Os Movimentos Sociais na América Latina

Propaganda
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
FORMAÇÃO HUMANÍSTICA
EIXO: AMÉRICA LATINA
Os Movimentos Sociais na América Latina
Almiro Petry1 (2008)2
No decorrer dos dois últimos séculos, as categorias inferiorizadas,
particularmente os trabalhadores, depois os colonizados e
quase ao mesmo tempo as mulheres, formaram movimentos sociais
para se libertarem.
Alain Touraine (2006)
1 Introdução
Os movimentos sociais – entendidos como organizações populares que se orientam contra as
estruturas vigentes – desempenharam no final do século XX e início do XXI um papel
estratégico na luta e na resistência contra as políticas neoliberais dos governos latinoamericanos. Neste período presencia-se o processo de adoção por parte de partidos políticos,
inclusive dos ditos de esquerda, da doutrina neoliberal e sua aplicação em políticas e
programas sociais, privando os segmentos mais pobres da sociedade em acesso a
oportunidades, em especial à educação, à saúde e ao mundo do trabalho.
Para Sader3,
foram os movimentos sociais - do EZLN ao MST, dos movimentos indígenas equatorianos aos
bolivianos e aos ‘piqueteros’-, os maiores protagonistas das lutas populares durante mais de
uma década. Foram os principais responsáveis pela perda de legitimidade e pela queda de
tantos governos no continente - de Sánchez de Lozada a de La Rúa, de Lúcio Gutiérrez a
Fujimori-, assim como pela derrota eleitoral de Menem, de FHC, entre outros.
Para o mesmo autor, o modelo neoliberal já se esgotou o que exige um
redirecionamento dos movimentos sociais já que no passado recente seus projetos visavam a
atingir a hegemonia da doutrina professada pelos governos latino-americanos. Assim, a
construção de alternativas e a conquista de novos espaços, são os desafios postos nos países
em que os movimentos sociais, sejam populares ou de povos indígenas, são mais consistentes
como no Brasil, na Argentina, no Uruguai, na Bolívia, no Equador, no Paraguai, no Peru, na
Venezuela, na Nicarágua, no México, etc.
1
Mestre em Sociologia Rural (UFRGS) e Doutor em Ciências Sociais (Unisinos); Professor do Curso de
Ciências Sociais da Unisinos e do Departamento de Sociologia da UFRGS ([email protected]).
2
Versão ampliada da publicada em 2007.
3
SADER, Emir. Pós-neoliberalismo: da luta social à luta política. Disponível:
http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=28806
1
É isto que queremos olhar um pouco mais de perto, buscando também alguma
fundamentação teórica.
2 Referências teóricas
Alain Touraine, sociólogo francês contemporâneo, elabora na sociologia da ação uma
complexa perspectiva teórica sobre os movimentos sociais, integrando várias abordagens que
culminam com a definição da autoprodução conflitiva, como a representação geral da vida
social. O conflito central na sociedade pós-industrial, programada4 e informatizada localiza-se
na ação do sujeito que luta, por um lado, “contra o triunfo do mercado e das técnicas e, de
outro lado, contra os poderes comunitários autoritários” (Touraine, 1998, p.112)5. Na
sociedade programada, a classe dominante detém o poder de mobilizar e organizar toda a
gama de recursos (naturais, tecnológicos e conhecimentos), orientando-os para o modelo
cultural que sustenta o sistema econômico e o de produção. Na mobilização da satisfação das
necessidades pelo consumo, hierarquiza-se a produção, a distribuição e o acesso,
configurando uma determinada ordem social. A classe popular, por sua vez, é submetida à
dominação da classe oposta, tanto pelas práticas quanto pelas decisões por ela controladas. A
classe dominante tenta enquadrar a classe popular na ordem estabelecida. Nesta relação de
classe reside o foco central do conflito do qual, dialeticamente, brota a contestação.
Na perspectiva traçada, o centro da vida social é a permanente luta pelo controle da
própria capacidade de transformação da sociedade como também pela adoção de novas
tecnologias. A relação gerada é socialmente conflitiva, donde surgem os movimentos sociais.
