Classificação das psicoses endógenas de Karl Leonhard.

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REVISÃO DE LITERATURA
Classificação das psicoses endógenas de Karl Leonhard
Paulo Clemente Sallet1
Wagner Farid Gattaz2
Recebido: 5/4/2002 Aceito: 17/5/2002
RESUMO
O artigo apresenta uma síntese dos subtipos nosológicos descritos por Karl Leonhard na sua classificação das
psicoses endógenas, comumente arrolados sob o diagnóstico de “esquizofrenia” ou “transtorno esquizoafetivo” nos
sistemas diagnósticos internacionais (DSM e CID). Leonhard subdivide as doenças do espectro esquizofrênico em
três grupos principais: psicoses ciclóides, com início abrupto, sintomatologia polimorfa, em que ocorrem sintomas de
tipos opostos (bipolares) e plena remissão após as crises; esquizofrenias não-sistemáticas, que evoluem com surtos
de sintomatologia bipolar ao longo de diferentes funções psíquicas, tais como afeto, pensamento e psicomotricidade,
com remissão parcial nos períodos intercrise; e esquizofrenias sistemáticas que, em geral, apresentam início precoce
e insidioso, com sintomatologia mais bem delimitada levando a estados residuais de defeito mais pronunciados.
Unitermos: Psicose ciclóide; Esquizofrenia; Subtipos; Classificação.
ABSTRACT
Karl Leonhard's classification of endogenous psychoses
The paper presents a summary of the diagnostic subtypes of the Leonhard's classification generally defined as
“schizophrenia” or “schizoaffective disorder” in the international diagnostic systems (DSM and ICD). Leonhard
subdivides the schizophrenia spectrum disorders in three major groups. Cycloid psychoses are characterized by
abrupt onset, severe polymorphous symptomatology in which opposite types of symptoms occur, and which have
a complete recovery from each phase. Non-systematic schizophrenias follow a periodic course of bipolar
symptomatology comprising different psychic functions, such as affect, thinking, and psychomotor function, with
partial remission between the episodes. Systematic schizophrenias generally show an early insidious onset and a
well-defined symptomatology, with more pronounced residual symptoms.
Keywords: Cycloid psychoses; Schizophrenia; Subtypes; Classification.
Histórico
A classificação das psicoses endógenas de
Leonhard deve mais apropriadamente ser denominada
classificação de Wernicke-Kleist-Leonhard. Embora
entre esses autores haja discordâncias quanto a alguns
aspectos teóricos, seus fundamentos exibem uma
continuidade que os distingue das demais tendências
no pensamento psiquiátrico do século XX. A primazia
do enfoque neurobiológico associada às descrições
psicopatológicas constitui um corpo teórico que oferece
hipóteses testáveis às investigações no campo da
psiquiatria biológica.
A psiquiatria moderna, inicialmente ancorada em
concepções filosófico-religiosas, assume uma direção
neuroanatômica com Griesinger (1817-1868) (Die
pathologie und therapie der psychischen krankheiten,
1845). Griesinger propõe que psiquiatria e neuropatologia falam a mesma língua e são regidas pelas mesmas
leis, de modo que o primeiro passo para o entendimento
dos transtornos psíquicos é a sua localização, ou seja,
sua compreensão a partir de alterações patológicas
1
Doutor pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
2
Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
Endereço para correspondência:
Instituto de Psiquiatria – HCFMUSP
Rua Ovídio Pires de campos, s/n – São Paulo, SP
E-mail: [email protected]
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
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cerebrais empiricamente verificáveis. A partir da
neuroanatomia de Meynert e da neurofisiologia de Hitzig
houve uma série de descobrimentos baseados na localização cerebral de funções psíquicas mais simples, tais
como as implicadas na afasia e na agnosia. Nesse
contexto surge Wernicke (1848-1905) com seu construto de uma psiquiatria anatômico-localizatória e neuropatológica.
Kraepelin (1856-1925), em parte baseado em
Kahlbaum (1828-1899), propôs um agrupamento bipartido
das psicoses com ênfase no seu aspecto prognóstico.
Assim, de um lado concebeu como dementia praecox as
psicoses endógenas progressivas que evoluem para um
estado de “defeito” [defekt]; de outro, os transtornos
maníaco-depressivos caracterizados por formas de curso
fásico e potencialmente curáveis.
Bleuler (1857-1939) cunhou o termo “grupo das
esquizofrenias” em substituição ao de “demência
precoce”, conceito que trouxe consigo uma maior
abrangência, arrolando sob seu diagnóstico outras
psicoses que seriam vistas originalmente por Kraepelin
no âmbito dos transtornos maníaco-depressivos.
Leonhard (1904-1988) sugere que esta mudança
acabou por comprometer o princípio prognóstico
kraepeliniano, na medida em que algumas psicoses
definidas neste aspecto como esquizofrênicas
apresentavam cura ou remissão completa. Uma vez
relativizado o princípio prognóstico, permanece como
alternativa uma classificação baseada em sintomas, o
que tornaria a classificação das psicoses bem menos
consistente (Leonhard, 1995).
Wernicke rejeitou a classificação de seu contemporâneo Kraepelin e propôs uma divisão não a partir do
prognóstico, mas sim do quadro sintomatológico de
estado. Kleist (1879-1960) adotou seus ensinamentos ao
mesmo tempo em que procurou respaldá-los no princípio
prognóstico proposto por Kraepelin que, embora tenha
visto o agrupamento original de forma bipartida, também
procurou descrever quadros exatos no campo das
esquizofrenias, principalmente no que se refere aos
estados residuais. Isso propiciou uma divisão das psicoses
baseada no quadro sintomatológico das formas
nosológicas propostas por Wernicke, mas não tão
somente na sintomatologia, como também no seu curso
e resultado final. Dessa maneira, no campo das psicoses
endógenas surgiram formas autônomas, através das quais
sobretudo o grupo das esquizofrenias foi novamente
restrito às formas de prognóstico desfavorável.
Em suas investigações, Leonhard parte também dos
estados esquizofrênicos de defeito, portanto seguindo a
Kraepelin. Entretanto, quanto à psicopatologia das
psicoses endógenas, baseia suas concepções na linha
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
teórica de Wernicke e Kleist. Há entretanto que se referir
algumas distinções entre essas concepções:
Wernicke fundamenta sua teoria baseado no
chamado arco reflexo psíquico, um modelo funcional
localizatório das funções psicossensorial, intrapsíquica
e psicomotora. Na sua hipótese da sejunção, agrega
que perturbações nas vias de associação entre essas
áreas levam a processos irritativos com perda irreversível
das funções implicadas (Wernicke, 1990). Leonhard
evita a hipótese da sejunção, na medida em que atribui
uma recuperação plena das funções no caso das psicoses
ciclóides (Franzek, 1990).
Kleist concebe que para cada subforma de
esquizofrenia corresponde um distúrbio de sistema
neuropsíquico específico, especialmente no caso das
formas sistemáticas. Ele formulou sua teoria da
personalidade com base na patologia e estudo clínico
de lesões cerebrais (Kleist, 1935). Leonhard, que
identificou 19 subformas de esquizofrenia, mostra-se
cético em atribuir sintomas individuais a áreas específicas do cérebro, tal como tentara Kleist no assim
chamado "localizacionismo". O próprio Kleist,
assumindo uma postura crítica diante da tentativa de
atribuir certas funções e distúrbios a áreas específicas
do sistema nervoso, admitia que quanto mais global fosse
a função tanto mais difusos seriam os centros funcionais
implicados. Leonhard, por sua vez, desenvolveu uma
teoria da personalidade com base mais psicológica
(Leonhard, 1970a; 1970b), assumindo a concepção de
que nas esquizofrenias há comprometimento de sistemas
não necessariamente no sentido morfológico, mas sim
funcional. Portanto, como veremos neste e nos dois
artigos seguintes, Leonhard distingue as diferentes
psicoses do seu sistema diagnóstico com base em
diferenças funcionais e genéticas.
Classificação
A seguir, nos limitaremos a uma exposição resumida das psicoses descritas por Leonhard que são
comumente arroladas nos sistemas diagnósticos atuais
(CID-10 e DSM-IV) como esquizofrenia ou psicoses
do espectro esquizofrênico (Quadro 1). As psicoses
fásicas (doença maníaco-depressiva, melancolia, mania,
depressão e euforia puras) não apresentam dificuldades
no diagnóstico diferencial com as esquizofrenias, sendo
em geral designadas nos sistemas diagnósticos
internacionais como transtornos de humor com
características psicóticas, motivo pelo qual não serão
abordadas neste artigo. O leitor não familiarizado com
a língua alemã pode consultar a tradução da classificação
de Leonhard em língua inglesa, referida na bibliografia.
