GRAMATICALIZAÇÃO DE ESTRUTURAS X-QUE NO PORTUGUÊS DO BRASIL Maria Célia Lima-Hernandes (DLCV/FFLCH/USP – FAPESP) [email protected] Resumo: Vinculada ao arcabouço dos estudos funcionalistas sobre gramaticalização, este artigo tem por objetivo apresentar uma discussão sobre as rotas de mudança no português do Brasil à luz de uma subjacente categorização cognitiva de estruturas x-que. Em especial, o foco deste trabalho detém-se na identificação de rotas de uma mudança gramatical, incluindose aí o estudo das categorias elididas (os prejuízos categoriais) e os efeitos pragmáticos das estruturas emergentes dessas alterações. Retomando os pressupostos de gramaticalização, nota-se que maior vinculação associa-se a maior grau de gramaticalização, diversamente do que nos revelam as categorias cognitivas subjacentes: pessoa > objeto > espaço > processo > tempo > qualidade (continuum de Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991) que podem ser reformuladas conforme proposta do Grupo “Mudança Gramatical do Português Gramaticalização” da seguinte maneira: partes do corpo > pessoa > objeto > [instrumento] espaço > tempo > [processo] evento > qualidade. Ao que parece, há um conflito que precisa ser resolvido. As mudanças observadas por meio do comportamento dos itens analisados permitem postular que as generalizações efetivadas pela comunidade lingüística, um todo heterogêneo que é guiado por regras claras de organização, refletem-se na codificação sintática, que é, antes de mais nada, a instância em que jazem as pistas de um processamento mental prévio. Daí a necessidade de se investigarem as categorias cognitivas, pois subjazem às estruturas formais ao mesmo tempo em que servem de pistas ao processamento mental dessa codificação. Palavras-chave: gramaticalização; estruturas x-que; quase-que. Introdução Os estudos sobre gramaticalização têm se detido na investigação da emergência sintática e morfológica nas línguas. Não é novidade dizer que as motivações comunicativas implementam-se na codificação sintática, a que por sua vez subjazem categorias cognitivas apresentadas em Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991) e já checadas em estruturas do tipo Xque no português do Brasil no interior do Grupo de Pesquisa CNPq/USP “Mudança Gramatical no Português - Gramaticalização”. Nesse grupo tem sido estudadas estruturas com núcleo adverbial, verbal e nominal, que passaram a codificar sintaticamente outras informações que não somente as morfológicas. Invariavelmente, a adição da partícula que denuncia a marcação de um movimento mental e mais abstratizado em relação ao item-fonte antecedente, alterando-lhe o plano de atuação para um campo de compreensão pragmático-discursivo. Muitos estudos demonstraram, então, que a unidirecionalidade é mantida em todas as mudanças operadas, partindo de categorias mais concretas para a subjacência de categorias mais abstratas: partes do corpo > pessoa > objeto > [instrumento] espaço > tempo > [processo] evento > qualidade (Gonçalves, Lima-Hernandes & Casseb-Galvão, 2007), provocando um embate com a proposta de Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991), dentre outros autores, que não prevêem as categorias secundárias do mesmo modo que não prevêem que processo anteceda tempo. Esse encaminhamento diverge sobremaneira dos resultados sobre o português do Brasil verificados por Batista (2008) analisando o verbo tirar e por Barroso (2008) com o verbo buscar. Muitos se perguntam se estruturas x-que seriam consideradas inovadoras no português do Brasil. Sabe-se que falantes inovam e que línguas mudam, mas perguntar sobre a inovação remete a duas questões colaterais: o termo “inovador” remeteria a empregos que não teriam relação com a evolução histórica do português ou remeteria a empregos não-contemplados na descrição do português normativo? Essa dúvida exige que se façam incursões à gramática normativa e também que se empreenda a referendação histórica. Acompanhemos a seguinte explanação a respeito de alguns empregos de estruturas x-que, já analisados no interior do Grupo de Pesquisa “Mudança Gramatical do Português – Gramaticalização”, que remetem a estruturas x-que colocam em xeque o tipo de segmentação analítica ensinada nas