A interpretação e análise sociológica dos diversos movimentos – o operário, o estudantil, o
das mulheres, o ecológico, o antinuclear, o pela paz etc. – orientam-se por diferentes
paradigmas teóricos6. Além da sociologia da ação de Touraine, os paradigmas teóricos podem
ser vistos na ótica marxista e neomarxista, interacionista, estrutural-funcionalista e na da
4
A sociedade programada – resultante da grande transformação – permite que se viva com “um grau mais
elevado de mobilização do que uma sociedade industrial”. Ela tem a capacidade “de criar modelos de gestão da
produção, da organização, da distribuição e do consumo”, surgindo da “ação exercida pela sociedade por si
mesma, de sistemas de ação social”. Ela também “faz circular as pessoas, os bens e as idéias muito mais
intensamente do que as sociedades precedentes”. Desta forma, ela é portadora de “uma historicidade muito forte,
de uma capacidade de autoprodução muito significativa”, reduzindo de modo considerável, “a parte de
reprodução que existe nela”. Na sociedade programada, a multiplicidade de informações permite exercer a
liberdade de escolha, apesar da multiplicação das comunicações programadas pela mass media. No entanto, ela
aumenta a distância “entre dirigentes e dirigidos”, porque “a formação de aparelhos de produção e de gestão da
informação na maioria dos domínios leva a uma nova concentração do poder”. Acredita-se que a principal razão
do poder social situa-se ao nível da produção, que determina e orienta o emprego de novas tecnologias. Portanto,
“não é o emissor de televisão que determina” as novas tecnologias, mas a sociedade programada mais avançada
que se orienta bem mais pelo consumo do que pela produção. (TOURAINE, A. O retorno do actor: ensaio sobre
sociologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1984, p.151-156).
5
TOURAINE, A. Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis/RJ: Vozes, 1998.
6
RENON, Karin. Verbete: Movimento social. In: OUTHWAITE, W. e BOTTOMORE, T. Dicionário do
pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 500-503.
2
mobilização de recursos. Em breves palavras, as ênfases são: (1) A teoria marxista e a
neomarxista afirmam que os movimentos sociais e revolucionários brotam das contradições
entre o capital e o trabalho. Os principais agentes são as classes antagônicas. No entanto, são
agentes históricos e, por isso, devem construir sua consciência de classe e seu destino
histórico na luta pela transformação das estruturas de produção e de poder. (2) O
interacionismo simbólico7 adota o paradigma que parte do pressuposto de que indivíduos e
grupos agem com base nas mesmas compreensões e expectativas, afirmando que os
movimentos sociais surgem em situações não-estruturadas para se constituírem nas
reconstruções coletivas de situações sociais, como “empreendimentos coletivos para
estabelecer uma nova ordem de vida”, segundo Blumer. (3) O estrutural-funcionalismo
distingue-se em três variantes: (a) as teorias de massa da sociedade que postulam o indivíduo
atomizado, anômico – desenraizado, dessocializado e com a perda dos elos tradicionais,
isolado dos novos grupos sociais – que está disposto a participar de movimentos de
contestação e reivindicatórios por não ter mais vínculos que o liguem com a ordem social; (b)
as teorias da tensão estrutural que apontam os desequilíbrios e as disfunções do sistema social
– origem de tensões estruturais – como a fonte de deflagração de movimentos sociais; (c) as
teorias da privação relativa apontam que as pessoas se sentem desprivilegiadas em relação às
suas expectativas, ou seja, não há correspondência entre a satisfação de necessidades
esperadas e a que efetivamente ocorre, sendo a insatisfação e a frustração as impulsionadoras
de movimentos sociais. (4) A teoria da mobilização de recursos, pertencente ao paradigma
neo-utilitarista – racionalista –, admite como pressuposto fundamental que as movimentações
visam o acesso aos recursos materiais simbólicos – dinheiro, propriedades etc. – como via
legítima, através de estratégias políticas e formas sofisticadas de organização e de
competição. (5) A teoria sociológica da ação defende o pressuposto de que a luta é pelo
controle social da própria capacidade de transformar a sociedade. Ela mune-se com a
metodologia da intervenção sociológica.