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Quadro 1 Classificação das psicoses endógenas segundo Karl Leonhard
Classificação das psicoses endógenas segundo K. Leonhard*
1. Psicoses fásicas (phasischen psychosen) (exceto as ciclóides):
1.1. Doença maníaco-depressiva (manisch-depressive krankheit);
1.2. Melancolia pura e mania pura:
1.2.1. Melancolia pura (reine melancholie);
1.2.2. Mania pura (reine manie).
1.3. Depressões puras e euforias puras:
1.3.1. Depressões puras (reine depressionen):
1.3.1.1. Depressão agitada (gehetzte depression);
1.3.1.2. Depressão hipocondríaca (hypochondrische depression);
1.3.1.3. Depressão auto-torturada (selbsquälerische depression);
1.3.1.4. Depressão desconfiada (argwöhnische depression);
1.3.1.5. Depressão apática (Fria?) (teilnahmsarme depression).
1.3.2. Euforias puras (reine euphorien):
1.3.2.1. Euforia improdutiva (unproduktive euphorie);
1.3.2.2. Euforia hipocondríaca (hypochondrische euphorie);
1.3.2.3. Euforia (exaltada) (schwärmerische euphorie);
1.3.2.4. Euforia confabulatória (konfabulatorische euphorie);
1.3.2.5. Euforia apática (teilnahmsarme euphorie).
2. Psicoses ciclóides (zykloiden psychosen):
2.1. Psicose de angústia/felicidade (angst-glück-psychosen);
2.2. Psicose confusional excitada/inibida (erregt-gehemmte verwirrtheitspsychose);
2.3. Psicose da motilidade hipercinética/acinética (hyperkinetisch-akinetische motilitätspsychose).
3. Esquizofrenias não-sistemáticas (unsystematischen schizophrenien):
3.1. Parafrenia afetiva (affektvolle paraphrenie);
3.2. Catafasia ou esquizofasia (kataphasie oder schizophasie);
3.3. Catatonia periódica (periodische katatonie).
4. Esquizofrenias sistemáticas (sytematischen schizophrenien):
4.1. Esquizofrenias sistemáticas simples:
4.1.1. Formas catatônicas (katatonen formen):
4.1.1.1. Catatonia paracinética (parakinetische katatonie);
4.1.1.2. Catatonia maneirista (manierierte katatonie);
4.1.1.3. Catatonia proscinética (proskinetische katatonie);
4.1.1.4. Catatonia negativista (negativistische katatonie);
4.1.1.5. Catatonia parafêmica (sprechbereite katatonie);
4.1.1.6. Catatonia hipofêmica (sprachträge Katatonie).
4.1.2. Formas hebefrênicas (hebephrenen formen):
4.1.2.1. Hebefrenia pueril (läppische hebephrenie);
4.1.2.2. Hebefrenia excêntrica (verschrobene hebephrenie);
4.1.2.3. Hebefrenia embotada (flache hebephrenie);
4.1.2.4. Hebefrenia autística (autistishe hebephrenie).
4.1.3. Formas paranóides (paranoide formen):
4.1.3.1. Parafrenia hipocondríaca (hypochondrische paraphrenie);
4.1.3.2. Parafrenia fonêmica (phonemische paraphrenie);
4.1.3.3. Parafrenia incoerente (inkohärente paraphrenie);
4.1.3.4. Parafrenia fantástica (phantastische paraphrenie);
4.1.3.5. Parafrenia confabulatória (konfabulatorische paraphrenie);
4.1.3.6. Parafrenia expansiva (expansive paraphrenie).
4.2. Esquizofrenias sistemáticas combinadas:
4.2.1. Catatonias sistemáticas combinadas;
4.2.2. Hebefrenias sistemáticas combinadas;
4.2.3. Parafrenias sistemáticas combinadas.
(*) Conforme a última publicação da sua divisão das psicoses endógenas, em 1986, 7a . edição, 1995.
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
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Psicoses ciclóides
As síndromes psicóticas descritas por Leonhard
no âmbito das psicoses ciclóides (PC) já haviam sido
descritas por Wernicke (1900) e Kleist (1928).
Leonhard, entretanto, agrupou-as com algumas diferenças:
Wernicke apresentou a psicose de angústia-felicidade em duas formas separadas: de um lado, a psicose
de angústia; de outro, a autopsicose expansiva devido a
idéias autóctones. Kleist considerou a psicose de angústia
e a psicose de felicidade, que ele denominou psicose de
inspiração, como psicoses marginais paranóides.
O conceito de psicose da motilidade, também
cunhado por Wernicke, abrangia as psicoses posteriormente classificadas por Leonhard como catatonia
periódica, portanto, no âmbito das formas esquizofrênicas não-sistemáticas. O diagnóstico diferencial em
oposição às formas esquizofrênicas foi estabelecido mais
tarde por Fünfgeld (1936). Wernicke compreendeu
ambos os pólos da doença com a designação psicose
da motilidade cíclica.
A psicose confusional foi apresentada por Wernicke
como alopsicose maníaca periódica ou também como
confusão agitada. A psicose confusional inibida é
reconhecida no seu conceito de acinesia intrapsíquica.
Kleist falava neste caso de um “estupor perplexo”. O
conceito de “confusionalidade” [verwirrtheit] provém de
Meynert. Kleist, por sua vez, definiu ambas, a psicose da
motilidade e psicose confusional, como psicoses
marginais ciclóides.
O principal aspecto que distingue as Psicoses
Ciclóides das formas esquizofrênicas é a sua completa
remissão após cada fase. Evoluções crônicas são muito
raras e amiúde correspondem a um certo déficit
conativo decorrente da institucionalização, sendo,
portanto, reativas e iatrogênicas. As remissões das
psicoses ciclóides foram confirmadas pelos acompanhamentos conduzidos por Leonhard e Trostorff
(1964). Ulteriormente, Perris (1974) ocupou-se das
psicoses ciclóides e confirmou seu prognóstico favorável.
Embora esses estudos tenham demonstrado uma
clara distinção prognóstica, as psicoses ciclóides apresentam um certo parentesco com as formas de esquizofrenia não-sistemáticas no que se refere à sintomatologia e ao caráter bipolar, mas são diferenciadas no
que tange ao quadro clínico e à evolução, como veremos
a seguir.
Psicose de angústia-felicidade
A psicose de angústia-felicidade apresenta-se
como uma perturbação básica do afeto. Assim como as
demais psicoses ciclóides, esquizofrenias não-sistemáticas e distúrbios afetivos bipolares, caracteriza-se
por apresentar quadros dentro de um espectro bipolar.
No pólo caracterizado por angústia-ansiedade, a
angústia é acompanhada de desconfiança, idéias de autoreferência, hipocondríacas e de desvalia. Também
costumam ocorrer alterações sensoperceptivas, às vezes
acompanhadas de vivências de influência. No seu pólo
oposto encontramos um estado de êxtase caracterizado
por idéias de felicidade, com as quais costumam estar
associadas idéias de referência e alterações sensoperceptivas.
Esses sintomas básicos, entretanto, não necessariamente aparecem em primeiro plano. Podem surgir
quadros com traços mais ou menos nítidos do distúrbio
afetivo bipolar, da psicose confusional ou da psicose da
motilidade. O aspecto sintomatológico multiforme é tão
característico da psicose de angústia-felicidade quanto
das demais psicoses ciclóides.
As fases de angústia são mais freqüentes do que
as de êxtase, podendo ocorrer isoladamente, enquanto
raramente encontramos quadros isolados de psicose de
felicidade. Podem ocorrer, entretanto, quadros mistos
com uma rápida ciclagem entre humor angustioso e
extático numa mesma fase. Os estados sintomáticos
costumam ter uma duração semelhante à do distúrbio
afetivo bipolar.
Leonhard sugere que essas psicoses costumam
apresentar como características de personalidade prépsicótica uma tendência à irritabilidade afetiva, o que
ele denomina temperamento exaltado (Leonhard, 1970b).
Psicose confusional excitada-inibida
O sintoma central implicado na psicose confusional refere-se ao distúrbio do pensamento: na fase
excitada ocorre incoerência e, na fase inibida, inibição
do pensamento. Nos casos mais leves de excitação do
pensamento ocorre o que Leonhard chama de “incoerência na escolha do tema”1. A excitação do pensamento
costuma estar associada a uma pressão da fala. Como
alterações do conteúdo, na excitação sobrevêm principalmente equívocos no reconhecimento das pessoas,
aos quais freqüentemente estão associadas idéias de
referência e alterações sensoperceptivas, sobretudo de
natureza acústica.