escolas. Observemos: (1) Eu também tive que aprender o ofício de escritor (entrevista-Davi Arriguci Neto, 2005) (2) Eu quero que você leia esse texto. (Sartin & Lima-Hernandes, 2006) Em (1), a oração principal, pela análise tradicionalmente apresentada nas escolas, equivale a oração principal “Eu também tive” seguida da oração subordinada substantiva “que aprender o ofício de escritor” introduzida pela conjunção integrante que. Tem-se na junção das orações a codificação de posse somada ao traço irrealis gerando a idéia de obrigatoriedade (posse+ irrealis = obrigatoriedade). Em (2), a oração principal “eu quero” soma-se ao objeto da volição (= você leia esse texto). Assim, temos volição somada a irrealis gerando imperatividade. Em ambos os casos, temos sintaticamente duas orações, entretanto no contexto discursivo-pragmático temos apenas um evento codificado. O verbo que ocupa posição 1 é reanalisado de pleno a verbo auxiliar, especialmente assim captado se houver o traço de identidade entre os sujeitos. Batista (2008) mostrou que fenômeno similar ocorre com o verbo tirar, que, sucedido pela partícula que (irrealis), passa a codificar de uma ação física a uma ação mental. Como pode a palavra que denotar subordinação entre as orações e, ao mesmo tempo, ser responsável pelo traço irrealis? A resposta a essa questão talvez seja suficiente para que se resolva grande parte dos problemas relacionados à unidirecionalidade em estudos sobre gramaticalização. O subjuntivo latino recebeu do indo-europeu a capacidade de denotar o traço irrealis e também a volição. Nos empregos latinos, o subjuntivo passa a codificar além da volição, um fato potencial ou irreal e também a subordinação sintática: a) volitivo – exprime decisão, desejo realizável (presente ou perfeito); irrealizável e incerto (imperfeito e mais-que-perfeito). b) enunciativo potencial ou irreal – processo possível (presente ou perfeito) ou irreal (imperfeito ou mais-que-perfeito). c) simples índice de subordinação < subjuntivo potencial – continua a expandir-se no latim durante sua história ainda após a época clássica. No latim vulgar, como bem demonstra Maurer Jr. (1959), nem todos esses empregos se mantêm da mesma forma codificados. O volitivo segue os usos do latim literário, perde-se o enunciativo potencial e irreal, especialmente na oração independente e também o índice de subordinação. Os gramáticos históricos por causa disso chegam a defender como característica do latim vulgar a limitação do modo subjuntivo e a expansão do indicativo. O que se referenda é que o indicativo expande-se para os seguintes casos: a) interrogação subjetiva de deliberação para a expressão de dúvida ou incerteza b) oração com evento de realização potencial independente1 c) interrogação indireta2 d) orações dependentes de um infinitivo ou de um subjuntivo e) oração consecutiva quando o verbo regente é afirmativo 1 Ilustra o caso: Dicat quis me rem neglexisse = dirá alguém que eu negligenciei o assunto. Segundo o autor, desde o tempo de Plauto usa-se o indicativo. No português, só em caso de dúvida ou incerteza, usa-se o subjuntivo. 2 f) oração relativa de valor circunstancial3 g) período hipotético potencial4 No português, séculos depois, o subjuntivo apresenta-se como uso passível de ocorrência nos seguintes casos: a) nas orações independentes volitivas – Oxalá que ele chegue; Responda ele já. b) nas subordinadas substantivas volitivas – Peço que escreva; Receio que se esqueça. c) nas orações finais – Torço para que estude. d) nas orações consecutivas dependentes de orações regentes interrogativas, negativas, volitivas e potenciais – Ele não é tão cuidadoso que se lembre de limpar os pés; Oxalá ele seja tão bom que releve esta falta. e) no período hipotético potencial-irreal (que se fundem) f) em algumas orações temporais e causais – Enquanto eu for à farmácia, olhe o café. Para onde foram os demais usos do subjuntivo, depois de suplantados pelos usos de indicativo na passagem do latim clássico para o latim vulgar? Haveria uma continuidade de abstratização desses empregos por meio de outras palavras que poderiam ser justapostas ao indicativo? Acreditamos que sim. A presença de uma partícula que pode denunciar muitas das funções consideradas extintas já no