e não no
sentido contrário;
C- Assimetria forma/significado: as formas fontes, isto é, os itens que deram
origem à forma gramaticalizada não desaparecem necessariamente após o
surgimento da nova forma. Isso leva a casos de polissemia com uma mesma
forma passando a codificar dois ou mais significados.
D- Descategorização: as formas em processo de gramaticalização passam de
uma categoria para a outra, deixando de ser modificadas pelos processos
morfossintáticos da classe original;
E- Perda de autonomia: as formas acabam por perder sua autonomia
morfossintática em consequência da fusão ou dependência de palavras
vizinhas, causadas pelo enfraquecimento de tonicidade ou erosão fonética;
F- Erosão: vai-se dando a perda do material fonético, o que torna as formas
reduzidas.
G- Recategorização: dá-se, então, a constituição de morfemas específicos,
restaurando a simetria forma/significado.
Heine e Kuteva (apud MARTELOTTA 2011) propuseram quatro parâmetros de
gramaticalização demonstrando a tendência à unidirecionalidade, quando vistos atuando
juntos no fenômeno da mudança. São eles:
1- Extensão
(ou
generalização
de
contextos):
caracteriza-se
pelo
desenvolvimento de usos em novos contextos. É um fenômeno que ocorre de
forma gradual.
26
2- Dessemantização (ou bleaching, redução semântica): caracteriza-se pela
perda de conteúdo semântico. Os elementos envolvidos no processo de
gramaticalização perdem valor representacional, e, ao assumir a nova função
gramatical, adquirem funções de natureza pragmático-discursiva.
3- Decategorização (ou mudança categorial): caracteriza-se pela perda de
propriedades típicas das formas fontes, com aquisição de novas
características morfossintáticas ou discursivas.
4- Erosão (ou redução fonética): caracteriza-se pela perda de substância
fonética. O elemento tende a sofrer coalescência (fusão de formas adjacentes)
e condensação (diminuição de formas).
Não se pode deixar de considerar também outro aspecto na gramaticalização: são
as suas diferentes fases. Deve-se caracterizar o início, seu desenvolvimento e seu
término. Heine & Reh (apud NEVES 2004) mostram que os três níveis da estrutura
linguística afetados pela gramaticalização – o funcional, o morfossintático e o fonético –
em geral se organizam na gramaticalização, nessa mesma ordem cronológica: os
processos funcionais (como dessemantização, expansão e simplificação) precedem os
morfossintáticos (como permutação, composição, cliticização e afixação), que precedem
os fonéticos (como adaptação, fusão e perda). Além disso, as alterações em um nível
são acompanhadas de alterações em outros níveis, assim os autores Heine & Reh (apud
NEVES 2004) destacam que quanto mais gramaticalizada uma forma se torna:
A – mais perde a complexidade semântica, significação funcional ou valor
expressivo;
B – mais perde em significação pragmática e ganha em significação sintática;
C – mais reduzido torna-se o número de membros que pertencem ao mesmo
paradigma morfossintático;
D – mais sua variabilidade sintática decresce, isto é, sua posição dentro da
cláusula se torna mais fixa;
27
E – mais obrigatório torna-se seu uso em certos contextos e mais agramatical
em outros;
F – mais funde-se semântica, morfossintática e foneticamente com outras
unidades;
G – mais perde em substância fonética.
Hopper (apud NEVES 2004) afirma que, se levarmos em conta o estudo de mais
de uma língua, é possível chegarmos a regularidades emergentes que têm potencial para
ser instâncias de gramaticalização:
1 – categorias como aspecto, número, tempo e caso, entre outras, ocorrem
frequentemente, nas línguas, na morfologia afixal. Todavia podem ocorrer
também sob formas livres, como, por exemplo, elementos adverbiais.
2 – certos tipos de itens lexicais evoluem, tipicamente, para clíticos
gramaticalizados e para afixos. Alguns exemplos são os casos de verbos de
cópula e de verbos de movimento que se tornam, eventualmente, afixos
causais.
Vilar (2004) afirma que Hopper e Traugot, ao focalizarem a gramaticalização,
reconhecem que a reanálise e a analogia é que são responsáveis pelo processo de
mudança morfossintática. Entretanto a reanálise é considerada por eles como o mais
importante mecanismo na gramaticalização, ficando a analogia num plano secundário.
Ainda segundo Vilar (2004), eles também concebem a reanálise como sendo um
processo por meio do qual os falantes mudam sua percepção de como os constituintes
de sua língua são ordenados no eixo sintagmático, isto é, novas estruturas são geradas a
partir de estruturas antigas e a abdução é a operação mental que permite isso. De acordo
com Andersen (1973), (apud Hopper e Traugott, 1997, p.39-40), a abdução provém de
um resultado observado, invoca uma lei e infere, então, o que poderia ser o caso. Assim,
dada a situação que Sócrates morreu, podemos correlacionar esse fato com a lei geral de
que todos os homens são mortais, e, portanto, Sócrates era um homem.
Mostra ainda a autora (2004) que Hopper e Traugott, analisando o exemplo de
Andersen, observam que, nesse tipo de raciocínio, as premissas são sempre verdadeiras,
28
porém a conclusão a que se chega não precisa ser: uma das premissas pode competir
para a conclusão errada de acordo com a lei. A afirmação “talvez Sócrates não seja um
homem e, sim uma lagartixa”, é uma conclusão errada, porém é compatível com uma
das duas premissas: a lagartixa também é mortal assim como o homem.
Por meio da abdução os limites entre determinados constituintes são apagados,
estabelecendo-se outros limites, sem alterar a manifestação superficial da unidade com a
qual está se operando, desencadeando um processo em que, futuramente, surgirá uma
nova categoria gramatical. A seguir abordamos os mecanismos de gramaticalização.
1.4. MECANISMOS DE GRAMATICALIZAÇÃO
Para Martelotta (2011, 110-115), a gramaticalização apresenta alguns tipos de
motivações, como a motivação comunicativa e a motivação associada ao contato
linguístico. As motivações mais fortes não apenas para a gramaticalização, mas também
para a mudança linguística de modo geral estão em fatores de natureza comunicativa, os
quais, aliás, também se manifestam como motivadores da unidirecionalidade da
mudança. São eles:
1- A necessidade de expressar domínios abstratos da cognição em termos de
domínios concretos.
2- A negociação do sentido por falante e ouvinte no ato da comunicação.
3- A tendência dos ouvintes para selecionar estruturas ótimas.
4- A tendência dos falantes para usar expressões novas e extravagantes.
5- A iconicidade, a marcação e a frequência.
A motivação associada ao contato linguístico mostra que a gramaticalização de
um termo pode ser acionada pelo contato com outra língua.
De acordo com Martelotta (1996, 53), não existe um consenso em relação aos
mecanismos que veiculam o processo de gramaticalização. Ainda segundo o autor
(1996), Heine et alii (1991), por exemplo, falam em transferência metafórica e
Lehmann (1991) aponta a importância da analogia no processo, sobretudo, como
influenciadora do modo como ele vai se alastrando na língua.
29
Heine, Claudi e Hünnemeyer (apud MARTELOTTA 2010) afirmam que os
principais processos subjacentes à gramaticalização são metaforicamente estruturados,
sendo a transferência metafórica uma das principais forças motoras do desenvolvimento
das categorias gramaticais: para expressar funções abstratas, são recrutadas entidades
concretas. Segundo os autores, a noção de metáfora, interpretada como uma estratégia
cognitiva, ajuda a compreender – mas não a explicar – a gramaticalização ou o
comportamento gramatical. Sendo assim, os autores propõem a noção de metáfora
categorial, afirmando que muito do que acontece quando conceitos mais concretos se
desenvolvem em conceitos mais gramaticais pode ser descrito em termos de algumas
categorias básicas, que, de acordo com seu grau relativo de abstração metafórica, pode
ser arrumado em uma escala com a seguinte configuração:
PESSOA > OBJETO > ATIVIDADE > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE.
Taylor (1989) (apud CARVALHO)
1
fez observações importantes para
compreender a metáfora como um mecanismo de categorização e como muitos
conceitos abstratos podem ser expressos por conceitos concretos. Essa rede de
transferência metafórica é fundamentada na experiência dos falantes, que criam seus
esquemas de imagens baseados nas experiências corporais básicas ou nas experiências
culturais, o que contribui para a diversidade de metáforas nas línguas.
Em Traugott e König (apud MARTELOTTA 1996), lê-se que o tipo de
mecanismo que efetua a gramaticalização depende da natureza particular da função
envolvida no processo. Os autores afirmam ainda que a inferência metafórica ocorre
principalmente no surgimento de marcas de tempo, aspecto, caso, enquanto a inferência
por pressão de informatividade, que é um mecanismo de natureza metonímica,
predomina no surgimento de conectivos.
Já em Hopper e Traugott (apud MARTELOTTA 1996), vê-se uma tendência de
considerar a transferência metonímica, e não a metafórica, e a reanálise, e não a
analogia,
os
mecanismos
que
predominam
maciçamente
na
mudança
por
gramaticalização. Givón (apud MARTELOTTA 1996), por sua vez, ao analisar o grau
de integração entre cláusulas, cita o processo de reanálise.
1
CARVALHO, Maria C. M. de “A Metáfora como Mecanismo Motivador da Gramaticalização”.
WWW.simb,ueg.br/iconeletras/artigos/volume6/metafora-como-mecanismo-motivador.pdf, acessado
em 19/04/2013, às 10:49h.
30
Martelotta (1996) não diminui a importância da metáfora no processo, pois
considera que a gramaticalização envolve vários níveis:
A – Nível cognitivo: a gramaticalização (pelo menos no que se refere ao
nível morfológico) segue, como parece ocorrer com os processos de
mudança metafórica em geral, a tendência de usar elementos do mundo
concreto para o mundo abstrato. O elemento do léxico é mais concreto que a
gramática: é mais fácil conceptualizar substantivos do que relações textuais.
B – Nível Pragmático: a gramaticalização envolve uma intenção genérica do
falante de usar algo conhecido pelo ouvinte para fazê-lo compreender
melhor o sentido novo que ele quer expressar. Pode-se também ver nessa
passagem concreto > abstrato uma intenção comunicativa de facilitar a
compreensão do ouvinte a partir da utilização de conceitos mais concretos e
mais conhecidos para a expressão de ideias novas que surgem no decorrer
do processo comunicativo.
C - Nível Semântico: a gramaticalização, como processo de mudança
ocorrida no léxico, envolve o conhecimento por parte dos interlocutores dos
significados de origem das palavras envolvidas; caso contrário, o sentido
novo corre o risco de não ser detectado pelo ouvinte.
D – Nível Sintático: a gramaticalização ocorre basicamente em contextos
que a estimulem, o que significa que não só existem aspectos sintáticos que
propiciam a gramaticalização, mas principalmente, que esses aspectos são
responsáveis pelo fato de a mudança tomar efetivamente este e não aquele
caminho.
Baseados nessas considerações, podemos dizer que a gramaticalização ocorre por
mecanismos de natureza metafórica e de natureza metonímica. A metáfora constitui um
processo unidirecional de abstratização crescente, pelo quais conceitos que estão
próximos da experiência humana são utilizados para expressar aquilo que é mais
abstrato e, consequentemente, mais difícil de ser definido. A metonímia diz respeito aos
31
processos de mudança por contiguidade, no sentido de que são gerados no contexto
sintático.
O processo metafórico tem sua trajetória no espaço > discurso e, segundo Heine
et alii (apud MARTELOTTA 1996), os conceitos espaciais são usados, por processo
analógico, para designar pontos do texto já mencionados ou por mencionar. O elemento
espacial é, nesses casos, o dado mais concreto, que serve de base para o surgimento de
novos usos de valor menos concreto, que funcionam como elementos de organização
interna do texto. A metáfora espaço > discurso constitui um dos primeiros passos dos
circunstanciadores espaciais no sentido de se gramaticalizarem em operadores
argumentativos.
Hopper e Traugott (apud MARTELOTTA 1996) afirmam que apenas a reanálise
é um fenômeno ligado ao processo cognitivo da metonímia. Ele pode criar novas formas
gramaticais, embora não se deva deixar de lado o papel da analogia na gramaticalização.
Seguindo a tradição, o termo metonímia é usado para designar mudanças por
contiguidade no mundo extralinguístico. Com essa acepção, a metonímia constitui um
processo que, de acordo com Dubois et alii (apud MARTELOTTA 1996), ocorre,
quando uma noção é designada por um termo diferente do usual, sendo as duas noções
ligadas por uma relação de causa a efeito (como por exemplo, a colheita pode designar o
produto da colheita e não apenas a própria ação de colher), por uma relação de matéria a
objeto ou de continente a conteúdo (por exemplo, beber um copo), por uma relação da
parte ao todo (exemplo, uma vela no horizonte).
Para Martelotta (1996, p. 54) a metáfora constitui um processo unidirecional de
abstratização crescente, pelo qual conceitos que estão próximos da experiência humana
são utilizados para expressar aquilo que é mais abstrato e, consequentemente, mais
difícil de ser definido. A metonímia diz respeito aos processos de mudança por
contiguidade, no sentido de que são gerados no contexto sintático. No que diz respeito
aos mecanismos que fazem parte do processo de gramaticalização, o termo metonímia é
usado para designar a mudança que sofre uma determinada forma em função do
contexto linguístico e pragmático em que está sendo utilizada. A contiguidade a que nos
referimos é uma contiguidade posicional ou sintática, no sentido de que a mudança não
ocorre apenas com a forma em si, mas com a expressão toda da qual a forma faz parte.
Um dos mecanismos ligados ao processo cognitivo da metonímia é a reanálise.
Trata-se de um mecanismo que atua no eixo sintagmático, caracterizando-se por uma
32
reorganização da estrutura do enunciado, e uma reinterpretação dos elementos que o
compõem.
A reanálise é um mecanismo de mudança pelo qual o falante reorganiza a
estrutura do enunciado, reinterpretando os elementos que o compõem. A reorganização
estrutural do enunciado que caracteriza o fenômeno da reanálise pode implicar uma
modificação das fronteiras entre elementos do léxico na língua falada.
Outro mecanismo ligado à metonímia é o que Traugott e König (apud
MARTELOTTA 1996) chamam de inferência por pressão de informatividade – o
elemento é pressionado pelo contexto a admitir um sentido novo. Sendo um mecanismo
que predomina na gramaticalização de operadores argumentativos, a pressão da
informatividade constitui um processo em que, por convencionalização de implicaturas
conversacionais, o elemento linguístico passa a assumir um valor novo, que emerge de
determinados contextos em que esse sentido novo pode ser criado a partir do sentido
primeiro, independentemente do valor textual das sentenças envolvidas no processo de
gramaticalização.
Gonçalves et alii (2007, p. 49) afirmam que, segundo a grande maioria dos
pesquisadores, ao processo de gramaticalização subjazem processos metafóricos que
envolvem inferências a partir de limites conceptuais. As transferências conceptuais
decorrentes desse processo poderão seguir um percurso de alteração unidirecional com
base na hierarquia funcional. Isso pode ser captado pelo comportamento do
item/estrutura em face de estágios de gramaticalização.
Para Gonçalves et alii (2007), os pontos diferenciadores de atuação da metáfora e
da metonímia são:
A - Metáfora: opera no eixo sintagmático, com inter-relação sintática dos
constituintes,
ou por reanálise (abdução)
e envolve implicaturas
conversacionais.
B – Metonímia: opera no eixo paradigmático, na inter-relação de domínios
conceptuais, opera por analogia e envolve implicaturas convencionais.
A seguir abordamos os critérios de análise.
33
1.5 CRITÉRIOS DE ANÁLISE
Além dos princípios, das características e dos mecanismos de gramaticalização já
citados nos itens anteriores, temos também os critérios para análise do processo de
gramaticalização das orações, identificando e classificando as sentenças complexas.
C. Lehmann (apud GONÇALVES 2007) identificou seis parâmetros semânticosintáticos, que julga relevantes para o estudo da articulação das orações complexas:
A – Rebaixamento hierárquico da oração subordinada.
B – Nível sintático do constituinte ao qual a oração subordinada se vincula.
C – Dessentencialização da subordinada.
D – Gramaticalização do verbo principal.
E – Entrelaçamento das duas orações.
F – Explicitude da articulação.
Ainda de acordo com o autor (op. cit.), esses parâmetros mostram a autonomia
ou integração da oração subordinada, expansão ou redução da sentença subordinada ou
da principal e o isolamento ou articulação das orações. Para o autor, a subordinação é
um processo de gramaticalização e a perda de traços da oração é o que caracteriza a
gramaticalização. Isso significa que a oração absoluta, com período simples e
informação completa, tem total independência, a partir do momento em que temos um
período composto por subordinação ou coordenação, ela sofre o processo de
gramaticalização.
Cada um dos parâmetros identificados por C. Lehmann (apud GONÇALVES
2007, p. 86) é analisado fazendo uma comparação entre dois polos extremos: máxima
elaboração e máxima compressão de informação lexical e gramatical, representados no
seguinte quadro:
ELABORAÇÃO
COMPRESSÃO
Fraca
Rebaixamento hierárquico Forte
Parataxe
da oração subordinada
Encaixamento
Alto
Nível sintático
Baixo
Sentença
Palavra
34
Fraca
Dessentencialização
Oração
Forte
Nome
Fraca
Gramaticalização do verbo Forte
Verbo lexical
principal
Afixo gramatical
Fraco
Entrelaçamento
Forte
Orações de disjunção
Máxima
Orações de sobreposição
Explicitude da articulação
Síndese
Mínima
Assíndete
Cada um dos extremos, elaboração e compressão, corresponde a um tipo de
oração. No processo de combinação das orações, esses parâmetros não funcionam
sozinhos, ou seja, sempre atuam dois ou três ao mesmo tempo, mas nunca sozinhos. C.
Lehmann (apud GONÇALVES 2007, p. 87), postula que existem correlações entre
esses parâmetros, que podem ser ilustradas da seguinte forma:
A- Uma gramaticalização forte do verbo principal pressupõe uma
dessentencialização avançada ou um forte grau de entrelaçamento.
B- O entrelaçamento de orações por operação de alçamento de constituinte
pressupõe rebaixamento hierárquico e, por conseguinte, integração da
oração subordinada.
C- O entrelaçamento de orações mediante controle do sujeito da sentença
subordinada leva à dessentencialização dessa sentença, uma vez que esse
controle de sujeito tende a favorecer um construção subordinada nãofinita, o que implica uma forte dessentencialização.
Em face do exposto, consideramos que quanto mais uma oração está entrelaçada a
outra oração, maior é o seu estágio de gramaticalização. Esse item foi exposto para
exemplificar outra forma de análise, mas não o exploramos de forma profunda, uma vez
que nosso foco é a morfologia e essa questão só poderia ser analisada considerando-se a
sintaxe.
Neste capítulo, foi caracterizada a gramaticalização, abordando seus conceitos, o
processo de gramaticalização, seu percurso histórico, os princípios, as características e
os mecanismos de gramaticalização. Na sequência, tratamos da Linguística Funcional e
35
da Linguística Cognitiva, traçando seus conceitos, seus princípios, falaremos um pouco
sobre metáfora e, por último, abordamos também a enunciação.
36
CAPÍTULO II
FUNCIONALISMO LINGUÍSTICO E LINGUÍSTICA COGNITIVA
Neste capítulo abordamos o funcionalismo linguístico e a linguística cognitiva.
Apresentamos o conceito da linguística funcional e da cognitiva, focalizando também os
princípios do funcionalismo e os do cognitivismo, não deixando de tratar da metáfora, e
também da enunciação. Escolhemos abordar esses temas neste capítulo, pois o processo
de gramaticalização ocorre primeiramente na língua em uso para somente depois
aparecer nos textos escritos, porque os usuários fazem usos constantes de determinadas
formas linguísticas e elas, com o tempo, institucionalizam-se, passando a se fazer
presentes também nos registros escritos, podendo, então, ser objetos de análise e
pesquisa.
Falar de gramaticalização, é falar das mudanças e renovações que ocorrem no
sistema linguístico, razão pela qual não podemos deixar de focalizar também a
linguística funcional, que tem como objetivo verificar como se dá o processo
comunicativo de determinada língua, por exemplo, a língua portuguesa, baseada no uso.
Quando focamos a linguística funcional, observamos a forma como os usuários da
língua fazem uso dela, quais transformações realizam e que tipos de renovações criam
para ser melhor compreendidos pelos que os ouvem, para que possam atingir seus
objetivos, haja vista que ninguém fala simplesmente por falar, mas usa a palavra com
alguma intenção, algum objetivo e com a vontade de convencer alguém de alguma
coisa. Para obter êxito, o falante faz adaptações na sua maneira de falar.
A linguística cognitiva estuda a capacidade que os usuários da língua têm de
processar informações, ou seja, de decodificá-las, compreendê-las e armazená-las na
memória de longo termo, adaptando-se aos mais diversos e variáveis meios sociais nos
quais eles estão inseridos.
De acordo com Martelotta & Palomanes (2008, p. 179),
em termos mais específicos, podemos dizer que, de um modo geral, a
proposta cognitivista leva em conta aspectos relacionados a restrições
cognitivas que incluem a captação de dados da experiência, sua
compreensão e seu armazenamento na memória, assim como a
capacidade de organização, acesso, conexão, utilização e transmissão
adequada desses dados. É importante aqui registrar que esses aspectos
somente se concretizam socialmente, ou seja, não refletem apenas o
funcionamento de nossa mente como indivíduos, mas como seres
inseridos em um ambiente cultural. Em outras palavras, segundo essa
visão teórica há uma relação sistemática entre a linguagem,
pensamento e experiência. Isso nos leva a um outro aspecto da
37
proposta cognitivista, que incorpora os fenômenos referentes à
interação social. Esse outro aspecto de cunho social leva alguns
autores a acrescentar ao vocábulo designativo dessa escola linguística
o elemento sócio-, criando o termo sociocognitivismo. Esse termo
enfatiza a importância do contexto nos processos de significação e o
aspecto social da cognição humana. Mais do que isso, focaliza a
linguagem como uma forma de ação, ou seja, através da linguagem
comentamos, oramos, ensinamos, discursamos, informamos, enfim,
enquadramo-nos nos milhares papeis sociais que compõem nossa vida
diária.
Não poderíamos deixar de abordar também a Metáfora que, de acordo com os
autores que estudam a gramaticalização, é um dos motivadores desse processo. Ela é
muito usada para que possamos entender conceitos abstratos, por exemplo, quando
alguém nos diz que está quebrado, não significa que essa pessoa esteja de fato com os
ossos partidos como um objeto que pode ser quebrado em vários pedaços, mas, sim,
que ela está sem dinheiro ou cansada.