1
A incoerência na escolha do tema caracteriza-se por uma série de pensamentos alheios às circunstâncias (vividas pelo paciente ou
sugeridas pelo entrevistador) e entre si desconexos. Difere da fuga de idéias ou do pensamento arborescente por não apresentar a típica
distratibilidade com eventos circunstanciais, característica dos quadros maníacos.
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Na fase inibida, a inibição do pensamento associase a um empobrecimento da fala que pode chegar ao
mutismo. Também agregam-se à “perplexidade” (ou
“reação catastrófica”) idéias de referência e de significação. Podem ocorrer alucinações, embora mais raras
na fase inibida.
Entretanto, é comum que o quadro não se apresente de forma pura, mas demonstre o caráter multiforme da psicose confusional através de traços característicos da psicose da motilidade, da psicose de angústiafelicidade e do transtorno maníaco-depressivo.
O curso é variável, muitas vezes com o predomínio
de apenas um dos pólos, embora seja bastante freqüente
a ciclagem entre ambos.
Leonhard sugere que esses pacientes, em sua maioria
com constituição física pícnica, têm como características
pré-psicóticas uma tendência ao pensamento digressivo
ou, no pólo contrário, a um pensamento lento.
Psicose da motilidade hipercinética-acinética
Como o nome sugere, a psicose da motilidade está
diretamente relacionada aos sintomas psicomotores. Na
fase caracterizada por hipercinese, a psicose da motilidade caracteriza-se por uma inquietação motora que afeta
principalmente os movimentos expressivos e reativos
(involuntários). Na fase acinética, também os movimentos
expressivos e reativos estão comprometidos. Em
condições mais severas, também os movimentos
voluntários podem ser afetados. Em casos mais leves,
ainda com movimentos voluntários preservados, podese reconhecer o quadro a partir da rigidez na postura e
na mímica. O quadro pode evoluir para uma acinese.
Como nas outras formas de psicose ciclóide, é
relativamente freqüente ocorrer numa mesma fase uma
oscilação circular para ambos os pólos. As acineses
são relativamente mais raras e de duração mais longa,
podendo prolongar-se por meses. Em contrapartida, as
hipercineses costumam ser mais freqüentes e apresentam duração restrita a poucas semanas.
Junto à síndrome central da psicose da motilidade,
aparecem freqüentemente traços de uma das outras
doenças bipolares.
A acinese da psicose da motilidade deve ser
distinguida do estupor da psicose confusional, o que
requer uma investigação acerca de qual dentre os
sistemas motores está mais comprometido, se os
movimentos voluntários (psicose confusional) ou involuntários (psicose da motilidade).
O diagnóstico diferencial com a psicose confusional também pode ser complicado na fase excitada:
uma incoerência formal, onde é verbalizada uma forma
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discursiva incoerente e com interrupções, é característica da psicose da motilidade. Quando a isto vem se
somar uma pressão da fala incoerente, o que é relativamente comum na hipercinese, há uma sobreposição
com as psicoses confusionais que torna difícil o seu
diagnóstico diferencial.
Também aqui, baseado nas observações de
Trostorff, Leonhard refere como constituição prépsicótica um “temperamento de movimento”
[bewegungstemperament], com riqueza de movimentos
expressivos e amiúde um talento para a dança, assim
como predomínio do tipo físico leptossômico.
Psicoses ciclóides: aspectos diagnósticos
Leonhard assumiu o conceito de PC a partir de
Kleist e as dividiu em três tipos, cada qual com dois
pólos. Kleist considerava as PC, em sua natureza, mais
próximas das psicoses afetivas, enquanto Leonhard
passa a considerá-las como formas separadas, tanto
das psicoses afetivas quanto das esquizofrenias. Essa
delimitação tem sido aceita pela maioria dos estudiosos
de Leonhard. Entretanto, o caráter polimorfo e as
manifestações clínicas, com freqüentes sobreposições
de sintomas pertencentes aos diferentes subtipos de PC,
têm levado alguns autores à conclusão de que as
distinções de Leonhard quanto aos subgrupos das PC
são clinicamente problemática (Cutting, 1990).
Perris (1974) propôs uma definição operacional
das psicoses ciclóides a partir dos seguintes critérios:
1. Estado psicótico: perda de contato com a
realidade;
2. Remissão completa: em estudo conduzido por
Cutting et al. (1978), de 73 pacientes somente
sete não haviam remitido plenamente dentro
de um ano, três deles após dois anos e os
quatro restantes não tiveram seguimento;
3. Oscilações de humor durante o estado
psicótico: ocorrem flutuações do humor rápidas e freqüentes. No curso de 24 h o paciente pode apresentar uma ou mais fases de
elação, depressão ou ansiedade extrema. No
curso de um mês, pode haver dezenas de
diferentes fases de humor, intercaladas por
períodos de normalidade (há casos em que o
paciente tem alta após uma semana de humor
estável para retornar em seguida com um
quadro psicótico completamente diferente).
Embora alterações dessa natureza possam
algumas vezes serem vistas na depressão e
sejam um pouco mais freqüentes na mania,
essas oscilações rápidas raramente ocorrem
nas psicoses afetivas típicas;
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4. No mínimo duas das seguintes características:
a. Sintomas paranóides: delírios ou ideações
delirantes ou experiências perceptivas (alucinações) incongruentes com o humor;
b. Distúrbio do movimento: diferente dos movimentos catatônicos (qualitativamente anormais), o movimento na PC tem sua velocidade
aumentada ou diminuída em relação aos
movimentos normais (diferença quantitativa);
c. Confusão: varia de uma leve perplexidade até
confusão grosseira (alteração formal do pensamento); depois dos sintomas paranóides, a
confusão é o sintoma mais comumente
encontrado;
d. Ansiedade generalizada: medo de que algo
funesto está para acontecer, freqüentemente
relacionado à morte iminente de si ou de outras
pessoas;
e. Êxtase: distinto da simples elação pelo fato de
que o paciente quer trazer salvação e júbilo à
humanidade.
Esses critérios dificilmente se ajustam às categorias
descritivas dos sistemas diagnósticos internacionais. No
caso do DSM-IV, o distúrbio esquizofreniforme compreende uma duração máxima de seis meses e o transtorno esquizoafetivo pressupõe sintomas residuais. No
caso do CID-10, o distúrbio psicótico polimorfo agudo
com sintomas de esquizofrenia tem como critério uma
duração máxima de um mês.
Embora do ponto de vista descritivo as PC se
assemelhem mais ao transtorno afetivo bipolar (com
sintomas psicóticos, humor incongruente e episódio
misto), estudos retrospectivos de casos revelam que
estes pacientes em sua maioria são diagnosticados
como esquizofrênicos: Cutting et al. (1978) revisaram
retrospectivamente pacientes psicóticos internados
no Instituto de Psiquiatria de Londres. Seguindo os
critérios operacionais de Perris (1974), 73 pacientes
foram diagnosticados como PC, mas os diagnósticos
nos prontuários foram: esquizofrenia (45%);
transtorno esquizoafetivo (27%); psicose afetiva
(15%); psicose atípica (12%). Beckmann et al. (1990)
referiram os diagnósticos do DSM-III-R em 26
pacientes com PC: transtorno esquizoafetivo (50%);
esquizofrenia (27%); distúrbio esquizofreniforme
(15%); mania (8%).
Esquizofrenias não-sistemáticas
As esquizofrenias não-sistemáticas (ENS) guardam muitas semelhanças com as psicoses ciclóides (PC),
o que muitas vezes torna difícil o seu diagnóstico dife-
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
rencial. Ambas apresentam estados bipolares e cada uma
das psicoses ciclóides guarda semelhança clínica com
uma subforma correspondente de esquizofrenia nãosistemática: a psicose de angústia-felicidade com a parafrenia afetiva; a psicose de motilidade com a catatonia
periódica; e a psicose confusional com a catafasia (ou
esquizofasia).
A distinção entre as formas curáveis das PC e as
ENS está não somente no fato de que apresentam
quadros sintomatologicamente distintos, mas principalmente porque as ENS levam a um quadro de defeito.
Tanto as esquizofrenias não-sistemáticas quanto
as sistemáticas levam a um estado de defeito, mas “em
sua essência não têm nada a ver uma com a outra. O
nome comum justifica-se apenas pela tradição: desde
Kraepelin e Bleuler tem-se por hábito agrupar todas as
psicoses endógenas que levam a um defeito sob o
conceito de esquizofrenia.” (Leonhard, 1995, p.86).