latim. É o que temos evidenciado por meio do estudo das estruturas x-que, ainda que de forma não-categórica, porque existem outras forças atuantes, como a combinação de metonímia e de elipse em contextos em que se pode altamente inferir a informação elidida, como demonstra Lima-Hernandes (2008), dentre outros pesquisadores. Para dar conta dessas questões apresentaremos um recorte de análise que privilegiará o estudo da palavra quase a partir de dados de três amostras coligidas pelo Grupo de Pesquisa Mudança Gramatical do Português: amostra de modalidade escrita reunida a partir da edição da correspondência passiva do professor Fidelino de Figueiredo, redigidas durante o século XX, com um recorte metodológico comandado pela origem do remetente, uma vez que 3 O subjuntivo no latim vulgar, segundo o autor, é mantido na oração final e na consecutiva dependente de uma interrogativa ou negativa. 4 Segundo o autor, confundiram-se o período hipotético e o irreal. somente o português culto de São Paulo interessava ao projeto no momento da constituição dessa amostra (Lima-Hernandes & Carvalhinhos, 2007). A segunda amostra refere-se à modalidade culta falada reunida a partir da transcrição de entrevistas, aulas e palestras proferidas por cientistas paulistas, da primeira metade do século XXI. Por fim, a terceira amostra refere-se a cartas, memorandos e laudos médicos produzidos por informantes cultos moradores da cidade de São Paulo na primeira metade do século XX. Gramaticalização e unidirecionalidade Nos estudos sobre gramaticalização, muitos pesquisadores têm ratificado a unidireção da mudança, mas alguns pesquisadores têm questionado a organização que é determinada via axiomas lingüísticos, pois dados analisados podem mostrar exatamente o contrário do que desde sempre se aceitou pacificamente. Dizem os teóricos e também os gramáticos que conjunções são mais gramaticais do que preposições. O argumento que sustenta essa afirmação remete à complexidade da função exercida e ao tipo de escopo. Preposições ligam palavras, unidades menos complexas do que as orações, ligadas pelas conjunções. Com base nesse desenvolvimento, lingüistas em maioria afirmam que preposições são menos gramaticalizadas do que conjunções. A polêmica está instaurada, pois trabalhos desenvolvidos no mundo todo (a título de exemplo, apresentamos Frajzyngier, 1996; Lima-Hernandes, 1998 e 2005; e Spaziani, 2007) dão conta de que esse continuum unidirecional, se sustentado por axiomas lingüísticos, deve ser revisto em alguns pontos, especialmente aquele que toma como ponto de análise as classes de palavras. Explicamos: organização de classe de palavras em dez grupos é, na verdade, um arranjo arbitrário que não necessariamente corresponde ao conjunto de categorias existentes. É o que mostram alguns lingüistas com os quantificadores, classificadores, evidenciais, que congregam no modelo tradicional um conjunto amplo e inconciliável de itens. Gonçalves (2003), a partir de cinco padrões funcionais do verbo parecer, explica que os usos mais gramaticalizados, acompanhados da partícula que, podem denotar a modalidade epistemológica. Também Lima-Hernandes & Barroso (2008) identificam tipos variados de negação como estratégias de abstratização de itens. Dentre os itens exemplificados está a palavra quase: (3) ...há quasi uma semana estou com minha mãe hospitalizada, por ter-se submetido a uma intervenção cirúrgica (id.ib.) Os autores mostram que a polaridade negativa fixa-se como elo entre duas porções informativas e que a dúvida, a vagueza e a imprecisão também denotariam polaridade negativa, por isso atuariam como gatilho de mudança. Lima-Hernandes & Defendi (2007) analisam a gramaticalização da expressão tanto que. As autoras perguntam-se a respeito da incorporação pela camada culta da sociedade. Notaram, então, que usos inovadores (como é o caso da preposição exemplificativa) não são considerados “desprestigiosos” pelos professores de língua portuguesa que avaliam as provas de um dos concursos vestibulares mais disputados no Brasil. Para apimentar as discussões, escalamos o respeitável lingüista Herman Paul, que apresenta informações sobre o item sob análise neste texto: a partícula de caráter adverbial quase. parágrafo 119. Um