30o ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT 1: Cidades: Sociabilidades, Cultura, Participação e Gestão A Contribuição de Alain Touraine para a Produção do Conhecimento na Sociologia Urbana: sujeitos coletivos e multiculturalidade. Autora: Maria da Glória Gohn Uninove/ Unicamp. Apoio CNPq 24-28 de Outubro 2006 Caxambu/MG 2 A Contribuição de Alain Touraine para a Produção do Conhecimento na Sociologia Urbana: sujeitos coletivos e multiculturalidade. Maria da Glória Gohn- Uninove/Unicamp. Apoio CNPq Resumo O trabalho analisa a contribuição de Alain Touraine a partir de duas temáticas básicas: o papel do sujeito coletivo nos processos de sociabilidade, participação e mudança social- tomando como referência os movimentos sociais; e a questão da multiculturalidade nos conflitos urbanos contemporâneos. O paper se compõe de duas partes. A primeira faz um resgate da produção de Touraine a partir dos anos 60, como ele foi construindo a idéia de sujeito coletivo e qual o papel deste sujeito na construção da identidade de movimentos sociais e culturais que ocorrem no urbano. A segunda parte focaliza, na atualidade, o tratamento que Touraine dá para a problemática dos direitos culturais, valores morais e categorias de pertencimento (etnia, raça, religião, territorialidade, e grupos etários) na produção dos conflitos sociais na sociedade civil, especialmente nas grandes cidades, na luta por políticas sociais que contemplem a questão da multiculturalidade. Quais os elementos que constroem as identidades e quais as descontrõem. Apresentação Em Julho de 2006 a Associação Internacional de Sociologia – ISA outorgou a Alain Touraine o prêmio da Foundation Mattei Dogan Prize for Life-Achievement in Sociology, uma distinção criada para premiar a cada quatro anos um sociólogo que tenha tido um papel relevante nas várias partes do globo. Touraine tem cerca de 50 anos de trabalho dedicado ao ensino e à pesquisa sociológica. Publicou, até 2005, 40 livros na língua francesa (sendo 30 de autoria individual e 10 com outros autores), e centenas de artigos em revistas acadêmicas, periódicos e na imprensa do mundo todo. Grande parte de seus livros foi traduzida em inúmeras línguas. Ele orientou dezenas de teses e trabalhos acadêmicos, sendo muitos de latino-americanos, acolhendo -os na França com muita generosidade. Na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, Touraine participou da criação do Centro de Análises e Intervenção Sociológica, onde é diretor, assim como é membro da 3 Academia de Ciências de Nova York. Atualmente, sua opinião e análise sobre os conflitos, movimentos e contexto político nacional e internacional, é respeitada e ganha destaque na mídia em várias partes do globo. A América Latina, especialmente o Brasil, têm papel central na produção de Touraine. Ele sempre trabalhou com os grandes temas da teoria sociológica e desenvolveu, ao longo de sua trajetória, teorias e concepções próprias sobre as ações sociais e o papel dos sujeitos nestas ações. A sociedade e a cultura têm sido seu grande foco: como ela se representa, se reproduz, se transforma – alterando-se ou resistindo às mudanças - vide, principalmente:Touraine (1973,1974, 1992,1994, 1997 e 2005). Touraine é, há mais de quatro décadas, uma das referências básicas no estudo sobre as ações coletivas dos movimentos sociais – tema que renovou as pesquisas na Sociologia nas últimas décadas do século XX, e a Sociologia Urbana em especial, por colocar em cena sujeitos sociais que protagonizam eventos denunciando as péssimas condições de qualidade de vida e de habitação no meio urbano, os efeitos do crescimento econômico voltado apenas ao lucro e aos interesses do capital imobiliário etc. Estes sujeitos gestaram também novas formas de sociabilidade e de soluções de desenvolvimento sustentável, criaram cooperativas de reciclagem de materiais, demandaram políticas que contemplem seus direitos culturais etc. O paradigma teórico de Touraine alicerça-se no que se convencionou chamar de “ciência da ação social”, denominado por alguns teóricos como accionalismo (Giddens, 1993: 645-647; Weisshaupt 1993). Sabemos que o accionalismo tem como um dos supostos básicos que: toda ação é uma resposta a um estímulo social. O axioma implícito enfatiza o comportamento social, ou seja, a conduta dos indivíduos e grupos em termos de conflito ou de integração. O objeto da teoria da ação social de Touraine é o sujeito histórico. O conceito central focalizado é o da ação coletiva e o tema da dominação tem grande importância. Touraine desenvolve uma análise da sociedade em termos geral e histórico. Entretanto, em sua análise geral há uma recusa à visão desta sociedade como sendo dominada pelas macroestruturas, por leis naturais de um sistema social ou por determinações de qualquer espécie. O que ele propõe é uma análise centrada no desempenho dos atores sociais enquanto sujeitos que atuam na sociedade mais geral, com suas culturas, pertencimentos e historicidade. Desde seus primeiros estudos ele elaborou uma teoria das condutas e 4 comportamentos sociais a partir da análise dos movimentos sociais, estes últimos vistos como elementos de um modo específico de construção da realidade social. Progressivamente ele passou a estudar também os sistemas e as mudanças sociais na sociedade, centralizando cada vez mais na análise o papel dos movimentos sociais. O sujeito dos movimentos analisado foi se deslocando ao longo da obra de Touraine, ou alternando-se - trabalhadores industriais (Touraine, 1955,1961 a-b e c, 1965, 1966, 1982, 1984), estudantes (1968, 1978, 2005), movimentos populares na América Latina e outras partes do globo(1973, 1976, 1987, 1988), movimentos antinucleares (1980), o movimento Solidariedade na Polônia (1992) movimentos de mulheres (1994b, 2005). A partir dos anos 90 aprofunda a análise crítica de temas como a modernidade, a democracia e os efeitos da mundialização/globalização (1992, 1994, 1997,1999,2000, 2005). “A crise da Modernidade”, título de um de seus livros mais conhecidos, demarca o debate de temas da atualidade para que possamos compreender o mundo contemporâneo e suas crises, especialmente nas grandes metrópoles: as diferenças sócio-culturais e religiosas, crise de valores, dificuldades de integração dos indivíduos na sociedade, os efeitos do desemprego e da segregação sócio-espacial sobre as populações imigrantes, a defesa dos direitos culturais e as resistências às diferenças, o choque e os conflitos de concepções como a defesa do republicanismo/universalismo frente aos particularismos/especificidades/ regionalismos/direitos comunais etc. Em 2005 Touraine retoma o tema da modernidade e afirma que os efeitos da globalização econômica tem produzido uma modernização extremada. Ele publica “Um Nouveau Paradigme- pour comprendre le monde d ´aujourd´hui” onde destaca o desaparecimento da sociedade como sistema integrado e portador de um sentido geral, a decomposição do social, a rejeição de valores tidos como universais e a emergência de reivindicações culturais trazendo à cena um neocomunitarismo - que apela ao sujeito pessoal, a reivindicação de direitos culturais, o crescimento do individualismo. (2005: 27). Analisa a guerra, a violência, a emergência do individualismo e do particularismo sobrepondo o universalismo, a criação de uma sociedade da informação operando via networks, com predomínio do capital financeiro; observa o perfil dos empresários que detém uma nova concepção de sociedade, construída sob um novo modo de conhecimento e investimentos que se viabilizam on line. Neste cenário os conflitos e as lutas deslocam-se 5 de problemas internos dos estados/nações para as estratégias transnacionais das redes financeiras. Surgem os movimentos anti e alter- globalização que lutam contra a direção da economia na sociedade, economia esta que gera desemprego e caos urbano tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos, dado os novos conflitos dos imigrantes face às novas políticas sociais. Em síntese, o paper objetiva sistematizar e destacar a contribuição e a atualidade de um sociólogo que há décadas tem colaborado na formação de toda uma geração de pesquisadores voltados para a análise das ações e manifestações coletivas da sociedade civil, especialmente aquelas que ocorrem no meio urbano. Estas manifestações e movimentos têm criado novos desenhos nas relações entre grupos e classes sociais, refletindo diretamente no território das cidades, nas suas formas de sociabilidades e de participação sociopolítica e cultural . 1- O sujeito coletivo na obra de Touraine A preocupação em destacar a questão do sujeito advém da importância desta categoria na análise da realidade social e a contribuição que Touraine nos dá para sua compreensão. Consideramos “sujeito” como uma categoria fundamental, que constitui e posiciona indivíduos na história dos processos sociais, culturais e políticos de uma sociedade. Ela confere protagonismo e ativismo aos indivíduos e grupos sociais, transforma-os de atores sociais, políticos e culturais, em agentes de seu tempo, de sua história, de sua identidade, de seu papel como ser humano, político, social; o sujeito é reconhecido- objetivamente, e reconhece-se - subjetivamente, como membro de uma classe, de uma etnia, parte de um gênero, uma nacionalidade, e muitas vezes de uma religião, culto ou crença. Os sujeitos se constituem no processo de interação com outros sujeitos, em instituições, privadas e públicas, estatais ou não. Sujeitos coletivos expressam demandas de diferentes naturezas, tem capacidade de interlocução com a sociedade, civil e política. Eles têm também a capacidade de propor ações, criam e desenvolvem uma identidade ao grupo que o compõe, baseada em crenças, valores compartilhados. A noção de sujeito coletivo tem a ver com a capacidade de se interferir nos processos sociais. Eles criam sistemas de pertencimentos. 