Segundo a teoria sociológica da ação, os movimentos sociais são conceitualizados
como sujeitos sociais envolvidos em um conflito social – expressão de uma revolta ou de uma
rejeição, em relação à ordem social vigente –, que se organizam em torno da capacidade
contestadora e reivindicatória, transformando-se em grupo de pressão, para exercer uma
influência sobre os detentores da ordem social. Na dinâmica da sociedade programada
estabelecem-se, dialeticamente, novas tensões e conflitos que têm nos movimentos sociais sua
manifestação e expressão de representação da realidade social em construção. Por isso, para
7
Da Escola de Chicago. A denominação de interacionismo simbólico foi cunhada, em 1938, por Herbert Blumer
(1900-1987) para caracterizar os processos de interação – ação social caracterizada por uma orientação recíproca
– que privilegia o caráter simbólico da ação social.
3
Touraine, o movimento social deve ter um princípio de identidade (I). É a orientação que
responde à questão “quem somos nós?” e que, por sua vez, remete a um princípio de oposição
(O). É a orientação que responde à questão “contra quem lutamos?”, que singulariza um
obstáculo que se interpõe entre o ator e o seu objetivo e, contra este, o movimento se opõe.
Isto é, a definição do adversário. Ambos – identidade e oposição – referem-se ao princípio da
totalidade (T). É a orientação que responde à questão “pelo que lutamos?”, é o que está em
jogo na luta das investidas de ambos os lados. A sustentação ideológica de cada um dos lados
emana da visão de sociedade, construída socialmente pelas lutas a partir da identificação das
tensões e conflitos estruturados e institucionalizados no sistema de ação histórica. Nisto se
exprime a capacidade que se tem na historicidade “de atuar sobre a prática social”.
Na variada gama de conflitos sociais e níveis de atuação, os movimentos sociais que
defendem exigências econômicas, por exemplo, organizam-se em grupos de pressão política
em defesa de minorias etc. Entretanto, o nível mais elevado é o de ação histórica –
historicidade –, que é a capacidade da sociedade de desenvolver e alterar suas próprias
orientações e de gerar sua normatividade e seus objetivos por meio do conflito social central,
como resultado da luta pelo controle das estruturas, das instituições e formas culturais gerais
da vida social. Touraine emprega o conceito de movimento social quando as ações conflitivas
procuram transformar as relações de dominação sobre os principais recursos culturais: a
produção, o conhecimento e as regras éticas.
Nesta linha de raciocínio incluem-se os movimentos messiânicos, os fundamentalistas,
os sindicalistas, os culturais – como o das mulheres, que reivindica o reconhecimento de sua
identidade biocultural –, enfim, aqueles que se definem por um esforço para “controlar a
mudança e orientar o futuro”, frente aos comportamentos coletivos que se esforçam em
defender, reconstruir ou adaptar um sistema social ou “por uma vontade de conservação ou de
retorno ao passado” (Touraine, 1984, p. 98-99). Por outro lado, os comportamentos
reformadores e integradores, vistos nesta ótica, readquirem “uma importância não
desprezível” pelo fato de questionarem “os valores modernos” – da mudança, do crescimento
e do desenvolvimento -, considerados intangíveis durante largo período de tempo.
As lutas dos sujeitos, decorrentes de conflitos sociais, que visam um acesso ao poder
de decisão, são iniciativas portadoras de mudança e de transformações sociais. Assim, a
passagem das lutas aos movimentos sociais é a busca do controle “dos modelos culturais, da
historicidade” que pode resultar em rupturas políticas ou reformas institucionais.
O sujeito – movimento de subjetivação – como movimento social opõe-se ao indivíduo
– construção como si-mesmo –, porque intenta construir a vida pessoal e social através de
lutas pelo centro de poder e pelo controle da transformação do sistema social, movido por
4
uma lógica de liberdade e da livre produção de si. O indivíduo, por sua vez, - constituído
pelos centros de poder -, exerce seus papéis sociais de produtor, de consumidor, de eleitor etc.
e, satisfeito com as respostas às suas demandas sociais e culturais, econômicas e de consumo,
submete-se à lógica da dominação (Touraine, 1998, p. 247)8. Assim, o sujeito recusa a
imagem artificial “da vida social como máquina ou organismo”, porque demanda a liberdade
“da livre produção de si-mesmo” para afirmar os seus direitos num mundo tecnológico e
informacional, “onde o ser humano é transformado em objeto”. O sujeito se empenha por uma
“ética de convicção” e da ação – na busca da liberdade, da igualdade, da justiça social -, frente
à vigência da “ética tradicional e religiosa da contemplação e da imitação”.