O diagnóstico diferencial entre as formas nãosistemáticas e sistemáticas não oferece maiores dificuldades, pois em ambas as formas tanto a sintomatologia
quanto a evolução são bastante diferentes. As formas
sistemáticas evoluem insidiosa e progressivamente,
enquanto as não-sistemáticas exibem quadros pouco
circunscritos e de ampla variação sintomatológica, via
de regra evoluindo sob a forma de surtos agudos, e não
da maneira insidiosa característica das doenças degenerativas. Outro aspecto relevante na diferenciação entre
as formas não-sistemáticas e sistemáticas consiste na
predisposição genética: pacientes diagnosticados com as
formas não-sistemáticas apresentam um maior número
de casos entre familiares, o que é menos comum nas
formas sistemáticas. O caráter remissivo entre os surtos
de reagudização e o componente genético implicados nas
formas não-sistemáticas apontaria para uma possível
alteração cerebral de natureza metabólica e cíclica. As
formas sistemáticas, por outro lado, pelo seu curso insidioso e pela relativa ausência de história familiar, sugerem
outras causas, possivelmente externas, implicadas na
etiopatologia.
Parafrenia afetiva
A parafrenia afetiva pode apresentar curso remissivo ou insidioso, com uma síndrome de referência
como primeira manifestação. Tanto no início quanto no
curso mais tardio ocorrem oscilações afetivas no sentido
de angústia ou êxtase. Esses afetos estão sempre acompanhados de uma construção patológica de idéias: na
angústia encontramos auto-referências e freqüentemente
também alucinações; no êxtase também ocorrem
alterações sensoperceptivas, mas predominam as idéias
de felicidade.
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No início pode ser difícil distinguí-la de uma
psicose de angústia-felicidade benigna, mas em geral
as idéias delirantes e alterações sensoperceptivas
tornam-se tão ilógicas que não mais podem ser
deduzidas a partir do afeto angustioso ou extático. As
distorções sensoperceptivas somáticas, que na psicose
de angústia-felicidade costumam ser atribuídas pelos
pacientes ao estado anormal (constituem, portanto,
pseudoalucinações), na parafrenia afetiva desde o
início assumem um caráter alucinatório no sentido de
influência externa. Com freqüência, as oscilações
afetivas estão ligadas a uma irritabilidade que se
desenvolve de maneira gradual, via de regra a partir
da angústia. Pode-se então encontrar uma síndrome
de referência irritável com um conteúdo menos
angustioso e mais relacionado a interpretações hostis
do ambiente. A parafrenia afetiva pode permanecer
muito tempo nesse estágio. Também podem ocorrer
leves alterações de humor extático que permanecem
como um estado de longa duração, resultando num
delírio de grandeza crônico. Por fim, ainda mais
freqüente é a oscilação patológica da afetividade para
ambos os pólos, de forma que podem ocorrer idéias
persecutórias e de grandeza ao mesmo tempo.
Ocasionalmente pode ocorrer uma sistematização das
idéias delirantes, cuja expressão remete a um quadro
de Paranóia no sentido de Kraepelin.
É freqüente que a parafrenia afetiva progrida além
desse estágio. O caráter ilógico, que pode ser identificado já no início, evidencia-se sempre mais claramente
no quadro delirante, tanto que resulta em francas estruturações fantásticas com idéias de grandeza, falsificações da memória, equívocos no reconhecimento
das pessoas, idéias absurdas e alterações sensoperceptivas em todas as áreas do sentido. Entretanto, estes
sintomas não são tão regularmente expressos como
nas formas sistemáticas da parafrenia fantástica. Alguns
podem estar ausentes, enquanto outros podem manifestar-se em maior intensidade. Aqui, a relação com o
afeto é chave no diagnóstico diferencial: enquanto os
parafrênicos sistemáticos demonstram pouca vinculação afetiva com seus conteúdos delirantes e falam
deles sem expressão afetiva intensa, os parafrênicos
afetivos ancoram fortemente suas ideações delirantes
no afeto. Os pacientes falam de suas idéias com
irritação profunda ou com orgulho e entusiasmo, por
mais absurda que seja a ideação delirante. Entretanto,
fora do tema envolvendo seu delírio, os parafrênicos
afetivos costumam apresentar embotamento.
Catafasia ou esquizofasia
A catafasia também ocorre em dois pólos, um excitado e outro inibido. A catafasia excitada caracteriza-se
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
por uma pressão de fala confusa que, nos casos severos,
constitui verbalizações incompreensíveis. Isso contrasta
com o fato de que os doentes em sua maior parte
apresentam-se ordenados em suas condutas e mantêm
suas atividades relativamente preservadas. Em
compensação, observa-se um achatamento afetivo. No
estado inibido, os casos mais severos de catafasia
caracterizam-se por um mutismo, enquanto nos casos
mais leves ocorre um laconismo.
O distúrbio do pensamento, perturbação central
da catafasia, revela seu parentesco com a perturbação
vista na psicose confusional, embora na excitação vá
além de uma simples incoerência e, na inibição, além de
uma simples inibição do pensamento. Na catafasia
excitada encontra-se uma severa perturbação lógica que
também afeta o elemento lingüístico, resultando em
confusão de palavras, neologismos e uma ordenação
gramatical deficitária. Na catafasia inibida também
ocorrem erros lógicos, mas aqui distingue-se sobretudo
a inibição do pensamento que, tal como na psicose
confusional, leva a um estado perplexo. Entretanto,
pode-se ao mesmo tempo reconhecer na fisionomia uma
apatia interna. Além disso, ao invés de responder, o
paciente tende a dirigir um olhar fixo ao entrevistador.
Na catafasia excitada freqüentemente ocorrem confabulações e, na forma inibida, idéias de referência. Além
das catafasias excitada ou inibida, há casos com severas
perturbações do pensamento e da linguagem que não
apresentam loquacidade ou pobreza de palavras,
evidenciando, portanto, somente o sintoma-defeito
central da doença: a alteração do pensamento.
Da mesma forma como vimos na parafrenia
afetiva, na catafasia freqüentemente encontram-se
misturados traços de outras esquizofrenias não-sistemáticas e das psicoses ciclóides. Freqüentemente encontramos oscilações entre sentimentos angustiosos e
extáticos. O curso da catafasia pode ser insidioso e
progressivo, com períodos de remissões, ou até mesmo
de curso periódico.
Catatonia periódica
A catatonia periódica cursa em estados hipercinéticos e acinéticos. Entretanto, são raros os estados
com uma forma pura, sendo mais freqüente a mistura
de sintomas de ambos os pólos.
A hipercinese, devido ao acréscimo de traços
acinéticos, passa a exibir uma certa rigidez. Os movimentos perdem a harmonia natural e tornam-se rígidos,
curtos e irregulares. Devido a esta alteração no curso do
movimento, o caráter objetivo que originalmente o
compunha muitas vezes é perdido. Os movimentos
reativos não são mais reconhecíveis como tais; ainda
Rev. Psiq. Clín. 29 (3):135-149, 2002
142
mais afetados são os movimentos expressivos, que
perdem sua objetividade e sentido. Os gestos tornam-se
movimentos indefinidos e descoordenados e a mímica
passa a compor-se de caretas. Estes movimentos, que
modificam a naturalidade dos movimentos normais, dão
à excitação da catatonia periódica um caráter paracinético.
Na acinese percebe-se de forma ainda mais inequívoca a atividade intrínseca do pólo oposto. Apesar de
uma genérica rigidez da postura e da mímica, podem
ocorrer movimentos despropositados de uma extremidade, na maioria das vezes com um caráter uniforme,
estereotipado. Da mesma forma, nas estereotipias da
postura sobrevêm estados que, apesar da pobreza de
movimentos, sempre mais ativamente assumem determinadas posturas. Em outra forma, traços hipercinéticos
misturam-se à acinese, de maneira tal que a escassez de
movimento pode dar lugar a ações impulsivas freqüentemente relacionadas com agressividade. Além disso,
alguns pacientes relativamente destituídos de impulso
exibem repentinas explosões de um riso exagerado.
Após os surtos agudos catatônicos sobrevêm
períodos de remissão. Estados hipercinéticos têm um
prognóstico relativamente bom. Mesmo após diversas
crises, os estados de defeito são pouco pronunciados.
As acineses evoluem mais rapidamente para defeitos
residuais. Quando os defeitos manifestam-se de forma
leve ocorre uma genérica lentificação (ou déficit de
movimento), mas a afetividade também está comprometida. Em graus mais severos pode-se falar de um
embotamento. Em todos os casos pode permanecer uma
irritabilidade que facilmente leva à agressão. Também
nos estados finais observam-se sintomas de ambos os
pólos da doença justapostos. Junto ao empobrecimento
dos impulsos ocorrem movimentos faciais em forma
de caretas, movimentos impulsivos e às vezes também
uma impulsividade verbal que pode resultar numa fala
tangencial e desconexa.