atributo predicativo pode ter a mesma função que uma oração subordinada regida por uma conjunção. Em conseqüência disso, muitas conjunções podem anteceder também o simples adjetivo, o que leva a uma designação mais exata da situação. Assim sobretudo em inglês, talents angel-bright, if wanting worth, are shining instruments (Young); nor ever did I love thee less, thought mourning o’er thy wickedness (Shelley); Mac Jan, while putting on his clothes, was shot through the head (Macaulay) (9). Também em alemão podemos dizer: ich tat es, obschon gezwungen (fi-lo, embora obrigado), etc. Correspondentemente, em latim, colocam-se certas conjunções antes do ablativo absoluto, como quamvis iniqua pace honeste tamen viverent (Cícero) (10). As conjunções quasi e sive , que a princípio só podem ter servido para reger orações, passam a acrescentar-se, duma maneira geral, a simples membros de oração. (Paul, 1966: 182) Argumenta Paul sobre a passagem de conjunções do latim a funções prepositivas. Evidencia que essa rota de mudança também pode ser referendada em outras línguas nãoaparentadas. Se estiver correto o raciocínio de Paul e nosso encaminhamento sobre as estruturas x-que na língua portuguesa, urge a revisão sobre os grandes axiomas lingüísticos. Para lidar com as rotas de gramaticalização de estruturas x-que, focalizamos o comportamento funcional do item quase, a que se referiu Paul em seu texto, agora com dados do português. Estudo de caso: o item quase A palavra quase figura nas gramáticas entre aquelas de caráter adverbial. Ainda segundo Bechara (1999: 507), a presença da partícula que combinada à palavra quase torna-se totalmente dispensável, mas, no dicionário Houaiss (Houaiss & Villar, 2001), essa combinação assume um caráter bastante peculiar. Em Houaiss & Villar (2001:2348), é possível notar a parca ampliação semântica da palavra quase a despeito de sua história tão longa desde o latim. Essa restrição à ampliação semântica pode ser associada a sua baixa freqüência de uso, que, por sua vez, denota sua especificidade. Analisemos o verbete: quase adv. (1460 cf. Desc.) 1 a pouca distância de; próximo perto (falou-lhe q. encostado ao ouvido) 2 com ligeira diferença para menos (a produção agrícola q. ultrapassou a do ano anterior) 3 pouco mais ou menos; quando muito; aproximadamente (tem q. 90 anos) 4 um tanto (a capelinha antiga está q. arruinada) 5 por um triz, por pouco que não (ao vê-lo ensangüentado, q. desmaiou) quase que por assim dizer; verdadeiramente (comprou uma terra com uma vista que quase que perfeita) Pelo que se pode depreender do conteúdo expresso, a palavra quase desliza semanticamente entre distância > comparação numérica > aproximação quantitativa > aproximação qualitativa > avaliação qualitativa. Esses deslizamentos podem nos dizer muito acerca do processamento cognitivo operado pelos falantes em situação comunicativa. Muito também nos dirá acerca de sua história, denunciando sua etimologia: “ETIM lat. quasi ‘do mesmo modo que; como; pouco mais ou menos, quase; como se, aparentemente” (Houaiss & Villar, 2001:2348). Em dicionário de língua latina (Koehler, 1948), a palavra quase figura indexada à classe de palavras dos advérbios equivalendo semanticamente a como se. É interessante notar que já em sua sinonímia percebe-se a atuação de uma polaridade negativa, que culmina com uma idéia de não-exatidão, de aproximação equiparativa. Um passo importante das pesquisas sobre gramaticalização de itens é justamente aquele que identifica as diferenças entre suas funcionalidades. A cada uma de suas funcionalidades, atribui-se o rótulo de padrão funcional. A palavra quase nas amostras analisadas remete a três padrões funcionais: b) Quase 2 – esse padrão funcional caracteriza-se pela presença do item quase encabeçando um sintagma nominal indicativo de tempo. Seu efeito semântico é a maior elasticidade que confere ao valor semântico do nome que antecede. Assim é que o sintagma um ano, no exemplo (5), ganha imprecisão e funciona como o limite dessa imprecisão: aproximadamente um ano, mas não ultrapassando esse limite de tempo. O efeito pragmático desse uso é a incerteza do falante em relação à informação codificada. (5) O que tenho feito? Viajado muito. Ha |3 annos atraz dei a volta