Na análise tourainiana o sujeito só existe e subsiste como movimento social, portanto,
“como contestação da lógica da ordem” e na busca da integração social (idem, p.249), como
luta pessoal e social. Isto acontece na medida em que a “subjetivação se separa da
racionalização”, isto é, as lutas do sujeito contra os modelos racionalizadores; como no
passado foi contra a ordem sagrada, a ordem feudal9 e, na modernidade, é contra o poder
modernizador10. É a junção das duas faces do sujeito, a da luta pessoal e a da luta contra o
“adversário social”, que “se identifica com o progresso e a racionalização” no esforço de se
apossar dos valores e das orientações culturais da sociedade, contra um opositor que domina
as relações de poder. Esta luta configura, na sociedade industrial, as classes sociais e,
conseqüentemente, a luta de classes. Touraine afirma:
A decomposição dos quadros sociais faz triunfar o indivíduo, dessocializado mas capaz de
combater tanto a ordem social dominante quanto as forças da morte. O indivíduo fragmentouse rapidamente em múltiplas realidades. Um de seus fragmentos nos revelou um eu
fragilizado, mutante, submisso a todas as publicidades, a todas as propagandas e às imagens
da cultura de massa. O indivíduo não pass então de uma tela sobre a qual se projetam desejos,
necessidades, mundos imaginários fabricados pelas novas indústrias da comunicação. Esta
imagem do indivíduo, que já não é mais definido por grupos de pertença, que é cada vez mais
enfraquecido e que não encontra mais a garantia de sua identidade em si mesmo, pois já não é
mais um princípio de unidade e é obscuramente dirigido por aquilo que escapa à sua
consciência, serviu muitas vezes para definir a modernidade (Touraine, 2006, p.119).
Touraine insiste de que sua concepção consiste em uma ruptura com os conceitos
marxistas de luta de classes, mesmo que se analise os mesmos “fenômenos históricos”,
porque entende esta luta como uma “luta pelos direitos e a dignidade dos trabalhadores”, pois,
um movimento social é ao mesmo tempo “um conflito social e um projeto cultural”, podendo
ser dos dirigentes como dos dirigidos. Marx, por sua vez, identifica a luta do proletariado com
8
TOURAINE, A. Crítica da modernidade. 5ª ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1998.
Para Touraune estas “separações” dos condutores da sociedade são evidenciadas na separação do temporal do
espiritual – clérigos e cidadãos; da sociedade civil e o Estado – burguesia e o poder modernizador.
10
Touraine critica a análise weberiana do capitalismo que consistiu em eliminar toda a referência ao sujeito em
nome de sua sujeição à predestinação, “que fez tábula rasa de todas as pertenças e de todos os sentimentos,
deixando espaço livre para o trabalho, a produção e o lucro” (idem, 1998, p.250).
9
5
o desenvolvimento histórico e sua vitória seria o triunfo da natureza humana e não do espírito,
como entendia Hegel. Nesta ótica, a consciência de classe – a classe para si – é uma classe
operária consciente das contradições do capitalismo e da necessidade da superação histórica e
da ultrapassagem deste sistema de produção, de dominação e de exploração. Tendo o
proletariado conquistado o poder pela revolução, inverter-se-ia a lógica da dominação, da
estrutura de produção e da estrutura de poder. Este é o resultado da dialética entre dominantes
e dominados, entre passado e futuro do pensamento historicista.
Touraine também se opõe às concepções utilitaristas das ações coletivas, porque
entende que a sociedade moderna “funciona em torno da luta dos dirigentes e dos dirigidos
para a execução social da racionalização e da subjetivação” (idem, 1998, p.255). Os
utilitaristas propugnam pelas idéias de que as pessoas se mobilizam por interesses na busca da
satisfação de necessidades – básicas ou criadas – através de bens de consumo, de propriedades
e de dinheiro – símbolos da representação social –, peculiar da sociedade de classes. As
pessoas seriam impulsionadas por um hedonismo consumista, centrado num egoísmo e
individualismo, atingível com movimentos e comportamentos coletivos. As grandes
“máquinas” da sociedade industrial são as mass media e o marketing, sustentáculos do
modelo consumista e da cultura midiática, este consumismo desenfreado que aniquila o
sujeito e enaltece o ego e o indivíduo, constituindo diferentes públicos para satisfazer a
sociedade do espetáculo.