6 Sabemos que, na análise dos processos de mudança e transformação social, a confusão ao redor do termo “sujeito” é grande; ele tem sido utilizado segundo diferentes concepções e paradigmas epistemológicos: no passado já significou agente histórico de processos revolucionários, depois esta interpretação foi negada por muitos como algo ultrapassado; foi substituído pela categoria ator social, ou foi mistificado, e banalizado. Na maioria das vezes, sujeitos e atores sociais são duas terminologias utilizadas largamente nas estratégias metodológicas de pesquisa que remetem a visões e paradigmas diferenciados dos processos e procedimentos da investigação. Touraine trabalha com as duas categorias: sujeito e ator, de forma articulada. Sua Sociologia se fundamenta na busca de compreensão da orientação que os atores dão a suas condutas, comportamentos, às suas ações em suma. Neste processo, os atores criam valores, dão uma historicidade à sociedade. Diferentemente de Weber que diz que a história que constitui uma classe, para Touraine, é a classe que dá historicidade à sociedade. “A análise do sujeito histórico será o objeto da ação de Touraine[...] O ator social, enquanto sujeito histórico, define a sociedade como um todo coletivo, orientado por valores de criação e de controle[...]Touraine identifica numa mesma problemática o sujeito histórico, sua consciência e suas obras” (Weisshaupt, 1993:12, 13). Touraine afirma que é difícil liberar a idéia de Sujeito das grandes tradições de pensamento e suas formas históricas. Ocorreram mutações sucessivas que o localizaram no campo das idéias políticas e das relações sociais de trabalho, antes de tornar-se, como ocorre hoje, associada à idéia de experiência de vida das pessoas, especialmente quando atuam em coletivos. A idéia universalista do Sujeito humano, definida no campo do direito, separada de toda experiência, foi, primeiramente, substituída pela idéia de classe particular, carregada de uma missão universalista de libertação. Ele diz que este apelo fundou poderes absolutos, muitas vezes totalitários, a exemplo do que nos demonstrou M. Foucault. Para Touraine, na história moderna, a idéia de sujeito é constituída por tendências opostas, observa-se à emergência do Sujeito pessoal e também a influência crescente de um poder moralizador e normatizador a partir das instituições. Ele nos lembra que, quando se falava do homem e seus direitos, na época das revoluções, falava- se da cidadania mas havia também o terror. Na época, a defesa dos direitos dos trabalhadores engendrou o sonho de 7 uma sociedade mais justa e igualitária mas desembocou também em cerceamento das liberdades políticas em nome da liberdade social. A idéia de Sujeito esteve, para Touraine, sempre associada estreitamente a um princípio superior de inteligibilidade e de ordem, segundo concepções históricas, religiosas, filosóficas e políticas do Sujeito. Por isso, na atualidade, muitos declararam a morte do Sujeito, desse sujeito único, superior. Ele vê o nascimento do Sujeito pessoal no processo de decomposição daquele Sujeito coletivo abstrato. Para Touraine, na atualidade, o Sujeito é o ator que luta pela produção de si próprio, de sua história de vida individual, sua ação se traduz no esforço do indivíduo para transformar experiências vividas em construção de si mesmo, como ator. Ele busca a afirmação de sua própria liberdade contra as ordens sociais. É uma luta sua, baseada em seu trabalho pessoal e em sua cultura. A consciência que tem de si mesmo o ajuda a desprender-se das influências sofridas. Transforma- se em consciência de si, ele é uma força de libertação. "O Sujeito não tem outro conteúdo que a produção de si mesmo" (Touraine, 1997: 21), em um mundo em mudança permanente e incontrolável. O Sujeito é uma afirmação de liberdade contra o poder dos estrategistas e seus aparatos (os verdadeiros detentores do poder na atualidade), ou para se proteger contra a ditadura de comunidades autoritárias. O Sujeito é aquele que resiste às ideologias que querem adequá-lo ao mundo ou à comunidade. Neste sentido, o apelo ao Sujeito é a única resposta à dissociação entre a economia e a cultura operada pela globalização. Ele conclui dizendo: "Afirmação de liberdade pessoal, o Sujeito é também, e ao mesmo tempo, um movimento social” (1997:21). “A idéia de sujeito não se opõe à de indivíduo, mas ela é uma interpretação muito particular dele[...]quando eu falo do Sujeito, isto é, da construção do indivíduo como ator, é impossível separar o indivíduo de sua situação social” (Touraine, 1994b: 248 e 280). Há um princípio básico para o entendimento do papel do Sujeito em Touraine. Os "indivíduos só se transformam em Sujeitos por meio do reconhecimento do outro, um Sujeito que trabalha, a sua maneira, para combinar uma memória cultural com um projeto instrumental" (1997: 21). Ou seja, combina-se uma pertença herdada, como cor, etnia, sexo etc.; ou a resistência a uma dada regra, norma ou outro constrangimento sócio-cultural, político ou econômico; ou ainda a busca de distanciamento de certas situações ou circunstâncias, com a luta para 8 demarcar espaço na sociedade, nos diferentes campos da vida social. Luta-se por cotas nas universidades, espaços nos concursos públicos ou no mercado de trabalho em geral. Num mundo competitivo/excludente, isso agrega valor ao indivíduo. A idéia de Sujeito, posta nestes termos, governa a idéia de "Comunicação Intercultural". O conjunto dessas idéias nos fornece a resposta a uma pergunta básica de um dos livros de Touraine, já na segunda metade dos anos 90 “Como poderemos viver juntos, em uma sociedade cada vez mais dividida entre redes que nos instrumentalizam e comunidades que nos encerram e impedem que nos comuniquemos com os outros”? Touraine desenvolveu também a idéia de que tanto o Sujeito pessoal, como a necessária comunicação intercultural entre os Sujeitos deve ter "Proteções Institucionais", ou seja, a liberdade do Sujeito deve estar assegurada por instituições que estejam a seu serviço, recolocando uma idéia antiga - da democracia como vontade geral, pela idéia de instituições a serviço da liberdade do sujeito, e a necessidade da comunicação entre os Sujeitos num mundo cada vez mais globalizado. Isso gera, para Touraine, uma Política do Sujeito, que se aplica em domínios importantes como o da educação, representando o que se pode chamar de "Escola do Sujeito". (Touraine, 1997: 22). Disso resulta que, para Touraine, “não podemos viver juntos” combinando a unidade de uma sociedade com a diversidade das personalidades e as culturas, se não colocarmos a idéia do papel do Sujeito pessoal no centro de nossas reflexões e de nossas ações. "O sonho de submeter todos os indivíduos as mesmas leis universais da razão, da religião ou história sempre se transformaram em pesadelos, em instrumento de dominação; a renúncia a todo princípio de unidade, a aceitação de diferenças sem limites, conduz a segregação ou a guerra civil" . Para sair desse dilema, Touraine propõe tratar o Sujeito como uma combinação de uma identidade pessoal e como afirmação de sua liberdade e responsabilidade. Somente com este enfoque poderemos viver juntos, iguais e diferentes. Ele também defende que se deve conceber novas formas de vida coletiva e pessoal porque ninguém, indivíduos ou instituições, podem ter a certeza de que seu êxito no passado o capacitará para compreender e dominar as novas formas de vida pessoal e coletiva. 2. Alain Touraine, o Accionalismo dos Atores Coletivos e os Movimentos Sociais Alain Touraine trabalha com o tema dos movimentos sociais na Europa e em outras partes do mundo há muitas décadas. Dada sua importância e a sua contribuição específica 9 sobre os movimentos sociais, faremos uma breve reconstrução de sua análise sobre o tema, com destaques para a trajetória histórica desta produção. Observaremos que ele não só acompanhou a trajetória das ações coletivas no mundo ocidental como produziu e interferiu no debate sobre os rumos destas ações na sociedade e na política. Até chegar aos supostos destacados acima, sobre o papel do sujeito individual no mundo moderno, e sua articulação com sujeitos coletivos, houve uma trajetória de acompanhamento e análise dos movimentos sociais, especialmente movimentos que ocorrem nas grandes cidades. Para ele, a idéia de sujeito se liga com a de movimento social.E essa idéia contém duas afirmações centrais: a primeira é que o sujeito é vontade, resistência e luta, e não experiência imediata de si (não se trata também da vida interior do Sujeito). A segunda idéia é que não há movimento social possível a margem da vontade de libertação ou liberação do sujeito. O Sujeito não é uma reflexão do indivíduo sobre si mesmo, seu interior ou o espelho de sua intimidade. Ele é ação, é um trabalho, que nunca coincide com a experiência individual. A experiência a que ele se refere é a coletiva, o aprendizado a partir do coletivo. Touraine questiona as interpretações tradicionais que atribuem, a priori, papéis