ao mundo, per-| manecendo na Asia quase um anno. (correspondência paulista - PHPP) (6) quando a peça estreou... eu me sentia uma... có::pia do Ziembinski... a maneira de fala::r... as inflexõ::es... as atitudes em cena... eu era muito jovem e o meu personagem tinha quase cinqüenta anos... então... ele me obrigava a senTAR de uma determinada maneira... (Paulo Autran, 1988) c) Quase 3 – esse padrão funcional caracteriza-se pela presença do item quase antecedendo um adjetivo ou um substantivo em função adjetiva. Trata-se de um aproximativo qualificador. (7) E a Familia? Seus filhos já devem | [p. 2] ser quase homens, o mais velho pelo menos. (correspondência paulista - PHPP) (8) Já há tempo que lhe devia ter escrito,mas, êste fim e começo de ano me foram sobremaneira dispersivos, quebrando terrivelmente o ritmo quase monacal da minha vida. (correspondência paulista - PHPP) (9) O [P] anda ainda a infestar estes ares já nada puros de São. Paulo, mas quase invisível, dando apenas apuros ao [A] que lhe deve fazer sala. (correspondência paulista - PHPP) (10) Já deve es-| tar, há tempos, aí o [C]: fizesos-lhe ato fúnebre, com quase necrológios, alguma | lágrima e um belo relógio de cetro <couro> (correspondência paulista - PHPP) que nos custou sete mil cruzeiros. (11) "a validade das primeiras observações sobre as formações detríticas superficiais brasileiras é QUAse nula pois aqueles que pela primeira vezes se voltaram para o problema nada mais fizeram do que entender/estender para o meio tropical interpretações específicas somente válidas para as zonas de latitudes médias e altas sujeitas às ações glaciais e periglaciais quaternárias (Conferência - Aziz Ab Saber- 2007) (12) os diversos componentes desse grupo desses grupos de relações dentro da Europa e dos Estados Unidos ... tInham a idéia de que houve nA idade glacial UM tamponamento quAse total ... e eles falavam de total ... por isso chamado pan-glaciação (Conferência - Aziz Ab Saber- 2007) (13) L2: aí...ela continuava assim ((repete o segundo movimento)) e aí eu fazia assim...meu De::us do céu que que é i:sso que el/? menos né? aí daqui a pouco...quando acabou...e eu num falei nada daquilo...eu só fiquei falando um pouco menos...mas L1: ficou quase muda L2: contida...e aí ela falou assim você esqueceu de falar:: que criança também en::tra ((risos)) (entrevista Jô Soares e Denise Fraga, 2006) d) Quase 4 – esse padrão funcional caracteriza-se pela presença do item quase antecedendo uma oração. Trata-se um introdutor oracional que sinaliza a avaliação do falante a respeito de um evento previamente constatado ou vivenciado. É um marcador de modalização e pode se apresentar sob a forma locucional ( exs. 14 e 16) ou simples (ex. 15): (14) Aqui no Sanatorio tem-se mantido sitiophobica, deprimida, | quasi que em completo mutismo. (Sanatório Pinel-SP - laudo - LHS) (15) [A] quer oferecer-me agora a opor- | tunidade que sempre esperei: a cadeira de Literatura Norte- América- | na numa faculdade do interior. Quase não acredito em tanta felicida- | de! Vinte anos de trabalho sem recompensa convidam ao caticismo. (correspondência paulista PHPP) (16) então... essa... formação... em nível superior... também... ahn... eu entendo que ela poderá... ser ampliada... na medida em que::... a melhoria da escola básica... efetivamente acontecer... certo? porque... senão::... nós estaríamos entrando num ciclo... eu diria que quase que já está iniciado... de você ter uma quantidade ENORME... de faculdades que oferecem enSIno superior... mas não necessariamente... uma formação... universitária... (debate Selma Garrido – Rádio USP – 2007) Poder-se-ia argumentar a respeito da ausência de usos mais básicos, sabidamente presentes nos cotidianos falares brasileiros. Ocorre que, ao lidar com uma gramática funcional, que prioriza os usos, e ao ter em vista que a língua é um sistema semântico que, combinado a outros sistemas, codificará os significados intentados pelos falantes, não se pode perder de vista que categorias mais concretas e mais básicas serão mobilizadas para dar corpo a categorias mais abstratas e menos básicas. Assim, o valor de espaço físico pode ser mobilizado para codificar tempo: (17) Há Tanófilos quase no Mundo inteiro! Por Fãs da Tânia Ribas