A proposta tourainiana é de que a noção de classe social – que define os atores a partir
de uma relação de produção e de consumo – seja substituída pela noção de movimento social
– que define os atores a partir de uma situação social e de suas relações sociais, na construção
de sua historicidade. Na ação histórica, a orientação do movimento seria através da
mobilização dos recursos para a construção de um novo modelo cultural, que implicaria a
passagem de comportamentos de revolta às reivindicações em que as organizações
incorporariam estas reivindicações até atingirem o sistema político institucional,
estabelecendo novas e inovadoras relações sociais. Nesta perspectiva, a sociedade
programada oferece os elementos mais propícios. Para Touraine, ela se caracteriza pela
“produção e a difusão maciça dos bens culturais” que “ocupam o lugar central que fora o dos
bens materiais na sociedade industrial”. Da mesma forma, “a produção e a difusão dos
conhecimentos, dos cuidados médicos e das informações”, juntamente com “a educação, a
saúde e os meios de comunicação” (idem, 1998, p.260), oportunizando aos movimentos
sociais a explicitação de suas lutas, dando ênfase nas produções culturais – a educação e a
informação de massa – e nas sociais – a saúde, a habitação e demais carências frente às
6
necessidades insatisfeitas. Aí os espaços públicos seriam ocupados por tais reivindicações e
demandas, oportunizando um autêntico empoderamento11 dos diferentes movimentos sociais.
Quanto à questão teórico-interpretativa dos movimentos sociais, Doimo nos apresenta
as seguintes lições:
1ª) é insensato pensar, do ponto de vista teórico, que haja uma identidade inerente aos
movimentos sociais, sejam eles “novos” ou não; mais insensato ainda é imaginar que esta ou
aquela identidade possa se ampliar ilimitadamente, sob pena de se estabelecerem mecanismos
autoritários de inclusão/exclusão; 2ª) é temerário transpor quaisquer fórmulas conceituais
genéricas para o aqui e agora de determinadas situações movimentalistas, sem minucioso
reconhecimento das mediações conjunturais e das clivagens específicas, sob pena de
reproduzirmos teorias formais vazias e apriorísticas (Doimo, 1995, p. 21-22).
A autora sugere que cada pesquisador proceda à sua reflexão tendo como referência
um quadro mais abrangente onde se discute a relação ação-direta de movimentos sociais na
participação política da sociedade contemporânea e, outra, mais específica que se alimentaria
do campo empírico das manifestações populares de lutas em determinados campos onde vige
a exclusão.
3 Movimentos sociais na América Latina
A década de 1990, que sucedeu à “década perdida”, foi impactante na América Latina na
medida em que os governos se dobraram sob a imposição da doutrina neoliberal, executando
o Consenso de Washington, produzindo profundas e perversas conseqüências sociais em
decorrência da pauperização dos segmentos populares, característica da “globalização
neoliberal”. Isto gerou um mal-estar coletivo que repercutiu na esfera política no afastamento
de presidentes12, seguido do agravamento de conflitos sociais e de protestos movidos pelo
repúdio, configurando um novo ciclo de manifestações populares, diferente daquele que
ensejou o fim das ditaduras militares.
As transformações políticas, econômicas e sociais ocorridas nos países latinoamericanos, periféricos ao sistema-mundo, exigências dos postulados neoliberais,
escancararam a precarização da economia dos assalariados, do mundo do trabalho e a erosão
do sistema de “proteção social”. A reconfiguração do Estado e da sociedade civil provocou
novas expressões de enfrentamentos, na medida em que se tenta esvaziar politicamente a
11 O termo empoderamento é uma tradução da palavra inglesa empowerment. A palavra deriva do verbo
empower que significa dar poder ou autoridade, obter mais controle sobre a própria vida ou sobre uma situação
em que vivem as pessoas. Assim, empoderamento para F. Pereira significa a ação coletiva desenvolvida pelos
indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos sociais.
Essa consciência ultrapassa a tomada de iniciativa individual de conhecimento e superação de uma situação
particular (realidade) em que se encontra, até atingir a compreensão de teias complexas de relações sociais que
informam contextos econômicos e políticos mais abrangentes. Ver:
http://www.fapepi.pi.gov.br/novafapepi/sapiencia8/artigos1.php
12
Fernando Collor de Mello no Brasil e Carlos Andrés Pérez na Venezuela, por exemplo.