Para Martelotta (2011, p. 80-81),
começando a falar sobre metáfora, podemos definir esse processo
como um mecanismo de transferência entre domínios de
conhecimento, que tende a caminhar no sentido concreto para o
abstrato. O princípio é relativamente simples: utilizamos conceitos
mais concretos e mais fáceis de serem conceptualizados e transmitidos
comunicativamente para a expressão de valores mais abstratos e,
portanto, mais difíceis de serem conceptualizados. A metáfora
constitui, portanto, uma estratégia cognitiva que permite que nosso
pensamento caminhe por conceitos abstratos.
O autor (2011, p. 81) cita ainda como exemplo, frases do tipo: Ele é um mala
(mala = chato) ou Ele é o cabeça do grupo (cabeça = líder). Casos como esses são
tradicionalmente relacionados à noção de metáfora, reproduzem o mecanismo segundo
o qual um elemento de valor originalmente concreto é utilizado com sentido abstrato.
No item a seguir abordamos o conceito de Linguística Funcional e os princípios
do Funcionalismo, lembrando que não é nosso objetivo esgotar as possibilidades de
exposição sobre esse assunto, mas, sim, destacar os aspectos necessários à análise do
corpus, a língua falada no dia a dia em situação real de comunicação com suas
motivações.
Para Halliday (apud POGGIO 2002, p. 28),
uma teoria funcional parte da investigação de como a língua é usada,
buscando descobrir seus propósitos e como os falantes são capazes de
alcançá-los. Além do mais, essa teoria busca a explicação da natureza da
língua em termos funcionais, procurando observar se a língua tem sido
moldada para o uso e como uma forma da língua é determinada pela função.
38
Em se tratando da língua em uso não podemos deixar de nos basear na teoria do
funcionalismo para dar mais sustentação à pesquisa, que tem como objeto de análise um
material com registros da língua em uso no dia a dia. A seguir abordamos o conceito de
Linguística Funcional.
2.1 CONCEITO DE LINGUÍSTICA FUNCIONAL
Para Poggio (2002), é muito complicado desenvolver um estudo sobre o
funcionalismo em geral, devido à quantidade de abordagens existentes sobre o assunto.
De acordo com essa autora (2002, p. 27),
há funcionalistas direcionados ao estudo de um modelo abstrato de
uso da língua, outros direcionados à língua tal como essa se manifesta
em seu uso efetivo, alguns procuram estudar a variação
translinguística, enquanto outros buscam a causa da variação
intralinguística. Entretanto, há um denominador comum nos estudos
existentes, podendo-se concluir daí o que é a teoria funcionalista da
linguagem. Com o Círculo Linguístico de Praga e a Escola Britânica,
representada por M. A. K. Halliday, inicia-se o funcionalismo.
De acordo com Poggio (2002, p. 28), toda a abordagem funcionalista de uma
língua natural tem como principal objetivo verificar como se processa a comunicação
entre os usuários dessa língua, examinando, desse modo, a sua competência
comunicativa. Isso leva à consideração de que as expressões linguísticas são
configurações de funções e cada função leva a um modo diferente de significação no
enunciado.
Todas as vezes que pensamos em como os usuários utilizam a língua no dia a
dia, o que motiva determinadas construções frasais, quais sentidos essas construções
frasais têm ou quais sentidos os ouvintes constroem desses enunciados, devemos ter
como base para análise os conceitos da linguística funcional, pois seu objeto de
investigação é a língua em uso, o uso da linguagem e a produção de textos que é feita
na interação comunicativa entre os usuários da língua.
André Martinet (apud POGGIO, 2002, p. 28),
destaca que é preciso partir da observação da comunicação na língua
em sua primeira forma falada. A maneira como o mundo é percebido
depende de processos, segundo os quais, o homem comunica sua
experiência ao próximo e, ao funcionar, toda língua se impõe como
um instrumento de comunicação da experiência. Para descrevê-la de
maneira adequada, convém verificar o que contribui para a
39
comunicação. É, pois, a pertinência comunicativa que deve guiar o
linguista. Esse deverá observar os diferentes segmentos do enunciado,
guiado pela operação comunicativa, isto é, destacar as unidades
significativas mínimas (monemas) e as unidades distintivas (fonemas).
Para Gebruers (apud POGGIO 2002, p. 28), o que caracteriza a concepção de
linguagem, nessa abordagem, é seu caráter não só funcional, mas também dinâmico. Ela
é funcional porque mantém integrados o sistema linguístico e seus elementos com as
funções que têm que preencher, e dinâmica porque vê, na variabilidade da relação entre
estrutura e função, a força dinâmica subjacente ao constante desenvolvimento da
linguagem.
Outro aspecto que não podemos deixar de tratar é o caráter dinâmico das línguas.
Todas as línguas são dinâmicas, o que somente é percebido na interação comunicativa,
ou seja, na língua em tempo real. Essa dinamicidade nunca fez parte das gramáticas
normativas, porque nelas não há espaço para a dinamicidade, pois nelas existem apenas
normas que não são dinâmicas, mas sim, rígidas, rigorosas, que não podem ser
mudadas, transformadas, alteradas. Só há espaço para alterações na língua em uso no
dia a dia, que é onde percebemos toda a dinamicidade da língua. As pessoas falam e
são compreendidas, independente do que estejam falando e da forma como estão
falando, seja por meio de código, de metáforas, de apelidos, elas são entendidas,
conseguem construir sentidos.
De acordo com Poggio (2002), os temas discutidos na investigação funcionalista
são:
- Relação entre discurso e gramática;
-
Liberdade
organizacional
do
falante
dentro
construcionais;
- Distribuição de informação e relevo informativo;
- Fluxo de informação e fluxo de atenção;
- Gramaticalização;
- Motivação icônica e competição de motivações;
- Fluidez das categorias (protótipos);
- Consideração do dinamismo da língua (mais geral).
A seguir abordamos os princípios do funcionalismo.
das
restrições
40
2. 2 PRINCÍPIOS DA TEORIA DO FUNCIONALISMO
O termo funcionalismo teve origem em 1926 no Círculo Linguístico da Escola de
Praga e seu idealizador foi o linguista Tcheco Vilém Mathesius. Neves (2004, p. 17 –
18) afirma que a designação Escola Linguística de Praga se dá a um grupo que
começou a atuar antes de 1930, para os quais a linguagem, acima de tudo, permite ao
homem reação e referência à realidade extralinguística. As frases são vistas como
unidades comunicativas que veiculam informações, ao mesmo tempo em que
estabelecem ligação com a situação de fala e com o próprio texto linguístico. Nesse
sentido, o que se analisa são as frases efetivamente realizadas, para cuja interpretação
se atribui especial importância ao contexto, tanto verbal como não verbal. Concebe-se
que, mesmo no nível do enunciado realizado, podem encontrar-se regularidades que
licenciam tentativas de organização e descrição. A visão da Escola de Praga está na
definição de língua, vista como um “sistema de meios apropriados a um fim” (Thèses,
1929; apud ILARI, 1992, p. 25), e um “sistema de sistemas” (ILARI, 1992, p.24), já
que a cada função corresponde um subsistema.
A Escola de Praga teve dois linguistas russos que com suas pesquisas
conseguiram um lugar de destaque, Nikolaj Trubetzkoy e Roman Jakobson. As
pesquisas de Trubetzkoy contribuíram para o desenvolvimento dos estudos de
fonologia. Já Jakobson por meio de seus estudos introduziu a noção de marcação na
morfologia. Ele acrescenta que ao emitir uma mensagem há seis funções da linguagem:
- função referencial: ligada ao contexto;
- função emotiva: ligada ao remetente;
- função conativa: ligada ao destinatário;
- função fática: ligada ao contato;
- função metalinguística: ligada ao código;
- função poética: ligada à mensagem.
A base do funcionalismo está nas reflexões feitas pelos estudiosos da Escola de
Praga haja vista que esses pesquisadores utilizavam muito os termos função/funcional e
depois deles surgiram diversos grupos que foram um pouco mais além nos estudos
funcionalistas do que os linguistas desse grupo.
41
De acordo com Cunha (2008, p. 159),
embora frequentemente contrastado ao estruturalismo, o
funcionalismo surge como um movimento particular dentro do
estruturalismo, enfatizando a função das unidades linguísticas: na
fonologia, o papel dos fonemas (segmentais e suprasegmentais) na
distinção e demarcação das palavras; na sintaxe, o papel da estrutura
da sentença no contexto. Com relação ao ponto de vista saussuriano,
esses linguistas se opunham à distinção nítida entre sincronia e
diacronia, assim como à noção de homogeneidade do sistema
linguístico. Sua contribuição pode ser sintetizada no uso dos termos
função/funcional, no estabelecimento dos fundamentos teóricos
básicos do funcionalismo e nas análises que levam em conta
parâmetros pragmáticos e discursivos.
Para Neves (2006, p. 17), estão no centro das investigações funcionalistas
questões como:
- relações entre discurso e gramática (porque o discurso conforma a
gramática, mas principalmente porque ele não é encontrável despido da
gramática);
- liberdade organizacional do falante, dentro das restrições construcionais
(porque o falante processa estruturas regulares, mas é ele que faz as escolhas
que levam a resultados de sentido e a efeitos pragmáticos);
- distribuição de informação e relevo informativo (porque os diversos
eventos têm, inerentemente, diferente importância comunicativa, mas é o
falante que lhes confere relevo, segundo seus propósitos);
- fluxo de informação e fluxo de atenção (porque no discurso há sempre
uma informação que flui, mas é o falante que dirige, dentro de um ponto de
vista, o fluxo de atenção que „empacota‟ a informação, para apresentá-la ao
ouvinte);
- gramaticalização e suas bases cognitivas (porque a atividade do discurso
pressiona o sistema, chegando a reorganizar o quadro das estruturas
linguísticas, embora dentro de regularidades previsíveis);
- motivação icônica e competição de motivações (porque forças externas ao
sistema interagem com forças internas, em contínua busca e manutenção de
equilíbrio);
- fluidez de categorias, e prototipia (porque, no lento processo de extensão
de membros de uma categoria, há uma constante alteração de limites, com
redefinição de protótipos).
42
Continua a autora (2006, p. 17), afirmando que, além das questões que estão no
centro das investigações funcionalistas, são também considerados pontos centrais, numa
gramática funcionalista:
- O uso (em relação ao sistema);
- O significado (em relação à forma);
- O social (em relação ao individual).
De acordo com Neves (2006, p. 18),
rejeitada uma preocupação com a pura competência para a
organização gramatical das frases, a reflexão dirige para a
multifuncionalidade dos itens, ou seja, para uma consideração das
estruturas linguísticas exatamente pelo que elas representam de
organização dos meios linguísticos de expressão das funções a que
serve a linguagem, que por natureza é funcional. Estruturas
linguísticas são, pois, configurações de funções, e as diferentes
funções são os diferentes modos de significação no enunciado, que
conduzem à eficiência da comunicação entre os usuários de uma
língua. Nessa concepção, funcional é a comunicação, e funcional é a
própria organização interna da linguagem. Desse modo, o
funcionalismo liga-se historicamente às propostas da Escola
Linguística de Praga, que “concebiam a linguagem articulada como
um sistema de comunicação, preocupavam-se com seus usos e
funções, rejeitavam as barreiras intransponíveis entre diacronia e
sincronia e preconizavam uma relação dialética entre sistema e uso”
(Neves, Braga e Paiva, 1997, p. 6). Ainda mais se liga a essas
propostas por assentar uma consideração dinâmica da linguagem, pela
qual as relações entre estrutura e função são vistas como instáveis,
dada a força dinâmica que está por detrás do constante
desenvolvimento da linguagem (Gebruers, 1987). Dinamismo, afinal,
é componente necessário de qualquer consideração dos componentes
linguísticos (sintático-semânticos) vistos no uso real, ou seja, na
interação verbal (componente pragmático).
Como podemos verificar na citação acima toda a reflexão de base funcionalista
objetiva verificar e analisar o movimento de multifuncionalidade dos itens, sempre
levando em consideração a eficiência da comunicação entre os usuários de uma língua
durante o processo de interação comunicativa que se dá na língua em uso em tempo
real, revelando que, durante o desenvolvimento da linguagem, há uma força dinâmica
constante, auxiliando a todo instante o seu desenvolvimento. Tudo isso porque o caráter
dinâmico da linguagem é um componente necessário em toda situação de interação
verbal.
43
Neves (2006, p. 18-19) cita quatro linguistas que se destacaram nos estudos
funcionalistas, são eles: Michael Halliday, Talmy Givón, Eugenio Coseriu e Simon
Dick.
Michael Halliday, de acordo com Neves (2006), enfatiza a noção de „função‟,
vendo-a como o papel que a linguagem desempenha na vida dos indivíduos, servindo
aos muitos e variados tipos universais de demanda. Ele assenta a sua gramática numa
base sistêmica (e paradigmática), na qual o enunciado não parte de uma estrutura
profunda abstrata, mas de escolhas que o falante faz quando o compõe para um
propósito específico, com elas produzindo significado.
Talmy Givón, segundo Neves (2006), destaca o postulado da não-autonomia do
sistema linguístico, na concepção da estruturação interna da gramática como um
organismo que unifica sintaxe, semântica e pragmática (sendo a sintaxe a codificação
dos domínios funcionais que são: a semântica, proposicional; a pragmática, discursiva)
e no exame dos aspectos icônicos da gramática.
Ainda segundo Neves (2006), para Givón (1995), a língua não pode ser descrita
como um sistema autônomo porque a gramática só pode ser entendida por referência a
parâmetros como cognição e comunicação, processamento mental, interação social e
cultura, mudança e variação, aquisição e evolução.
Eugenio Coseriu, conforme Neves (2006), fixa-se particularmente na proposta
estruturalista de estabelecer os significados gramaticais distinguidos na língua e as
oposições entre os significados, entendendo a língua como estruturação de conteúdos,
como sistema de funções, enfim, como um conjunto de paradigmas funcionais em que
se estabelecem oposições funcionais. Bechara (1991, p. 11) aponta que a gramática de
Coseriu veio “sanar” uma “lacuna na identificação, descrição e investigação” das
“funções idiomáticas”. Para provar isso, o gramático brasileiro caracteriza alguns tipos
de gramáticas existentes (as estruturais do tipo „bloomfieldiano‟, a da Escola de Praga, a
glossemática, a gramática transformacional), e conclui qualificando a gramática
funcional de Coseriu como “a própria paradigmática gramatical”. Apoiado em
Gabelentz (1891), Bechara (1998, p. 17-18) diz que a gramática de Coseriu é estrutural
e funcional.
Para Neves (2006), Simon Dick focaliza particularmente a visão da interação
verbal por via dos usuários, preocupando-se, entretanto, em valorizar o papel da
expressão linguística na comunicação, e, por isso mesmo, dedicando-se a prover uma
formalização generalizante da gramática. Esse pesquisador fazia os seguintes
44
questionamentos: como „opera‟ o usuário da língua natural? Ou, em outras palavras:
Como os falantes e os destinatários são bem sucedidos comunicando-se uns com os
outros por meio de expressões linguísticas? Ou ainda: Como lhes é possível, por meios
linguísticos, fazer-se entender mutuamente, ter influência no estoque de informação
(incluindo
conhecimento,
crenças,
preconceitos,
sentimentos),
e,
afinal,
no
comportamento prático um do outro? (Dick, 1997, p. 1). O que se propõe, afinal, é que a
teoria da gramática constitui um subcomponente integrado da teoria do “usuário da
língua natural” e que a descrição linguística inclui referência ao falante, ao ouvinte e a
seus papeis e estatuto dentro da situação de interação determinada socioculturalmente.
Poggio (2002, p. 33) afirma que “as funções da linguagem propostas por M. A. K.
Halliday - função ideacional, função interpessoal e função textual - são extrínseca e
intrínseca, pois a multiplicidade funcional é refletida na organização interna e o estudo
da estrutura linguística nos mostra as necessidades da língua.”
- A função ideacional serve para a expressão do conteúdo. O falante e o ouvinte
organizam e incorporam sua experiência dos fenômenos do mundo interno e os atos
linguísticos de se expressar e de entender. Essa função engloba duas subfunções: a
experiencial e a lógica.
- Por meio da função interpessoal, o falante emprega a linguagem como
instrumento para participar do ato da fala, expressando seu julgamento e suas atitudes
bem como as relações que mantém entre ele e o ouvinte. O elemento interpessoal
extrapola as funções linguísticas,
atuando num contexto mais amplo, no
estabelecimento e manutenção dos papeis sociais, inerentes à linguagem. A referida
função serve para organizar e expressar o mundo interno e externo indivíduo.
- A função textual refere-se à criação do texto, e, por meio dela, a linguagem
faz as unidades linguísticas operarem no contexto e na situação. O locutor produz o
texto e o interlocutor pode reconhecê-lo, sendo ele uma unidade operacional. A função
textual compreende a organização interna da frase, seu significado como mensagem em
si mesma e na sua relação com o texto.
Há diferenças entre o formalismo e funcionalismo que devem ser observadas e
levadas em consideração quando desenvolvemos pesquisas funcionalistas. A seguir
45
mostramos um quadro com as diferenças existentes entre o formalismo e o
funcionalismo que, para Neves (2004, p. 46), sintetiza o que Dik afirmou sobre o
paradigma formal e o paradigma funcional, ou seja, no paradigma formal não se
observam os modos de uso da língua, enquanto, no funcional, observam-se a língua em
uso e suas funções, os aspectos determinantes na interação comunicativa humana.
Como definir a língua
PARADIGMA
FORMAL
Conjunto de orações.
Principal função da
língua
Correlato psicológico
Expressão de pensamentos.
O sistema e seu uso
O estudo da competência
tem prioridade sobre o da
atuação.
As orações da língua
devem descrever-se
independentemente do
contexto/situação.
Língua e
contexto/situação
Aquisição da linguagem
Universais lingüísticos
Relação entre a sintaxe, a
semântica e a pragmática
Competência: capacidade
de produzir, interpretar e
julgar orações.
Faz-se com uso de
propriedades inatas, com
base em um input restrito e
não estruturado de dados.
Propriedades inatas do
organismo humano.
A sintaxe é autônoma em
relação à semântica; as
duas são autônomas em
relação à pragmática; as
prioridades vão da sintaxe
à pragmática, via
semântica.
PARADIGMA
FUNCIONAL
Instrumento de interação
social.
Comunicação.
Competência
comunicativa: habilidade
de interagir socialmente
com a língua.
O estudo do sistema deve
fazer-se dentro do quadro
do uso.
A descrição das expressões
deve fornecer dados para a
descrição de seu
funcionamento num dado
contexto.
Faz-se com a ajuda de um
input extenso e estruturado
de dados apresentado no
contexto natural.
Explicados em função de
restrições: comunicativas;
biológicas ou psicológicas;
contextuais.
A pragmática é o quadro
dentro do qual a semântica
e a sintaxe devem ser
estudadas; as prioridades
vão da pragmática à
sintaxe, via semântica.
Halliday (1985) (apud NEVES 2004, p. 47-48) distingue as gramáticas
funcionais das formais da seguinte forma:
- As gramáticas formais:
46
1 – Interpretam a língua como uma lista de estruturas entre as quais, num
segundo passo, podem ser estabelecidas relações regulares;
2 – Tendem a:
- enfatizar os traços universais da língua;
- tomar a sintaxe como base da língua (gramática arbitrária);
- organizá-la, desse modo, em torno da frase.
- As gramáticas funcionais:
1 – Interpretam a língua como uma rede de relações, entrando as estruturas
como a realização das relações;
2 – Tendem a:
- enfatizar variações entre línguas diferentes;
- tomar a semântica como base (gramática natural);
- organizá-la, desse modo, em torno do texto ou discurso.
Dos quatro lingüistas apresentados terão maior importância para nosso trabalho
Michael Halliday e Simon Dik:
- Michael Halliday porque, fixando-se na noção de „função‟, entendeu-a como
algo que é desempenhado na vida dos indivíduos pela linguagem humana e por isso
serve aos muitos e variados tipos universais.
- Simon Dick porque seu olhar está voltado para a interação verbal dos usuários,
preocupando-se em valorizar o papel da expressão linguística na comunicação. Os
seguintes questionamentos norteiam seu trabalho:
- Como „opera‟ o usuário da língua natural?
- Como os falantes e os destinatários são bem sucedidos comunicando-se uns
com os outros por meio de expressões linguísticas?
- Como lhes é possível, por meios linguísticos, fazer-se entender mutuamente,
ter influência no estoque de informação (incluindo conhecimento, crenças, preconceitos,
sentimentos), e, afinal, no comportamento prático um do outro?
47
Assim, foi pelo modo de esses pesquisadores enxergarem o funcionalismo que os
escolhemos para fundamentar a análise de nosso trabalho. A seguir abordamos
gramática e cognição.
2. 2. 1 GRAMÁTICA E COGNIÇÃO
Para o funcionalismo, há uma relação entre gramática e cognição, pois quando
falamos, nosso interlocutor pode compreender a mensagem que queremos transmitir,
ou seja, por meio de nossa fala é possível que nossos ouvintes construam sentidos.
Entretanto, não podemos dizer que nosso ouvinte que constrói sentidos de forma
desorganizada e aleatória mas, ao contrário, ele constrói sentidos de forma organizada e
é por isso que estabelecemos a relação entre gramática e cognição.
Hengeveld (2003) (apud NEVES, 2006, p.22) diz que “o componente cognitivo
representa o conhecimento (de longo termo) do falante, tal como sua competência
linguística” (p. 4). Os três níveis da gramática (o interpessoal, o representacional e o da
expressão, hierarquicamente organizados) interagem com esse componente cognitivo,
assim como interagem com um componente comunicativo, que “representa a
informação linguística (de curto termo) derivável do discurso precedente e a
informação não-linguística, perceptual, derivável da situação de fala” (p. 4). A
informação de curto termo pode ser selecionada para uma estocagem de longo termo e
passar para o componente cognitivo.
A seguir fazemos uma breve apresentação do conceito de linguística cognitiva, já
que, quando estudamos a gramaticalização, devemos nos apoiar tanto na linguística
funcional quanto na linguística cognitiva que está voltada para a conceitualização
humana do mundo. Ela mostra como caracterizamos os seres e os objetos, o que
acontece com nossa mente quando nos deparamos com determinada situação cotidiana,
quais lembranças nos veem à memória e qual é nossa reação diante de tal situação. A
seguir abordamos o conceito de linguística cognitiva.