determinados às classes dominadas (ou o povo, categoria genérica dos que não tem poder ou estão em posições subordinadas). Acredita-se (e espera-se) que ele, povo, se levante contra a dominação e a exploração, tidas como intoleráveis. Ele assinala que nesta visão o movimento social sempre se subordina a uma ação e a uma consciência vinda de fora. Mesmo o movimento operário se subordina a direção de um partido político. Nestes estudos, a elite intelectual - política seria a única que sabe interpretar o sentido da História, submeter às práticas sociais à razão, tornar realidade o progresso. Ele afirma que a História nos demonstra que foram movimentos sociais que buscaram superar contradições e criaram um sujeito coletivo (religioso, comunitário, político ou de classe). Na concepção tradicional o movimento social sempre busca abolir a relação de dominação, fazer triunfar um princípio de igualdade, criar uma nova sociedade que rompa com as formas antigas de produção, gestão e hierarquia. Touraine acha que esta concepção se corrompeu e se degradou. Os princípios morais se destacam. Com isso Touraine concluiu: “Um movimento social é sempre um protesto moral; coloca -se por cima da sociedade para julgá-la ou transformá-la, e não no centro para manejá-la e orientá-la no sentido que exigem a Razão ou a História." (1997:79). Por isso o protesto dos estudantes 10 em Maio de 68, ou das mulheres, sempre foi baseado num discurso igualitário de tipo republicano ou socialista, impregnado de valores que dizem respeito à cultura e a personalidade. Disto tudo ele conclui: o Sujeito não é portador de um modelo ideal de sociedade, temos que encontrar o Sujeito pessoal no Sujeito histórico (e também no religioso), que sempre está presente no centro das visões de sociedade e de mundo. 3. A trajetória da construção do conceito de Movimento Social em Touraine Data dos anos 60 do século XX as primeiras produções de destaques de Touraine sobre os movimentos sociais. Ele partiu da noção de projeto para criar uma teoria sobre os movimentos sociais. Jean - Paul Sartre também havia escrito a respeito da categoria projeto e as pesquisas sociológicas em geral preocupavam-se com a questão do projeto das classes sociais. Touraine estava estudando o comportamento da classe trabalhadora, o grande tema que ocupava as atenções dos sociólogos em geral. Guilhon de Albuquerque (1977) sintetiza a posição de Touraine a esse respeito. "Projeto é usado por Touraine num sentido teórico, não designa, portanto, uma coisa mas um conceito, um conhecimento. Esse conceito não expressa o conhecimento de uma coisa, nem de um indivíduo, nem de uma propriedade de um indivíduo. O termo projeto expressa um tipo de ligação entre as propriedades observáveis de indivíduos. A noção de projeto refere-se ao fato de que, em uma situação dada, a possibilidade do ator dar sentido às suas próprias condutas permanece sempre aberta, por oposição ao sentido já dado no sistema social". Observa-se portanto que o mérito da abordagem de Touraine residia na importância conferida aos sujeitos na história, como agentes dinâmicos, produtores de reivindicações e demandas, e não como simples representantes de papéis pré-atribuídos pelo lugar que ocupam no sistema de produção. O dinamismo dos sujeitos/atores é visto em termos culturais, de confronto de valores (uns são afirmados e outros reivindicados). Estes elementos são denominados por Touraine como "dialética de criação e controle" afirmando que eles se fundam a partir de hipóteses levantadas por Marx, sobre o funcionamento econômico da sociedade. O movimento social apresenta-se na abordagem accionalista como a ação de um grupo, um ator coletivo. Para tal é necessário que ele "se defina por sua situação nas 11 relações sociais de produção, isto é, que ele situe suas reivindicações e sua oposição a um grupo adversário no interior dos problemas de sociedade industrial”. Ainda nos anos 60, Touraine afirmava que só existe movimento social se houver combinação de três dimensões essenciais: classe, nação e modernização. Estas três dimensões da chamada ação coletiva abrangiam movimentos de natureza diferenciada, os quais ele denominava de movimentos políticos. A partir da abordagem influenciada pela teoria dualista da modernização, Touraine assinalava que todo movimento social é ao mesmo tempo um movimento de classe, um movimento anticapitalista, oposto à dominação estrangeira, e voltado para a integração e modernização nacional. A nação era um elemento presente todo o tempo na análise do autor, principalmente quando aborda as chamadas "sociedades dependentes", e esta idéia conferia um esvaziamento às lutas entre as classes antagônicas da sociedade. Em texto publicado na França nos anos 70, Touraine dedicou-se à análise dos movimentos sociais nas sociedades dependentes em termos comparativos aos movimentos sociais das sociedades dominantes. A industrialização é um elemento básico nesta análise desde que o "modelo" teórico subjacente é o dualismo entre as esferas do rural e do urbano, da Teoria da Modernização. Ele afirma que nas sociedades dependentes a industrialização é introduzida e dirigida por uma burguesia estrangeira, através de sistema de intercâmbios internacionais. Enquanto nas sociedades dominantes ganham importância os movimentos sociais contestatórios, em nome dos direitos do trabalho, ao contrário, nas sociedades dependentes "o fato mais visível é a coexistência, sem verdadeira integração, dessas diferentes formas de ação coletiva dos movimentos sociais, de um lado, e da ação crítica de outro"(Touraine,1977:33). Segundo ele, faltava aos movimentos das sociedades dependentes, unidade nas ações; eles eram frágeis, heterogêneos, dilacerados internamente e tendem à fragmentação. Apresentavam-se como projetos, intenções. Sua consciência era defensiva e contestatória devido ao "atributo" fundamental da sociedade dependente: o dualismo estrutural. Devido às causas assinaladas, Touraine concluía que: "nas sociedades dependentes, o único agente capaz de aglutinar as forças presentes nos movimentos populares é o Estado, enquanto força política exterior, agente unificador de uma sociedade cortada em dois" (Touraine,1977:37). 12 Nos anos 70, Touraine afirmou que os movimentos sociais são sempre, em última análise a expressão de um conflito de classes. Por outro, eles possuem um duplo caráter: defensivos e contestatórios, isto é, contra-ofensivos. Ele afirmou também que todo movimento social é voltado para uma ação crítica e esta repousa sobre a contradição e não sobre o conflito. Em 1973 ele estabeleceu uma distinção entre movimentos sociais e lutas históricas. Estas últimas resultam de modificações advindas dos movimentos sociais. Em 1968 Touraine publica “ Le mouvement de mai ou le communisme utopique”, um estudo sobre o movimento dos estudantes na França. Em 1973 publica o livro “Production de la Societé” onde há um capítulo sobre os movimentos sociais que foi um marco referencial na sua produção e para muitos estudantes do tema na época, especialmente em países da América Latina que viviam sob o jugo de ditaduras militares e aspiravam a reconstrução dos processos democráticos. Ele coloca também a questão da reflexividade na análise social dos movimentos. Touraine destaca três elementos construtivos em um movimento social: o ator, seu adversário e o que está em jogo no conflito. Existiam três princípios de interpretação dos movimentos sociais - identidade, oposição e totalidade. Eles "reagrupam, ao nível da ação coletiva, a dialética de criação e controle situados, desta vez, imediatamente ao nível dos problemas da sociedade industrial (princípio de totalidade). Isto permite à análise reencontrar, por trás da ação coletiva, o projeto pessoal dos atores individuais. São portanto três os princípios que se encontram na base do modelo explicativo de Touraine sobre os movimentos sociais: o de totalidade, de identidade e o de oposição. “O sujeito histórico (princípio de totalidade) pode ser, e é, reivindicado particularmente (princípio de identidade) embora todos, quer dizer os outros também (princípio de oposição) sejam, efetivamente, o seu portador.” (Weisshaupt, 1993: 20). Na obra “Production de la societé” Touraine distingue um grupo de pressão de um movimento de idéias ou de movimentos reivindicativos, pelos tipos de princípios que os orientam. Somente movimentos sociais desenvolvem os três princípios. O movimento social dá resposta as perguntas: Quem somos? Quem são nossos inimigos? Porque ganharemos a luta, guerra ou batalha? 