7
sociedade civil, transferindo a participação social e política às Organizações Não
Governamentais (ONGs). Neste contexto, aumenta a importância dos movimentos sociais
pela sua identidade e sua diferenciação das ONGs.
Segundo um levantamento feito pelo Observatório Social da América Latina13 em
dezoito países14, em agosto de 2000, foram registrados 709 conflitos que se elevaram a 1.286,
em dezembro daquele ano. Num crescendo, atingiram o pico de 2.425, em janeiro/abril de
2002 e, em suave declínio, fecharam o ano de 2004 em número de 1.887. Temos aí um ciclo
de protestos encarnado em sujeitos coletivos que não se extingue sem soluções radicais, na
medida em que está inserido num movimento mais amplo de “antiglobalização” ou também
tido como movimento “altermundialista”.
Para Setúbal15, no ano de 2006, os conflitos protagonizados pelos movimentos sociais,
tiveram como principais motivos de mobilização
o acesso à terra (38%), as políticas públicas (31,8%), e a violência (12,3%); destacando-se as
lutas envolvendo o MST (30,8%) e os Indígenas (9,2%) – no meio rural, e os movimentos dos
Sem Teto – fundamentalmente o MTST (7,2%) – no meio urbano. Os instrumentos de luta
privilegiados foram as ocupações, o bloqueio e os protestos de rua. Cabe ressaltar que estes
protagonistas configuram um mapa do conflito social que se espalhou em várias regiões do
país.
Os membros do MST e da Via Campesina, que lutam por um ideal de uma sociedade
mais justa e igualitária, continuam sendo vítimas da violência nos atos de despejos ou no
confronto com fazendeiros e latifundiários, mesmo que seus atos sejam pacíficos e
desarmados. Muitas vezes são presos, algemados e torturados, quando não assassinados.
Ainda marca presença em nossa memória individual e coletiva o massacre de Eldorado de
Carajás – passados mais de doze anos – quando 19 trabalhadores rurais morreram; 69 foram
mutilados e centenas ficaram feridos. É considerado o mais brutal das ações policiais contra
uma manifestação de trabalhadores rurais. A certeza da impunidade mantém as estruturas e
ações violentas e repressoras, como a mídia relata freqüentes vezes, por um lado; por outro, a
13
O Observatório Social da América Latina (OSAL) é um programa de pesquisa vinculado ao Conselho Latino
Americano de Ciências Sociais (CLACSO), fundado no início de 2000, com o objetivo de dar conta das
diferentes formas que assume o conflito social na América Latina. Tendo em vista essa proposta, a atuação do
OSAL consiste no levantamento empírico dos diferentes conflitos emergidos na região durante um determinado
período, verificando como se deu a forma de manifestação desses conflitos, como eles foram veiculados pelos
meios de comunicação e, finalmente, como eles foram negociados, especialmente junto ao Estado. A cronologia
desses conflitos, bem como a análise dos casos mais significativos e os aportes teóricos necessários para se dar
conta da temática do conflito social são, por sua vez, compilados e apresentados na Revista do OSAL, uma
publicação quadrimestral veiculada pelo CLACSO a partir de junho/2000.
http://www.lpp-uerj.net/outrobrasil/programas_exibir.asp?codPrograma=2
14
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua,
Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. Apud: SADER, Emir e
JINKINGS, Ivana (Coord.). Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe. Rio de Janeiro:
BoiTempo, 2006. Verbete: Movimentos Sociais.
15
SETÚBAL, Mariana. Expressões do conflito social contemporâneo: reflexões para uma análise das lutas
dos movimentos sociais brasileiros em 2006. Disponível: http://www.lpp-uerj.net/outrobrasil/
8
grande mídia se posiciona a favor da ordem social estabelecida e do establishment vigente,
contra os movimentos sociais e reivindicatórios.