2.3 CONCEITO DE LINGUÍSTICA COGNITIVA
De acordo com o Dicionário de Linguagem e Linguística, 2008, p. 180 –181, a
Linguística Cognitiva (cognitive linguistics) – é a abordagem da língua que se baseia
na percepção da conceitualização humana do mundo, ou seja, de acordo com nossa
48
experiência de vida conceituamos tudo o que existe no mundo. No século XX, a
abordagem mais influente no estudo da linguagem foi o estruturalismo: os linguistas
se interessaram muito pelos aspectos meramente estruturais dos próprios sistemas
linguísticos, tais como o sistema de sons e o sistema de gramática. Uma característica
central do estruturalismo é que ele focaliza a estrutura interna da língua e não o modo
como a língua se relaciona com o mundo não-linguístico. Contudo, a partir dos anos
oitenta, um número cada vez maior de linguistas foi se interessando seriamente por um
projeto mais ambicioso: o esclarecimento dos modos como os seres humanos
percebem, categorizam e conceitualizam o mundo. A esse novo empreendimento dá-se
o nome de Linguística Cognitiva.
Ainda de acordo com o Dicionário de Linguagem e Linguística, 2008, p. 181, um
dos primeiros linguistas que contribuiu para a abordagem cognitivista foi o linguista
teórico americano George Lakoff, que escreveu amplamente sobre a importância da
metáfora como um fator que dá forma às línguas. Os estudiosos da linguagem Lakoff
e Jonhson (1980) por meio de suas pesquisas descobriram que a linguagem revela um
grande sistema conceptual metafórico, que direciona e influencia os pensamentos e as
ações desenvolvidas por cada pessoa durante suas expressões lingüísticas. Os
pesquisadores comprovaram, quando analisaram expressões lingüísticas, que as
pessoas compreendem o mundo por meio de metáforas, pois conceitos simples de
tempo, quantidade, estado e ação são compreendidos metaforicamente. Para eles, a
metáfora une razão e imaginação. Os estudiosos da linguagem descobriram que as
pessoas compreendem o mundo por meio de metáforas, e que elas são construídas com
base em nossa experiência corporal, ou seja, nosso corpo e nossa mente interagem para
dar sentido ao mundo. Eles propõem também que nossas experiências constituiriam
uma síntese, pela qual a metáfora, seria, por exemplo, uma racionalidade imaginativa,
ficando, dessa maneira, evidente a união entre razão e imaginação. Partindo dessa
premissa, Lakoff & Jonhnson (2002) usam o conceito de metáfora, como um conceito
que existe para experienciar uma coisa em termos de outra. A expressão metafórica é
usada para se referir às expressões linguísticas individuais. Para finalizar, os autores
(2002) afirmam que a categorização reflete a cognição humana, ou seja, as pessoas
manipulam símbolos formais vazios de sentido, mas usam esses mesmos símbolos
porque eles foram construídos por meio da capacidade humana de categorização. E a
metáfora faz parte da capacidade que o homem tem de produzir sentido por meio da
categorização, ela é um instrumento de base cognitiva.
49
A linguística cognitiva está baseada na percepção de mundo que nós, falantes e
usuários da língua, temos e que transferimos para nossa fala quando participamos de
uma interação comunicativa. Todo processo comunicativo em que há interação face a
face está baseado na percepção de mundo que o usuário da língua tem, pois ninguém
fala simplesmente por falar. Em todo momento de comunicação, o usuário mostra
como ele percebe, categoriza e conceitualiza o mundo. Por mais que não queiramos,
sempre fazemos isso quando nos comunicamos e é esse modo de perceber, categorizar
e conceitualizar o mundo que abordamos nesse capítulo.
Para a Linguística Cognitiva, o contexto no qual o falante está inserido orienta a
construção do significado, ou seja, é baseado no contexto que os falantes/ouvintes
constroem significados, dando ênfase à experiência humana. A cognição mostra a
capacidade que as pessoas têm para processar informações e adaptá-las às mais
diversas situações comunicativas.
Nas palavras de Martelotta & Alonso (2012, p. 95),
o cognitivismo, ao contrário, adota uma perspectiva integradora, no
sentido de que compreende a cognição como um conjunto de sistemas
conectados, que envolve, além da linguagem, nossa percepção de
mundo que nos cerca, nossa capacidade de armazenar as informações
na memória, nossos sentimentos, as informações do contexto
sociocultural em que nos inserimos.
A linguagem está diretamente relacionada ao nosso pensamento e à nossa
experiência de vida, ou seja, nosso conhecimento enciclopédico. Nossa capacidade de
enxergarmos, sentir, ouvir e tocar em tudo o que está ao nosso redor, significa dizermos
que nossas experiências são estabelecidas a partir de nosso corpo.
Pensando dessa maneira, não podemos afirmar que nossa mente não tem
nenhuma relação com nosso corpo, muito pelo contrário, ela é quem transmite todas as
informações para nosso corpo e o pensamente é corporificado, ou seja, sua estrutura se
relaciona à configuração de nosso corpo e suas restrições de percepção.
Continuam os autores (2012, p. 95) afirmando que “é importante registrar que
todo esse processo de significação se associa a rotinas comunicativas que são moldadas,
mantidas e modificadas pelo uso (Langacker, 1986).” Isso acontece porque a
comunicação é uma atividade compartilhada, as pessoas quando participam desse
processo estão compartilhando informações e experiências por elas vivenciadas e o
processo de produção de sentido ocorre quando o falante e o ouvinte entendem e
compreendem uma ao outro no contexto de interação comunicativa, que prova o quanto
50
é importante a interação comunicativa os ambientes e os meios sociocultural para a
compreensão da linguagem humana.
Tal como a Linguística Funcional, a Linguística Cognitiva também adota uma
perspectiva baseada no uso, tendo com ideia central que o contexto orienta a
construção do significado e ela está relacionada ao conhecimento enciclopédico do
usuário da língua. É por meio do seu conhecimento de mundo que o usuário constrói
sentidos
e
significados
para
as
diversas
situações
comunicativas
até
a
convencionalização das formas linguísticas.
Langaker (1987) (apud FERRARI 2011, p. 19-20), propõe quatro especificações,
que acontecem geralmente correlacionadas a determinadas informações na rede
enciclopédica:
A - convencional: é a informação amplamente conhecida e compartilhada pelos
membros de uma comunidade de fala, que tem, portanto, alta probabilidade de
ser mais central para a representação mental de um determinado conceito
lexical. Se eu souber que dois amigos meus são alérgicos a gato, por exemplo,
esse conhecimento não passará a fazer parte do significado convencional de
gato, embora possa enriquecer minha compreensão do conceito. Tendo em vista
que a convencionalidade é uma questão de grau, esse conhecimento pode ser
considerado periférico. Se, entretanto, a fama dos meus amigos começar a
crescer e eles se tornarem figuras nacionalmente proeminentes, a simples
menção da palavra gato poderá trazer de modo imediato à mente dos falantes de
língua portuguesa o problema alérgico desses indivíduos. Teríamos que admitir,
nesse caso, essa especificação como parte do significado convencional de gato.
B – Genérica: diz respeito ao grau de generalização da informação. O fato de
que meus amigos são alérgicos ao meu gato Mimi é bastante específico,
enquanto o fato de que eles são alérgicos a gatos em geral é parcialmente
genérico; já a informação de que algumas pessoas são alérgicas a gatos é ainda
mais genérica. Os parâmetros convencional e genérico tendem a se superpor, já
que quanto mais genérica for uma caracterização, maior sua probabilidade de
ser convencional. Entretanto são parâmetros independentes. Na situação
imaginada, se toda uma comunidade de fala souber da alergia de meus dois
amigos ao meu gato de estimação, a informação passará a ser convencional, mas
51
nem por isso genérica. Seria o caso pouco usual, mas não impossível, de uma
informação específica que adquire caráter convencional.
C – Intrínseca: é a caracterização do significado que não leva em conta fatores
externos. A forma, por exemplo, é uma propriedade altamente intrínseca, pois
diz respeito às relações entre partes de um objeto e não requer interação ou
comparação a outras entidades. O tamanho, por sua vez, implica comparação a
outros objetos ou a determinada escala de medida, de modo que não é tão
intrínseco quanto a forma. No caso de comportamentos, alguns são intrínsecos,
como os miados emitidos pelo gato, e outros são mais extrínsecos, como caçar
ratos ou arranhar os móveis. O fato de que os gatos possam ser associados às
bruxas, por exemplo, é altamente extrínseco.
D – Característica: é a informação suficiente para identificar o membro de uma
classe, dado seu caráter único. A forma, por exemplo, costuma ser mais
característica do que a cor: um gato pode ser reconhecido pela forma, mas a
observação de que uma entidade é preta não seria suficiente para identificá-la
como gato.
Esses fatores constituem uma proposta do autor (1987) para o tratamento do
significado na rede enciclopédica do usuário da língua.
Lakoff (1987), de acordo com Ferrari (2011, p. 22), retoma a proposta filosófica
de Putnam (1981) com relação à razão humana, adotando o termo realismo
experiencialista. Assim, embora reconhecendo a existência da realidade externa, o
realismo experiencialista estabelece que dada a forma e configuração de nossos corpos e
cérebros, estabelecemos necessariamente uma perspectiva particular entre várias
perspectivas possíveis e igualmente viáveis em relação ao mundo. Seus principais
postulados são:
A - O pensamento é enraizado no corpo, de modo que as bases de nosso sistema
conceptual são percepção, movimento corporal e experiências de caráter físico e
social.
52
B – O pensamento é imaginativo, de forma que os conceitos que não são
diretamente ancorados em nossa experiência física empregam metáfora,
metonímia e imagética mental, caracterizadas por ultrapassar o simples
espelhamento literal da realidade.
C – O pensamento tem propriedades gestálticas: os conceitos apresentam uma
estrutura global não atomística, para além da mera reunião de “blocos
conceptuais” a partir de regras específicas.
Ainda conforme Ferrari (2011, p. 22), “para o realismo experiencialista, a razão
humana é algo que surge em nossa rede enciclopédica por meio da natureza de nosso
organismo e fatores que contribuem para nossa experiência individual e coletiva: a
herança genética, as características do ambiente em que vivemos.”
Nossa experiência de vida individual, coletiva e o meio social em que vivemos
são fundamentais para nossa formação social. É ela que nos dá suporte para
entendermos e compreendermos a diversas situações cotidianas para nos socializarmos,
sem ela não conseguiríamos conceituar e caracterizar todas as situações cotidianas que
presenciamos ao longo de nossa trajetória no mundo interagindo com as pessoas. A
seguir abordamos os princípios que regem a teoria do cognitivismo, categorização,
teoria dos protótipos, iconicidade, frames, teoria dos espaços mentais e linguagem
corporificada. A seguir abordamos os princípios da teoria do cognitivismo.
2.4 PRINCÍPIOS DA TEORIA DO COGNITIVISMO
2. 4. 1 CATEGORIZAÇÃO
A categorização nada mais é do que o agrupamento de entidades, sejam elas
objetos, pessoas, lugares, animais etc. em classes específicas. É por meio da
categorização que formamos conceitos e os organizamos formando dessa maneira
nosso conhecimento e experiências de mundo.
De acordo com Ferrari (2011, p. 31-32),
com relação à linguagem, o processo de categorização é, de fato,
essencial. Na verdade, para falarmos do mundo, agrupamos um
conjunto de objetos, atividades ou qualidades em classes específicas.
Assim, a um conjunto de objetos semelhantes (mas não
53
necessariamente idênticos atribuímos o nome árvore; fazemos
referência a um conjunto de atividades com características julgadas
similares usando expressões como trabalhar, brincar, e assim por
diante. Da mesma forma, qualificamos as pessoas que compartilham
determinadas características como calmas, engraçadas ou tagarelas.
Nossas capacidades de categorização estão intimamente relacionadas
à nossa capacidade de memória. Podemos agrupar objetos em
categorias para falarmos do mundo, mas não podemos criar um
número infinito de categorias, pois isso acarretaria em sobrecarga em
termos de processamento e armazenamento de informações.
A organização em categorias envolve representantes que servem de referência
para os demais membros desses grupos. Esses participantes recebem o nome de
protótipos. Por exemplo: cadeira, sofá, mesa e cama são indicados como mobília.
Entretanto, deve se levar em consideração que devem ser considerados os traços
característicos dos membros dessas categorias para poderem ser chamados de
protótipos.
Não podemos deixar de lado também o contexto, as experiências cognitivas
locais, como registros compartilhados de uma conversa em andamento (contexto
linguístico) ou parâmetros relacionados ao tipo de evento de fala (contexto social)
caracterizam a noção de contexto, ou seja, contexto é todo o meio social em que o
indivíduo encontra-se inserido no seu dia a dia na sua prática interativa.
O contexto social mostra qual é o tipo de situação comunicativa de interação que
os falantes participam e qual a relação social que existe e se estabelece entre eles,
incluindo também as relações de poder existentes nos meios sociais. No item seguinte
abordamos a teoria dos protótipos.
2. 4. 2 TEORIA DOS PROTOTIPOS
A teoria dos protótipos mostra qual representante de uma determinada categoria
apresenta um número maior de características e semelhanças entre si, revelando os
atributos mais comuns entre seus representantes. Por exemplo: Na categoria dos
pássaros poderíamos incluir o João de Barro, o Pintassilgo, já a galinha não poderia ser
incluída de forma alguma, porque, apesar de ter asas, botar ovos, ela não consegue voar
da maneira como o Pintassilgo, o João de Barro, sendo assim, a galinha não pode ser
incluída com representante prototípico da categoria dos pássaros.
54
Abreu (2010, p. 24-25)
afirma que a teoria dos protótipos tornou-se importante não só para o
estudo da categorização, mas em grande parte para o estudo das
línguas em geral, pois permite descrever mais adequadamente uma
série de fatos gramaticais. Por exemplo, frases com as conjunções
(mas e contudo) são adversativas, mas contudo é a única que pode ser
posta em qualquer lugar da oração, com o mas é impossível fazer isso.
Conclusão, como mas é a única que mantém a propriedade inerente à
definição de conjunção que é a de ser elemento que liga uma oração à
outra. Contudo, pelo fato de poder ficar em qualquer outra posição,
não mantém essa propriedade. Podemos, pois, dizer que o mas é uma
conjunção prototípica, mas contudo e outras como porém, todavia,
entretanto, são não prototípicas, pois podem ocupar qualquer posição
dentro da oração subordinada.
No item seguinte abordamos a iconicidade.
2. 4. 3 ICONICIDADE
A linguagem humana é um sistema de representações do mundo real ou de
mundos possíveis. Os usuários da língua em sua prática diária de interação verbal
fazem classificações, definições e categorizações de seu mundo real ou mundo possível
a partir de suas percepções. Toda a vez que alguma palavra é criada, ela é criada por
que houve algum tipo de motivação para a sua criação, que não ocorreu por acaso e
esse processo resulta da necessidade.
Existe uma relação entre as partes da estrutura linguística e as partes da estrutura
do significado, pois a estrutura da língua é um reflexo da experiência de vida e de
mundo de cada indivíduo, usuário da língua. Logo, há basicamente a relação existente
entre a forma linguística e seu significado, seu referente.
Abreu (1997, p. 18) afirma que “iconicidade é a correspondência entre a ordem de
termos dentro de uma oração, ou de orações dentro de um período, e a ordem dos
eventos no mundo real ou em mundos possíveis, por exemplo:
João deu uma xícara de chá a Vanessa.
existe iconicidade, uma vez que, em um „tempo 1‟, temos a xícara de chá nas
mãos de João e, em um „tempo 2‟, ela está nas mãos de Vanessa. A ordem dos termos
reflete essa sequência temporal.”
55
Martelotta (2011, p. 112) afirma que “podemos compreender iconicidade como
uma motivação para os fenômenos linguísticos ocorrerem de uma forma ao invés de
outra, ou seja, como uma inclinação oposta a uma outra tendência existente nas línguas:
a arbitrariedade.”
A seguir abordamos os frames e scripts.
2. 4. 4 FRAMES E SCRIPTS
Todo evento social tem diversos momentos, palavras e ideias que estão ligadas ao
seu significado, por exemplo: se um amigo nos convida para assistir sua defesa de
mestrado, associamos essa informação a ideias como uma sala, nosso amigo fazendo a
apresentação do trabalho, professores compondo uma banca examinadora fazendo
pergunta sobre seu trabalho final e algumas pessoas assistindo prestigiando a defesa da
dissertação. A mesma comparação podemos fazer em relação a outros eventos sociais,
casamento, Natal, aula de português ou outra disciplina.
Nas palavras de Kövecses (apud ABREU 2010, p. 37) “frames são construtos de
nossa imaginação – e não representações mentais que se encaixam diretamente em uma
realidade objetiva preexistente, frames são dispositivos imaginativos da mente”.
Para Ferrari (2011), o termo frame designa um sistema estruturado de
conhecimento, armazenado na memória de longo prazo e organizado a partir da
esquematização da experiência. Os frames são as imagens, as fotografias que temos
guardadas em nossa memória de determinados eventos que acontecem ao longo de
nossas vidas, fazendo com que sempre possamos construir sentidos, fazendo
associações ao que ouvimos ou lemos para que saibamos o conjunto de informações que
acompanhará determinada informação.
Podemos seguir a mesma linha de raciocínio em relação à interpretação das
palavras, pois sua interpretação requer do usuário o acesso a estruturas que relacionam o
conhecimento de estruturas que relacionam elementos e entidades que fazem parte da
experiência humana, levando em consideração as questões sócio-culturais dessa
experiência. Por exemplo, quando pensamos nos seguintes verbos gastar, comprar e
cobrar ativamos o frame de evento comercial para poder interpretar e compreender o
sentido dessas palavras.
Os scripts são as sequências dos eventos culturais. Voltando ao exemplo da
defesa de dissertação de mestrado, quando pensamos em uma defesa de mestrado,
56
sabemos que o professor orientador fará as considerações iniciais, explicando também
quanto tempo cada professor que compõe a banca terá para fazer suas considerações e
quanto tempo o aluno terá para responder aos questionamentos. Após as considerações
de cada um dos professores e da defesa do aluno, o presidente da banca, no caso o
professor orientador, solicitará aos presentes que, juntamente com o mestrando, saiam
da sala para que os professores cheguem a um consenso em relação à aprovação ou não
do aluno e qual nota darão. Em seguida, o professor orientador chamará todos que estão
fora da sala para fazer a deliberação, pede que todos fiquem de pé e diz se o aluno foi
aprovado ou não e qual nota a banca decidiu dar ao trabalho do aluno.
Portanto, como propõe Abreu (2010, p. 40), “um script descreve uma situação em
uma cultura – uma situação em que eventos se desenrolam através do tempo”.
A seguir abordamos a teoria dos espaços mentais.
2. 4. 5 TEORIA DOS ESPAÇOS MENTAIS
A teoria dos espaços mentais diz respeito ao nosso arquivo pessoal de
informações cotidianas, ou seja, para que possamos construir sentidos para o que
ouvimos, precisamos resgatar em nossa memória de longo prazo conhecimentos
enciclopédicos de mundo que adquirimos ao longo de nossa vida. Recuperamos
informações em nossa memória de longo prazo para construir sentidos ao que ouvimos
ou lemos a todo o tempo, pois, quando lemos ou ouvimos alguma informação nova
fazemos a sua decodificação e, durante esse processo recorremos à nossa memória de
longo prazo para construirmos sentidos para o dado novo.
De acordo com Turner (apud ABREU 2010, p. 81),
expressões linguísticas não significam; elas são propostas de
significação para que nós construamos os significados trabalhando
com processos que já conhecemos. De maneira alguma o significado
de [uma]...enunciação está “diretamente nas palavras”. Quando nós
entendemos uma enunciação, nós, de maneira alguma, estamos
entendendo “exatamente o que as palavras dizem”; as palavras por si
mesmas não dizem nada independentemente do conhecimento
magnificamente detalhado e dos eficientes processos cognitivos que
trazemos com suporte.
Para Fauconnier (1997 apud FERRARI 2011, p. 109), “a linguagem visível é a
ponta do iceberg da construção do significado que tem lugar enquanto falamos e
pensamos”.
57
Essa teoria propõe que espaços mentais são criados à medida que o discurso se
desenvolve. Eles são domínios conceptuais que contêm representações parciais de
entidades e relações em um cenário percebido, imaginado ou lembrado. Assim, o espaço
mental que dá suporte para desenvolver o discurso na interação comunicativa, vale dizer
que, durante o desenvolvimento do discurso, outros espaços mentais são criados para
guardar informações que não dizem respeito ao contexto imediato de comunicação, mas
estão presentes porque lembramos de situações do passado, hipóteses, arte, música, ou
seja, cenários que fazem parte somente de nossa imaginação.
Ferrari (2011) afirma que os espaços mentais são, portanto, domínios
conceptuais locais que permitem o fracionamento da informação, disponibilizando
bases alternativas para o estabelecimento da referência. Tais espaços são criados a
partir de indicadores linguísticos, tecnicamente denominados construtores de espaços
mentais (space builders), entre os quais se incluem sintagmas preposicionais,
morfemas modo-temporais e orações temporais e condicionais. A seguir abordamos a
linguagem corporificada.
2. 4. 6 LINGUAGEM CORPORIFICADA
Nós, seres humanos, construímos nossa percepção de realidade pela forma de
nosso corpo, como ele se movimenta, como percebemos a realidade ao nosso redor e a
forma como interagimos com o mundo que nos cerca com seus objetos e seres. Em
outras palavras, a realidade que vivenciamos faz com que construamos nossa percepção
de realidade, essa é a linguagem corporificada. Por exemplo, existem elementos que
não podem ser contados, como alguns ingredientes de receitas de bolos, farinha,
açúcar, etc., então o ser humano aprendeu a medir uma parte desses elementos para
depois contá-los, açúcar é medido por meio de colher, pois geralmente encontramos em
uma receita de bolo a seguinte explicação: duas colheres de açúcar.
Nas palavras de Abreu (2010, p. 30),
é a partir de nosso corpo que criamos conceitos como frente, trás,
esquerda, direita, alta e baixo. Como somos seres bípedes, temos de
nos manter em equilíbrio constante e, como somos seres móveis,
podemos deslocar-nos continuamente. Nos tempos primitivos,
dirigíamo-nos para onde havia frutos que podíamos coletar ou animais
que podíamos caçar e, modernamente, em direção ao nosso trabalho
ou a locais de lazer. Durante nossos trajetos ou interação com seres e
objetos, enfrentamos muitas vezes obstáculos que temos de remover,
quando temos capacidade física para isso, ou dos quais temos de
58
desviar, em caso contrário. Em tempos remotos, morávamos dentro de
cavernas; hoje, em casas ou apartamentos. A partir desses tipos de
interação física entre nossos corpos e o ambiente em que vivemos,
Lakoff e Jonhson propuseram um modelo chamado de esquemas de
imagem. Segundo eles, esses esquemas são padrões estruturais
recorrentes em nossa experiência sensório-motora que, quase sempre,
servem para estruturar conceitos complexos.