Em casos mais leves, a doença pode temporariamente imitar uma psicose da motilidade. O quadro pode
também apresentar-se em referência tanto às psicoses
fásicas multiformes quanto a ambas as outras esquizofrenias não-sistemáticas.
das não-sistemáticas a princípio pela nitidez de sua
forma sintomatológica. Enquanto na catatonia periódica,
catafasia e parafrenia afetiva há sempre um caráter
polimorfo que não permite uma delimitação exata, nas
formas sistemáticas encontramos quadros claramente
circunscritos.
Leonhard compara as esquizofrenias sistemáticas
com as formas puras das psicoses fásicas (depressão e
mania) no sentido de que ambas implicam áreas funcionais circunscritas, o que lhes confere delimitação
sintomatológica constante. Contudo, as áreas funcionais
comprometidas seriam diferentes: nas depressões e
euforias puras trata-se de um comprometimento da
região timopsíquica relacionada à área nervosa vegetativa; enquanto nas esquizofrenias sistemáticas há
comprometimento dos estratos superiores relacionados
aos processos do pensamento e da volição, filogeneticamente mais recentes (Leonhard, 1970a). Tal como
Kleist, Leonhard supõe que essas áreas funcionais
específicas constituem sistemas (“associações celulares
com seus respectivos feixes nervosos”) cuja lesão leva
a estados de defeito específicos. Nas esquizofrenias
não-sistemáticas, esses sistemas estão afetados de
maneira distinta, externamente, já que envolvem diferentes domínios funcionais (sintomas acessórios). Nas
formas sistemáticas, o processo patológico encontra-se
primariamente no sistema correspondente ao estado de
defeito, claramente identificável nos estágios finais da
doença. Entretanto, nos estágios iniciais das formas
sistemáticas encontram-se misturados sintomas
acessórios (oscilações de humor, auto-referências e
alterações sensoperceptivas) que caracterizam o início
de todas as psicoses, em parte também devidos às
reações psicológicas diante da psicose (por exemplo
vivências catastróficas, humor disfórico e idéias
explicativas). Independentemente disso, a síndrome de
defeito surge desde o início da doença e manifesta-se
de modo crescente, o que já permite um diagnóstico
acurado. O fato de que se trata de uma forma sistemática
via de regra pode já ser identificado pelo início insidioso
e relativamente pobre de sintomas de processo2.
Esquizofrenias sistemáticas
Na maioria dos casos, apenas um dos sistemas
psíquicos é afetado, resultando nas formas patológicas
que constituem a síndrome de base na qual evoluem as
esquizofrenias sistemáticas, ou seja, não numa mistura
As esquizofrenias sistemáticas, grupo que
Leonhard também designa como nuclear, diferenciam-se
Esquizofrenias sistemáticas simples
2
Sintomas de defeito [defektsymptomen] referem-se ao estado psíquico deficitário, estável e irreversível, decorrente da evolução da doença.
Na literatura alemã, defeito pode ser definido como empobrecimento do impulso, indiferença, incapacidade de vinculação afetiva e empatia
com os outros, confusão do pensamento, inatividade e isolamento social. Os sintomas de defeito devem ser diferenciados dos sintomas de
processo, sintomas esquizofrênicos agudos que, ao longo do curso da doença, gradualmente diminuem de intensidade, assim permitindo
uma expressão mais clara dos sintomas de defeito (Leonhard, 1948, p.119). Reações catastróficas (ratlosigkeit = “perplexidade”), idéias
explicativas e reações psicológicas ao exórdio psicótico amiúde constituem os sintomas de processo.
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
Rev. Psiq. Clín. 29 (3):135-149, 2002
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indistinta de sintomas isolados, mas em associações de
sintomas específicos. Leonhard acentua a importância
da associação de sintomas: “… suponho tratar-se de
uma esquizofrenia fonêmica não necessariamente porque
o fonema aparece em primeiro plano no quadro clínico,
mas apenas quando tratar-se de uma determinada forma
de vozes, as quais vêm acompanhadas de uma afetividade e de um distúrbio do pensamento característicos.
A determinação de uma forma específica depende
justamente de que se possa sempre verificar uma exata
associação de sintomas antes de o diagnóstico ser
firmado.” (Leonhard, 1995, p.121).
Formas catatônicas
O caráter “sistemático” das esquizofrenias nucleares torna-se evidente sobretudo nas catatonias. Tal
como na coréia ou no parkinsonismo, nas catatonias
ocorre o comprometimento de sistemas, embora aqui
os sistemas afetados estejam mais superiormente
integrados, ou seja, sistemas de um significado não
apenas neurológico, mas já tributários de significação
psíquica. O caráter de oposição entre os sintomas da
catatonia também argumenta em favor de uma origem
sistemática: no sistema nervoso encontramos com
regularidade pares de sistemas com funções entre si
antagônicas, cujo equilíbrio regula a expressão fisiológica correspondente.
Catatonia paracinética
Diferente das excitações paracinéticas observadas
no início da catatonia periódica, a paracinese da catatonia
paracinética desenvolve-se de forma tão gradual e
inconspícua que, no início, costuma passar despercebida (caretas fugazes, movimentos despropositados
breves dos braços, tronco, mãos, etc.).
A hipercinese da catatonia paracinética caracteriza-se pela maneira singular com que os movimentos
são realizados: movimentos voluntários são executados
de forma rude, sem a harmonia natural; os movimentos
involuntários estão ainda mais afetados. Há uma
genérica perda da coordenação entre os movimentos:
um movimento é deflagrado, pode parar por um
instante, quando surge repentinamente o próximo
movimento.
Os movimentos involuntários podem apresentarse como movimentos reativos desfigurados ou como
movimentos expressivos da mímica facial com caretas
vívidas. Os movimentos mais simples lembram a coréia.
As paracineses são variáveis nos estados de defeito,
mas algumas apresentam-se como gesticulações bizarras
que se repetem. A particular perturbação do movimento
exprime-se também nas verbalizações: as palavras
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
tornam-se entrecortadas, como que “disparadas” em
sílabas isoladas, constituindo frases curtas e agramaticais. Tanto na expressão oral como na escrita, os
doentes alternam afirmações ora adequadas, ora desconexas e carentes de qualquer sentido. O pensamento
pode exibir mudanças de conteúdo tão rápidas e
impulsivas quanto os movimentos paracinéticos: pulam
de um tema para outro.
Dentre os catatônicos, os paracinéticos costumam
apresentar uma afetividade mais preservada. Com um
humor de fundo contente e despreocupado, costumam
interessar-se pelos familiares e demonstram alegria
quando visitados. Podem apresentar crises de
irritabilidade expressas nas paracinesias. Não costumam
ocorrer delírios e alucinações.
Ao contrário das demais formas sistemáticas,
Leonhard encontrou diversos casos de catatonia
paracinética com história familiar.
Catatonia maneirista
A catatonia maneirista manifesta-se por um empobrecimento crescente da motricidade involuntária, ao
ponto de produzir-se uma rigidez na postura. A este
quadro sobrevêm os maneirismos, que no início
costumam ser mais evidentes do que a rigidez.
Ao longo da evolução, a motricidade restringe-se
cada vez mais às formas de movimento repetidas e
estereotípicas, maneirismos que podem comprometer
a maioria dos movimentos. O empobrecimento motor
torna-se ainda mais pronunciado quando os “maneirismos motores” retrocedem e o quadro passa a ser
dominado por “maneirismos de omissão”. Então pode
manifestar-se um empobrecimento motor particularmente severo no qual o doente encontra-se sempre no
mesmo lugar, numa postura e mímica rígidas. Uma
terapia ocupacional adequada pode coibir esse quadro
severo, na medida em que as formas de movimento
que são repetidamente executadas tendem a ser
preservadas.
A rigidez peculiar desses pacientes deve-se menos
à redução dos movimentos voluntários e mais ao desaparecimento dos movimentos involuntários, particularmente os movimentos expressivos. Há um genérico
empobrecimento da mímica facial, embora a expressão
mostre-se ainda compreensível ao examinador. O quadro
assemelha-se ao parkinsonismo neuroléptico induzido,
embora na catatonia os movimentos voluntários tenham
uma velocidade normal. Observa-se uma marcha robotizada.
