Touraine, Alain. “A exuberância racional da nova economia”. São Paulo: Folha de São Paulo, 7 de maio de 2000. FSP 7-5-00 A exuberância racional da nova economia Alain Touraine Falar o tempo inteiro e quase exclusivamente da globalização e das catástrofes que ela acarreta parece-me cada vez mais afastado da verdade, virando uma espécie de autodestruição. Não que esse conjunto confuso de noções não comporte sucessos negativos ou mesmo violentos. Recordo, antes de justificar meu julgamento, os principais perigos do liberalismo econômico. O principal equívoco daqueles que seguiram durante um longo período a política econômica do Consenso de Washington, e em especial a do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, foi o de julgar cada economia nacional ou regional do ponto de vista de uma pretensa lógica econômica mundial. Os novos equilíbrios, nesse sentido, não podiam ser encontrados senão em nível global. Erro dramático e condenável, pois não se pode tomar o colapso de uma economia local ou profissional como uma "realocação de recursos", já que ela ocasiona dramas humanos consideráveis, e, de outro lado -sendo esta a segunda grande crítica a fazer-, porque a lógica da economia mundial é muitas vezes aquela dos capitais que cruzam as fronteiras. Às vezes se trata de capitais em busca de melhores taxas de juros ou de boas operações de câmbio; às vezes são os grandes bancos que exercem fortes pressões sobre os possíveis devedores, uma vez que preferem remunerar os capitais neles investidos a se ocupar da produção e do emprego. Assim, foi a própria ideologia da globalização, e não um conjunto de fatos imutáveis, uma fatalidade que acarretou tantas consequências negativas. O lugar da globalização Se digo que é preciso se desvencilhar da idéia da globalização ou repô-la em seu devido lugar, que é secundário, é porque a idéia de uma lógica mundial de alocação de recursos não tem relação alguma com a realidade. As políticas nacionais exercem um papel predominante no estado da economia. Quem nega que a fraqueza extrema do Estado russo seja a principal explicação da crise do rublo em agosto de 1998? Quem não vê que o Brasil foi incapaz de diminuir suas despesas públicas, e em especial as aposentadorias do setor público, enquanto a Itália já fez corajosos esforços para entrar no euro? A França, esta, ainda não fez nada, o que lhe permitirá, paradoxalmente, encontrar uma solução mais fácil, já que a situação do emprego melhora. Uma organização administrativa ruim, como a corrupção ou a ausência de espírito empreendedor, são fatores tão importantes que, em nenhum caso, vemos os fatores internacionais desempenharem um papel dominante nem sequer na Tailândia ou na Indonésia. Em parte alguma a economia se reduz às trocas financeiras internacionais, ainda quando a gestão econômica é injusta, e sabemos que essa injustiça aumentou na maioria dos países. Com os pés no chão E eis que, agora, os fatos mais claramente visíveis obrigam a abandonar a importância excessiva conferida à globalização. Voltou-se enfim a falar de economia real, de produção, de inovação e organização. Vivíamos de cabeça para baixo. Tornamos a firmar os pés no chão. Devemos mesmo esperar que o mais breve possível o mundo e sobretudo a América Latina, Brasil à frente, voltem a dar aos problemas da repartição, e portanto da injustiça e da pobreza, a importância que jamais deveriam ter perdido. Demoramos muito para descobrir que o imprevisto sucesso da economia americana vem do modo admirável como ela desenvolveu a "nova economia" das tecnologias de informação e da comunicação e transformou, como resultado, o seu sistema produtivo. Por muito tempo subestimamos essa nova revolução industrial como se fosse apenas o sucesso de algumas novas empresas, como a Microsoft ou a Intel, enquanto mais da metade dos empregos criados nos Estados Unidos deriva dos setores de alta tecnologia. Isso vale também para Canadá, Israel e Irlanda e deverá valer em poucos anos para a Europa ocidental, se ela lograr abolir a rigidez que tão caro lhe custa. Urge compreender que a "nova economia" é mais real, mais relevante que a globalização -e, sobretudo, que ela demonstra o que podemos fazer ou não quando se fala de globalização em termos de fatalidade. Os economistas dizem há tempos que o principal fator de crescimento é a educação, e, apesar da gravidade de sua crise bancária, o Japão tem todas as chances de se recuperar por causa de seu elevado nível de educação. Insisto naquilo que é, de longe, o mais importante: nossa recuperação econômica depende antes de tudo de nós. Não apenas das decisões governamentais ou das preferências parlamentares, mas também da opinião pública, da mídia e dos intelectuais influentes, das organizações e das associações que mobilizam as demandas sociais e são capazes de transformá-las em programas políticos. Inversão de atitude Essa inversão de atitude, que corresponde à passagem do tema da globalização àquele da nova economia, é tanto mais premente pelo fato de a economia mundial voltar agora a crescer. Quando a preocupação central de um país é diminuir seu déficit fiscal, ele não é levado a analisar sua própria situação e sua própria ação. Isso porque todas as categorias sociais estão na defensiva e preferem buscar as responsabilidades fora do país para explicar suas dificuldades. Hoje aumenta o campo do possível e, como decorrência, devemos assistir a uma reanimação do campo político e dos debates intelectuais. Quer se trate da direita ou da esquerda, não é possível dizer mais: nada se pode fazer, pois somos vítimas de um capitalismo financeiro internacional diante do qual os Estados nacionais são impotentes. É cada vez mais necessário dizer: escolhamos nossas prioridades. E estas devem ser a capacidade de inovação e a redistribuição social. A idéia do desenvolvimento, por tanto tempo abandonada ou mesmo rejeitada, recobra a sua importância, sobretudo porque é inseparável da idéia política de desenvolvimento - e portanto de escolhas políticas, econômicas e sociais. Foi-se o tempo das invectivas ideológicas: a hora é dos conflitos políticos e sociais. Cada um de nós deve acordar manhã e dizer: devemos e podemos fazer escolhas; não somos apenas vítimas, podemos ser atores de nosso futuro. Somos cada vez mais responsáveis, pois, pela nossa situação. Não nos deixemos arrastar pela falsa idéia de nossa impotência.