Levando em consideração que a realidade que vivenciamos faz com que
construamos nossa percepção de realidade, abordamos no item seguinte a metáfora que
é considerada uma ferramenta cognitiva, podendo também ser uma figura de linguagem
ou recurso estilístico.
2.5 A METÁFORA
A metáfora constitui um processo unidirecional de abstratização crescente, pelo
qual conceito que estão próximos da experiência humana são utilizados para expressar
aquilo que é mais abstrato e, consequentemente, mais difícil de ser definido. Ela é
fundamentada na experiência dos falantes, pois eles criam seus esquemas de imagens
baseados nas experiências corporais básicas ou nas experiências culturais, o que
contribui para a diversidade de metáforas nas línguas.
A metáfora faz uso de conceitos que estão mais concretos para expressar
conceitos mais abstratos, ou seja, conceitos mais difíceis de serem entendidos,
compreendidos e definidos. É uma estratégia cognitiva que auxilia na compreensão da
gramaticalização e do comportamento gramatical.
Para Lakoff & Johnson (2002), o cotidiano é construído por meio de metáforas.
As metáforas conceituais orientam os falantes a organizarem conceitos por meio de
analogias e da transferência das características de um domínio mais estabilizado para
um domínio com pouca estabilidade. Os autores (2002) ainda usam o termo metáfora
como um conceito que consiste em experienciar uma coisa em termos da outra.
Berber Sardinha (2007, p. 30-31), afirma que os pesquisadores Lakoff &Johnson
foram os responsáveis pela formulação da teoria da metáfora conceptual e apresenta os
principais conceitos dessa teoria:
- Metáfora conceptual: é uma maneira convencional de conceitualizar um
domínio de experiência em termos de outro, normalmente de modo inconsciente. Por
59
exemplo, O AMOR É UMA VIAGEM. Uma metáfora conceptual é assim chamada
porque conceitualiza alguma coisa. No caso acima, a metáfora fornece um conceito de
amor. Segundo esse conceito, amor seria uma viagem. Esse é o conceito metafórico.
- Expressão metafórica: expressão linguística que é uma manifestação de uma
metáfora conceptual. Por exemplo, „nosso casamento está indo muito bem‟, é uma
expressão que advém da metáfora conceptual O AMOR É UMA VIAGEM.
- Domínio: área do conhecimento ou experiência humana. No exemplo acima,
os domínios são AMOR e VIAGEM.
- Mapeamento: são as relações feitas entre os domínios. No exemplo anterior,
temos os seguintes mapeamentos, entre outros:
A - viajantes: amantes ou marido e mulher.
B – destino da viagem: relação feliz a dois.
C – mapa da viagem: planos futuros da vida a dois.
- Desdobramentos (entailments): as inferências que podemos fazer a partir de
uma metáfora conceptual. Por exemplo, dado que O AMOR É UMA VIAGEM, então:
A – Se uma viagem longa e repetitiva é monótona, então um casal que vive
há muito tempo junto pode achar o relacionamento monótono.
B – Se uma viagem longa é cansativa, então um casal que vive junto há
muitos anos pode se cansar do relacionamento.
E para finalizar, a metáfora é uma representação mental, é cognitiva, existe na
mente e atua no pensamento, por isso, é também abstrata.
A seguir por necessidade de aprofundamento da análise apresentamos
brevemente a teoria da enunciação e as funções enunciativas de acordo com Eni
Pulcinelli Orlandi (2008).
60
2.6 ENUNCIAÇÃO
De acordo com o Dicionário de Lingüística da Enunciação (2009), o termo
enunciação apresenta várias definições, tais como: é o campo heterogêneo do
conhecimento em que se articulam língua, fala e sujeito; é a materialização da interação
verbal de sujeitos históricos; é o ato do falante de utilizar os meios de expressão
comuns a todos os indivíduos de uma comunidade lingüística para expressar suas idéias
e sua subjetividade; é a colocação da língua em funcionamento por um ato individual
de utilização; é o modo de constituição dos enunciados pelo qual se dá a construção de
sentido; é o acontecimento constituído pelo aparecimento de um enunciado; é a
instância lingüística que permite a passagem da organização virtual do discurso à sua
realização; é a atividade pela qual se manifesta a presença codificada do falante naquilo
que é falado; e, por fim, pode também designar o acontecimento dotado de significação
que ocorre em um local determinado e em um certo momento. O enunciado, por sua
vez, é a manifestação particular de uma frase; unidade argumentativa de sentido,
composta de um segmento-argumento e um segmento-conclusão; manifestação da
enunciação, produzida cada vez que se fala; produto resultante do ato enunciativo,
independentemente da dimensão sintagmática e, por fim, é o ato do discurso que é dito
em um local e em um momento determinado.
Conforme podemos observar nas várias definições de enunciação e enunciado,
verificamos que a enunciação é o processo e que o enunciado é o produto. Mas, para
que ocorra a enunciação, sempre será necessária a presença de um falante para produzir
algum discurso, e, na medida em que esse falante produz seu discurso, o resultado
dessa produção é o enunciado, que é o que a pessoa disse e em que momento e para
quem essa pessoa disse. Em todos os enunciados sempre haverá o “EU”, o “TU”, o
“AQUI” e o “AGORA”. Os dois primeiros dizem respeito às pessoas do discurso; o
“AQUI” trata do lugar, indicando a posição que as pessoas do discurso ocupam e o
“AGORA” é o tempo em que acontece o discurso. Todo ato de fala tem implicações
que decorrem do ato individual de utilização da língua. Toda frase é a fala de
determinado usuário da língua e revela um pensamento materializado desse falante,
mostrando uma atitude do sujeito, um posicionamento dele durante aquela situação de
interação comunicativa, ou seja, durante a enunciação, a qual, vale lembrar, sempre
será única.
61
De acordo com Flores (2008, p. 68),
a frase, por expressar eu – tu – aqui - agora, é fugaz. Assim que a palavra é
tomada por aquele a quem a frase se dirige, a frase se renova: renovando-se a
situação enunciativa, a idéia que se apresenta é outra. Assim, a frase é sempre
nova e não-repetível. Mesmo que, por sua constituição, a frase pareça ser a
mesma, as circunstâncias não são as mesmas, daí a frase ser diferente. A frase
ou enunciado é sempre singular, particular, reveladora de quem a expressa e
da situação que, na e pela enunciação, se constitui.
Conforme verificamos na citação acima, cada pessoa se expressa de uma maneira
e constrói seus enunciados de forma particular, a qual ela releva, por meio do ditos,
uma determinada situação vivida pelo falante. Dessa forma, fica evidente que o sentido
é relativo à enunciação, ao momento da fala. Ainda nas palavras de Flores (2008, p.
72), “o sentido é relativo à atividade do sujeito com a língua. É o sujeito que „organiza‟
as palavras de uma certa maneira, porque há uma idéia que é sua, que diz sua atitude e
que diz a situação enunciativa.”
Para Eni Orlandi (2008), o discurso é o desmembramento de vários textos e o
texto é o desmembramento do sujeito, sendo assim, o sujeito no texto é um sujeito
heterogêneo, pois ele pode ocupar várias posições no texto, por exemplo, autor,
narrador, interlocutor, enunciador e locutor. O texto sempre revelará o posicionamento
do sujeito no discurso, pois o discurso é uma prática e com tal ocorre na interação entre
pessoas. Continua a autora (2008, p. 58), “a formação discursiva é, enfim, o lugar da
constituição de sentido e identificação do sujeito”.
Ainda afirma a autora (2008, p. 58),
o sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas
colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são
produzidas. As palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que
as empregam. Elas tiram seu sentido dessas posições, isto é, em relação às
formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. A formação
discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada
determina o que pode e deve ser dito. As palavras recebem seu sentido da
formação discursiva na qual são produzidas. Da mesma maneira que isso
ocorre com o sentido, também ocorre com os indivíduos, que são
interpelados em sujeitos falantes, sujeitos de seus discursos pelas formações
discursivas que representam as formações ideológicas que lhes
correspondem. A palavra recebe seu sentido na relação com as outras na
mesma formação discursiva do sujeito falante.
Os sentidos das palavras estão diretamente ligados à posição que o sujeito falante
ocupa no momento da enunciação como podemos constatar na citação acima. É o
posicionamento do usuário da língua que dará o sentido ao que ele quer dizer, ao seu
dito, ou seja, é ele quem faz as escolhas lexicais que melhor se enquadrem ao sentido
que quer transmitir, já que o usuário da língua utiliza o léxico como fundamento ou
62
âncora dos enunciados, que é o que trata a classe da lexicologia das formulações 2. Para
Eni Orlandi (2008), “há uma relação dinâmica entre sujeito e discurso. E o sujeito e
autor se relacionam de diversas maneiras.”
Diz a pesquisadora (2008, p. 61)
podemos pensar as várias funções enunciativas do sujeito falante, como
segue, e nessa ordem: locutor, enunciador e autor. Onde o locutor é aquele
que se representa como „eu‟ no discurso, o enunciador é a perspectiva que
esse „eu‟ constrói, e o autor é a função social que esse „eu‟ assume enquanto
produtor da linguagem. O autor é, das dimensões enunciativas do sujeito, a
que está mais determinada pela exterioridade (contexto sócio-histórico) e
mais afetada pelas exigências de coerência, não-contradição,
responsabilidade etc.
Em um discurso o enunciador assume algumas perspectivas, ou seja, são os
papéis diferentes assumidos pelo sujeito que nada mais é do que o agente no ato de
fala, podendo ser considerado o locutor e o alocutário.
Para Orlandi (2008, p. 62),
o locutor é aquele que se representa como “eu” na enunciação,
representando-se, internamente ao discurso, como o responsável pela
enunciação realizada: o locutor é uma figura constituída internamente e
marcada no texto pelas formas gerais do paradigma do eu. O alocutário é o
“tu” do discurso, e o correlato do locutor. Por outro lado, temos o nível da
relação entre enunciador e destinatário. O enunciador é a posição do sujeito
que estabelece a perspectiva da enunciação. Esta perspectiva pode ser a do
próprio locutor; pode ser ao contrário, a do alocutário, e neste caso o locutor
constitui um recorte enunciativo como se ele fosse enunciado da perspectiva
de seu alocutário.
Mas é necessário observar que o locutor pode ocultar-se na impessoalidade
representando-se como responsável da enunciação.
O corpus deste trabalho são crônicas e seu autor, no papel social de cronista, ao
produzir seus textos, assume diversas posições para construir os sentidos desejados
para manter a interação com o leitor. Assim, concluímos que seria importante tratarmos
brevemente da enunciação, que aborda a questão das relações e posicionamentos entre
enunciador, autor e locutor com diferentes papéis sociais.
Neste capítulo, foi caracterizada a Linguística Funcional e a Linguística
Cognitiva, traçando seu conceito, seus princípios, a metáfora e também a enunciação.
2
De acordo com Turazza (2005, p. 59), “a classe das formulações implica que as lexias
gramaticais veiculam as intenções de um locutor, ou seja, o léxico exerce um papel
fundamental para a elaboração dos enunciados.”
63
No capítulo seguinte abordamos o Gênero Textual Crônica e fazemos a análise de
algumas ocorrências de gramaticalização encontradas no livro “Amor é Prosa, Sexo é
Poesia: Crônicas Afetivas” do escritor Arnaldo Jabor. Não apresentamos todos os casos
selecionados devido ao volume de ocorrências de gramaticalização presentes nos textos
de Arnaldo Jabor e, ao final do trabalho, trazemos um quadro síntese indicando a
quantidade e o tipo de cada ocorrência de gramaticalização encontrado no corpus
analisado.
64
CAPÍTULO III
ANÁLISE DO CORPUS
Na análise, usamos como pilares de sustentação teórica os princípios de
gramaticalização propostos por P. J. Hopper (apud POGGIO 2002) que são: - Princípio
da Estratificação; - Princípio da Divergência; - Princípio da Especialização; - Princípio
da Persistência; - Princípio da Descategorização e os princípios propostos por Ataliba
T. de Castilho (apud POGGIO 2002) que são: - Princípio da Paradigmatização; Princípio da Sintagmatização e Reanálise; - Princípio da Continuidade e Gradualismo e
o Princípio da Unidirecionalidade. Escolhemos esses autores, por acreditarmos que são
os que contemplam, de forma mais próxima da situação real de comunicação, as
ocorrências de gramaticalização, que estão presentes a todo o momento no processo de
interação comunicativa, ou seja, na língua em uso no dia a dia. Outro fator que
contribuiu para a escolha desses autores e suas teorias para realizar nossa análise foi o
fato de que seus princípios têm uma relação muito próxima com os parâmetros de
gramaticalização.
O livro “Amor é Prosa, Sexo é Poesia: Crônicas Afetivas” é composto por 36
crônicas que foram publicadas em jornais. Desse conjunto foram selecionadas 33
crônicas para compor o corpus, pois nelas encontramos exemplos de ocorrências de
gramaticalização.
Para analisarmos as ocorrências de gramaticalização nas crônicas de Arnaldo
Jabor, é importante apresentarmos esse gênero textual.
As crônicas são gêneros textuais que muito se aproximam da língua falada. Os
textos que concretizam esse gênero geralmente são textos curtos, com linguagem
simples e espontânea, relatam fatos do cotidiano e o cronista tenta aproximá-los o
máximo possível da língua em uso comum no dia a dia.
Quando lemos as crônicas de Jabor às terças-feiras no jornal “O Estado de São
Paulo”, no Caderno2, percebemos que ele faz uso de um grande número de ocorrências
de gramaticalização, evidenciando a instabilidade da língua e as características próprias
da língua em uso. É possível percebemos quais os movimentos que a língua faz no dia
a dia por conta da criatividade e das motivações dos usuários em entender e
compreender o que as pessoas falam, fazendo com que os outros também entendam e
65
compreendam a mensagem que estão transmitindo, independentemente se estão ou não
fazendo uso da norma culta.
A crônica brasileira trilhou um longo caminho até finalmente se tornar no texto
que conhecemos como crônica. Uma de suas principais características foi registrar fatos
cotidianos da realidade social, uma vez que ela sempre priorizou o circunstancial. Desde
o período medieval, podemos constatar que os cronistas tinham com função registrar os
fatos cotidianos. O primeiro documento que podemos chamar de crônica escrita no
Brasil foi a Carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel. Nela, o autor descreve
com entusiasmo as paisagens brasileiras e constatamos que ele fica entusiasmado com
tudo o que vê na terra descoberta. Segundo Sá (1985), o relato de Caminha é tão fiel às
circunstâncias que os elementos se tornam decisivos para que o texto transforme a
pluralidade dos retalhos em uma unidade bastante significativa.
A crônica nos dias atuais nada mais é do que uma soma de jornalismo e literatura.
As pessoas que leem crônicas, no geral, são pessoas que gostam de ler jornal que é o
suporte em que elas são publicadas.
Paulo Barreto foi jornalista e um dos precursores da crônica no Brasil. Viveu no
final do século XIX e início do século XX e foi quem primeiro percebeu a velocidade da
modernização pela qual a cidade do Rio de Janeiro passava, fato que exigia uma
transformação de comportamento por parte daqueles que escreviam a história da cidade.
Então, diante dessa situação, ele teve a seguinte ideia: ir às ruas para ver o que
realmente estava acontecendo e como se davam essas transformações. Ele não ficou
parado nas redações à espera de matéria não, mas foi aos bairros em busca de
informações. Nesse sentido, subia os morros, frequentava as rodas de malandros do Rio
e os lugares refinados também, ou seja, ele teve um contato com as pessoas ricas e com
as pessoas menos favorecidas. Construiu uma nova sintaxe com base na sua vivência
com as pessoas que tinha um maior grau de instrução e as que tinham um menor grau de
instrução, fazendo com que seus colegas de trabalho passassem a pensar de outra forma.
A crônica, a partir desse momento, foi escrita sempre pensada na velocidade
com que a vida passa, modernizou-se, passou a ser escrita da maneira como as pessoas
se comunicavam, com sua sintaxe própria. Podemos notar que a crônica é um gênero
textual que se constitui socialmente pela participação dos falantes, ocorrendo processos
de variação das suas formas linguísticas, pois, como já foi abordado, a língua não é
66
uma realidade estática e ela muda com a mesma velocidade com que a sociedade se
moderniza. Esse foi o motivo pelo qual escolhemos os textos, as crônicas de Arnaldo
Jabor. Neste capítulo foram selecionados apenas os trechos das crônicas em que
encontramos as ocorrências de gramaticalização. Organizamos os exemplos para a
análise em dez blocos, na seqüência de importância morfológica das palavras, assim
divididos: substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, pronomes, numerais, preposições,
conjunções, além de expressões gramaticalizadas e dos casos de discursivização. Os
textos na íntegra encontram-se no final do trabalho, nos anexos. Em seguida
apresentamos os trechos das crônicas que contêm ocorrências de gramaticalização que
serão analisadas seguindo a ordem acima apresentada.
3. 1. ANÁLISE
Nos exemplos selecionados das crônicas analisadas, constatamos que o autor usa
substantivo, adjetivo, verbo, advérbio, pronome, numeral, preposição, conjunção,
expressões lexicais, além de alguns casos de discursivização, ou seja, ele constrói
sentidos diferentes do original para as formas já existentes.
A seguir mostramos exemplos de gramaticalização dos substantivos.
3.1.1GRAMATICALIZAÇÃO DOS SUBSTANTIVOS
Neste item apresentamos exemplos de substantivos que sofreram o processo de
gramaticalização:
EXEMPLO 01:
- Há um sentimento difuso de que não podemos fazer nada, o que gera o sucesso
dos evangélicos tipo Igreja Universal e o perigo de populismos fascistóides. (As
Celebridades Fervem No Caldeirão Da Loucura, p. 96)
- TIPO: nesse exemplo o autor usa a palavra “TIPO” que, de acordo com os
dicionários, é um substantivo que era inicialmente usado com o significado de objeto ou
coisa, porém o uso cotidiano, principalmente nas interações comunicativas diárias entre
os jovens fez com que essa palavra adquirisse outra função e outro sentido, passando a
exercer a função da expressão “por exemplo”. Esse uso está se estendendo também às
67
pessoas que não são mais jovens nas situações de interação comunicativa diária. Sofreu
um processo de descategorização, tendo ocorrido, portanto, de acordo com P. J. Hopper
(apud POGGIO 2002), o Princípio da Descategorização, ou seja, a palavra perdeu sua
categoria e autonomia, por conta do processo de gramaticalização. Ainda de acordo com
Ataliba T. de Castilho (apud POGGIO 2002), podemos afirma que ocorreu também o
Princípio da Sintagmatização e Reanálise, pois houve o desenvolvimento de novas
estruturas a partir de estruturas antigas, ou seja, é o que chamamos de processo
metonímico, operando no eixo paradigmático por analogia, envolvendo implicaturas
convencionais e o Princípio da Continuidade e Gradualismo, uma vez essa inovação na
estrutura da língua, por meio da interação durante o processo de comunicação, ocorreu
gradualmente. Percebemos também que, nesse exemplo, existe um locutor representa
que o “eu” na enunciação, ele é o responsável pelo discurso, pois é uma figura
constituída, ou seja, marcada internamente no texto, porém, além do locutor
representado pelo “eu” do discurso existe também a representação de um locutorenquanto-pessoa, ou seja, é uma pessoa que faz parte do mundo real e que aparece no
discurso fazendo com que acreditemos que esse discurso é seu, ou seja, é de sua origem.
(ORLANDI 2008, p. 64)
EXEMPLO 02:
- Sim; a gente ia à floresta e ia cada um com um pau na mão.
- Isso, filhinho, a gente ia subindo a pé.
- Era um cheiro horroroso e aí não adiantava nem bater nele, a gente gritava.
- Aí, quando o gambá saía, zangado, porque estava dormindo e ia atacar a gente,
o Albertinho Fortuna pegava um vidro de perfume Coty e tocava nele e aí o gambá
gigante ficava cheirosinho e ficava amigo da gente. (Antigamente, Quando Eu Era
Pequenino, p. 146)
- A GENTE; - DA GENTE: a expressão “a gente” era inicialmente um substantivo
feminino, porém o uso cotidiano, nas situações de interação comunicativa, fez com que
essa expressão adquirisse outra função e outro sentido, passando a exercer a função de
pronome pessoal do caso reto, equivalente à 1ª pessoa do plural “nós”. Sofreu um
processo de descategorização, tendo ocorrido, portanto, de acordo com P. J. Hopper
(apud POGGIO 2002), o Princípio da Estratificação, pelo qual novas formas surgem
num domínio funcional amplo, ou seja, quando uma forma se gramaticaliza, ela passa a
68
coexistir com formas similares. Além desse princípio, verifica-se também a presença do
Princípio da Descategorização, ou seja, a palavra perde sua categoria e autonomia, por
conta do processo de gramaticalização. Ainda de acordo com Ataliba T. de Castilho
(apud POGGIO 2002), podemos afirma que ocorreu também o Princípio da
Sintagmatização e Reanálise, pois houve o desenvolvimento de novas estruturas a partir
de estruturas antigas, ou seja, é o que chamamos de processo metonímico, operando no
eixo paradigmático por analogia, envolvendo implicaturas convencionais e o Princípio
da Continuidade e Gradualismo, uma vez que a língua passou por inovação em sua
estrutura por meio da interação durante o processo de comunicação, a qual ocorreu
gradualmente. Esse processo trouxe modificações no paradigma pronominal que passa a
ser assim constituído: eu, tu, ele/ela, nós / a gente, eles/elas. Não incluímos a 2ª pessoa
do plural, porque ela está fora de uso, como já mostrava Mattoso Câmara (2006, p.
105),
considerando as 6 pessoas gramaticais, não levamos em conta que a
5ª, ou 2ª do plural, é de um rendimento mínimo, pois está circunscrita
a certos registros especiais da língua escrita. Também nos abstraímos
da circunstância de que a 2ª pessoa só esporadicamente aparece na fala
coloquial culta da área do Rio de Janeiro. No dialeto geográfico e
social, que é a base deste livro, o ouvinte, no singular e plural, como
sujeito, leva o verbo para a 3ª e a 6ª pessoa respectivamente. Em vez
dos pronomes de 2ª e 5ª pessoa gramatical, usam-se, conforme os
graus de intimidade ou distanciamento social, para sujeito, os nomes
você(s) e (o, a) (s) * senhor e (a) (s) com o verbo morficamente na 3ª
ou na 6ª pessoa, segundo se trate de um ouvinte apenas ou mais de
um.