Os maneirismos podem assumir atitudes que
sugerem ações compulsivas, tais como ajoelhar-se, tocar
objetos ou pessoas, colecionismo de objetos inúteis,
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144
etc. A fala costuma perder a prosodia, tornando-se
monótona. Em estágios mais tardios pode haver
mutismo. Também aqui podem ocorrer crises repentinas
de ação impulsiva, com agressividade física. A afetividade costuma estar relativamente preservada. Mesmo
nos estágios mais avançados, os pacientes costumam
se sentir ofendidos por provocações. Nos casos mais
leves, o pensamento mostra-se relativamente preservado.
Nos casos severos observa-se um certo declínio cognitivo, possivelmente relacionado à inibição do pensamento, embora os pacientes ainda sejam capazes de
realizar tarefas cognitivas simples e conservem um certo
interesse pelo ambiente.
Catatonia proscinética
Quando interpelados, os catatônicos proscinéticos
dirigem-se ao entrevistador com uma expressão facial
que, embora destituída de mímica, indica um certo
interesse. Quando estimulados, os doentes podem
apresentar um murmúrio incompreensível que assume
a forma discursiva singular de uma verbigeração. Nos
casos mais leves, há uma fala monótona, com respostas
às vezes desconexas e repetitivas, embora ainda compreensíveis. Quando estimulado, o paciente mexe e
manipula objetos, puxa as roupas, esfrega a pele e assim
por diante. Pode-se constatar um automatismo impulsivo
mediante experiências de sugestão: quando o entrevistador estende a mão, o paciente a segura repetidas vezes;
uma leve pressão em qualquer parte do corpo produz
um acompanhamento ativo do estímulo, de forma que
a parte do corpo é levada a qualquer posição, por mais
desconfortável que seja. Quando se dá ao paciente uma
contra-sugestão, os automatismos de segurar e
acompanhar são temporariamente suspensos, mas basta
que haja desvio da atenção para que o paciente os
recomece automaticamente.
A iniciativa dos pacientes proscinéticos encontrase severamente restrita, tanto que, apesar de sua disposição motora, eles apresentam uma conduta pobre em
movimentos. Entretanto, quando externamente estimulados, os pacientes conseguem ocupar-se de forma
relativamente adequada.
A afetividade encontra-se severamente embotada,
em sua maior parte sob a forma de um contentamento
despreocupado, o que contrasta com a irritabilidade dos
catatônicos negativistas. Menos comumente do que nos
outros catatônicos, a alguns doentes sobrevêm alterações
do humor que podem ser liberadas sob a forma de
xingamentos e agressividade.
Nos estágios mais adiantados, quando os pacientes
apenas murmuram verbigerações, o pensamento não é
mais passível de avaliação. Quando os doentes ainda
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
conseguem responder, pode-se comprovar que suas
respostas são incompletas, embora não-ilógicas.
Catatonia negativista
A catatonia negativista é caracterizada por uma
resistência aos estímulos, não necessariamente como
negação, pois o negativismo manifesta-se predominantemente sob a forma de uma omissão. Nos casos mais
leves, no início os pacientes são ainda capazes de
respostas coerentes e comportamento adequado às
demandas. Durante as entrevistas olham indiferentes
para o lado e evitam contato visual com o entrevistador.
Quanto mais se tenta contato com o paciente, tanto
mais evidente é a resistência. Se num estado de humor
amigável, o paciente exibe um sorriso embaraçado
característico, como que se desculpando pela resistência
ao estímulo, o que sugere sua ambivalência em relação
à resistência. Ao ser pressionado, o paciente mostra-se
disfórico e assim evidencia mais claramente a
resistência: o doente puxa a mão para trás quando
tentamos pegá-la, afasta-se, produz sons de irritação,
foge e torna-se agressivo. Quando se contraria a resistência de forma mais severa, facilmente pode-se desencadear uma excitação negativista, amiúde de caráter
bastante violento. Também na ausência de causa externa
podem surgir nos doentes estados de excitação, em sua
maior parte de curta duração e freqüentemente relacionados a ações violentas. A totalidade da motricidade
apresenta-se algo impulsiva e grosseira, "aos arranques".
Freqüentemente o doente apresenta uma postura
singularmente contorcida. Em conexão com o elevado
grau de empobrecimento da motricidade voluntária,
surge uma excitabilidade anormal dos mecanismos
motores mais profundos, resultando em um automatismo impulsivo.
Os catatônicos negativistas apresentam comprometimento do pragmatismo e da afetividade, embora
conservem uma impulsividade veemente, em geral
manifesta na sua avidez pela alimentação e por tendências
eróticas. O pensamento encontra-se relativamente
preservado.
Catatonia parafêmica
O sintoma essencial da catatonia parafêmica é
constituido pelas chamadas pararrespostas [vorbeireden],
espécie de alteração formal da linguagem caracterizada
por um “falar sem sentido” ou “falar a esmo”. As pararrespostas podem ser provocadas quando se questiona o
paciente de maneira breve e concisa, ocasião em que as
respostas surgem também breves, mas destituídas de
sentido. Com freqüência, os doentes ainda oferecem
respostas corretas a perguntas mais simples; porém, à
medida que as perguntas tornam-se mais difíceis e
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145
afetivamente acentuadas, os doentes passam a dar
respostas incompreensíveis. Uma análise mais acurada
irá revelar uma espécie de curto-circuito, uma reação
imediata da fala: a questão formulada não é racionalmente
decodificada pelo paciente, e será respondida com o que
estiver mais ou menos disponível no seu pensamento.
Com freqüência o paciente repete as palavras que se lhe
diz em um contexto completamente inadequado,
resultando em um quadro aparente de perseveração.
Também é freqüente que associações externas
completamente aleatórias, às vezes até mesmo de rima,
determinem a resposta. Tais associações podem surgir
sob a forma de neologismos. Cada pergunta é respondida
apenas por um curto impulso de fala que logo se extingue,
de tal forma que as respostas em sua maioria são curtas,
fragmentadas e expressas de forma agramatical. As
respostas são, entretanto, sempre oferecidas, independentemente de quantas vezes se pergunte. Nisso confirma-se
a presteza da fala. Entretanto, não existe qualquer pressão
de fala e os doentes, quando não estimulados, costumam
ser descritos como em mutismo.
Iniciativa e afetividade encontram-se embotadas.
A motricidade revela-se algo comprometida. A mímica
é particularmente vazia, inexpressiva, tanto que não pode
dizer muito dos processos psíquicos internos do
paciente. Além disso, o aspecto de inacessibilidade
acentua-se por meio de um autismo pronunciado, no
qual o paciente parece nunca estar interessado no
ambiente, embora não seja diretamente estimulado.
Catatonia hipofêmica
Nos estágios iniciais, os catatônicos hipofêmicos
costumam responder de modo indolente; nos estados
tardios, praticamente não respondem: olham distraídos
de um lado para outro, amiúde com movimentos labiais
de sussurro. De tempos em tempos podem tornar-se
fortemente excitados, quando falam alto consigo
próprios ou apresentam excitações pronunciadas,
durante as quais voltam-se para si próprios e xingam
contra as vozes, gesticulando visivelmente. Isso
contrasta com a excitação dos catatônicos negativistas,
caracterizada por início súbito, menor duração e
agressividade voltada para o ambiente externo.
Nos estágios iniciais, as declarações dos doentes
demonstram que eles padecem continuamente de
muitas alucinações: apresentam confabulações fantásticas que provavelmente também ocorrem nos estados
finais, embora seja difícil comprová-las devido à
inacessibilidade dos doentes. Nos estados finais, os
catatônicos hipofêmicos encontram-se retardados não
apenas nas verbalizações, mas também em suas outras
reações. Entretanto, visto que durante as excitações
eles falam muito e demonstram uma motricidade vívida,
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
é de se supor que suas reações indolentes decorram
de sua permanente distratibilidade, em conseqüência
da qual eles pouco atendem aos estímulos vindos de
fora.
Os catatônicos hipofêmicos apresentam déficit de
atenção e, quando questionados, demoram para respoder
ou sequer respondem; enquanto os parafêmicos atendem imediatamente ao questionamento e respondem
rapidamente.
Os hipofêmicos exibem uma postura anormal:
costumam sentar-se encurvados, inclinados para a
frente. A expressão facial também é pobre, embora
menos evidente do que nos catatônicos parafêmicos.
A iniciativa encontra-se apagada, de forma que
um impulso próprio é verificado apenas em relação às
alterações sensoperceptivas. Também o afeto é observado somente nas discussões excitadas contra as vozes.