13 Para Touraine os movimentos sociais são frutos de uma vontade coletiva. "Eles falam de si próprios como agentes de liberdade, de igualdade, de justiça social ou de independência nacional, ou ainda como apelo à modernidade ou a liberação de forças novas, num mundo de tradições, preconceitos e privilégios" (Touraine,1978:35). Eles, movimentos, não seriam heróis coletivos, acontecimentos dramáticos ou excepcionais; nem elementos ou forças novas na sociedade. São simplesmente partes do sistema de forças sociais dessa sociedade, disputando a direção de seu campo cultural. Eles não são, em si mesmos, agentes negativos ou positivos da História, do processo de modernização, ou da libertação da humanidade. Eles são fruto de uma relação de produção e organização social, uma relação dupla - de identidade e de oposição e não se dirigem fundamentalmente contra o Estado, pois não são lutas por meras conquistas de poder. Estas afirmações, nos anos 70, afastaram muitos pesquisadores latino-americanos das obras de Touraine, especialmente no Brasil. Isto porque o momento conjuntural do país era de crença e esperança no poder de reorganização da sociedade civil, via movimentos populares de base, atribuindo-lhes o papel de novos sujeitos históricos, num sentido que não cabia nas análises de Touraine. Ele assinalava ainda que seria um erro ver os movimentos como agentes de mudança histórica ou forças de transformação do presente e construção do futuro. Afirmava que os movimentos não são, em si mesmos, agentes negativos ou positivos da história, do processo de modernização, ou da libertação da humanidade. Eles são fruto de uma relação de produção e organização social, uma relação dupla - de identidade e de oposição e não se dirigem fundamentalmente contra o Estado, pois não são lutas por meras conquistas de poder. Um movimento social é ao mesmo tempo um conflito social e um projeto cultural. Touraine discordava (e discorda ainda) da tese que atribuí aos movimentos uma racionalidade instrumental dirigida. 14 É interessante recuperar também a concepção de Estado de Touraine pois ela contribui para esclarecer sua abordagem sobre os movimentos sociais e a recusa de alguns pesquisadores latino-americanos, nos anos 70 e parte dos 80, em relação sua abordagem, Estes últimos confundiam governo com Estado e viam no Estado o grande inimigo a ser combatido. Os regimes militares, que instauraram governos com ditaduras autoritárias em vários países da América Latina, eram vistos como “o problema”, e a solução estava na organização da sociedade civil, na participação e desenvolvimento da consciência social. Os movimentos eram vistos “contra o Estado”. A expressão “de costas para o Estado” tornou-se um jargão em muitos estudos. Para Touraine, numa concepção até próxima de Gramsci, o Estado não seria apenas monopólio da violência e da busca da legitimação, embora ele tenha sempre vínculos com a classe dirigente. Ele é também agente de transformação histórica por dirigir as mudanças organizacionais - que são também mudanças institucionais. Portanto, para Touraine, o Estado não é apenas aparelho de poder. É um agente social de reação e de transformação, uma força social de mudança histórica. Nesse sentido, o Estado ao responder a um movimento social estaria repondo a ordem e abrindo caminhos para a mudança através da institucionalização de novas formas de relações. Os movimentos teriam, para Touraine, o papel mais de agente de pressão social do que ator principal das transformações sociais propriamente dita. Ao mesmo tempo, Touraine assinalava que os movimentos eram as forças centrais da sociedade por serem sua trama, o pulsar da sociedade, o seu coração. Considerava seu estudo como fundamental para entender o processo de mudança no mundo, mas isto não significa que eles sejam agentes ou forças privilegiadas deste processo. São forças culturais indispensáveis. Suas lutas não são, a priori, elementos de recusa, marginal à ordem, mas, ao contrário, podem ser de reposição da ordem. Ele chegou a postular que a Sociologia contemporânea seria o estudo dos movimentos sociais pois trata -se de um objeto de análise que trás o ator social de volta, ator este que estava em crise desde as críticas e a descrença sobre a existência de classe social com uma missão histórica- o proletariado- visto como agente e ator por excelência das mudanças históricas. (Touraine, 1984). Assim sendo, uma teoria dos movimentos deve ser construída, para Touraine, ao redor das ações coletivas, das representações e lutas dos atores. Eles devem ser vistos dentro de uma teoria mais geral que é a teoria dos conflitos. Nesta, existiriam seis 15 categorias básicas de conflito: os que perseguem interesses coletivos, os que se desenrolam ao redor da reconstrução da identidade social, cultural ou política de um grupo; os que são forças políticas que buscam a mudança das regras do jogo; os que defendem o status quo e os privilégios, os conflitos derivados da busca de controle dos principais modelos culturais; e os conflitos derivados da busca de construção de uma nova ordem social. Para Touraine os movimentos sociais derivam fundamentalmente dos conflitos ao redor do controle dos modelos culturais (Touraine,1985). Nos anos 80 Touraine aprofunda seus estudos sobre os movimentos sociais concentrando-se em questões metodológicas, cria um método de investigação sobre como pesquisá-los e analisá-los empiricamente. Ele aperfeiçoa e desenvolve com a cooperação de Michel Wieviorka, e outros, o método da Intervenção Sociológica onde busca resgatar a trajetória de movimentos sociais (1882, 1984). Como exemplo podemos citar suas pesquisas sobre o sindicato Solidariedade na Polônia, ou a ação de grupos extremistas na Itália, as Brigadas Vermelhas. O método preconiza uma situação de interação entre o entrevistador e o entrevistado, por um certo período de tempo, dividido em etapas. Procurase reconstruir os fatos e captar as explicações que os atores das ações formulam por terem agido de uma determinada forma. A metodologia visava, fundamentalmente, criar condições de distanciamento ideológico entre o pesquisador e o objeto da análise. Em 1985 Touraine destacou que: “muito freqüentemente, os autores, enquanto pensam que eles estão descrevendo ações coletivas ou eventos históricos, expressam cruamente suas próprias opiniões…é indispensável comparar nossas próprias categorias com outros tipos de construção da realidade social….O problema, entretanto, não é perseguir uma objetividade pura, abstrata, mas colocar os limites da ideologia e fazer discussões entre os cientistas sociais mais significativos submetendo nossos trabalhos à crítica” (Touraine,1985:750-751). O tema da objetividade é um outro elemento que explica a não utilização das análises de Touraine, no Brasil, nos anos 70 por muitos pesquisadores nacionais que trabalhavam com a temática dos movimentos sociais. Vários destes pesquisadores participavam dos movimentos, como assessores pedagógicos ou mediadores, seguindo os 16 supostos de Paulo Freire da “Pedagogia do Oprimido” , que preconizava a participação dos intelectuais como mediadores nos círculos de cultura. E Touraine afirmava que um militante não poderia analisar o movimento do qual fazia parte. Ainda nos anos 80 Touraine publicou “Le Retour de l’ Acteur” (1984) e um livro enfocando a América Latina “Palavra e Sangue” (1989). Neste último, ele reafirma que os movimentos sociais ocupam lugares centrais na sociedade, lugares onde tende a se formarem os conflitos mais centrais, onde a capacidade dos homens de fazer a história atinge seu ponto mais elevado. Eles levam a formação de atores sociais (Touraine, 1988:285). A reflexão sobre alguns tipos de movimentos sociais latino-americanos foi outra contribuição de Touraine em “Palavra e Sangue”, onde ele abordou os movimentos camponeses, indígenas, messiânicos, étnicos, movimentos de reivindicações urbanas, o comunitarismo religioso, movimentos de lutas nacionais etc. Todos eles são analisados como lutas gerais entre adversários e apresentam vários tipos de condutas: reivindicativas, revolucionárias, populistas e comunitaristas. Na realidade, progressivamente, o tema dos movimentos sociais ganhou, na obra de Touraine, não apenas maior importância mas ele o elegeu como o centro de estudo da própria Sociologia. Esta disciplina passou a se organizar, em seus livros, ao redor do conceito de movimento social. Mas Touraine vê várias limitações nos movimentos, entre elas sua subordinação à ação do Estado. Na ocasião ele atribuía ao Estado o papel de ator principal porque seu próprio papel seria o de manter a continuidade da sociedade por meio de suas mudanças econômicas e sociais, sendo o principal agente de desenvolvimento social, intervindo na própria sociedade civil. As lutas históricas são vistas como conflitos sociais em situação de mudança, e as modificações nos próprios movimentos são vistas como resultado da intervenção do Estado Os elementos constitutivos dos movimentos sociais foram ligeiramente reformulados nos anos 80 em relação aos anos 60. Eles seriam: a definição do próprio ator social, a de seu adversário, do campo de disputa e do campo de seu conflito. Touraine continuou analisando a sociedade e os movimentos em termos de classes e conflitos sociais. Um detalhe curioso a ser registrado é: alguns pesquisadores norte-americanos consideravam Touraine como um autor marxista. Trata-se de uma polêmica que na 17 atualidade não faz mais o mínimo sentido mas é importante ser registrada porque ela explica, em parte, porque houve um grande silêncio sobre a produção de Touraine na maioria da produção sociológica norte-americana sobre os movimentos sociais até o a metade dos anos 80. Somente nos anos 90 e primeiros anos dos 2000, Touraine passa a ser ponto de diálogo na produção norte-americana. Atualmente ele integra a Academia de Ciências de Nova York, realiza seminários na New School University etc. Para nós, latinoamericanos, Touraine sempre esteve mais próximo de Weber do que de Marx, mas sempre dialogou com este último em seus trabalhos.Sempre realizou análises contemplando a totalidade e tratou do tema dos conflitos sociais. Touraine afirma que os movimentos opõem uma classe à outra, uma categoria social à outra. Diferentemente do paradigma norte-americano predominante na abordagem sobre os movimentos sociais, que enfatiza a teoria da Mobilização de Recursos, Touraine não se preocupa com a intencionalidade dos atores, os motivos que os levam a se engajar em ações coletivas. Sua preocupação é entender a dinâmica de um dado processo social onde há a presença de movimentos.Os movimentos são ações orientadas para interações entre adversários em conflito de interpretações e modelos societais opostos, assim como campos culturais divididos, separados. Os movimentos sociais são ações coletivas que se desenvolvem sob a forma de lutas ao redor do potencial institucional de um modelo cultural, num dado tipo de sociedade. Assim os conflitos sociais entre os atores devem ser entendidos em termos normativos e culturais. Cohen e Arato (1992) distinguem três pontos na abordagem de Touraine em relação à tradição clássica norte-americana. Primeiro: ele não aceita a tese da anomia social. Segundo: ele vê os movimentos não como fatos excepcionais ou anormais mas como criadores de vida social, por meio de suas práticas, normas e instituições. Terceiro, diferentemente de Parsons, Touraine não vê as orientações culturais de uma dada sociedade como incontestavelmente dadas. Ele argumenta que o caminho que uma sociedade se utiliza para institucionalizar suas orientações culturais envolvem conflitos e relações sociais de dominação.