Percebemos nesses exemplos, além da presença do enunciador, que não é uma
pessoa que pertence ao mundo real, a presença de um locutor-enquanto-pessoa
representado por uma pessoa do mundo real na enunciação.
Nos exemplos 02 acima, constatamos que a expressão “A GENTE” que exercia
a função de substantivo feminino passou a exercer a função de pronome pessoal do
caso reto “NÓS”, alterando, portanto, a estrutura gramatical da Língua Portuguesa.
A seguir mostramos exemplos de gramaticalização de adjetivo.
69
3.1.2 GRAMATICALIZAÇÃO DOS ADJETIVOS
Neste item apresentamos alguns exemplos de adjetivos que sofreram o processo
de gramaticalização:
- Escrevendo agora, percebo que aquela sensação de profundo “sentido” que tive
aos seis anos pode ter marcado minha maneira de ser e de amar pelos tempos que
viriam. Senti a presença de algo belíssimo e inapreensível que, hoje, velho de guerra,
arrisco dizer que talvez seja essa a marca do amor: ser impossível. Calma, pessoal,
claro que o amor existe. (Um Rosto Inequecível, p. 11)
- A mulher pensa por metáforas. O homem pensa por metonímias. Entenderam?
Claro que não. Digo melhor, a mulher compõe quadros mentais que se montam em um
conjunto simbólico misterioso, como a arte. O homem quer princípio, meio e fim. (O
Mundo Hoje é Travesti, p. 16)
- Uma vez, já mais tarde, eu namorava uma moça lindíssima e virgem (claro) mas
burrinha. Reclamei com ele. Resposta: “Ah, é burrinha? Você quer inteligência? Então
vai namorar o Santiago Dantas!” (Meu Avô Foi Um Belo Retrato Do Malandro
Carioca, p. 25)
- Que diriam os vagabundos mirins que assolavam as ruas do Rocha, se me
vissem rodando nas rodinhas femininas? Claro que berrariam: “Viado! Viado!” –
supremo xingamento da época, terrível pecha que poderia destruir a reputação de
qualquer um de nós. (Nunca Acreditei Em Papai Noel, p. 100)
- Nós é que somos extensões das coisas. Fulano é a extensão de um banco,
sicrano comporta-se como um celular, beltrana rebola feito um liquidificador. Assim
como a mulher deseja ser um objeto de consumo, como um eletrodomético, um “avião”,
uma máquina peituda, bunduda. Claro que as mulheres lindas nos despertam fantasias
sacanas mas, em seguida, pensamos: “E depois? Vou ter de conversar...e aí?” Como
conversar com um “avião” maravilhoso, mas idiota? (Aliás, dizem que uma das
vantagens do Viagra é que, esperando o efeito, os homens conversam com as mulheres
70
sobre tudo, até topam “discutir a relação”.) (A Felicidade é a Empada do “Bigode”, p.
190)
- CLARO: de acordo com os dicionários a palavra “claro” é um adjetivo, significando
que há luz, claridade, mas percebemos que, nos exemplos acima, o autor atribuí uma
nova função ao adjetivo, que expressa um novo valor semântico, o de modalização de
certeza, pois mostra o conhecimento ou opinião do falante. Tendo ocorrido, portanto, de
acordo com P. J. Hopper (apud POGGIO 2002) o Princípio da Descategorização, ou
seja, a palavra perde sua categoria e autonomia, por conta do processo de
gramaticalização, o que não significa anular completamente seu sentido, mas perder
parte de sua autonomia, por se tornar um advérbio assertivo, vindo a obter outro sentido,
indicando a atitude do falante ao marcar que o fato enunciado é digno de crédito.O
processo cognitivo que fundamentou a agramaticalização neste caso foi a metonímia,
dado que a mudança que a forma lingüística sofreu foi em função do contexto
lingüístico e pragmático (MARTELOTTA et alii, 1996), sendo essa alteração resultado
da reanálise, cujo fundamento é a metonímia. Segundo Ataliba T. de Castilho (apud
POGGIO 2002), podemos afirma que, nestas ocorrências, aconteceu o Princípio da
sintagmatização e reanálise, uma vez que a reanálise é um mecanismo de mudança pelo
qual o falante reorganiza a estrutura do enunciado, reinterpretando os elementos que o
compõem e o Princípio da Continuidade e Gradualismo, uma vez que a língua passou
por inovação em sua estrutura por meio da interação durante o processo de
comunicação, a qual ocorreu gradualmente. Essa reorganização estrutural do enunciado
pode implicar uma modificação das fronteiras entre elementos do léxico na língua
falada. Percebemos também que nesses exemplos existe um locutor que representa o
“eu” na enunciação, é o responsável pelo discurso, pois, é uma figura constituída,
porque marcada internamente no texto e há também a representação de um locutorenquanto-pessoa, representado pela pessoa do mundo que se apresenta no discurso
aparece no discurso como sendo sua origem. (ORLANDI 2008, p. 64)
Esses exemplos mostram o caráter dinâmico e o movimento que acontece
constantemente na língua em uso no dia a dia. O adjetivo “claro”, nesses casos, perdeu
seu caráter de adjetivo e passou a ter a função de modalizador, inserindo-se na classe
dos advérbios, o que nos remete à gramática emergente da língua, passando por um
processo de gramaticalização. Assim, a palavra perde o valor semântico de
caracterizador e passa a indicar o ponto de vista do locutor no momento da enunciação
71
de seu pensamento. Esse tipo de função modalizadora do adjetivo não é abordada pela
gramática normativa, sendo tratada somente na gramática de usos, embora esse
fenômeno seja frequente nas trocas comunicativas. Arnaldo Jabor em seus textos, ou
melhor, em suas crônicas consegue mostrar o caráter dinâmico e o movimento que
acontece constantemente na língua em uso no dia a dia, ou seja, ele consegue atribuir
um novo sentido a uma forma já existente, mostrando dessa maneira o conhecimento
do usuário da língua. Nesses exemplos podemos constatar que existe uma negociação
do sentido pelo falante e ouvinte no ato da comunicação, pois, fica explícita a liberdade
organizacional do falante, porque ele é o responsável pelo processamento das estruturas
regulares, de uso comum no dia a dia e é ele que faz as escolhas que levam a
construção de sentidos e a efeitos pragmáticos nas interações comunicativas.
A seguir mostramos exemplos de gramaticalização dos verbos.
3.1.3 GRAMATICALIZAÇÃO DOS VERBOS
Neste item apresentamos exemplos de verbos que sofreram o processo de
gramaticalização:
- A música veio mesmo a calhar, pois ando com uma fome de arte, ando com
saudades da beleza, ando com saudades de tudo... Ando meio desesperançado. (Um
Rosto Inesquecível, p. 09)
- ANDAR: indica uma ação, mas, ao lermos os exemplos acima, constatamos que o
autor emprega o verbo andar expressando outros sentidos nas construções linguísticas,
não indicando, portanto, o deslocamento no espaço, mas mostrando o estado de espírito
em que se encontra o locutor. Assim, ele perde seu caráter de verbo de ação e passa a
funcionar como verbo de ligação com o valor semântico de estado.
- É terrível quando a mulher cessa de te amar. Você vira um corpo sem órgãos,
você vira também uma mulher abandonada. (O Mundo Hoje É Travesti, p. 16)
- VIRAR: indica uma ação e significa colocar-se em direção ou posição oposta à
anterior. No exemplo, o autor usa o verbo virar com o sentido de transformar-se
totalmente, mostrando uma mudança radical e não simplesmente a alteração de posição
72
de um objeto ou pessoa, refletindo o estado de espírito do locutor no momento da
enunciação. Assim, ele perde seu caráter de ação e passa a funcionar como verbo de
ligação com o valor semântico de estado.
- O homem quando conquista, acha que não tem mais de se esforçar e aí, dança.
(O Mundo Hoje É Travesti, p. 17)
- DANÇAR: é um verbo de ação, significando movimentar o corpo seguindo um ritmo.
Nos dias atuais é muito comum ouvir alguém dizendo que outra pessoa dançou, ou seja,
não conseguiu o que queria, fracassou, portanto as pessoas usam o verbo dançar com o
sentido de insucesso. Logo, esse dançar é figurado e a “ação” realizada pelo locutor é de
ordem intelectual.
- Nos meus 20 anos, meu ídolo era o James Bond, bonito, corajoso, entendendo
de vinhos e de aviões supersônicos, comendo todo mundo, de smoking. Mundano? Sim,
mas mesmo o Bond se esforçava, pois tinha a missão de salvar o ocidente. Era um
trabalhador que merecia as louras que papava. (Nosso Macho Feliz É Casado Consigo
Mesmo, p. 20)
- COMER: este verbo de ação, no sentido literal, indica ingerir alimentos. No exemplo,
o autor não o emprega com o sentido de pôr alimento na boca, mastigar e em seguida
engolir, mas, sim, de praticar o ato sexual, tendo, portanto, um valor metafórico. O
mesmo sentido é atribuído ao verbo papar que também não é usado com o sentido de
ingerir ou comer alimentos, como usualmente ocorre na fala infantil. Esse deslocamento
do sentido dos verbos revela o ponto de vista do enunciador sobre a personagem James
Bond, herói de filmes de aventura, como o garanhão que tinha grande sucesso com as
mulheres.
- Meu homem feliz intui confusamente que a aventura da verdadeira solidão é
apavorante. Daí, ele evita que qualquer profundidade existencial possa pintar, que a
ideia de morte e finitude apareça à sua frente, senão sua “liberdade” ficaria insuportável.
(Nosso Macho Feliz É Casado Consigo Mesmo, p. 22)
73
- PINTAR: indica uma ação e significa representar figuras com traços e tintas, colorir,
mas tem sido muito utilizado com outro sentido informal de acontecer ou ocorrer. O
autor utiliza-o com o sentido mostrando uma mudança em seu valor semântico
refletindo alguma coisa que possa acontecer para o locutor no momento da enunciação.
Assim, ele perde seu caráter de “ação” e passa a funcionar como verbo de ligação com o
outro valor semântico de acontecimento, surgimento de algo para o locutor.
- Confesso, Juliana, com todo o respeito, que imaginei cenas eróticas comigo
mesmo, com outros e nada senti... Pensei: “Estou decadente, ou as uvas estão verdes...”
Mas, não, não era isso. Bateu-me mesmo uma certa tristeza. (Meditações Diante do
Bumbum de Juliana, p. 30)
- BATER: indica uma ação que significa dar pancadas ou golpes em algo ou alguém.
No exemplo, o autor utiliza o verbo bater com o sentido de surgir em sua consciência
de forma repentina, não indicando, portanto, aplicar golpes em alguém, mas mostrando
o estado de espírito em que se encontra o locutor. Assim, ele perde seu caráter de verbo
de ação e passa a funcionar como verbo de estado, com o valor semântico de entristecerse ou tornar-se triste.
- E agora tem outro rolando, chamado “Faz parte”, onde o falso “eu” humilha
aquele rapaz que ganhou o Big Brother. (O Chato É Antes De Tudo Um Forte, p. 44)
- ROLAR: é um verbo de ação, significa fazer girar, rodar, mas nas conversas diárias é
comum ouvirmos as pessoas utilizando esse verbo com o sentido informal de acontecer,
ocorrer, realizar-se que é o sentido utilizado pelo autor e que faz parte do uso comum no
dia a dia. Logo, esse rolar é figurado e a “ação” realizada pelo locutor é de ordem
intelectual.
- Eu sou do tempo em que as namoradas não davam. (O Amor Nos Anos 60, p.
67)
- DAR: é um verbo de ação que significa entregar, presentear, colocar à disposição, mas
o autor o emprega com o sentido de entregar-se sexualmente, tendo, portanto, um valor
74
metafórico. Esse deslocamento do sentido do verbo revela o ponto de vista do
enunciador em relação à prática sexual que hoje acontece descompromissadamente.
- Namorávamos em qualquer buraco: terrenos baldios, cantos da praia da noite; eu
confesso que já “amassei” uma namorada dentro de uma grossa manilha encalhada na
praia de Ipanema. (O Amor Nos Anos 60, p. 68)
- AMASSAR: este verbo de ação, no sentido literal, significa transformar em massa,
dar pancadas, bater, achatar por pressão ou esmagamento, encher de dobras, rugas,
amarrotar. Mas o autor utiliza-o com o sentido de ligar-se a alguém intimamente por
meio de atos voluptosos, ou seja, bolinar, com valor metafórico. Esse deslocamento do
sentido do verbo revela a concepção que o enunciador tem do ato sexual.
- Um comuna amigo meu traçou um funcionária do Consulado americano, a
quem ele obrigava a chamá-lo de Fidel Castro (esse nome já foi até ministro...) (O
Amor Nos Anos 60, p. 70)
- TRAÇAR: este verbo ação, no sentido literal, significa descrever, desenhar,
representar por traços, projetar, planejar. No exemplo, o autor não o emprega com
nenhum desses sentidos, mas, sim, com o de praticar o ato sexual (copular), tendo,
portanto, um valor metafórico. Esse deslocamento do sentido do verbo revela um ponto
de vista depreciativo do enunciador quanto às relações sexuais.
- Estamos todos gozando sem fruição, um gozo sem prazer, quantitativo. Antes,
tínhamos passado e futuro; agora tudo é um “enorme presente”, na expressão de
Norman Mailer. E esse “enorme presente” nos faz boiar no tempo parado, mas
incessante, num futuro que “não pára de não chegar”. Antes tínhamos os filmes em
preteo-e-branco, fora de foco, as fotos amareladas, que nos davam a sensação de que o
passado era precário e o futuro seria luminoso. (Nossos Dias Melhores Nunca Virão?,
p. 74)
- BOIAR: esse verbo de ação significa flutuar no líquido prendendo-se ou não em uma
bóia, pode inclusive ser usado com o sentido informal de não entender nada ou de não
perceber algo, que é o sentido que o autor atribui ao verbo boiar no exemplo, ou seja, o
75
autor emprega o verbo com valor metafórico, refletindo o estado em que do locutor
encontra-se no momento da enunciação.
- ... vi a precariedade de minha pobre família da classe média, tentando exibir
uma felicidade familiar que até existia, mas precária, constrangida; e eu ali, menino
cumprido feito um bambu no vento, já denotando a insegurança que até hoje me alarma.
(Nossos Dias Melhores Nunca Virão?, p. 75)
- FEITO: é o particípio passado do verbo de ação fazer, mas o cronista usa-o com o
sentido de comparação. Logo passa a funcionar como conjunção comparativa, com o
valor de “como”. Nessa ocorrência, temos a passagem de um elemento lexical que se
torna gramatical, sofrendo, portanto, a descategorização.
- Meus amiguinhos lutavam contra essa desilusão, mais ou menos como hoje os
velhos comunas não desistem do socialismo e vivem acusando o Lula de ter ficado
“neoliberal”. (Nunca Acreditei Em Papai Noel, p. 100)
- LUTAR: é um verbo de ação, significando combater, pelejar, brigar e também
despender forças para atingir um certo objetivo como ocorre no texto sob análise. As
crianças buscavam superar uma experiência desagradável. Logo, esse lutar é figurado e
a “ação” realizada pelo locutor é de ordem intelectual.
- Inventaram uma figura tropical que nunca colou: O Vovô Índio. (Nunca
Acreditei Em Papai Noel, p. 101)
- COLAR: é um verbo de ação que significa grudar com cola, copiar de outro. Nessa
passagem, o autor usa o verbo colar com o sentido de aceitar. É usado no sentido
metafórico. Logo, esse colar é figurado e a “ação” realizada pelo locutor é de ordem
intelectual.
- Meu avô, malandro e macho, pegou a bengala e cobriu-os de porrada. (A Casa
De Minha Mãe Nunca Ficou Pronta, p. 106)
76
- COBRIR: é um verbo de ação que significa encobrir alguma coisa, alguém ou a si
mesmo, mas, ao lermos o exemplo acima, constatamos que o autor emprega o verbo
cobrir ligado à palavra „porrada‟, expressando outro sentido nessa construção
linguística, e indicando, surrar ou bater com muita intensidade usando algum objeto.
Assim, o locutor, no momento da enunciação, discute e dá uma surra com a bengala em
outra pessoa. Assim, o verbo cobrir ganha outro valor semântico, qual seja, o de bater
intensa e fortemente em alguém com um objeto. A escolha dessa expressão, por parte do
locutor, reforça a macheza da personagem.
- Quando peguei coqueluche, ele me levou num avião bimotor a quatro mil
metros de altura. (Meu Pai Foi Um Mistério Em Minha Vida, p. 121)
- PEGAR: é um verbo de ação que verbo significa segurar, agarrar, prender, mas o
autor faz uso do verbo pegar com o sentido de contrair, não indicando, portanto, pegar,
segurar ou agarrar alguma coisa, mostrando uma ação realizada pelo locutor de maneira
abstrata, ou seja, com sentido metafórico. Assim, ele perde seu caráter de verbo de ação
e passa a funcionar como verbo de estado com o valor semântico de contrair uma
doença.
- Queriam-me diplomata? Ah... hoje eu poderia ser um pobre itamarateca
alcoólatra... Fui ser nada, maluco, comuna da UNE; depois, por acaso, acabei cineasta...
- Um dia, nasceu-me a primeira filha. Foi um momento de vida e luz mas, logo
depois, meu pai caiu doente, com uma enigmática infecção pulmonar, que não passava.
(Meu Pai Foi Um Mistério Em Minha Vida, p. 123)
- ACABAR: é um verbo de ação que indica chegar ao fim, terminar. Constatamos que o
autor emprega o verbo acabar expressando outro sentido nessa construção linguística,
não indicando, portanto, o termino de alguma coisa, mas significando tornar-se. Assim,
ele perde seu caráter de verbo de ação e passa a funcionar como verbo de ligação com o
valor semântico de estado.
- CAIR: é um verbo de ação uma ação, que significa ir de cima para baixo, ir ao chão.
No texto, porém, constatamos que o autor emprega esse verbo não mais indicando, essa
ação mas, com o sentido de ficar. Assim, ele perde seu caráter de verbo de ação e passa
a funcionar como verbo de ligação com o valor semântico de estado.
77
- “Antigamente, quando eu era pequenino...” – com essa frase mágica eu corto
qualquer choro de meu filhinho. (Antigamente, Quando Eu Era Pequenino, p. 145)
- CORTAR: é um verbo de ação que significa separar, dividir. Porém, o locutor usou o com o sentido de interromper, parar ou cessar. Foi empregado com sentido
metafórico. Logo, esse cortar é figurado e a “ação” realizada pelo locutor é de ordem
intelectual.
- De repente, explode uma briga no fundo. (Vamos Beber No Passado Para
Esquecer O Presente, p. 157)
- EXPLODE: é um verbo que significa causar explosão, detonar, estourar, portanto é
um verbo de ação. No texto, foi usado com o sentido de começar, iniciar uma
manifestação súbita, ou seja, a briga começou repentinamente. Logo, esse explodir é
figurado e o locutor utilizou-o para mostrar que a briga “estourou” subitamente.
- O travesti nu em Copacabana desafia todos os pudores. Quem está nu ali na
esquina, o homem ou a mulher nele? Ninguém está nu, pois ele viaja na identidade e se
disfarça o tempo todo; por isso, pode ficar nu na rua – ele não é ninguém, ele não aspira
a um “eu” fechado, ele é um “eu” contemporâneo, ele é descentrado, movente, ele é
“sujeito” moderno. (O Travesti Está Na Terceira Margem Do Rio, p. 172)
- VIAJAR: este é um verbo de ação que significa fazer uma viagem, transitar por um
caminho, mas o autor o emprega com o sentido sofrer alucinações, tendo, portanto, um
valor metafórico, não indicando, portanto, o deslocamento no espaço, mas mostrando
que a personagem pode transitar entre dois lados o do homem e o da mulher, ou seja,
ora ele esta de um lado, ora está do outro lado. Assim, ele não perde seu caráter de
verbo de ação, mas ele adquire novo valor semântico. Esse deslocamento do sentido do
verbo revela o ponto de vista do enunciador.
- Aproxima-se a hora da liberdade, a hora em que vou quebrar todos os recordes
e pular para outra vida. (O Grande Sucesso Do Herói Sem Coração, p. 174)
78
- QUEBRAR: é um verbo que significa fragmentar, despedaçar, romper, portanto é um
verbo de ação. Mas, no texto, foi usado com o sentido de superar, ultrapassar. É usado
com sentido metafórico. Logo, esse quebrar é figurado e a “ação” realizada pelo
locutor mostra sua determinação em realizar algo.
- Osama e seus asseclas não “esquentam”; têm o rosto suave e frio dos loucos
sem dúvida. (Um Asteróide De Deus Caiu Sobre O Ocidente, p. 185)
- ESQUENTAR: esse verbo significa aumentar ou fazer aumentar o calor. Mas
constatamos que o autor emprega o verbo esquentar expressando estar preocupado ou
angustiado com alguma coisa, não indicando, portanto, o aumento de calor, mas
mostrando o estado de espírito em que se encontram as pessoas a quem o locutor faz
referência. Assim, ele perde seu valor semântico de aumentar o calor e passar a
significar não se preocupar.
- Osama fraturou a globalização. Interrompeu um eufórico processo de
uniformização. (Um Asteróide De Deus Caiu Sobre O Ocidente, p. 188)
- FRATURAR: é um verbo que significa partir, produzir rachadura, portanto é um
verbo de ação, mas, no texto, foi empregado com o sentido de produzir uma rachadura
na globalização. Foi usado em sentido metafórico, uma vez que essa expressão indica a
forma figurativa de se referir ao abalo causado pelo presidente americano.
Nas ocorrências analisadas, verificamos que os verbos sofrem constantes
mudanças em suas funções e em seus sentidos originais, ou seja, constatamos que
alguns verbos plenos assumem a função de conjunção, de verbos de ligação ou de
verbos auxiliares e essa inovação de funções e produção de sentidos constantes se dá na
língua em uso no dia a dia na interação comunicativa. Por exemplo, a forma verbal
feito é o particípio passado do verbo fazer, mas, no caso analisado desempenha a função
de conjunção comparativa, com o valor de “como”, tendo sofrido portanto, o processo
de gramaticalização. De acordo com P. J. Hopper (apud POGGIO 2002), o Princípio da
descategorização está presente nessa mudança, ou seja, a palavra perdeu sua categoria
original, passando do nível lexical para o gramatical. Com base em Ataliba T. de
Castilho (apud POGGIO 2002), podemos afirmar que, também o Princípio da
79
sintagmatização e reanálise está presente, pois o falante reorganiza a estrutura do
enunciado, reinterpreta os elementos que o compõem e essa reorganização estrutural do
enunciado implicou uma modificação das fronteiras entre elementos do léxico na língua
falada e o Princípio da Continuidade e Gradualismo, uma vez que a língua passou por
inovação em sua estrutura por meio da interação durante o processo de comunicação, a
qual ocorreu gradualmente.