Presenciamos no cenário latino-americano movimentos sociais que estão voltados para
três grandes áreas: a urbana, a rural e a indígena, não menosprezando os demais que são
peculiares da sociedade contemporânea. O surgimento e a consolidação dos movimentos dos
povos indígenas, que avançam no cenário político e se associam à mobilização camponesa e
aos diferentes movimentos urbanos, alcançam uma significativa presença local, regional e
continental. Assim, no Brasil, o MST conquista uma relevância política e difunde sua
experiência para outros países como a Bolívia, o Paraguai; no México, o EZLN intensifica as
lutas camponesas e indígenas contra as políticas de liberalização da agricultura; na Argentina,
os piqueteros, desde 1999, ocupam um lugar de destaque no cenário de protestos contra o
neoliberalismo, tornando-se um movimento emblemático nas lutas contra o desemprego; no
Peru, a Frente Ampla Cívica de Arequipa, que se mobiliza contra a venda das empresas
públicas, etc. Em todos os movimentos as mulheres têm uma presença marcante e
protagonista, que pode ser assim destacada:
As figuras femininas destacaram-se também na constituição desses movimentos territoriais,
aparecendo assim refletidas tanto no papel destacado das mulheres “piqueteiras”, zapatistas e
indígenas, como na revitalização e reformulação das correntes feministas de décadas passadas
que se cristalizaram, entre outras experiências, na chamada Marcha Mundial das Mulheres16 e
na referência à “feminização da pobreza” (Sader, 2006, p. 814).
Também no sindicalismo latino-americano há uma convergência de idéias e mobilizações que
resultaram na formação de grandes aglomerados de organizações dos trabalhadores, como a Central
Única dos Trabalhadores do Brasil – CUT (1983); no Uruguai, a central Plenário Internacional de
Trabalhadores – Convenção Nacional de Trabalhadores – PIT-CNT (1985); na Colômbia, a Central
Unitária de Trabalhadores – CUT (1986); na Argentina, a Confederação Geral do Trabalho – CGT
(1992), que, em 1996 se transforma em Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA); no México,
surge a União Nacional de Trabalhadores – UNT (1998), contra a Confederação de Trabalhadores do
México (CTM) apoiadora das políticas neoliberais do Partido Revolucionário Institucional (PRI); na
Venezuela cria-se, em 2003, a União Nacional de Trabalhadores da Venezuela (UNT), de inspiração
bolivariana, movimento contrário à tradicional Central de Trabalhadores da
Venezuela
(CTV)
envolvida na desestabilização do governo Chávez etc. etc. Neste contexto, a Via Campesina coordena
as organizações rurais através da Coordenadoria Latino-americana de Organizações do Campo
(CLOC), além da articulação internacional feita pela Rede Internacional dos Movimentos Sociais.
Os movimentos sociais da América Latina, que constituíram a Cúpula dos Povos, no
Fórum Social Mundial de 2006, defenderam “o fim do pagamento da dívida externa”.
16
A Marcha Mundial das Mulheres (MMM) surgiu de uma iniciativa promovida desde 1996 pela Federação de
Mulheres de Quebec. A Secretaria Internacional tem sede em Montreal e congrega mais de 6 mil grupos de
mulheres de 161 países. Aqui no Brasil, o grupo que congrega as mulheres trabalhadoras rurais realizam as
marcha que é conhecida como A Marcha das Margaridas.
9
Segundo a Carta Capital (27-01-06)17, “para movimentos ligados à rede Jubileu Sul, o
mecanismo de endividamento tem servido estrategicamente para acelerar a aplicação das
políticas neoliberais. Entre 1970 e 2002, a dívida da América Latina subiu 2135%”.
Argumentam que a dívida financeira hoje existente significa pouco perto da “outra dívida –
histórica, social e ecológica – que os países ricos têm em relação às suas antigas colônias”. A
organização defende
que a partir daí uma nova ordem econômica teria de ser criada, baseada em princípios
eqüitativos e solidários. A lógica atual é outra: a pretexto de manter a estabilidade do sistema
financeiro ou a credibilidade de um governo, o pagamento da dívida é priorizado em relação a
outros gastos públicos.
A organização cita o caso brasileiro18, pois
estima-se que o governo Lula gastará nos quatro anos de sua gestão R$ 717 bilhões com juros
e amortizações das dívidas interna e externa, exceto refinanciamentos. Já a despesa com saúde
não deverá chegar a R$ 150 bilhões, e a de educação, a R$ 100 bilhões. Os dados foram
calculados pelo próprio Jubileu Sul a partir de informações colhidas junto ao Tesouro
Nacional e ao projeto orçamentário de 2006.
Segundo o mesmo documento, em 2002, a dívida externa da América Latina já
chegava a US$ 727 bilhões, 2135% maior do que o montante registrado em 1970. O peso da
dívida externa ameaça inviabilizar a economia de alguns pequenos países do Caribe. Entre
1997 e 2003, a dívida dos países do leste caribenho passou de 63% para 107% do Produto
Interno Bruto da região.