(Cohen, Arato,1992:514). Touraine atribuí importância à sociedade civil, num sentido contrário ao que lhe dá Arato. Para Touraine, não se trata de reafirmar a sociedade civil mas de negar certas práticas existentes nesta. É a sociedade civil que, prioritariamente, os movimentos estão 18 questionando, tentando mudar suas orientações culturais, e não o Estado ou o mercado. A sociedade civil focaliza a ação coletiva dos agentes sociais e aí os movimentos sociais são os grandes destaques. Observa-se que para Touraine a sociedade civil é um espaço de disputas, de lutas e de processos políticos. É o espaço onde se localiza o processo de criação de normas, identidades, instituições e relações sociais de dominação e de resistência, porque ela tem uma capacidade de auto-reflexão. E é esta capacidade que é importante ser analisada nos movimentos sociais e não o seu repertório de suas ações. Ainda segundo Cohen e Arato, Touraine: “faz uma sociologia da ação social quando trata dos novos movimentos sociais mais ele não formula uma teoria da sociedade civil. Fica-se num dilema: interpretar os movimentos segundo a lógica estratégica da organização - envolvendo a pressão de grandes estruturas como o Estado e a economia; ou opta-se por uma ênfase sobre a identidade, as normas, os modelos culturais e as formas associativas articuladas pelos próprios atores, ou instituições da sociedade civil [...] cria uma hierarquia das formas de lutas sociais, uma espécie de tipologia sem desenvolver uma teoria da auto-reflexão.” (Cohen e Arato, 1992:520). Scott (1990) também fez várias críticas à teoria de Touraine afirmando que suas formulações falham porque ele subordina o significado empírico das atividades dos movimentos sociais a uma teoria de desenvolvimento societal, caindo nos mesmos erros de teorias que ele critica. Scott conclui que Touraine também tem uma análise normativa onde se observa que há um agente social privilegiado: os movimentos sociais (Scott, 1990: 06). Nos anos 90 Touraine volta-se para a reflexão sobre a sociedade em geral e os rumos da humanidade. Publica “Critique de la Modernité” (1992) e revê sua teoria sobre os movimentos em função de transformações provocadas pela globalização e, fundamentalmente, as mudanças no sistema capitalista e as transformações na sociedade e no mundo do trabalho. Partindo de uma concepção de movimento social como uma representação geral da vida social, antes que um tipo particular de fenômeno social, Touraine assinala que esta representação difere da imagem liberal que vê a sociedade 19 como um mercado aberto, assim como daquela que a identifica com um poder central ou uma série de mecanismos implacáveis para manter a ordem social. Ele identifica uma crise na noção de movimento social advinda de mudanças na natureza do conflito social, nesta etapa da globalização. No século passado, e boa parte deste século, a lógica deste conflito esteve guiada pelos interesses antagônicos entre a burguesia e os trabalhadores. O processo de trabalho era o espaço onde as relações entre as duas categorias se desenvolviam. As recentes transformações da era da globalização levaram Touraine a assinalar a perda da importância do processo de produção, a transformação do mundo do consumo como o grande espaço de socialização das relações sociais, a importância das comunicações etc. Estas mudanças têm levado ao crescimento do individualismo - os indivíduos passam a estar mais centrados em si próprios, sobre seus desejos e interesses ligados a saúde, educação, lazer etc. As demandas não estão organizadas em torno de um princípio central. Há uma dissociação entre o mundo dos negócios e o mundo da cultura. Das lutas sociais, Touraine assinala que, o que restou foi à luta contra o totalitarismo, em suas várias formas. Touraine argumenta nos anos 90 que a idéia de movimento social é mais apropriada para países que têm experimentado o desenvolvimento capitalista genuíno. Os movimentos opõem atores da sociedade civil, pressupondo não somente que a sociedade civil seja distinta do estado (Touraine,1994 b: 380). Tanto na “Crítica da Modernidade” como em “Qu´est-ce que la Democratie” , Touraine retoma a tese do sujeito (histórico) afirmando: “o sujeito só existe como movimento social, como contestação da lógica da ordem , tome esta uma forma utilitarista ou seja simplesmente a busca da integração social” (Touraine,1994 b:249). Ele explicita suas diferenças em relação a Marx afirmando que: “a noção de movimento social deve tomar o lugar da noção de classe social” [.. ...] “não se trata mais de lutar pela direção dos meios de produção e sim sobre as finalidades das produções culturais que são a educação, os cuidados médicos e a informação de massa”[...] “As novas contestações não visam criar um novo tipo de sociedade, menos ainda libertar as forças de progresso e de futuro, mas ‘mudar a vida’, defender os direitos dos homens, assim como o direito à vida pelos que estão 20 ameaçados pela fome e pelo extermínio , e também o direito à livre expressão ou à livre escolha de um estilo e de uma história de vida pessoais” (Touraine, 1994 a:257-260-261-262). Ele concluí afirmando que os movimentos sociais mobilizam princípios e sentimentos. O que está em crise, e em vias de desaparecimento, é o papel dos partidos políticos como representante da necessidade histórica, acima dos atores sociais e muitas vezes contra eles. Os novos movimentos sociais falam mais de uma autogestão que de um sentido de história e mais de democracia interna do que de tomada de poder. Cabe aos intelectuais, e em especial aos sociólogos, como novas tarefas, resgatar sua tradição, “descobrir o que está oculto, sair de si mesmo e de seu meio para restabelecer a distância com o objeto estudado”[...] “Descrever e analisar os modelos culturais, as relações e os movimentos sociais que lhes dão forma, as elites políticas e as formas de mudança social que agitam o que pode aparecer por um breve instante como um mundo além da historicidade” (Touraine,1994a:267/268). Curiosamente, desta forma, Touraine reaproxima-se dos pesquisadores latinos que estavam distantes dele nos anos 70. Estes pesquisadores também elaboraram uma crítica ao desenrolar dos acontecimentos políticos nos países latino-americanos, nos anos 70 e 80, e passaram à análise dos movimentos a partir de um olhar externo, de fora, com um certo distanciamento, e não mais a partir de dentro, como um de seus membros coadjuvantes, assessores etc. 4- A visão de Touraine sobre os movimentos sociais na atualidade Em 1996 Touraine afirmou que hoje temos que revisar o conceito de movimento social não apenas em relação há 100 anos atrás, ou em relação apenas ao movimento dos trabalhadores, mas revisá-lo na produção recente, dado as mudanças e o impacto da globalização na territorialidade e na soberania das nações; a crise e o declínio das instituições; as tensões individuais e dos grupos sociais entre o que eles querem ser, (seus valores) e o que realmente são na sociedade. (1996 a e 1998 a). Ele passou a enfatizar a importância do político/cultural na análise das ações dos movimentos e volta-se novamente ao estudo dos mesmos na América Latina. Ele escreveu; “hoje, vemos os movimentos sociais e culturais voltarem-se ao sistema político para firmarem alianças e contribuir ao renascimento de uma vida política que, seja no caso do México ou da Colômbia e mesmo da 21 Venezuela, atingiu um grau avançado de decomposição. Aqueles que vêem na ação dos zapatistas de Chiapas um novo surto guerrilheiro, responsável por criar de forma esporádica focos de violência nas várias partes do território mexicano, enganam-se profundamente. A ação armada não é mais essencial para os zapatistas; o que importa a Marcos e aos demais líderes do movimento é desempenhar um papel decisivo na transformação do sistema político.” (Folha de São Paulo, Caderno MAIS 13/10/1996, p.3). Em 1997 Touraine elabora novas contribuições para uma teoria sobre os movimentos sociais tratando dos temas da igualdade e da diferença. No livro "Podremos vivir Juntos" (1997), ele afirma que: "a noção de movimento social só é útil se permite