Nos exemplos em que aparecem os verbos de ação: andar, virar, dançar,
pintar, bater, boiar, acabar, cair, viajar e esquentar verificamos que tornaram-se
verbos de ligação. Assim, eles perderam seus valores semânticos originais e passaram a
indicar outros valores semânticos, conforme verificamos em nossa análise. Tendo
ocorrido, portanto, em todos os exemplos de acordo com P. J. Hopper (apud POGGIO
2002) o Princípio da descategorização, ou seja, a palavra perde sua autonomia, por
conta do processo de gramaticalização, no caso dos verbos podemos dizer que eles
perderam sua autonomia, vindo a obter outros sentidos além do seu sentido original.
Segundo Ataliba T. de Castilho (apud POGGIO 2002), podemos afirma que, nestas
ocorrências, aconteceu o Princípio da sintagmatização e reanálise, pois a reanálise é um
mecanismo de mudança pelo qual o falante reorganiza a estrutura do enunciado,
reinterpretando os elementos que o compõem, essa reorganização estrutural do
enunciado pode implicar uma modificação das fronteiras entre elementos do léxico na
língua falada e o Princípio da Continuidade e do Gradualismo, pois a gramaticalização
inovou a estrutura das línguas durante o processo de comunicação na interação entre os
usuários.
E por fim, nos exemplos em que o autor faz uso dos verbos: fraturar, cortar,
explodir, comer, dar, rolar, amassar, quebrar, traçar, lutar, colar, cobrir e pegar,
constatamos que o autor utiliza-os com o sentido metafórico, com o sentido que é
comum ouvirmos em conversas informais, portanto podemos dizer que são verbos que
indicam uma ação figurada realizada pelo locutor. Tendo ocorrido, portanto, em todos
os exemplos de acordo com P. J. Hopper (apud POGGIO 2002) o Princípio da
descategorização, ou seja, a palavra perde autonomia, por conta do processo de
gramaticalização, no caso dos verbos podemos dizer que eles perderam sua autonomia,
vindo a obter outros sentidos além do seu sentido original e o Princípio da Persistência,
pois, quando uma forma se gramaticaliza, alguns traços do significado lexical original
aderem à nova forma gramatical, ou seja, há a permanência de vestígios do significado
lexical original. Segundo Ataliba T. de Castilho (apud POGGIO 2002), podemos afirma
80
que, nestas ocorrências, aconteceu o Princípio da sintagmatização e reanálise, pois a
reanálise é um mecanismo de mudança pelo qual o falante reorganiza a estrutura do
enunciado, reinterpretando os elementos que o compõem, essa reorganização estrutural
do enunciado pode implicar uma modificação das fronteiras entre elementos do léxico
na língua falada e o Princípio da Continuidade e do Gradualismo, pois a
gramaticalização inovou a estrutura das línguas durante o processo de comunicação na
interação entre os usuários.
O autor, conhecedor do funcionamento da língua para mostrar todas essas
transformações faz o seguinte movimento: transfere-se da sua posição, da sua condição
de conhecedor da norma padrão da língua, logo, assume-se como um enunciador não
letrado, projeta como é que ela é nos meios em que as pessoas não têm domínio da
norma padrão e, por fim, apresenta-se como um locutor, que tem um comportamento
semelhante às pessoas que não têm o domínio da norma padrão da língua. Fazendo esse
movimento, o autor consegue mostrar nos textos escritos todas as mudanças existentes
na língua em uso comum no dia a dia, todas as transformações pelas quais a língua está
passando, utilizando formas lingüísticas que circulam em sociedade.
Percebemos também que nesses exemplos existe um locutor que representa o
“eu” na enunciação, é o responsável pelo discurso, ou seja, é uma figura constituída
marcada internamente no texto e há também a representação de um locutor-enquantopessoa, representado pela pessoa do mundo que se apresenta no discurso como sendo
sua origem.
A seguir mostramos exemplos de gramaticalização dos advérbios.
3.1.4 GRAMATICALIZAÇÃO DOS ADVÉRBIOS
Neste item apresentamos alguns exemplos de advérbios que sofreram o processo
de gramaticalização:
EXEMPLO 01:
- Hoje há os corpos malhados, excessivamente nus, montanhas de bundas
competindo em falsa liberdade, pois ninguém tem tanto tesão assim, ninguém é tão livre
assim. (De Camisa Amarela, Volto Aos Grandes Carnavais, p. 60)
81
- ASSIM: de acordo com as gramáticas é um advérbio que significa desse, deste ou
daquele modo. De acordo com o dicionário Houaiss, esse item lexical pode ser uma
conjunção e também funcionar como um marcador discursivo indicando a retomada de
palavra por um dos participantes da interação comunicativa, mas, da maneira como está
sendo usado no exemplo, tem valor anafórico, pois o elemento faz alusão a um fato
mencionado anteriormente no texto. Ocorreu, portanto, de acordo com P. J. Hopper
(apud POGGIO 2002) o Princípio da Descategorização, ou seja, a palavra perdeu sua
categoria e autonomia, por conta do processo de gramaticalização, adquirindo, dessa
forma, um outro sentido, o que não significa dizer que ela perdeu ou anulou
completamente seu sentido, mas perdeu sua autonomia, vindo a obter outro sentido
além do original. Segundo Ataliba T. de Castilho (apud POGGIO 2002), podemos
afirma que, nessas ocorrências, aconteceu o Princípio da sintagmatização e reanálise,
que é um mecanismo de mudança pelo qual o falante reorganiza a estrutura do
enunciado, reinterpretando os elementos que o compõem e essa reorganização estrutural
do enunciado pode implicar uma modificação das fronteiras entre elementos do léxico
na língua falada. Também o Princípio da Continuidade e do Gradualismo está presente,
pois a gramaticalização inovou, gradualmente, a estrutura das línguas durante o
processo de comunicação na interação entre os usuários.
EXEMPLO 02:
- Mas, você pode me perguntar, ingênuo sessentista, por que, então, eles não
mudam o mundo? Bem, primeiro eles não são burros e sabem que a sociedade hoje,
com sua delirante complicação, não se presta a oposições simplistas ou otimistas fáceis.
(Onde Estão Os Hippies, Agora Que Precisamos Deles, p. 90)
- BEM: do ponto de vista gramatical “bem” é advérbio de modo; porém, de acordo com
a visão funcionalista, essa palavra pode marcar o início de uma conversa, passando a
desenvolver a função de marcador discursivo, servindo para organizar as informações e
estabelecer a interação entre os falantes. Isso quer dizer que ela deixou de exercer a
função de advérbio de modo e passando a exercer a função de marcador discursivo. O
autor usa o bem para indicar que iniciará o discurso a partir daquele ponto. Nesse caso,
a expressão indica que o falante vai retomar a fala e está indicando isso ao seu
interlocutor, é uma marca de sua discursivização e não mais de um advérbio de modo,
conforme podemos verificar no exemplo. Seu percurso de discursivização mostra que
82
“bem” passou de advérbio (nível lexical) a marcador discursivo (nível do discurso).
Tendo ocorrido, portanto, de acordo com P. J. Hopper (apud POGGIO 2002) o
Princípio da Descategorização, ou seja, a palavra perdeu sua categoria e autonomia, por
conta do processo de gramaticalização, adquirindo dessa forma uma outra função e um
outro sentido, e perdeu sua autonomia, vindo a obter outros sentidos além do seu
sentido original. Segundo Ataliba T. de Castilho (apud POGGIO 2002), podemos
afirma que, nessas ocorrências, aconteceu o Princípio da sintagmatização e reanálise,
pois a reanálise é um mecanismo de mudança pelo qual o falante reorganiza a estrutura
do enunciado, reinterpretando os elementos que o compõem e essa reorganização
estrutural do enunciado pode implicar uma modificação das fronteiras entre elementos
do léxico na língua falada e ocorreu também o Princípio da Continuidade e do
Gradualismo, pois a discursivização inovou a estrutura da língua os processos
comunicativos na interação entre os usuários, ao longo do tempo.
EXEMPLO 03:
- Era um cheiro horroroso e aí não adiantava nem bater nele, a gente gritava.
- Aí, quando o gambá saía, zangado, porque estava dormindo e ia atacar a gente,
o Albertinho Fortuna pegava um vidro de perfume Coty e tocava nele e aí o gambá
gigante ficava cheirosinho e ficava amigo da gente... E pronto... E aí, todo mundo ia
dormir feito você, agora. (Antigamente, Quando Eu Era Pequenino, p. 146)
- AÍ: gramaticalmente, o item lexical “aí” é um advérbio que indica um lugar, próximo
ao ouvinte, lugar ao qual se faz referência, tendo, portanto um valor dêitico espacial. De
acordo com a perspectiva funcionalista, as ocorrências de “aí” no exemplo acima tem
um valor sequencial, funcionando como conectivos no início das orações, tendo,
portanto, a função de dar sequência a acontecimentos passados. Nesse caso, a expressão
tem um valor temporal, marca de sua gramaticalização e não mais de um advérbio de
lugar, conforme podemos verificar no exemplo 04. Seu percurso de gramaticalização
mostra que “aí” passou de advérbio (nível lexical) a conjunção (nível gramatical, tendo
ocorrido, portanto, de acordo com P. J. Hopper (apud POGGIO 2002), o Princípio da
Descategorização, ou seja, a palavra perdeu sua categoria e autonomia, por conta do
processo de gramaticalização, adquirindo dessa forma uma outra função e um outro
sentido, e perdeu sua autonomia, vindo a obter outros sentidos além do seu sentido
original. Com base em Ataliba T. de Castilho (apud POGGIO 2002), podemos afirma
83
que, nessas ocorrências, aconteceu o Princípio da sintagmatização e reanálise, pois a
reanálise é um mecanismo de mudança pelo qual o falante reorganiza a estrutura do
enunciado, reinterpretando os elementos que o compõem e essa reorganização estrutural
do enunciado pode implicar uma modificação das fronteiras entre elementos do léxico
na língua falada e ocorreu também o Princípio da Continuidade e do Gradualismo, pois
a gramaticalização inovou a estrutura da língua em processos de comunicação na
interação entre os usuários, de forma gradual.
Esses exemplos retirados do livro do Arnaldo Jabor mostram-nos que os
advérbios estão sujeitos a mudanças linguísticas determinadas pelas escolhas que o
falante faz durante a fala, ou seja, o usuário da língua durante o processo de interação
comunicativa negocia o sentido com o ouvinte e tende sempre a usar expressões novas.
Esse fato acontece porque existe o falante que tem liberdade na construção de seus
enunciados, porque é ele quem faz escolhas que levam a resultados de sentidos e a
efeitos pragmáticos.
Da mesma forma que é o falante que faz suas escolhas e com elas contrói
sentidos, não podemos deixar de dizer que ao fazer determinadas escolhas que melhor
se encaixem na interação comunicativa, o falante o reorganiza a estrutura do enunciado,
reinterpretando os elementos que o compõem para alcançar o sentidos desejado, afim de
que seu interlocutor o compreenda. Podemos destacar que nesses exemplos existe um
locutor que representa o “eu” na enunciação, é o responsável pelo discurso, pois, é uma
figura constituída, porque marcada internamente no texto e há também a representação
de um locutor-enquanto-pessoa, representado pela pessoa do mundo que se apresenta no
discurso aparece no discurso como sendo sua origem. (ORLANDI 2008, p. 64)
A reorganização estrutural do enunciado que caracteriza o fenômeno da reanálise
pode implicar uma modificação das fronteiras entre elementos do léxico na língua
falada. Ao optar por determinadas mudanças, o falante vai criando novas funções para
formas já existentes e novas formas para funções já existentes, é a noção de gramática
emergente, mostrando que o sistema linguístico está em constante transformação. De
acordo com Saussure (apud MARTELOTTA 2011, p. 16), “É na fala que se acha o
germe de todas as modificações: cada uma delas é lançada a princípio por um certo
número de indivíduos antes de entrar em uso”.
A seguir mostramos exemplos de gramaticalização dos pronomes.
84
3.1.5 GRAMATICALIZAÇÃO DOS PRONOMES
Neste item apresentamos exemplos de pronomes que sofreram o processo de
gramaticalização:
EXEMPLO 01:
- Isso mesmo: a canção me trouxe uma cena, que há mais de 50 anos, me volta
sempre. (Um Rosto Inesquecível, p. 10)
EXEMPLO 02:
- Isso: felicidade e medo, a sensação de tocar por instantes um mistério sempre
movente, como um fotograma que pára por um instante e logo se move na continuação
do filme. Sempre senti isso em cada visão de mulheres que amei: um rosto se erguendo
no meio da praia, uma mulher fingindo não me ver, mas vendo-me de costas num
escritório do Rio. (Um Rosto Inesquecível, p. 12)
EXEMPLO 03:
- Meu homem feliz pode ter todas as mulheres, mas é casado consigo mesmo.
Não pensem que estou criticando isso; estou com inveja desta leveza de ser, dessa
ligeireza. (Nosso Macho Feliz É Casado Consigo Mesmo, p. 20)
EXEMPLO 04:
- “NATAL, NATAL – bimbalham os sinos!” Sempre tive vontade de começar um
artigo assim.
- Eu acho que isso se deve ao hábito de meu pai cultivava de forjar uma carta que
Papai Noel me enviava junto com os presentes. (Nunca Acreditei Em Papai Noel, p.
99)
- ISSO: gramaticalmente, a unidade lingüística “ISSO” é um pronome demonstrativo
indicando algo e substituindo o nome de alguma coisa, mas, da maneira como o autor a
usa nos textos, podemos verificar que, além de substituir alguma coisa, ele pode
também fazer referência a algum assunto mencionado anteriormente no texto ou indicar
que um assunto novo será introduzido. Portanto, ele pode ter sentido anafórico ou
catafórico. Temos nos exemplos 02, 03 e 04 “ISSO” com valor anafórico, ou seja, ele
85
faz referência ao assunto mencionado anteriormente no texto, sendo assim, ele chama a
atenção do leitor para o que já foi dito. Nos exemplos 01 e 02, temos “ISSO” com valor
catafórico, ou seja, ele introduz informações novas no texto. Tendo ocorrido, portanto,
em todos os exemplos de acordo com P. J. Hopper (apud POGGIO 2002) o Princípio da
Descategorização, ou seja, a palavra perde sua categoria e autonomia, por conta do
processo de gramaticalização, adquirindo um outro sentido, valor anafórico ou
catafórico e uma nova função, como operador argumentativo, tendo posição mais fixa
nos enunciados e o papel de organizar internamente o uso da língua, indicando a
orientação argumentativa do discurso. Essa mudança não significa dizer que ela deixou
ou anulou completamente seu sentido, mas perdeu sua autonomia, vindo a obter outros
sentidos além do seu sentido original. Nesse caso, ainda segundo Ataliba T. de Castilho
(apud POGGIO 2002), podemos afirmar que aconteceu o Princípio da sintagmatização
e reanálise, pois esta última é um mecanismo de mudança pelo qual o falante reorganiza
a estrutura do enunciado, reinterpretando os elementos que o compõem, fenômeno
ligado ao processo cognitivo metonímico. Essa reorganização estrutural do enunciado
pode implicar uma modificação das fronteiras entre elementos do léxico na língua
falada, além de apontar também para o Princípio da Continuidade e do Gradualismo,
pois a gramaticalização inovou a estrutura da língua nas trocas comunicativas
interativas, em um processo que não foi instantâneo.
A seguir abordamos a gramaticalização dos numerais.
3.1.6 GRAMATICALIZAÇÃO DOS NUMERAIS
Neste item apresentamos exemplos de numerais que sofreram o processo de
gramaticalização:
- Uma bola de borracha voou em minha direção e bateu em meu peito. Olhei e vi
uma menina morena, de tranças, com olhos negros, bem perto, me pedindo a bola e,
nesse segundo, eu me apaixonei. (Um Rosto Inesquecível, p. 10)
- Nunca integrei o primeiro time de nada no colégio de padres, nunca recebi uma
taça, nunca arranquei poeira do chão com chuteiras masculinas e ferozes que rangiam
em disputadas partidas, nunca conheci a alegria dos aplausos suados, descabelados, nas
manhãs dos padres jesuítas. (Pelé Eterno Me Trouxe A Infância De Volta, p. 49)
86
- Sessenta e quatro criou um abismo, um vazio, e nos tirou a esperança de que ia
surgir uma sociedade original, mesmo num futuro nevoento cheio de urubus.
(Antigamente, Quando Eu Era Pequenino, p. 148)
- Ninguém vai nos julgar mais. Esses intelectuais de quinta querem que eu deixe
as maiores reservas de petróleo do mundo com o Saddam? (Espelho Meu, Quem É O
Imperador Do Mundo?, p. 161)
Os exemplos de numerais que encontramos nos textos são os seguintes: Segundo; - Primeiro; - Sessenta e quatro; - Intelectuais de quinta. Gramaticalmente,
os numerais indicam quantidade, ordem de elementos, fração de uma unidade e a
multiplicação de uma unidade, mas o autor utiliza os numerais com outro sentido. Nos
exemplos apresentados, segundo indica o momento em que um fato ocorre, exercendo,
portanto, a função de substantivo; primeiro mostra o time que é o melhor em qualidade,
indicando qualidade no papel de adjetivo; sessenta e quatro representa o ano em que
houve, no Brasil a Revolução que implantou a ditadura e não uma ordem dos elementos,
logo funcionando como substantivo, tendo a função de nomear um fato da realidade e,
por fim, quinta que significa a má qualidade de alguns intelectuais que não conseguem
desempenhar de forma competente uma atividade, perdendo, assim, seu papel de
numeral e passando a exercer a função de adjetivo, atribuindo qualidades a um ser.
Constatamos com esses exemplos que os numerais estão perdendo sua função e seu
sentido pleno, ou seja, eles na língua em uso no dia a dia estão deixando de indicar
quantidade e exercendo outra função com outros sentidos que são institucionalizados
pelos falantes no uso da língua. Houve um processo de degramaticalização uma vez que
essas palavras deixam o nível gramatical, sua origem, e passam ao nível lexical,
ganhando, dessa forma, autonomia. Assim, nos atos comunicativos, há uma negociação
do sentido entre falante e ouvinte, para conseguirem entender e compreender o que cada
um está dizendo e qual é o sentido de determinados elementos linguísticos. Tendo
ocorrido, portanto, de acordo com P. J. Hopper (apud POGGIO 2002) o Princípio da
descategorização, ou seja, a palavra perdeu sua categoria e sua dependência, adquirindo
sua autonomia, por conta do processo de degramaticalização, porque, nesses casos, as
unidades lingüísticas passaram de palavras gramaticais para palavras lexicais. De
acordo com Ataliba T. de Castilho (apud POGGIO 2002), podemos afirmar que, nessas
ocorrências, aconteceu o Princípio da sintagmatização e reanálise, pois o falante
87
reorganizou a estrutura do enunciado, reinterpretando os elementos que o compõem,
essa reorganização estrutural do enunciado pode implicar uma modificação das
fronteiras entre elementos do léxico na língua falada e na escrita e o Princípio da
Continuidade e Gradualismo, uma vez que a língua passou por inovação em sua
estrutura por meio da interação durante o processo de comunicação, a qual ocorreu
gradualmente.
A seguir mostramos exemplos de gramaticalização das preposições.
3.1.7 GRAMATICALIZAÇÃO DAS PREPOSIÇÕES
Neste item apresentamos exemplos de preposições que sofreram o processo de
gramaticalização:
EXEMPLO 01:
- A mulher de bunda bonita vive angustiada: quem é amada? Ela ou sua bunda?
Algumas bundas até parecem ter pena de suas donas e quase dizem: “Olhem para ela
também, ouçam suas opiniões, sentimentos... Ela também é legal...” (Meditações
Diante do Bumbum de Juliana, p. 32)
EXEMPLO 02:
- Este crime horrorizou todo mundo. Até os assassinos na cadeia se chocaram.
(Suzane, 19 Anos, Bela E Rica, Matou Por Amor, p. 63)
EXEMPLO 03:
- Hoje, podemos tudo, podemos casar até com jacarés ou macacas. (O Amor
Deixa Muito A Desejar, p. 86)
- ATÉ: de acordo com os dicionários o item lexical “até” é uma preposição que indica
limite no espaço, no tempo, na ação, na quantidade ou na qualidade. Porém nos textos
analisados, ele apresenta o sentido de “inclusive”, ou seja, exerce a função de advérbio
de inclusão. Está passando por um processo de degramaticalização, pois constatamos
que está deixando de exercer a função de preposição e passando a ter um papel de
advérbio. Vê-se, assim, que surge uma nova função para uma forma já existente, o que
nos remete à gramática emergente da língua, tendo ocorrido, portanto, de acordo com P.
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J. Hopper (apud POGGIO 2002), o Princípio da Descategorização, pelo qual a palavra
perde sua categoria e assume outra classe gramatical e, consequentemente, ganha maior
autonomia por conta do processo de degramaticalização, pois a unidade lingüística saiu
do nível gramatical (preposição) e passou para o nível lexical (advérbio). Neste caso,
ainda, segundo Ataliba T. de Castilho (apud POGGIO 2002), aconteceu o Princípio da
sintagmatização e reanálise, uma vez que esta última é um mecanismo de mudança pelo
qual o falante reorganiza a estrutura do enunciado, reinterpretando os elementos que o
compõem, baseado na metonímia, e essa reorganização estrutural do enunciado pode
implicar uma modificação das fronteiras entre elementos do léxico na língua falada e na
escrita e o Princípio da Continuidade e Gradualismo, uma vez que a língua passou por
inovação em sua estrutura por meio da interação durante o processo de comunicação.
Nos exemplos acima podemos constatar que a maneira como o autor faz uso da
preposição “até” bastante criativa, mostrando o modo como as pessoas comunicam-se
no uso comum da língua. A preposição “até” está passando por um processo de
degramaticalização na língua em uso e essa mudança está migrando para a língua
escrita, e é a pressão comunicativa que se sobrepõe às regras já estabelecidas no
sistema linguístico, dando a ele novas configurações.