de Oliveira 31/Jan/2008 23:08 Comentários: www.fansdatania.com/2008/01/h-tanfilos-quse-no-mundo-inteiro.html 43k (18) Escrever quase na água. De vez em quando, há coisas que parecem ter-se tornado muito claras para nós na nossa cabeça. fernandonaescola.blogspot.com/ (19) A Semana Académica está quase aí! E com ela chegam também as minhas férias do trabalho. ngamartins.blogspot.com/2008/05/t-quase.html - 66k – (20) Estamos quase lá... Não tenho certeza, mas acho que essa ainda era a Washington Luís · O quase fim da fila pra exposição Corpo Humano na Oca. caio.ueberalles.net/img/album/my_fair_lady/IMG_4020.JPG.html - 17k – Nos dois primeiros exemplos, o item quase antecede uma expressão locativa introduzida pela preposição em (no mundo / na água), mas somente em (17) tem-se legitimamente um locativo já não tão concreto, dada sua inespecificidade informativa. Em (18), a expressão é totalmente metafórica e lugar dá origem a modo. Essa habilidade de abstratizar não se dá somente com sintagmas nominais ou porções maiores. Ocorre similarmente com os dêiticos, ilustrados em (19) e (20). No primeiro caso, lugar dá lugar a tempo e, no segundo, o dêitico sinaliza um evento (o de se deslocar para alcançar um objetivo: o de chegar à exposição). Notemos que a noção básica locativa sempre interferirá (é um traço mais básico e presente) gerando ambigüidade interpretativa. Apesar de serem usos totalmente passíveis de ocorrência no português do Brasil, não foram empregados por falantes cultos registrados nas modalidades falada ou escrita das amostras recortadas para este estudo, daí a razão de não o termos incluído como um padrão funcional na análise empreendida anteriormente e também essa foi a razão para recorrermos a dados disponíveis nos sites da internet, todos eles curiosamente de caráter bastante pessoal, como blogs e páginas pessoais. Respondendo a algumas questões Num recorte de duas sincronias muito próximas, como é caso da análise desenvolvida aqui com amostra do século XX e do século XXI, percebemos indícios de que estruturas já relatadas na descrição do latim vulgar por Maurer Jr. (1959), que argumentou sobre a mutação de codificação de intenções do falante durante a evolução de uma língua, manifestam-se de outra forma no português atual. Se no latim havia uma marca gramatical (modo subjuntivo) para a dúvida e a incerteza, esta é perdida e a marcação hoje torna-se lexical e invariavelmente representada por estruturas oracionais complexas introduzidas por conjunção subordinativa integrante, como demonstrou Casseb-Galvão (1999) e Gonçalves (2003) respectivamente analisando o verbo achar e o verbo parecer, embora também possa assumir formas mais gramaticalizadas como é o caso das prepositivas de base comparativa (Lima-Hernandes, 2005). E voltamos à carga com a pergunta inicialmente apresentada: para onde foram os demais usos do subjuntivo, depois de suplantados pelos usos de indicativo na passagem do latim clássico para o latim vulgar? Haveria uma continuidade de abstratização desses empregos por meio de outras palavras que poderiam ser justapostas ao indicativo? Na verdade, a presença de uma palavra qu- pode denunciar muitas das funções consideradas extintas já no latim. Pode-se, agora, afirmar que locução conjuntiva quase que são inovadoras no português somente por sua ausência nos compêndios normativos, mas é uso já presente em fases anteriores da língua portuguesa. Se falantes inovam e línguas mudam, essas mudanças não são caóticas; antes, seguem tendências históricas ditadas pelas necessidades comunicativas e pela disponibilidade de ferramentas disponíveis nessa mesma língua. E o movimento se faz: do concreto gera-se o abstrato. Os deslizamentos funcionais operam, assim, com base no sistema cognitivo do usuário da língua, e esses deslizamentos mantêm-se unidirecionais: abstrato > concreto. Não tratamos aqui da unilinearidade ou da ordem de derivação dos usos, embora possamos sincronicamente intuir que espaço físico gere tempo e este se preste a usos mais abstratos ainda, como o modo, evento e modalidade epistêmica, que daria corpo lingüístico à avaliação do valor de verdade da proposição no nível representacional ou interpessoal. 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