por em evidência a existência de um tipo muito específico de ação coletiva, aquela pela qual uma categoria social, sempre particular, põe em questão uma forma de dominação social, por vez particular e geral, e invoca contra ela valores, orientações gerais da sociedade que comparte com seus adversários para privá-lo de tal modo de legitimidade. A importância dos movimentos sociais obedece a seu lugar na vida social, não somente estão no centro ou no topo da sociedade: sua presença ou ausência determina quase todas as formas de ação social (Touraine, 1997: 132). Touraine destaca que todo movimento social tem duas vertentes: Uma é utópica, a outra é ideológica. Querem mudar a vida mas também querem transformar a sociedade. Longe de ser um personagem profético, um movimento social é um conjunto mutável de debates, tensões e desgarramentos internos. Vive entre a expressão da base e os projetos políticos dos dirigentes. E são escritores e oradores - a margem do movimento é quem proclama o sentido da ação coletiva e se referencia a ele (que o fazem, o torna um movimento social). (Touraine, 1997:104). Dada a proliferação de ações coletivas no mundo todo, protestando contra os efeitos da globalização, buscando suas afirmações identitárias, patrocinadas por ONGs e/ou programas institucionais para mobilizar grupos sociais ao redor de determinados projetos, 22 ou programas sociais advindos do chamamento de políticas sociais públicas, Touraine lembra-nos que um movimento social é mais que um grupo de interesse ou um instrumento de pressão política; ele (movimento) põe em questão o modo de utilização social de recursos e modelos culturais. O que constitui um movimento societal é verdadeiramente a associação de um chamamento moral e um conflito diretamente social, e portanto, que opõe um ator socialmente definido a outro. (Touraine, 1997:108). Todo movimento social se manifesta por meio de um projeto e quer obter resultados e se mantém , no coração das negociações que conduz, como um núcleo de impugnação permanente. Observa-se que o modelo inicial básico de análise dos movimentos, criado nos anos 60, se mantém. Em "Poderemos viver Juntos" Touraine apresenta também uma nova nomenclatura para classificar os movimentos sociais em: societais, históricos, culturais (embora esses termos possam não ser excludentes). Ele chama de movimentos societais aqueles que questionam orientações gerais da sociedade. Já os movimentos históricos não se opõem aos donos de uma ordem social estável senão as elites que dirigem a mudança. Põem em questão mais uma elite que uma classe dirigente. Opõem o povo às elites; os que sofrem as mudanças e os que a dirigem (o movimento antiglobalização ele o classifica nesta categoria). Os movimentos culturais são movimentos de afirmação mais do que de impugnação (ou contestação). Eles levam em si mesmo um trabalho de subjetivação, e são movimentos de liberação, ainda quando estejam animados por uma imagem pessimista da humanidade, como sucede com freqüência nos movimentos de reforma religiosa (Touraine, 1997:115). São atravessados por conflitos sociais entre liberalização cultural e a afirmação de direitos específicos de ator cultural. Para Touraine, os movimentos culturais mais importantes da história foram os religiosos. Atualmente são os das mulheres, da ecologia política e os de defesa de minorias (étnicas, nacionais, morais, religiosas). Eles mobilizavam categorias. Não são definidos socialmente. Os novos movimentos culturais – apelam ao sujeito mesmo, a sua dignidade ou a sua auto-estima como força de combinação de papéis instrumentais e uma individualidade. Supõe uma especificidade psicológica e cultural e sua capacidade de criação funda –se sobre a razão dos indivíduos. A identidade não se constrói pela identificação com uma ordem do mundo, um grupo social ou uma tradição cultural, e nem 23 sequer com a própria individualidade. Forma-se, ao contrário, por “desindentificação”, por um chamamento a si mesmo. (Touraine, 1997: 112/113) Movimentos culturais e movimentos históricos estão mais presentes na sociedade atual que os movimentos societais (embora haja possibilidade de resistência contra as estratégias de mercado, a exemplo: educandos contra um sistema de ensino, saúde contra uma reforma, cidadãos contra um programa de TV etc). Touraine considera que na atualidade muitos movimentos culturais se converteram em movimentos morais e eles têm a importância que tiveram no passado os movimentos religiosos, políticos e economicistas - isto porque há uma inversão de perspectiva que desorientou os movimentos sociais. Eles não podem mais se ligar exclusivamente a uma utopia única, forte, não pretenderem abolir a História em curso e remontar um novo processo, ou apresentarem -se como um novo princípio fundador. Ao contrário, hoje eles se dirigem diretamente contra os poderes que dominam o universo da instrumentalidade (dada pelo mercado e órgãos financeiros) e pela identidade (que buscam preservar ou construir). O novo sujeito histórico não pode alienar-se da ordem existente (Touraine, 1997:103). Entretanto, Touraine vê com cautela a entrada destes Sujeitos para lutar pela reforma desta ordem, ou inserir-se nos problemas da comunidade e lutar para participar do poder político, na política de parcerias. Isto porque eles correm o risco de se por a serviço de um partido político, sentido que os novos movimentos descartam na atualidade. Observa-se nesta citação que Touraine volta a utilizar, como muita ênfase e como forma de ordenação/organização de todo o livro, a categoria SUJEITO, sempre escrita com S maiúsculo. Nesta nova fase, os movimentos buscam eixos próprios de orientação de suas demandas; combina-se uma pertença herdada, como cor, etnia, sexo etc; ou a resistência a uma dada regra, norma ou outro constrangimento sócio-cultural, político ou econômico, ou ainda a busca de distanciamento de certas situações ou circunstâncias, com a luta para demarcar espaço na sociedade, nos diferentes campos da vida social. Luta-se por cotas nas universidades, espaços nos concursos públicos ou no mercado de trabalho em geral. Num mundo competitivo/excludente, isso agrega valor ao indivíduo (é importante lembrar que estes temas fazem parte da agenda atual dos movimentos dos afro-descentes e dos indígenas no Brasil). A idéia de Sujeito, posta nestes termos, governa a idéia de 24 "Comunicação Intercultural", tema relevante que ele analisa e que é fundamental para a análise de novos conflitos no urbano, a exemplo das recentes manifestações de imigrantes, na França e nos Estados Unidos. Disso tudo Touraine conclui: o Sujeito não é portador de um modelo ideal de sociedade; temos que encontrar o Sujeito pessoal no Sujeito histórico - e também no religioso, que sempre está presente no centro das visões de sociedade e de mundo (a exemplo dos conflitos na Índia, Paquistão; no Irã e Iraque; Palestina e Israel; e muitos outros). 5. A questão da multiculturalidade nos conflitos urbanos contemporâneos. Touraine destaca que se deve atentar, na atualidade, para a necessária comunicação multicultural entre os Sujeitos. Consideramos sua análise sobre a temática da cultura e do multiculturalismo peculiar porque, partindo de uma crítica aos valores da modernidade, ele enfatiza a importância da cultura mas não a coloca como substituindo a dimensão do político como fazem vários estudiosos da temática da multiculturalidade nos quais só existiria na atualidade a dimensão sociocultural. Touraine não descarta o político de sua análise, ao contrário, ele destaca o político como um fator determinante no redirecionamento da ação coletiva do sujeito. O novo sujeito histórico não pode alienar-se da ordem existente, conforme assinalamos acima. Ele não decreta a morte do político, sua negação ou sua irrelevância. Ele a situa num campo diferente na atualidade, percebe um enfraquecimento das forças políticas, especialmente os partidos políticos. Observa que: “as novas contestações não visam criar um tipo novo de sociedade, menos ainda liberar as forças de progresso e de futuro, mas ‘mudar a vida’, defender os direitos do homem, assim como o direito à vida dos que estão ameaçados pela fome e pelo extermínio, e também o direito à livre expressão ou a livre escolha de um estilo e de uma história de vida pessoais” (Touraine, 1994 b: 262) Ele destaca que desde os primórdios de nossa modernidade, pensamos os fatos sociais em termos políticos – ordem, desordem, soberania, autoridade, nação, revolução. A revolução industrial substituiu as categorias políticas por categorias econômicas e sociais – classe, lucro, concorrência, investimento, negociação coletiva). As mudanças no mundo 25 atual são tão profundas que nos conduzem a afirmar que um novo paradigma está para substituir o paradigma social; trata-se do paradigma cultural, centrado nos direitos culturais – os quais se exprimem pela defesa de atributos particulares como universais. À vontade dos indivíduos de ser ator de sua própria existência, Touraine denomina Sujeito (ou sujeito contemporâneo). Este indivíduo, transformado por ele mesmo em Sujeito, necessita se comunicar e ser reconhecido em suas diferenças. Categorias sociais que estiveram até agora em situação de inferioridade, como as mulheres, têm formado movimentos sociais para se libertarem. Essas categorias sociais são parte das tensões no mundo ocidental mas também são fontes de dinamismo, além de serem, como no caso das mulheres, as “atrizes principais” de um novo e possível modo de recomposição do mundo. As mulheres, por terem vivido a dominação em suas experiências, poderão vir a ter ações mais gerais, de recomposição de todas as experiências individuais e coletivas. “Uma sociedade de mulheres” é o título do capítulo que ele escreve para analisar o novo protagonismo da mulher na sociedade (Touraine, 2005: 297-334) Na atualidade, nas demandas dos grupos organizados, não predominam mais os direitos pela cidadania, os direitos sociais, e os direitos universais, fundados em princípios de uma lógica racional e respeito aos direitos políticos universais; na separação entre Estado e Igreja, religião e laicismo, sociedade e comunidade. (Touraine, 2005: 337). Predomina a luta e a defesa dos direitos culturais. Essas lutas apenas aprofundaram o sentido geral dos movimentos sociais, já indicados no início dos anos 90 quando ele assinalava: “ Não se trata mais de lutar pela direção de meios de produção, e sim sobre as finalidades dessas produções culturais que são a educação, os cuidados médicos e a informação de massa” (Touraine, 1994b:260). Ao analisar os conflitos que ocorreram em 2005 na França, Touraine chama a atenção para a rejeição ao comunitarismo naquele país, marcado pela defesa do republicanismo- visto sob a perspectiva do universalismo. A defesa da cidadania, sob a perspectiva do universalismo, se choca com as políticas sociais destinadas aos grupos que demandam e clamam pelos direito à diferença - quanto a seus direitos culturais num contexto de comunicação intercultural. Para Touraine, o comunitarismo se define por oposição à cidadania. O comunitarismo atenta para as liberdades individuais e a cidadania 26 atenta para os direitos políticos dos cidadãos num país democrático (Touraine, 2005: 235/236). Entretanto, ele considera justo falar em direitos culturais desde que o tema se articule aos direitos políticos-que são universais e têm lugar no interior da organização social. Quando grupos de jovens e imigrantes incendiaram carros nas ruas de Paris e adjacências, em 2005, ele afirmou: a sociedade francesa tradicional parece ter dificuldade de repensar a si própria neste novo contexto. Esta afirmação assenta-se na distinção que Touraine faz entre multiculturalismo e interculturalidade. Para ele, o multiculturalismo da forma como é tratado por alguns autores, é uma idéia confusa porque supõe a hipótese de culturas diferentes coexistindo.Ele diz que isto não faz sentido porque, ou as relações entre as diferentes culturas são geradas pelo mercado, pela violência, ou são reconhecidas a partir da presença de elementos universalistas nas mesmas. Portanto, o multiculturalismo absoluto seria um absurdo e o que existe são relações interculturais, gerando uma mestiçagem cultural. Ao discutir o tema dos direitos culturais, Touraine retoma mais uma vez à definição do que é um movimento social. Ele diz que movimento social é uma categoria muito particular no interior de um vasto conjunto de ações de reivindicação. Define-se pela vontade de obter novos direitos. E o NOVOS Movimentos Sociais são aqueles que exigem o reconhecimento de um novo tipo de direito: os direitos culturais. Touraine assinala: “Eles defendem a liberdade e a responsabilidade de cada indivíduo, só ou coletivamente, contra a lógica impessoal do lucro e da concorrência. São também contra uma ordem estabelecida que decide o que é normal ou anormal, permitido ou proibido”.(Touraine, 2005: 250). As demandas dos novos movimentos sociais são diferentes das que ocorriam nas sociedades industriais– quando havia ênfase dos trabalhadores nos direitos sociais, e nas sociedades pré-industriais, quando as lutas foram por direitos políticos (Touraine, 2005: 243). A análise dos direitos culturais exemplifica claramente a relação entre ator e sujeito, apresentada no início deste texto. Assim, Touraine afirma: “o alvo principal do movimento social é a realização de si como ator, capaz de transformar sua situação e seu meio ambiente, quer dizer reconhecer como sujeito.” (Touraine, 2005: 244). 27 O tema da identidade, associado por muitos pesquisadores à obra de Touraine, recebeu dele, recentemente, considerações bem peculiares ao afirmar que: “quando o movimento de libertação nacional transforma-se em nacionalismo, quando a luta de classe se reduz ao corporativismo, quando o feminismo se limita a supressão das desigualdades entre homens e mulheres, eles cessam de ser movimentos sociais e cedem lugar a obsessão pela identidade” (Touraine, 2005:246). Em suma, o apelo à identidade pode ter orientação democrática, como pode ser particularista, comunitarista, que rejeita o princípio de alteridade porque não reconhece o outro, apoiando-se sobre a teoria do direito natural ou crenças do passado. 6. A cidade e os Direitos culturais Parte da literatura sobre os movimentos sociais latino-americanos destaca que eles, movimentos, constroem sujeitos sociopolíticos. Esta literatura, nos anos 70/80 do século XX, apresentou os movimentos sociais como novos sujeitos que tinham a força e a capacidade propulsora de realizar transformações sociais. Touraine, naquela época, destacava a importância dos movimentos de uma outra forma, como agentes de inovações porque tinham a capacidade de pensar a si próprios, atuavam como sujeitos coletivos, indicando os pontos onde os conflitos estavam mais tencionados, lutavam para a reposição da ordem, de um lado ou de outro. Nos anos 90, os movimentos – populares ou não, alteraram suas práticas e demandas face às novas conjunturas, econômica, política e social, em todas as partes do globo. Eles se tornaram mais culturais e menos políticos- no sentido de politização, polarização ideológica ou organicidade em relação a algum projeto exterior a si próprios. Novas teorias explicativas surgiram, com recortes construídos a partir de eixos mais humanísticos; destacando as práticas solidárias, a capacidade dos movimentos de colocar o ser humano no centro do universo e não o mercado, ou a luta pelo poder, o desejo de consumo e os novos parâmetros da felicidade no mundo moderno etc. Algumas elaborações nem chegam a se constituírem em teorias, –são releituras do funcionalismo, recheadas de pressupostos neoliberais, de exaltação às ações voluntárias; ou são orientações normativas 28 sobre a necessidade da “comunidade” se organizar em movimentos para resolver seus problemas etc.A categoria do militante passa a ser ressignificada para “ativista social”, um modelo pré-moldado. Touraine não embarcou nas aventuras do individualismo, nem deslocou o eixo de suas análises, ao contrário, aprofundou-as. A ênfase que ele sempre deu ao plano da cultura, aos valores e às orientações culturais das condutas dos indivíduos, possibilitou-lhe perceber e analisar as mudanças nos movimentos, captar o sentido das demandas em direção às questões da subjetividade e formas de subjetivação das demandas coletivas; ele analisou estas mudanças em termos de um novo paradigma – aquele que destaca prioritariamente os direitos culturais. Ele sempre trabalhou com a tese: “Um movimento social é ao mesmo tempo, um conflito social e um projeto cultural” (Touraine, 1994b:254) Tanto suas primeiras abordagens, nos anos 60/70/80, como as dos anos 90/2000 enfocam a discussão no plano das lutas de sujeitos que buscam criar novas relações a partir daqueles que sofrem experiências que negam suas identidades, sofrem opressões ou estão excluídos ou discriminados, ou resistem às regras que são impostas (novas políticas para imigrantes, por exemplo). Na realidade não é possível discutir sujeitos e emancipação social sem discutir as formas de processo de trabalho de uma sociedade, que tipo de sociedade que temos, e qual a sociedade que os que estão se organizando estão querendo (eles, movimentos, não o pesquisador, ou o intelectual). E é este o caminho que Touraine faz para analisar um movimento, de forma muito peculiar- destacando sempre a cultura dos sujeitos, suas representações sobre a realidade social, suas ações coletivas para alterar a si próprio dentro desta realidade, e como eles se colocam neste mundo relacional. Se o mundo do trabalho mudou, as representações dos sujeitos sobre a sociedade também mudaram, e conseqüentemente, os movimentos e suas ações coletivas . Fala-se na atualidade da crise do paradigma dominante da modernidade, de transformações societárias e inovações que tem levado ao reconhecimento de uma transição paradigmática. Isso tudo leva a rediscussão dos paradigmas explicativos da realidade. Indaga-se: qual o horizonte das lutas geracionais, sociais, das mulheres, dos afrodescententes, e muitas outras, sob a perspectiva de novos direitos culturais. Está sendo gerado um novo paradigma emancipatório ou não? Estaremos retrocedendo a formas particularistas de defesa de interesses de grupos? Qual o horizonte de movimentos como o 29 Fórum Social Mundial? As análises de Touraine possibilita-nos seguir em busca de respostas a estas questões. Para ele, o novo paradigma está formação, destacando os direitos culturais, ele se coloca acima dos econômicos, sociais e políticos, sem eliminar os demais.. As mulheres, os imigrantes, as lutas ambientalistas, são categorias e problemáticas que dão conteúdo aos novos movimentos do paradigma cultural. Os sujeitos deste novo paradigma têm feito das CIDADES, palco de suas manifestações. De um lado, eles atingem à sociedade via ataques à cidade:bloqueiam- se