A seguir mostramos exemplos de expressões lexicais.
3.2 EXPRESSÕES LEXICAIS
As expressões lexicais mostram a maneira como o falante constrói o enunciado de
maneira entenda e que seja entendido pelos seus ouvintes em sua comunidade
linguística. Dessa maneira, o falante constrói os sentidos de sua fala no momento da
interação comunicativa. Os usuários da língua no momento da fala podem assumir
vários papeis, dentre eles, o de locutor, alocutário, narrador, interlocutor etc. Sendo
assim, podemos afirmar que em todo o discurso existe o desdobramento de sujeitos
ocupando várias posições no texto, auxiliando na construção de sentidos dos textos, que
é o que veremos nos exemplos seguintes. É importante observar que o sentido de cada
palavra ou expressão está ligado à posição ocupada pelo falante no ato da comunicação
e as escolhas lexicais estão relacionadas ao conhecimento prévio dos falantes.
Neste item apresentamos exemplos de expressões lexicais que sofreram o
processo de lexicalização:
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- Eu era fanático pelo Ipiranga, de uniforme verde e vermelho, que eu almejava
ostentar um dia, de preferência se Silvinha, moreninha de olhos verdes, estivesse na
amurada me vendo driblar adversários, dando-lhes chapéus sucessivos e entrando
triunfalmente pelo gol do Lá Vai Bola, temido time do Leme. (Pelé Eterno Me Trouxe
A Infância De Volta, p. 47)
- DANDO-LHES CHAPÉUS: é um exemplo de lexicalização, não significa dar
chapéu a alguém para que esse alguém possa colocar em sua cabeça, ou melhor, cobrir
sua cabeça para proteger do sol, chuva etc. É uma expressão idiomática típica do
futebol. Durante uma partida de futebol o jogador jogou a bola por cima de seu
adversário fazendo com que ela passasse por cima de sua cabeça e ele jogador a pegasse
do outro lado para continuar jogando. Nesse exemplo além do locutor na enunciação há
o locutor-enquanto-pessoa, ou seja, é a pessoa do mundo que se apresenta no discurso
como sendo de sua autoria. Ou seja, ele locutor-enquanto-pessoa daria vários chapéus
em seus adiversários.
- Até hoje sinto o arrepio, quando vi que meu destino de perna-de-pau estava
traçado, não só no futebol mas talvez na vida, pois percebi com pânico que, enquanto
todo mundo na arquibancada olhava o jogo, eu olhava os torcedores olhando o jogo.
(Pelé Eterno Me Trouxe A Infância De Volta, p. 49)
- PERNA DE PAU: é um processo de lexicalização que significa quem não tem
habilidade para jogar futebol. Existe um locutor-enquanto-pessoa no texto contando
sobre sua falta de habilidade para o futebol.
- Mas não posso me queixar de nada, casei várias vezes, tive duas filhas e um
filho maravilhosos, chorei muitas vezes de dor-de-corno e de desentendimento, mas
não posso me queixar, pois, além do que vivi, vejo hoje que as memórias são tão sólidas
quanto as realidades. (Resposta A Uma Moça 50 Anos Depois, p. 57)
- DOR DE CORNO: é um exemplo de lexicalização que significa que uma pessoa que
é traída pelo seu companheiro(a) e é mais utilizado para os homens do que para as
mulheres. O locutor-enquanto-pessoa sabe que sua mulher o traiu e por isso ele narra
no texto seu sentimento, descontentamento com a situação.
90
- Depois da queda do muro de Berlim, a arrogância dos EUA, em sua crença de
que uniriam o mundo todo numa grande “mcdonaldização” da vida também caiu por
terra. (Onde Estão Os Hippies, Agora Que Precisamos Deles, p. 88)
- CAIU POR TERRA: é um exemplo de lexicalização que significa que algo acabou,
cessou. Nesse exemplo o locutor-enquanto-pessoa conta o que aconteceu com um país.
- E, enquanto meu filhinho começa a dormir, pensando no gambá cheiroso, eu vou
pensando em sua pergunta profunda: “Papai, o que que tinha antigamente? Bem,
respondo para mim mesmo, antigamente, tinha eu, outro “eu”, diferente do cascagrossa de hoje. (Antigamente, Quando Eu Era Pequenino, p. 147)
- CASCA-GROSSA: é um exemplo de lexicalização, não é usado com o sentido
concreto de casca, mas sim com o sentido de uma pessoa que é difícil de conviver com
as outras em sociedade. Nesse exemplo o locutor-enquanto-pessoa está contando um
comportamento que ele tinha.
- Eu queria desbundar feito eles, mas meu pai não deixava e, aí, eu só enchia a
cara de Jack Daniels. (Espelho Meu, Quem É O Imperador Do Mundo?, p. 160)
- ENCHIA A CARA DE JACK DANIELS: é um exemplo de lexicalização que
significa beber muito. O locutor pensou em beber muito, pois não conseguiu realizar
determinada atividade, porque seu pai não deixava, então como forma de minimizar
uma frustração, ele bebia bastante.
- E se a barra pesar muito, pau nos chineses que virão, e nos russo e árabes.
(Espelho Meu, Quem É O Imperador Do Mundo?, p. 163)
- SE A BARRA PESAR MUITO: é um exemplo de lexicalização que significa uma
situação ou momento difícil. Há um locutor no texto que relata que se a situação piorar
será pior para os chineses.
- ...e todo mundo vai me respeitar e gostar de mim, porque eu vou ser legal com
quem for legal comigo, mas, se não for legal comigo, será esculachado, porque eu não
91
vou dar colher de chá para traidor e porque nunca mais vou ser humilhado. (O Grande
Sucesso Do Herói Sem Coração, p. 175)
- COLHER DE CHÁ: é um exemplo de lexicalização e não é usado com o sentido
concreto de uma colher de chá, mas sim com o sentido de facilitar algo para alguém. O
locutor não facilitará nada para ninguém.
- No fim de ano todo mundo começa a falar: “Feliz Natal, feliz ano novo!” Mas,
ser feliz, como? O sujeito passou o ano todo quebrando a cara, reclamando da mulher,
batendo nos filhos, lutando contra o desemprego, sendo humilhado pelos patrões, e aí
chega o fim do ano e todo mundo diz: “Seja feliz!” E aí o sujeito tem de estampar um
sorriso alvar no rosto. (A Felicidade É A Empada Do Bigode, p. 189)
- QUEBRANDO A CARA: é um processo de lexicalização que significa fazer coisas
pensando que darão certo, que sairão da maneira como pensamos que sairão e ao final
não acontecer da maneira com imaginávamos que fosse acontecer. O locutor-enquantopessoa no texto mostra que as pessoas sempre ao final de cada ano, por questão de
costume, ou tradição desejam sempre, Feliz Natal e Feliz Ano Novo para todas as
pessoas sem saberem se essas pessoas tiveram ou não um ano próspero e por isso,
torcem para que o próximo ano seja melhor do que foi o passado.
- Estou de saco cheio; vou telefonar para o Nelson Rodrigues para ver se ele me
dá uma luz, lá do céu. (A Humanidade Sempre Foi Uma Ilusão À Toa, p. 193)
- ESTOU DE SACO CHEIO: é um processo de lexicalização que significa não
agüentar mais determinada situação ou momento pelo qual está passando. Nesse
exemplo o locutor expressa um sentimento, demonstrando uma inquietação em relação
a algo que aconteceu de maneira errada, não esperada pelo locutor.
Podemos observar que essas expressões são de base metafórica, ou seja, todas
estão ligadas às experiências de vida das pessoas, fazem parte do seu conhecimento
enciclopédico e o autor, para mostrar a maneira como elas usam a língua, tentou trazer o
mais próximo possível de seu leitor essa linguagem. Todos os exemplos sofreram o
processo de lexicalização.
92
Conforme já foi mencionado, de acordo com Martelotta & Palomanes (2008, p.
179),
em termos mais específicos, podemos dizer que, de um modo geral, a
proposta cognitivista leva em conta aspectos relacionados a restrições
cognitivas que incluem a captação de dados da experiência, sua compreensão
e seu armazenamento na memória, assim como a capacidade de organização,
acesso, conexão, utilização e transmissão adequada desses dados. É
importante aqui registrar que esses aspectos somente se concretizam
socialmente, ou seja, não refletem apenas o funcionamento de nossa mente
como indivíduos, mas como seres inseridos em um ambiente cultural. Em
outras palavras, segundo essa visão teórica há uma relação sistemática entre a
linguagem, pensamento e experiência. Isso nos leva a um outro aspecto da
proposta cognitivista, que incorpora os fenômenos referentes à interação
social. Esse outro aspecto de cunho social leva alguns autores a acrescentar
ao vocábulo designativo dessa escola linguística o elemento sócio-, criando o
termo sociocognitivismo. Esse termo enfatiza a importância do contexto nos
processos de significação e o aspecto social da cognição humana. Mais do
que isso, focaliza a linguagem como uma forma de ação, ou seja, através da
linguagem comentamos, oramos, ensinamos, discursamos, informamos,
enfim, enquadramo-nos nos milhares papeis sociais que compõem nossa vida
diária.
É importante observar que, nos casos de expressões que estão passando pelo
processo de lexicalização, o posicionamento do autor é muito parecido com o que ele
exerce nos exemplos de verbos que estão passando pelo processo de gramaticalização e
também nos exemplos de discursivização, ou seja, é nesses casos que fica mais evidente
a mudança de posicionamento do autor, os movimentos que o cronista realiza. Nesses
exemplos, ela faz o seguinte movimento: em primeiro lugar, ele transfere-se da sua
posição, da sua condição de conhecedor da norma padrão da língua; em segundo lugar,
projeta como é que essas pessoas não conhecedoras da norma linguística padrão língua
se comunicam de forma interativa, e, por fim, em terceiro lugar, o cronista designa-se
como tal, ou seja, denomina-se como um usuário qualquer da língua em uso no dia a dia
em tempo real de comunicação que não têm o domínio da norma padrão da língua.
Fazendo esse movimento, o autor consegue colocar nos textos escritos mudanças
existentes na língua em uso comuns no dia a dia e as transformações pelas quais a
língua está passando que só podem ser verificadas na interação comunicativa, nas
conversas descontraídas de amigos, nas falas espontâneas, que não são abordadas nas
gramáticas normativas.
Quando o autor faz a transferência, projeta e designa-se pelo outro, ele faz as
escolhas lexicais que são mais adequadas a esse campo, o campo do outro, o campo da
coloquialidade, ou seja, o cronista faz uso do léxico como fundamento ou âncora para o
93
enunciado configurado pelas modalidades da enunciação, revelando dessa maneira o
uso bem coloquial do autor.
De acordo com Turazza (2005, p.59) as lexias são descritas por Pottier como a
combinação de dois signos mínimos: o lexical e o gramatical, compreendendo a
formalização de um plano semântico que está à disposição do falante. As lexias lexicais
compreendem a classe das designações e as lexias gramaticais compreendem das
relações e a classe das formulações, que implica que essas lexias gramaticais veiculam
as intenções de um locutor, ou seja, ela exerce um papel fundamental com âncora para a
elaboração dos enunciados.
Continua a autora (2005, p. 59),
em síntese, as lexias da classe de designação são as que representam os
referentes antropo-socio-culturais, geradores e refletores da visão de mundo
do grupo; as lexias da classe de relação e de formulação têm a função de
articular as relações entre as primeiras no universo discursivo, manifestando,
de certa forma, a intenção do locutor, através de mecanismos de modalidades,
explícitos ou implícitos, no enunciado.
Verificamos que, nesse momento, o falante e o ouvinte negociam os sentidos,
mostrando, assim, a liberdade organizacional do falante, dentro das restrições
construcionais, pois os falantes fazem suas escolhas que levam a resultados de sentidos
e efeitos pragmáticos diversos. No ato da comunicação, o falante tem tendência de
sempre usar expressões novas, com sentidos novos que chamem atenção das outras
pessoas. É o que podemos chamar de reanálise, ou seja, o usuário da língua reorganiza a
estrutura do enunciado, reinterpretando os elementos que o compõem. Esse fenômeno
implica uma modificação entre os elementos do léxico na língua falada que pode ser
registrada na língua escrita para preservar a maneira de falar das pessoas na interação
comum do dia a dia. Essa mudança no léxico na língua falada ocorre também por causa
da inferência por pressão de informatividade – o elemento é pressionado pelo contexto a
admitir um sentido novo.
Constatamos que, nesses exemplos, existe o locutor que é representado pelo “eu”
na enunciação, é o responsável pelo discurso, e existe também a representação de um
locutor-enquanto-pessoa, representado pela pessoa do mundo que se apresenta no
discurso com sendo de sua autoria.
Nesses exemplos, constatamos que, apesar de estarem em textos escritos, é muito
frequente a forma como os usuários da língua fazem uso dela, uma vez que as
transformações, adaptações e renovações que são realizadas e criadas pelos falantes para
94
serem melhor compreendidos pelos que os ouvem, para que possam atingir seus
objetivos, que é o foco de estudo da linguística funcional.
Sendo assim, nessas ocorrências, podemos constatar o que foi mencionado
anteriormente que, no processo de gramaticalização, a metáfora é uma das motivações
mais importantes, pois, Martelotta (1996) considera que a gramaticalização envolve
vários níveis:
A – Nível cognitivo: a gramaticalização (pelo menos no que se refere ao
nível morfológico) segue, como parece ocorrer com os processos de
mudança metafórica em geral, a tendência de usar elementos do mundo
concreto para o mundo abstrato. O elemento do léxico é mais concreto que a
gramática: é mais fácil conceptualizar substantivos do que relações textuais.
B – Nível Pragmático: a gramaticalização envolve uma intenção genérica do
falante de usar algo conhecido pelo ouvinte para fazê-lo compreender
melhor o sentido novo que ele quer expressar. Pode-se também ver nessa
passagem concreto > abstrato uma intenção comunicativa de facilitar a
compreensão do ouvinte a partir da utilização de conceitos mais concretos e
mais conhecidos para a expressão de ideias novas que surgem no decorrer
do processo comunicativo.
C - Nível Semântico: a gramaticalização, como processo de mudança
ocorrida no léxico, envolve o conhecimento por parte dos interlocutores dos
significados de origem das palavras envolvidas; caso contrário, o sentido
novo corre o risco de não ser detectado pelo ouvinte.
D – Nível Sintático: a gramaticalização ocorre basicamente em contextos
que a estimulem, o que significa que não só existem aspectos sintáticos que
propiciam a gramaticalização, mas principalmente, que esses aspectos são
responsáveis pelo fato de a mudança tomar efetivamente este e não aquele
caminho.
Essas mudanças sempre ocorrem de forma gradual e estão relacionadas aos níveis
cognitivo, pragmático, semântico e sintático conforme explicados acima. É importante
lembrar que a linguagem está diretamente relacionada ao nosso pensamento e à nossa
95
experiência de vida, ou seja, nosso conhecimento enciclopédico. Ela faz parte da
cognição humana, é um processo que ocorre de maneira instantânea, envolvendo um ato
mental, ou seja, é por meio dos atos mentais que os usuários da língua criam e
constroem novas formas linguísticas para os elementos linguísticos nos mais variados
contextos, ou melhor, nas diversas situações comunicativas. Por meio de seu
conhecimento de mundo, o usuário constrói sentidos e significados para as diversas
situações comunicativas até a convencionalização das formas linguísticas.
Verificamos também que os usuários da língua têm capacidade de processar
informações, de decodificá-las, de compreendê-las e armazená-las na memória,
adaptando-se aos mais diversos e variáveis meios sociais nos quais eles estão inseridos.
Ou seja, nos exemplos observamos que quando o falante participa de uma interação
comunicativa, ele transfere para a fala todo seu conhecimento de mundo e esse
processo está relacionado a linguística cognitiva, pois, todo processo comunicativo em
que há interação face a face está baseado na percepção de mundo que o usuário da
língua tem, pois ninguém fala simplesmente por falar. Em todo momento de
comunicação, o usuário mostra como ele percebe, categoriza e conceitualiza o mundo.
Por mais que não queiramos, sempre que nos comunicamos estamos revelando o modo
como percebemos, categorizaramos e conceitualizamos o mundo. E o contexto no qual
os falantes/ouvintes estão inseridos orienta a construção do significado, na construção
de sentidos, dando ênfase à experiência humana. Mostrando dessa forma a capacidade
que as pessoas têm para processar informações e adaptá-las às mais diversas situações
comunicativas.
Nos casos de lexicalização verificamos que os falantes, em certos contextos
linguísticos, usam uma construção sintática ou uma formação de palavras com uma
nova forma significativa, contendo propriedades formais e semânticas que não são
completamente deriváveis ou previsíveis a partir dos constituintes da construção. Ao
longo do tempo, pode ocorrer mais perda da constituição interna e o item pode se
tornar mais lexical. É uma mudança diacrônica, logo gradual, como ocorre com a
gramaticalização, sendo seus itens mais idiomáticos e menos composicionais. Esse
fenômeno caracteriza as expressões idiomáticas, como diálogo de surdos, colher de chá
e casca grossa. O ponto de partida dessa construção é um item lexical que faz parte do
léxico da língua e deve ser aprendido pelos falantes.
De acordo com Martelotta (2011, p. 121-122), lexicalização e gramaticalização
apresentam similaridades:
96
A- Perda de fronteira – nos dois processos há perda de fronteiras: junção e
coalescência (redução de segmentos fonológicos, conseqüente da fusão de
itens, por exemplo: em boa hora > embora.
B- Perda de composicionalidade – nos dois processos há perda de motivação
com o desaparecimento do sentido composicional.
C- Unidirecionalidade – nos dois processos há uma unidirecionalidade que
acarreta morfossintaticamente mais > menos fronteiras, assim como
semanticamente mais > menos composicional; e não o contrário.
Os exemplos de substantivos estão assumindo novos sentidos na língua em uso e
o falante é o responsável por essa aquisição de novos sentidos para palavras já
existentes. Estão passando pelo processo chamado de lexicalização na medida em que
adquirem novos sentidos para palavras já existentes. Constatamos que existe uma
negociação do sentido por falante e ouvinte no ato da comunicação e que os falantes
têm uma tendência para usar expressões novas. Esses novos sentidos atribuídos a
formas já existentes ocorrem por conta da pressão de informatividade que se dá em
função do contexto na interação comunicativa, mostrando, dessa maneira, que os
elementos são pressionados pelo contexto de uso para admitir um novo sentido, ou seja,
é a liberdade organizacional do falante no momento da elaboração de seu enunciado,
pois é ele quem faz as escolhas que levam a novos efeitos de sentidos. Sendo assim,
constatamos que a língua é viva e está mudando à todo o instante dependendo do
processo criativo do usuário da língua na interação comunicativa.
O cronista mostra-nos o movimento que ele faz para adequar-se à norma
coloquial. Ele evidencia que, na língua em uso, ocorre sempre um processo de reanálise,
e que o usuário faz as escolhas lexicais que mais se adaptam aos seus objetivos
comunicativos, deixando evidente que existe negociação de sentidos na comunicação e
que o locutor tem forte tendência para usar expressões novas que chamem a atenção do
interlocutor, mostrando, assim, toda a liberdade organizacional do falante. Nos casos
analisados, portanto, de acordo com P. J. Hopper (apud POGGIO 2002), o Princípio
descategorização, ou seja, a palavra assume nova categoria, ganha autonomia, por conta
do processo de lexicalização. Para Ataliba T. de Castilho (apud POGGIO 2002),
podemos afirma que, nessas ocorrências, aconteceu o Princípio da sintagmatização e
reanálise, uma vez que esta última é um mecanismo de mudança pelo qual o falante
97
reorganiza a estrutura do enunciado, reinterpretando os elementos que o compõem,
baseado na metonímia, e essa reorganização estrutural do enunciado pode implicar uma
modificação das fronteiras entre elementos do léxico na língua falada e na escrita e o
Princípio da Continuidade e Gradualismo, uma vez que a língua passou por inovação
em sua estrutura por meio da interação durante o processo de comunicação, a qual
ocorreu gradualmente.
A seguir mostramos alguns exemplos de discursivização.
3.3 DISCURSIVIZAÇÃO
Discursivização é o processo que faz com que um elemento linguístico perca suas
propriedades gramaticais e tenha propriedades exclusivas do discurso, ou seja, são
expressões com valor semântico indeterminado, impreciso, genérico e também ambíguo
que somente fazem sentido no discurso, fora dele elas não tem nenhuma significação. A
seguir apresentamos os exemplos de ocorrências de discursivização encontrados nas
crônicas analisadas.
- E por aí vamos. Sexo e amor tentam mesmo é nos afastar da morte. Ou não; sei
lá... e-mails de que souber para o autor. (Amor É Prosa, Sexo É Poesia, p. 39)
- Não quero bancar o famosinho mas, veja bem (como dizem os chatos). (O
Chato É Antes De Tudo Um Forte, p. 42)
- Passam uns andares. “Ele não vai aguentar”, eu penso. Não dá outra. “Você
não é aquele cara da TV? (O Chato É Antes De Tudo Um Forte, p. 43)
- A sensação é o mesmo êxtase de ver uma exposição de Picasso ou, sei lá,
Shakespeare. (Pelé Eterno Me Trouxe A Infância De Volta, p. 51)
- O carnaval deixou de ser vivido para ser olhado, virou uma horda de
exibicionismos sexuais, uma suruba iminente sem o sensual perfume do passado.
Carnaval sempre foi sexo – tudo bem – mas, antes, havia a suave caretice. (De Camisa
Amarela, Volto Aos Grandes Carnavais, p. 60)
98
- Pois é; as namoradas não davam. (O Amor Nos Anos 60, p. 67)
- Pois bem, dava para ver nos corpinhos dançantes do carnaval sem som. (Nossos
Dias Melhores Nunca Virão?, p. 75)
- Na boa? Acho que teremos os terrorismos islâmicos, bombas de destruição em
massa que cabem nos bolsos, escassez econômica, extermínios e um vaivém de
fascismos nas nações emergentes. (Onde Estão Os Hippies, Agora Que Precisamos
Deles, p. 90)
- É isso aí. E ao fechar este texto, me assalta a dúvida: estou sendo hipócrita e
com inveja do erotismo do século XXI? (Os Homens Desejam As Mulheres Que Não
Existem, p. 143)
- Estou sendo filosófico, mas...tudo bem...não perguntaram? (O Amor
Impossível é o Verdadeiro Amor, p. 166)
- A prostitutinha tem lá o seu amante, seu cafetão. E o travesti? Ele é só. O
travesti nu em Copacabana desafia todos os pudores. (O Travesti Está Na Terceira
Margem Do Rio, p. 172)
- Durante a Guerra Fria, a América sempre criou embaraços para governos
seculares e reformistas do oriente. Nasser, por exemplo. A América sempre deu força
aos seus fundamentalistas para enfraquecer os comunistas ou os terceiro-munditas. Deu
no que deu: agora só lhe resta a aceitação de uma fatalidade que veio para ficar. (Um
Asteróide De Deus Caiu Sobre O Ocidente, p. 188)
- E POR AÍ VAMOS; - SEI LÁ; - VEJA BEM; - NÃO DÁ OUTRA; - SEI LÁ; TUDO BEM; - POIS É; - POIS BEM; - NA BOA; - É ISSO AÍ; - TEM LÁ; - DEU
NO QUE DEU: são expressões que fora do discurso não significam nada, que têm
valor semântico vago, ou seja, elas fazem parte da interação comunicativa e fora da
interação comunicativa, daquele momento, não têm valor nenhum, mas são expressões
que representam com muita propriedade a língua em uso comum no dia a dia. Mostram
99
o uso bem coloquial que o locutor faz da língua para comunicar-se no dia a dia nas
diversas interações comunicativas.