Devido à incomunicabilidade, é difícil estimar o pensamento dos “catatônicos distraídos”. Embora esse pareça
ser expresso sobretudo por incoerência, Leonhard
sugere que a completa incongruência entre as perguntas
do entrevistador e as respostas oferecidas pelo paciente
resulta em parte do diálogo alucinatório e não necessariamente do afrouxamento das associações.
Formas hebefrênicas
O conceito leonhardiano de hebefrenia, tal como
nas concepções de Hecker (1871) e Kleist (1934),
implica essencialmente o rebaixamento afetivo. É importante salientar que o diagnóstico de hebefrenia em
Leonhard difere marcadamente do diagnóstico baseado
na tradição bleuleriana, com sintomatologia polimorfa e
distúrbio formal do pensamento. Como nas demais
esquizofrenias sistemáticas, a hebefrenia é caracterizada
também por um curso insidioso. Hebefrenias e catatonias
compartilham de inícios relativamente precoces.
De acordo com Leonhard, as hebefrenias têm
apresentação clínica simples, o que torna o seu diagnóstico mais difícil na medida em que as alterações
afetivas não são tão facilmente advertidas, ou pelo menos
não da forma tão explícita quanto os sintomas catatônicos ou paranóides. Os quadros residuais fornecem
os sintomas específicos de forma mais clara, enquanto
nos estágios iniciais estes podem estar ainda encobertos
por sintomas de processo inespecíficos. Os episódios
de alteração de humor depressivo e eufórico ocorrem
com freqüência. Especialmente nos estágios iniciais,
podem surgir estados acompanhados de excitação e
inibição que lembram a catatonia. Também podem
sobrevir excitações violentas acompanhadas de irritação
e agressividade. Especialmente no início dos sintomas,
as alterações afetivas são freqüentemente acompanhadas
de delírios e alucinações.
Rev. Psiq. Clín. 29 (3):135-149, 2002
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Hebefrenia pueril
A hebefrenia pueril caracteriza-se por embotamento afetivo acompanhado de um estado de humor
contente ou até mesmo elevado. Nos estágios iniciais,
os hebefrênicos pueris demonstram uma tendência para
brincadeiras infantis “maldosas”, o que sugere um
embotamento ético. Essas atitudes maldosas, em geral
no confronto com outros pacientes, podem também
resultar de alterações de humor que transformam
temporariamente o estado de contentamento despreocupado em humor irritável. Uma genérica tendência ao
riso é bastante característica, evidenciando-se a cada
estímulo externo.
Nos estágios agudos da doença é freqüente que
haja alterações de humor da mais variada forma:
eufórico, depressivo e irritável. Juntamente com o embotamento afetivo, restringe-se também a atividade. Os
doentes perdem cada vez mais sua iniciativa e passam
o dia todo inativos. Nos estados finais mais severos, o
empobrecimento do afeto e do impulso podem lembrar
a catatonia. Entretanto, a postura e os movimentos não
têm nada em si de catatônicos, enquanto o riso continua
sempre sugerindo o aspecto hebefrênico.
Hebefrenia excêntrica
A hebefrenia excêntrica começa freqüentemente
com sintomas compulsivos que podem gradualmente
passar a maneirismos.
Mais tarde, encontramos uma fala monótona e uma
tendência ao comportamento querelante que dão a
impressão de maneirismos ou excentricidades. Quanto
ao humor, os doentes em sua maioria apresentam-se
algo tristes. Entretanto, prevalece o achatamento afetivo
e, mesmo durante as querelas, não se observam emoções
mais profundas.
Associado a isso ocorre também um embotamento
ético. No início da doença, juntamente com o crescente
achatamento afetivo, com freqüência observam-se
estados disfóricos que podem estar associados a excitações irritáveis. Em estágios posteriores, apenas
oscilações afetivas mais leves são características da
hebefrenia excêntrica.
Embora o pensamento esteja empobrecido, a
performance cognitiva encontra-se relativamente
preservada.
Hebefrenia embotada
A hebefrenia embotada manifesta-se como embotamento afetivo. Em conversas simples, desaparecem as
flutuações no tom afetivo, ficando evidente a falta de
comoção profunda dos doentes para com temas que
normalmente deveriam provocá-la. Com isto, os pacientes
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
permanecem superficialmente acessíveis e responsivos,
podendo-se com eles entabular conversações de cunho
prático. O achatamento afetivo leva à falta de interesse e
redução na iniciativa, embora os doentes adaptem-se às
atividades do dia-a-dia, ainda que sem motivação própria.
Em geral, o humor manifesta-se como uma espécie de
contentamento despreocupado. Esse estado permanente,
em que a deficiência de afeto parece ser o único sintoma,
será de tempos em tempos interrompido por curtos
estados de humor alterado nos quais os doentes
apresentam-se irritáveis, angustiados ou, mais raramente,
eufóricos. Durante a irritabilidade eles estão propensos a
idéias de referência e podem tornar-se excitados e
agressivos.
As alterações sensoperceptivas também são
características na alteração de humor e podem abranger
todas as áreas do sentido, embora prevaleçam as
alucinações auditivas. Entretanto, ainda que na excitação
os doentes possam xingar contra as vozes, tal como os
doentes paranóides, posteriormente eles sempre
demonstram um claro juízo do caráter patológico das
mesmas, de formas que aqui Leonhard fala de
pseudoalucinações.
Hebefrenia autista
Os hebefrênicos autistas vivem para si, não se
apegam a ninguém e parecem não ser afetados pelos
acontecimentos do ambiente. Sua fisionomia acentua a
impressão de autismo, parece impenetrável, não permite
saber o que acontece no íntimo do doente. Apesar disso,
pode-se dizer que são afetivamente embotados e
empobrecidos quanto à sua vida interior, pois perdem o
interesse e a iniciativa. Apenas em estados de alteração
do humor, que surgem de tempos em tempos, evidenciase um afeto irritável que facilmente transforma-se em
agressividade.
O exame da inteligência revela uma insuficiência,
que de resto não é muito pronunciada quando o doente
está disposto a responder as questões formuladas:
respondem de forma lacônica e desinteressada.
A iniciativa encontra-se prejudicada, embora os
pacientes possam ser instruídos em atividades que
requeiram uma certa independência de ações.
O humor em geral caracteriza-se por traços malhumorados e um aspecto de desânimo. Eles lembram a
condição afetiva dos hebefrênicos excêntricos e
contrastam com o contentamento despreocupado dos
hebefrênicos pueris e embotados.
Formas paranóides
As parafrenias se caracterizam por delírios e alucinações. O distúrbio do pensamento constitui a alteração
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de base nas parafrenias de Leonhard: quanto mais severo
o distúrbio do pensamento, tanto mais expressivos os
sintomas paranóides. A parafrenia incoerente, com o
mais grave transtorno do pensamento exibe ao mesmo
tempo as formas mais graves de alucinações. Nos
estágios agudos das parafrenias freqüentemente ocorrem
sintomas acessórios: perturbações afetivas, sobretudo
de caráter angustioso-ansioso; estados de perplexidade
e idéias de referência.
Essas manifestações podem aparecer em primeiro
plano, de modo que os sintomas específicos ainda não
são evidentes, embora via de regra sejam já demonstráveis.
Entretanto, não são comuns sintomas situados fora
do contexto paranóide. As oscilações afetivas mais
profundas são pouco habituais e fazem pensar muito
mais numa forma inicial de parafrenia afetiva do que
numa forma sistemática. O diagnóstico é tão mais
questionável quanto mais agudo for o início da psicose,
pois o início agudo é muito mais característico das
esquizofrenias não-sistemáticas.
No início, as parafrenias sistemáticas freqüentemente cursam de maneira tão insidiosa que os sintomas
de processo não são advertidos, sendo identificados
apenas os sintomas de defeito (confusão do pensamento), ainda que pouco manifestos.
Nas catatonias e hebefrenias, Leonhard descreve
pares de estados sintomatológicos antagônicos. Essa
analogia não é possível nas parafrenias ou pelo menos
não pode tão facilmente ser deduzida do quadro clínico.
Portanto, Leonhard classifica as parafrenias a partir de
suas características externas.
Parafrenia hipocondríaca
A parafrenia hipocondríaca caracteriza-se sobretudo por sensações de caráter alucinatório que em geral
se relacionam com órgãos internos. A isto acrescentamse alucinações auditivas, preferencialmente de conteúdo
insultuoso, embora o paciente sinta-se menos importunado
pelo conteúdo do que pelo aparecimento das vozes em
si. Parece tratar-se de formas discursivas entrecortadas
sem um sentido reconhecível, pois o doente pouco se
fixa no seu conteúdo.