ruas, paralisa-se o trânsito, queimam-se carros, ocupam-se prédios abandonados, paralisamse escolas, hospitais e serviços públicos, denuncia-se entidades que praticam atos discriminatórios etc.Decreta-se a morte da SOCIEDADE, não do político. Suas ações são políticas, escrita e inscrita em uma nova gramática. A cidade é o espaço próximo e possível da luta. Discrimina-os mas também ela pode ser reapropriada por suas ações. Entretanto, a cidade não é só objeto de agressão. Ela é também sujeito, palco de ações coletivas que a reconstrói dando-lhe novos usos e significados. O lixo se transforma em novos objetos via o trabalho de uma rede que vai dos catadores, separadores, recicladores, cooperados,vendedores etc. Os ambientalistas constroem atos de resistência que pressionam por mudanças nas leis e destruições arbitrárias do patrimônio e ambiente construído. As mulheres sustentam, majoritariamente, as redes solidárias que trabalham pela inclusão de crianças e adolescentes nas ruas; educadores das escolas articulam-se com grupos comunitários e desenvolvem trabalhos contra a violência e o uso de drogas. O conjunto destas ações une categorias sociais, que criam Sujeitos, que produzem movimentos sociais. Os novos movimentos sociais buscam, à margem de partidos, sindicatos e estruturas estatais, modificar as instituições de forma que os reconheçam como interlocutores legítimos. Articulando o conceito de movimento social ao de Sujeito pessoal, na atualidade, Touraine afirma que não há construção possível do sujeito à margem das ações coletivas. Por isso, o ponto central da reflexão dele é: a idéia de Sujeito se liga com a de movimento social. E essa idéia contém duas afirmações centrais: a primeira é que o Sujeito é vontade, resistência e luta, e não experiência imediata de si (não se trata também da vida interior do Sujeito). A segunda idéia é que não há movimento social possível a margem da vontade de libertação ou liberação do Sujeito. O Sujeito não é uma reflexão do indivíduo sobre si 30 mesmo, seu interior ou o espelho de sua intimidade. Ele é ação, é um trabalho, que nunca coincide com a experiência individual (1997:85-86). A questão da experiência é importante, mas é a experiência coletiva, vivida no coletivo, o aprendizado a partir do coletivo. A consciência também não é individualística, é universalista, de liberdade e vontade de existência, experiência e memória vivida em um trajeto de vida particular. (1998 b:88). Conclusões Para Touraine, na atualidade, o Sujeito não se forma como no modelo clássicoassumindo papéis sociais, conquistando direitos e meios de participação; o Sujeito atual se constrói impondo à sociedade instrumentalizada, mercantil e técnica, princípios de organização e limites conforme seus desejos de liberdade e a vontade de criar formas de vida favorável à afirmação de si mesmo e o reconhecimento do outro como Sujeito (1997 :90). Por isso a idéia de direitos humanos é tão importante hoje, assim como o direito de resistência à opressão, presente tanto em Hobbes y Locke como em Rousseau, e oposto aos direitos do cidadão que insiste mais no dever cívico que sobre a liberdade individual. (idem, p. 90). Concluímos: a leitura da obra de Touraine nos possibilita destacar vários temas e problemáticas tais como a questão do Sujeito. Ele responde inúmeras questões mas também nos coloca vários desafios tais como: como traduzir em princípio universais, lutas sociais locais, sem a capitulação da sociedade ao Sujeito coletivo criado e desenvolvido naqueles territórios? Como se constrói o Sujeito a partir do local? Como compatibilizar temas como o da igualdade com processos de inclusão social que não trate apenas do econômico, que contemple também a dimensão da diversidade cultural e a cultura em geral?As políticas de inclusão tem preservado os Sujeitos locais e suas lutas históricas? como ir além do reconhecimento da luta dos Sujeitos que demandam participar de processos de gestão social, sem atrela-los às redes burocráticas existentes? Consideramos que o território local é uma estrutura que oportuniza aos Sujeitos potencializar suas ações porque é no território que surgem novas relações sociais, novas estrutura produtiva, alternativa à crise do modelo fabril aliada ao Estado Providência, até então vigentes. O território local das cidades é um espaço ambíguo: de um ladofragmentado, objeto de disputas políticas, apropriações particularistas; mas de outro 31 lado, é também espaço de produção de saberes, registro de memórias e lócus de identificações. Os movimentos sociais são fontes e processos de construção desses saberes sistematizados. Esperamos continuar dialogando com Touraine para respondermos a estas questões e a estes desafios. Bibliografia COHEN, Jean ; ARATO, Andrew. 1992.Civil society and political theory. Cambridge, MIT Press. GIDDENS, Anhony.1993. Sociology. 2a ed..Cambridge, Polity Press, GOHN, Maria da Glória. 1997. Teorias dos movimentos sociais. Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo, Ed. Loyola. SCOTT , A. 1990.Ideology and new social movements. Londres, Unwin Hymam. TOURAINE, Alain. 1955. L évolution du travail ouvrier aux usines Renault, Paris, Seuil _______________e RAGAZZI, O. 1961 a. Ouvrieres d´origine agricole, Paris, Seuil. ______________1961 b. “ La civilization industrielle” in Histoire générale du travail, t. 4, Paris, NLF. ____________1961 c. Ouvriers et syndicats d´Amérique Latine. Sociologie du Travail. Paris, Seuil, ________________1965. Lês travalhilleurs et lês changements techniques. Paris, OCDE __________________1965 b. Sociologie de l'action. Paris, Seuil. _________________1966 a. La conscience ouvrière, Paris, 1966. _________________1966 b. Les ouvrieres et lê progés techinique. Paris, Colin. __________________1966 c. Huachipato et lota. Paris, CNRS. __________________1968 . Le mouvement de Mai ou le communisme utopique. Paris, Seuil. _________________1969. La société postindustrielle, Paris, Denoel. _________________1972 a Le communisme utopique. Paris, Seuil. ___________________1972 b. Université et societé aux États-Unis, Paris, Seul. __________________1973 a. Production de la société. Paris,Seuil. __________________1973 b. Vie et mort du Chili populaire, Seuil. __________________1974 a. Pour la sociologie. Paris,Seuil. ___________________1974 b. Lettres à une étudiante, Paris, Seuil. ____________________1974 c. La société invisible. Paris, Seuil. ___________________1976. Lês sociétés dêpendantes. Paris, Duculot. 32 _______________1977 a . Um désir d´histoire, Paris, Stock. __________________1977 b.Movimentos sociais e ideologias nas sociedades dependentes. In: Albuquerque, J.A.G.(org). Classes médias e política no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra. ____________1978 a. Le voix et le regard. Paris, Seuil. ____________ DUBET, F., HEGEDUS, Z. e WIEVIORKA, M.1978 b. Lutte étudiante. Paris, Seul. ______________1979. Mort d´une gauche. Paris, Galilée. ______________1980 a . L´après –socialisme, Paris, Grasset. ______________DUBET, F., HEGEDUS, Z. e WIEVIORKA, M. 1980 b. La prophétie antnucléaire. Paris, Seuil. _____________, DUBET, F., HEGEDUS, Z. e WIEVIORKA, M. 1981. Le pays contre l´ État. Paris, Seuil _______1982. O Método da Sociologia da Ação: A Intervenção sociológica”in Novos Estudos, vol 1, no 3, p. 36-45 ___________, DUBET, F., STRZELECKI, e WIEVIORKA, M. 1982 b. Solidarieté, Paris, Fayard. ____________1984.Le retour de l'acteur. Paris, Fayard. ____________, WIEVIORKA Fayard. M. e DUBET, F.1984. Le mouvement ouvrier, Paris, ____________1985. The study of social movements. Social Research. v.52, n.4. p.749-787. _____________1987. Actores sociales y sistemas políticos em América Latina. Santiago do Chile, PREALC. ______________1989 a. Palavra e sangue. Campinas, Ed.UNICAMP. _______________1989 b. “Os novos conflitos sociais: para evitar mal-entendidos” Lua Nova, no. 17, 5-18 junho. ______________1994 a. Crítica da modernidade. Petrópolis, Vozes. (1992 - original francês) ______________1994 b. Qu'ést-ce que la democratie? Paris, Seuil. _________1995. Lettre à Lionel, Michel, Jacques, Martine, Bernard, Dominique...et vous. Paris, Fayard. ______ WIEVIORKA M., DUBET, F. e KHOSROKHAVAR, F. 1996. Le grand refus. Réflexions sur la grève de decembre 1995. Paris, Fayard. ______________ 1996 a. Collective action at the end of the global century. Conferência de abertura do international conference of the RC social movements and social classes. ISA. Santa Cruz. California. _______________________1996 b. Folha de São Paulo, Caderno MAIS, 13-10p.3. ____________1997. "Podremos vivir Juntos" México, Fondo de Cult. Econômica 33 ______________1998 a- Do social Movement Exist? Congress of the International Sociological Association, Montreal, 26 july, 13 pgs. _______________1998 b. Igualdade e Diversidade. Bauru, EDUSC ____________KHOSROKHAVAR, F.2000. La recherche de soi. Dialogue sur le sujet. Paris, Fayard _______1999. Comment sortir du libéralisme? Paris, Fayard. _________, BLATTCHEN, E. 2002 a.Barbárie et progrès. Paris, Alice. ___________2002 b. A política contra a cegueira. In Folha de São Paulo, Caderno MAIS, 27 de Janeiro, p.8-9. ______________2005. Un Nouveau Paradigme- pour comprendre le monde d´ajourd´hui. Paris, Fayard WEISSHAUPT, J. R.1993 . “A teoria da ação em Alain Touraine. Alguns supostos e uma aplicação teórica”. In Maria do Carmo Brant de Carvalho (org). Teorias da ação em debate. São Paulo, Cortez Ed.