Nesses exemplos notamos a preocupação do autor em registrar o uso real da
língua. Ele não quer registrar a língua rebuscada, polida, sem falhas e imperfeições, a
língua correta de bom uso, ele quer registrar a língua que circula socialmente nos
processos de interação comunicativa, a língua que não é valorizada, a língua que o
falante tem liberdade para organizar o seu enunciado e que tem seus sentidos
negociados pelo falante e pelo ouvinte na comunicação diária.
São exemplos que mostram a liberdade organizacional do falante, pois ele faz
suas escolhas que levam a resultados de sentidos e efeitos pragmáticos diversos, ou
seja, a negociação do sentido pelo falante e ouvinte no ato da comunicação. Mostram
também a tendência que o falante tem, de no ato da comunicação, sempre usar
expressões novas, com sentidos novos que chamem atenção das outras pessoas,
ocorrendo a sua aceitação de forma gradual. Sendo assim, verificamos que o usuário
com sua liberdade organizacional realiza escolhas lexicais que levam a resultados de
sentidos e efeitos pragmáticos diversos.
Constatamos que nos exemplos existe um locutor que representa o “eu” na
enunciação, é o responsável pelo discurso, e um locutor-enquanto-pessoa, representado
pela pessoa do mundo que se apresenta no discurso aparece no discurso como sendo
sua origem.
Da mesma maneira como o autor se comportou nos exemplos anteriores,
percebemos que ele se comporta nos casos de discursivização, ou seja, fazendo o
seguinte movimento: transfere-se, projeta e designa-se pelo outro, a fim de mostrar
todas essas transformações que ocorrem na língua em uso no dia a dia. Quando o autor
faz esse movimento, ele utiliza o léxico como fundamento ou âncora para o enunciado
configurado pelas modalidades da enunciação, ou seja, ele está fazendo uso da classe
lexicológica das formulações. Esse processo é chamado de reanálise, ou seja, o usuário
da língua reorganiza a estrutura do enunciado, reinterpretando os elementos que o
compõem, esse fenômeno implica uma modificação entre os elementos do léxico na
língua falada que pode ser registrada na língua escrita para preservar a maneira de falar
das pessoas na interação comum do dia a dia.
Nas palavras de Coseriu (1979, p. 63), “O falar é atividade criadora, livre e
finalista, e é sempre novo, enquanto se determina por uma finalidade expressiva
100
individual, atual e inédita. O falante cria ou estrutura a sua expressão utilizando uma
técnica e um material anterior que o seu saber lingüístico lhe proporciona.”
3.4 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A seguir apresentamos um quadro mostrando a quantidade de casos de
gramaticalização que foram encontradas nas crônicas de Arnaldo Jabor para verificar
qual classe de palavras têm o maior números de ocorrências. Em seguida, trazemos
outro quadro indicando dentro da classe gramatical qual o termo, item lexical, que
aparece com mais freqüência em seus textos. Esses quadros serão discutidos na
sequência.
TIPOS
QUANTIDADE
OCORRÊNCIAS
SUBSTANTIVO
09
ADJETIVO
14
VERBO
88
ADVÉRBIO
28
PRONOME
33
NUMERAL
05
Descategorização,
Estratificação,
Sintagmatização
e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização
e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização
e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Degramaticalização,
Sintagmatização e
Reanálise, continuidade e
Gradualismo.
101
PREPOSIÇÃO
23
EXPRESSÕES
11
Descategorização,
Degramaticalização,
Sintagmatização
e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Lexicalização.
12
Discursivização.
LEXICAIS
EXPRESSÕES
LEXICAIS
A seguir fizemos quadros informando a quantidade de ocorrências encontradas
em cada categoria analisada.
SUBSTANTIVO
QUANTIDADE
Gente
07
Tipo
02
ADJETIVO
QUANTIDADE
14
Claro
VERBO
OCORRÊNCIA
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
OCORRÊNCIA
Descategorização;
Sintagmatização e
Reanálise; Continuidade e
Gradualismo.
QUANTIDADE
OCORRÊNCIA
Virar
28
Feito
13
Andar
10
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização
e
Reanálise.
Descategorização,
Sintagmatização e
102
Rolar
08
Bater
05
Cortar
01
Cair
03
Pegar
02
Dançar
01
Pintar
01
Boiar
01
Quebrar
01
Lutar
01
Esquentar
01
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
103
Cobrir
01
Explodir
01
Colar
01
Amassar
01
Viajar
01
Comer
03
Papar
02
Traçar
01
Fraturar
01
Dar
05
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Persistência,
104
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
ADVÉRBIO
QUANTIDADE
Aí
15
Bem
07
Assim
06
PRONOME
Isso
NUMERAL
OCORRÊNCIA
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
QUANTIDADE
OCORRÊNCIA
33
Descategorização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
QUANTIDADE
OCORRÊNCIA
Segundo
02
Primeiro
01
Quinta
01
Sessenta e quatro
01
Descategorização,
Degramaticalização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Degramaticalização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Degramaticalização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Descategorização,
Degramaticalização,
Sintagmatização e
105
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
Até
PREPOSIÇÃO
EXPRESSÕES
LEXICAIS
QUANTIDADE
23
OCORRÊNCIA
Descategorização,
Degramaticalização,
Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e
Gradualismo.
QUANTIDADE
11
OCORRÊNCIA
Lexicalização.
12
Discursivização.
Na análise do corpus, podemos verificar alguns princípios da gramaticalização:
Descategorização,
Persistência,
Estratificação,
Sintagmatização
e
Reanálise,
Continuidade e Gradualismo, além dos casos de Lexicalização e de Discursivização e a
degramaticalização. Viver em sociedade significa conversar com outras pessoas, trocar
experiências, ou seja, sempre participamos de algum tipo de interação comunicativa e,
para realizarmos essas atividades comunicativas, devemos conhecer e compreender os
sentidos que as pessoas dão ao léxico ou expressão lexical da qual fazem uso na
comunicação, haja vista, a necessidade de interagir com outras pessoas. Os princípios
de gramaticalização que foram mencionados, os exemplos de lexicalização, de
discursivização e de degramaticalização são os responsáveis pelo processo de
interação, seja em sociedade, seja nos textos escritos. Arnaldo Jabor consegue trazer
para os textos escritos esses exemplos que existem com maior frequência nas conversas
descontraídas dos bares ou nos lares etc.
Na análise, verificamos que, em primeiro lugar, os verbos são muito utilizados
com sentido metafórico, demonstrando as intenções comunicativas do locutor-enquantopessoa, aparecendo 88 vezes, sofrendo os Princípios de Descategorização, Persistência,
Sintagmatização e Reanálise, Continuidade e Gradualismo. Em segundo lugar, está o
pronome demonstrativo isso que apareceu 33 vezes nos exemplos com valor anafórico
ou catafórico, mostrando que o locutor-enquanto-pessoa utiliza-o com a função de
organizar o texto fazendo referência a algo que já foi citado ou anunciando algo novo a
ser apresentado, sofrendo os Princípios de Descategorização, Sintagmatização e
106
Reanálise, Continuidade e Gradualismo; em terceiro lugar, temos o advérbio que
apareceu 28 vezes nos textos de Arnaldo Jabor, sofrendo os Princípios de
Descategorização, Sintagmatização e Reanálise, Continuidade e Gradualismo; em
quarto lugar, temos a preposição até que apareceu 23 vezes, sofrendo os Princípios de
Descategorização, Degramaticalização, Sintagmatização e Reanálise, Continuidade e
Gradualismo; em quinto lugar temos as expressões lexicais que sofreram mudanças e
apareceram 23 vezes, sendo, 12 casos de Discursivização e 11 casos de Lexicalização,
que, inicialmente, não eram objeto de estudo deste trabalho, mas, devido à quantidade
de ocorrências encontradas e devido o processo de Lexicalização ser muito parecido
com o de Gramaticalização, consideramos importante abordá-los; em sexto lugar, temos
o adjetivo claro que apareceu 14 vezes nos exemplos com função modalizadora,
sofrendo os Princípios de Descategorização, Sintagmatização e Reanálise, Continuidade
e Gradualismo; em sétimo lugar temos os substantivos que apareceram 09 vezes nos
exemplos sofrendo os Princípios de Descategorização, Estratificação, Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e Gradualismo e, em oitavo e último lugar, temos os numerais
que apareceram 05 vezes nos textos exercendo as funções de substantivo ou adjetivo
sofrendo os Princípios de Descategorização, Degramaticalização, Sintagmatização e
Reanálise, Continuidade e Gradualismo.
Todos os princípios, mecanismos e características de gramaticalização, casos de
lexicalização, os casos de discursivização e os de degramaticalização são importantes
para compreendermos e entendermos esse processo de interação comunicativa, mas
temos de levar em consideração que nem sempre todos esses aspectos apareceram em
um único texto. Vale lembrar que a gramaticalização, lexicalização, discursivização e
degramaticalização são processos que mostram que a língua está passando por
transformações, renovações e inovações diariamente, que em outras palavras é o
chamado de princípio de continuidade e gradualismo que prevalece no processo de
gramaticalização, pois a língua é viva.
107
CONCLUSÃO
O tema desse trabalho é as mudanças linguísticas nas crônicas do livro “Amor é
prosa, sexo é poesia: crônicas afetivas” de Arnaldo Jabor.
Quando falamos em língua, imaginamos a fala de um grupo, às vezes dizemos que
uma língua é mais difícil do que a outra, ou que a língua espanhola é mais fácil, pois é
mais parecida com a língua portuguesa. Nosso conceito de fácil ou difícil é baseado
sempre na gramática da língua, mas nunca no movimento que ocorre durante o processo
de interação comunicativa.
A gramática funcional define a língua como sendo um instrumento de interação
social, cuja principal função é a comunicação. Dessa forma, a competência
comunicativa é a habilidade que cada falante tem de interagir socialmente com a língua.
As pessoas valorizam demasiadamente a norma culta, esquecendo-se de prestar atenção
ao meio social em que estão situadas, do qual fazem parte. Elas não observam a língua
em uso no dia a dia, cheia de expressões, funções e sentidos que refletem o
funcionamento da língua num dado contexto.
A estrutura de uma língua é moldada pelas diversas situações comunicativas. O
usuário é quem organiza seu discurso de acordo com a aceitação ou não de seu
interlocutor. O objetivo do locutor é, em geral, fazer com que o seu interlocutor mude
de ponto de vista em relação à informação que está sendo transmitida, em outras
palavras, o objetivo do locutor nada mais é do que buscar convencer seu interlocutor em
relação a algum ponto de vista, fazendo uso de meios criativos para alcançar esse
objetivo, rompendo com as estruturas existentes e criando novas construções, para
conseguir mudar o conhecimento do outro.
A língua em uso é um sistema que se adapta de acordo com a necessidade
comunicativa, ou seja, ela sofre alterações continuamente. Ela é renovada diariamente,
as mudanças na língua acontecem com muita frequência e de forma gradativa e são o
resultado de um longo e contínuo processo histórico.
De acordo com Coseriu (1979, p. 63),
a língua muda justamente porque não está feita, mas, sim, faz-se
continuamente pela atividade lingüística. Em outros termos, muda porque é
falada: porque existe apenas como técnica e modalidade do falar. O falar é
atividade criadora, livre e finalista, e é sempre novo, enquanto se determina
por uma finalidade expressiva individual, atual e inédita. O falante cria ou
estrutura a sua expressão utilizando uma técnica e um material anterior que o
seu saber lingüístico lhe proporciona. A língua, pois, não se impõe ao falante,
mas se lhe oferece: o falante dispõe dela para realizar a sua liberdade
expressiva.
108
As questões que direcionaram nosso estudo foram:
- Nas crônicas de Arnaldo Jabor, na obra Amor é prosa, sexo é poesia: crônicas
afetivas, quais seriam as ocorrências de gramaticalização de que ele faz uso para
manifestar suas intenções comunicativas e que caracterizariam o gênero jornalístico
crônica?
- Quais seriam os efeitos de sentido que essas ocorrências, como marcas da
língua em uso, possibilitam?
Com base nessas questões, o trabalho teve como objetivos:
- Aprofundar conhecimentos, com base nas crônicas de Arnaldo Jabor, sobre os
diversos tipos de ocorrências de gramaticalização presentes no gênero jornalístico
crônica.
- Identificar as ocorrências de gramaticalização nas crônicas de Arnaldo Jabor,
como marcas da língua em uso.
- Analisá-las de acordo com os princípios de gramaticalização, propostos por
Castilho (1997) e critérios de gramaticalização, levantados por Gonçalves et alii (2007),
a fim de estabelecer um quadro tipológico dessas ocorrências.
- Verificar qual a intenção comunicativa do autor ao utilizar essas ocorrências e
qual o efeito delas na construção de sentidos do texto.
Quando lemos as crônicas do escritor Arnaldo Jabor, lembramos da conversa de
bar, da fala descontraída sem preocupações com correções gramaticais, ou seja,
encontramos uma linguagem livre das barreiras dos puristas. O autor frequentemente faz
uso de elementos da língua falada em seus textos escritos. Em decorrência dessa
utilização, quando lemos seus textos, temos a impressão de que estamos participando de
uma conversa informal. Arnaldo Jabor assume posições diferentes nos textos, ou seja,
não fala sempre do mesmo jeito e, em decorrência do posicionamento que assume, vai
escolher determinados elementos gramaticalizados que darão destaque à posição
assumida como locutor, construindo assim os sentidos do texto. Ele valoriza a expressão
coloquial, pois, no fim das contas, ele se comunica de acordo com a língua em uso e de
acordo com o meio social com quem interage.
Os textos de Arnaldo Jabor, apesar de conterem muitas expressões que são
usadas na fala, são coerentes e coesos. Logo, as construções gramaticalizadas presentes
109
em seus trabalhos não impedem que sejam produções textuais bem elaboradas. Elas
tornam evidente que a língua não é uma realidade estática. Por estar na boca do povo,
seus falantes inovam-na e renovam-na, a cada momento em que participam de situações
comunicativas em interação social.
Nas palavras de Coseriu (1979, p. 65),
o falar é sempre falar uma língua, justamente porque é falar (e não um mero
„exteriorizar‟), porque é „falar e entender‟, expressar para que o outro
entende, ou seja, porque a essência da linguagem ocorre no diálogo. Donde,
também, que o que é compreendido pelo ouvinte, enquanto compreendido,
seja aprendido e se torne „língua‟ (saber lingüístico), e possa ser utilizado
como modelo para posteriores atos de expressão: o ouvinte não só entende o
que o falante diz, mas percebe, do mesmo modo, a maneira pela qual diz.
Continua o autor (1979, p. 93-94),
para entender a mudança lingüística e sua racionalidade, basta considerar a
língua em seu existir concreto. A mudança não é mero acidente, mas pertence
à essência da língua. De fato, a língua se faz mediante o que se chama
„mudança lingüística‟: a mudança lingüística não é senão a manifestação da
criatividade da linguagem na história das línguas. Por isso, estudar as
mudanças não significa estudar „alterações‟ ou „desvios‟, mas, ao contrário,
estudar a consolidação de tradições lingüísticas, ou seja, o próprio fazimento
das línguas. A língua se refaz porque o falar se fundamenta em modelos
anteriores e é falar-e-entender; supera-se pela atividade lingüística porque o
falar é sempre novo; e renova-se porque entender é entender além do que já
se sabia pela língua anterior ao ato. Por isso a língua se adapta às
necessidades expressivas dos falantes, e continua a funcionar como língua na
medida em que se adapta.
Analisamos as crônicas do livro: “Amor é Prosa, Sexo é Poesia: Crônicas
Afetivas” de Arnaldo Jabor, utilizando os parâmetros de gramaticalização apontados
por Martellota e Ataliba Teixeira de Castilho. Com base no referencial teórico
apresentado nos capítulo I e II, podemos responder às questões que direcionaram nosso
trabalho:
- Nas crônicas de Arnaldo Jabor, na obra Amor é prosa, sexo é poesia: crônicas
afetivas, quais seriam as ocorrências de gramaticalização de que ele faz uso para
manifestar suas intenções comunicativas e que caracterizariam o gênero jornalístico
crônica?
O autor faz uso das ocorrências de gramaticalização dos substantivos, adjetivos,
verbos, advérbios, pronomes, numeral, preposição, expressão gramaticalizadas, e
também faz uso da lexicalização, da degramaticalização e da discursivização que
podemos dizer são fenômenos de mudança lingüística que caracterizam o gênero
crônica na atualidade.
110
- Quais seriam os efeitos de sentido que essas ocorrências, como marcas da
língua em uso possibilitam?
O cronista, na construção de seus dos textos, tenta aproximá-los o máximo
possível da língua em uso comum no dia a dia e, para produzir diferentes efeitos de
sentidos faz uso constante de elementos que passaram pelo processo de
gramaticalização, de lexicalização, de degramaticalização e de discursivização. Ao fazer
uso desses elementos, verificamos que Arnaldo Jabor assume posições diferentes como
locutor, enunciador e autor, ou seja, ele mostra diferentes posicionamentos aos seus
interlocutores, e, em função da posição assumida, escolhe determinados elementos
gramaticalizados ou expressões lexicalizadas que darão destaque à sua posição no
momento da enunciação. Ao alternar os papéis de locutor e enunciador, o autor
consegue aproximar a cena do leitor, e é por isso que, ao lermos suas crônicas, temos a
impressão de que estamos conversando com o locutor do texto temos a sensação de que
estamos participando de uma conversa como esse locutor parecendo fazermos parte
daquela cena de enunciativa. Colocando a cena perto do leitor, ao alternar-se nas
funções enunciativas, é que, como o autor, ele faz as escolhas lexicais que mais se
aproximam da língua em uso comum no dia a dia, pois ele transfere-se, projeta-se e
designa-se pelo outro. Para Edgar Morin (2002, p. 57), “o ser humano é ao mesmo
tempo singular e múltiplo. Traz em si multiplicidades interiores, personalidades virtuais,
uma infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário”.
No momento dessa transferência, projeção e designação pelo outro, o cronista faz uso
do léxico como fundamento ou âncora para o enunciado configurado pelas modalidades
da enunciação.
Ao falarmos de elaboração lexical do falante/ouvinte, não podemos esquecer de
mencionar que essa elaboração, manifestada por unidades lingüísticas memorizadas
pelos falantes e ouvintes é o que se pode chamar de lexia. De acordo com Turazza
(2005), as lexias são descritas por Pottier como a combinação de dois signos mínimos: o
lexical e o gramatical, que compreendem a formalização de um plano semântico que
está à disposição do falante no momento da interação comunicativa. As lexias
gramaticais são divididas em: classe das relações e a classe das formulações, sendo a
classe das formulações responsável pela veiculação das intenções de um locutor,
exercendo dessa maneira um papel fundamental com âncora para o falante elaborar seus
enunciados.
111
O cronista em seus textos faz uso do léxico manifestando sua intenção: conseguir
manter a interação com seu leitor por meio das escolhas lexicais que faz na elaboração
de seus enunciados. Dessa maneira, ele consegue mostrar que o falante é o responsável
por essa aquisição de novos sentidos para palavras já existentes e que elas estão
passando por um processo de mudança na medida em que adquirem novos sentidos
para palavras já existentes. Para Martelotta (2011), a lexicalização é um processo
criador de novos elementos gramaticais que são capazes de modificar ou combinar os
elementos já existentes. O falante é o responsável pela construção de maneira
significativa do enunciado.
Verificamos que, em todos os exemplos, existe um locutor que representa o “eu”
na enunciação e existe um locutor-enquanto-pessoa, representado pela pessoa do mundo
que se apresenta no discurso, ou seja, aparece no discurso como sendo de sua autoria.
Arnaldo Jabor é um cronista, conhecedor da norma padrão de escrita, mas, no
momento em que está escrevendo seus textos, pelos deslocamentos acima apontados,
ele transfere-se para um outro campo, o campo da coloquialidade, fazendo as escolhas
lexicais mais adequadas para o novo campo. Fazendo esse movimento, o autor consegue
manter a interação com seus leitores.
Logo, nossos objetivos foram alcançados quando constatamos que os efeitos de
sentidos que essas ocorrências de gramaticalização / lexicalização /degramaticalização /
descursivização causam possibilitam aproximar o leitor da cena de enunciação, pois
essas marcas da língua em uso fazem com que o locutor/enunciador seja parte da cena
de enunciação, participando do cenário. Assim chegamos à seguinte conclusão, os
fenômenos de mudança lingüística no texto escrito ocorrem por meio do movimento de
transferir-se, projetar e designar-se pelo outro que o autor faz, pois, dessa maneira, ele
consegue despir-se da norma padrão e vestir-se com a norma coloquial, ou seja, com as
formas da língua em uso comum no dia a dia, nas quais encontramos as ocorrências de
mudanças, pois a língua é viva, sendo, portanto, necessário buscarmos entender todos
os movimentos que nela ocorrem. Fazendo essa troca de posição, fazemos também
seleções lexicais diferentes daquelas usuais e, assim, entramos na classe das
formulações, utilizando o léxico que é adequado para fundamentar ou ancorar nosso
dizer naquele momento de enunciação. Essa captação de efeitos de sentidos do texto
decorrentes das mudanças destacadas mostra a liberdade organizacional do falante, fato
somente levado em consideração pelos estudos funcionalistas como a Gramática de
112
Usos da Maria Helena de Moura Neves, é uma gramática cujo objetivo é descrever a
língua usada atualmente no Brasil e não prescrever regras de bom uso.
113
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