Entretanto, o conteúdo das vozes costuma apresentar relação íntima com os pensamentos do doente,
podendo resultar no sintoma de sonorização do
pensamento. Mais do que as vozes, as sensações são
percebidas pelo doente como ainda mais molestas. Eles
freqüentemente queixam-se e reclamam delas de
maneira querelante. O fundamento para isto parece ser
o humor de fundo triste e mal-humorado que caracteriza
a parafrenia hipocondríaca.
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
Mais do que nas outras formas, no início encontram-se estados depressivos. A afetividade está bem
preservada, tanto quanto o interesse nos familiares.
O pensamento está perturbado quanto à forma,
pois os doentes dificilmente se fixam e estão propensos
a descarrilamentos da fala, condição que Leonhard
designa como pensamento desconcentrado.
Parafrenia fonêmica
A parafrenia fonêmica na maioria das vezes
começa já com alucinações auditivas, às quais podem
juntar-se também outros sintomas, tais como alterações
afetivas e idéias de referência. Aqui as vozes se diferenciam daquelas da parafrenia hipocondríaca: se ajustam
estreitamente ao pensamento dos doentes, mas são mais
relacionadas ao afeto. Seu conteúdo é francamente
desagradável e sentido pelo doente como importunante.
Nos estágios agudos podem também ocorrer sensações,
mas representam apenas sintomas acessórios que mais
tarde diminuem de intensidade. Com freqüência, os
doentes queixam-se de suas alucinações com palavras
indignadas, embora aqui não haja o caráter torturante
visto nos parafrênicos hipocondríacos. O humor parece
mais equilibrado. A afetividade também está preservada.
Em geral, o pensamento parece não estar perturbado nas conversas do dia-a-dia. Entretanto, ao serem
propostas tarefas de inteligência, ocorrem alterações
regulares nas quais os doentes não seguem um
pensamento objetivo de maneira lógica, senão que fazem
digressões imprecisas, vagas, em torno dos assuntos
propostos, espécie de tangencialidade que Leonhard
designa como pensamento vago.
Parafrenia incoerente
A parafrenia incoerente exibe alucinações pronunciadas que, no início, ainda podem estar associadas a
alucinações somáticas (radiações pelo corpo, puxões
nas pernas, correntes pelo corpo, moléstias sexuais,
etc.), embora mais tarde sejam quase tão somente de
natureza acústica. A fisionomia e o olhar indicam que
esses pacientes estão sempre voltados para o seu interior:
sussurram consigo próprios, de tempos em tempos
caem em excitações alucinatórias, nas quais xingam e
falam com as vozes. O comportamento dos pacientes
sugere que eles alucinam de modo ininterrupto, inclusive
durante as entrevistas. Isso os distingue das outras
parafrenias alucinatórias.
Em nível interpessoal, não demonstram nenhum
interesse ou iniciativa, senão que parecem embotados e
pobres de impulso. Quando questionados, dão respostas
lacônicas, geralmente algo superficiais e em baixo tom
de voz. Suas verbalizações revelam um severo distúrbio
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do pensamento, em geral associado a incoerências e
contaminações do pensamento.
Parafrenia fantástica
Leonhard descreve a parafrenia fantástica como
uma forma de esquizofrenia onde delírios e alucinações
manifestam-se em proporções semelhantes. As
alucinações somestésicas (batidas, queimaduras, cortes
pelo corpo, etc.), geralmente descritas de forma grotesca, estão sempre presentes. Alucinações auditivas e
visuais também fazem parte do quadro clínico. As
experiências cênicas são especialmente características
da parafrenia fantástica: nelas predomina o aspecto
visual, embora seja freqüente o acréscimo de manifestações acústicas e somatopsíquicas. Com freqüência
os doentes alucinam coisas assustadoras, como tortura
e assassinato de pessoas, o que já sugere um traço
fantástico.
De semelhante caráter ilógico são os equívocos
no reconhecimento das pessoas: o doente confunde as
pessoas do ambiente, preferencialmente com personalidades famosas. As idéias de grandeza também têm um
caráter absurdo, na medida em que os doentes elevamse de maneira desmedida. Entretanto, os delírios de
grandeza não repercutem demasiadamente no comportamento dos pacientes.
A afetividade dos doentes é superficial: quando as
pessoas riem de suas idéias ou se os provoca, freqüentemente irritam-se um pouco, mas o afeto nunca é
profundo. Por outro lado, eles mantêm um certo
interesse nos acontecimentos do ambiente e nas suas
famílias. Permanecem naturais em sua postura mais
geral. Quando apresentam suas idéias fantásticas, em
geral parecem algo confusos, mas com perguntas
adequadas pode-se trazer clareza ao curso do pensamento. Em exames com a ajuda de testes de inteligência
verifica-se que a característica do seu distúrbio do
pensamento é o descarrilamento.
Parafrenia confabulatória
O quadro clínico da parafrenia confabulatória é
dominado por falsificações da memória [erinnerungstäuschungen]3 que aparecem sob a forma de vivências
interconectadas. Têm em geral um caráter fantástico e
relacionam-se a países, continentes ou até mesmo outros
planetas. Parece que as desenfreadas e crescentes
representações assumem o caráter de sensações físicas
que se mostram como lembranças. O ambiente
circunstante não está incluído nas confabulações, sendo
adequadamente apreciado. A crítica do paciente
presumivelmente faz com que as confabulações se
apliquem somente a outros lugares. Deve-se em parte
também à crítica o fato de que alguns pacientes
descrevam a vivência dos acontecimentos fantásticos
pretendidos como estados oníricos ou de transe. As
falsificações sensoperceptivas podem ser explicadas pela
simbolização das representações. Nas confabulações
sempre ocorrem idéias de grandeza que, freqüentemente,
assumem proporções desmedidas. Elas são acompanhadas por um humor algo elevado, característico
da parafrenia confabulatória. Esse humor elevado
provavelmente participa dos estados emergentes de
coloração fantástica, favorecendo o caráter sensacional
das confabulações. Em geral há uma forma singular de
perturbação do pensamento abstrato: os pacientes
mantêm a crítica para os acontecimentos do dia-a-dia e
mostram-se adequados, mas falham nas tarefas que
exigem abstração, revelando o que Leonhard designa
como forma de pensamento pictórico.
Parafrenia expansiva
No início, a parafrenia expansiva pode apresentarse com alucinações; com o desaparecimento dos sintomas acessórios permanece um quadro clínico puramente delirante. O delírio tende a ser expansivo. Em
geral, as idéias de grandeza mantêm-se limitadas ao seu
conteúdo, mas os doentes empenham-se continuamente
em viver seu delírio de grandeza também exteriormente.
Enquanto os pacientes fantásticos e confabulatórios
apenas falam de sua elevada posição, sem comportaremse de modo expansivo, os pacientes expansivos
procuram demonstrar continuamente por meio de sua
conduta que são superiores. O conjunto da personalidade
é aqui, portanto, bem mais afetado pelo delírio de
grandeza. O doente faz-se de importante na postura e
movimentos, no trato com outras pessoas, no modo de
vestir, em escritos cheios de segredo e assim por diante.
Em geral, suas atividades expansivas são muito
uniformes e com isso revelam sua pobreza de idéias, o
que de novo contrasta com a riqueza de idéias dos
pacientes fantásticos e confabulatórios. Quando os
doentes falam de seu delírio de grandeza, apresentando
seus motivos e queixas e reclamando dos outros
pacientes, freqüentemente o fazem com uma certa
loquacidade. Também ocupam-se de seus costumes
expansivos com um certo zelo. Entretanto, demonstram
pouca iniciativa e interesse.
Em geral apresentam comprometimento da
verbalização, com muitos erros de gramática e na
3
Erinnerungstäuschung [erinnerung = recordação, lembrança, memória; täuschung = engano, ilusão]. Diz-se do suposto rememorar
(lembrar) de acontecimentos do passado que na realidade nunca aconteceram, mas sua lembrança é vivida com convicção delirante.
Sallet, P.C.; Gattaz, W.F.
Rev. Psiq. Clín. 29 (3):135-149, 2002
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construção de palavras. Na sua perturbação do pensamento, os pacientes empregam conceitos que não são
de todo errados, mas mostram-se inexatos, pouco
precisos, condição que Leonhard designa como inexatidão do pensamento rudimentar.
Esquizofrenias sistemáticas combinadas
Leonhard também descreve casos em que há
combinações de sintomas de diferentes subformas,
embora sejam raros os casos de combinação entre
formas (não-sistemáticas e sistemáticas). Assim,
descreve catatonias sistemáticas combinadas, hebefrenias sistemáticas combinadas e parafrenias sistemáticas combinadas.
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