A luta dos movimentos sociais pela anulação da dívida dos países pobres e em
desenvolvimento fortaleceu-se durante a crise da dívida dos anos 80. A rede Jubileu Sul foi
formada em 1999, já tratando a questão da dívida não como um tema da economia apenas,
mas principalmente da política. No Brasil, a questão ganhou impulso no ano 2000, quando a
Campanha Jubileu Sul realizou o Plebiscito da Dívida Externa. O projeto mobilizou centenas
de organizações civis e conseguiu mais de seis milhões de votos a favor da auditoria – que
está prevista no artigo 26 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição,
mas nunca foi realizada, nos informa o mesmo documento.
Em setembro de 2006 (18 e 19), os movimentos sociais de toda a América do Sul se
reuniram em São Paulo para discutir alternativas de integração, em preparação para a Cúpula
dos Povos, em dezembro, na Bolívia19. A reunião visava a discutir o destino da América do
Sul e alternativas de integração regional dos povos. Paralelamente à reunião do FMI e do BM,
em Singapura (20-09-06), os movimento sociais promoveram protestos em frente ao escritório
17
Fonte: www.cartamaior.com.br
A primeira gestão do Presidente Lula: 2003-2006.
19
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=24425
18
10
do BM em São Paulo, contra as políticas neoliberais e de extorsão financeira praticadas por
estas instituições, bem como os impactos produzidos sobre “os direitos humanos e ambientais
dos povos”, fatos que se repetiram em outros eventos similares.
Acreditam as lideranças dos movimentos sociais de que
a inconformidade dos povos e a insubmissão dos movimentos sociais, especialmente os
indígenas, camponeses, em defesa da água e demais recursos naturais, colocou a hegemonia
neoliberal em uma situação de impasse, como não se viu em nenhuma outra parte do mundo.
A América do Sul, pela magnitude dos recursos que dispõe e pela irradiação política que
produz, é hoje um dos principais vetores de equilíbrio ou desequilíbrio da ordem capitalista
mundial. Por isso apostam todas suas fichas na cartelização do sub-continente20.
Os movimentos sociais ainda denunciam que
os Estados Unidos correm para fechar acordos bilaterais de comércio (os famigerados TLCs)
com a Colômbia, com o Peru, com o Equador e agora com o Uruguai. A União Européia,
conduzida pelas transnacionais e bancos que lhe sobram, insiste em negociar com o Mercosul
e CAN (Comunidade Andina) em termos não menos assimétricos. Enquanto isso, no interior
dos Estados nacionais e no âmbito dos marcos regulatórios internos, FMI, Banco Mundial,
BID e transnacionais promovem, articuladamente, privatizações diretas ou parcerias públicoprivadas, liberalizações comerciais cruzadas e programas de conexão de infra-estrutura
voltados para o livre-comércio, como a Iniciativa de Integração da Infra-estrutura da Região
Sul Americana (IIRSA)21.
O evento intitulado "Internacionalização capitalista ou integração dos povos: para
onde vai a América do Sul?" reuniu representantes de vários movimentos sociais, tais como o
MST (Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), Via campesina, Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB), lideranças indígenas, Rede Manglar (Equador), Fobomade
(Bolívia), Comisión Nacional en Defensa del Agua y la Vida (Uruguai), entre outros22.
Em agosto de 2007 (22), ocorreu em Brasília, a terceira Marcha das Margaridas23,
reunindo mais de 50 mil mulheres trabalhadoras rurais, significativo avanço em relação às
duas primeiras quando, em 2000 participaram 20 mil e, em 2003, 40 mil. A pauta de
reivindicações continha 109 itens24 e a Marcha das Margaridas “é uma ação estratégica das
trabalhadoras rurais para garantir e ampliar as conquistas das mulheres do campo e da
floresta”, com destaque para a
ampliação do Programa Nacional de Documentação da Mulher Trabalhadora Rural, a criação
de um programa nacional de apoio a experiências de geração de renda, a garantia dos direitos
das mulheres trabalhadoras rurais na Previdência Social e a instituição do fórum nacional de
combate à violência social e doméstica contra as mulheres.
20
idem
idem
22
idem
23
Homenagem à líder sindical paraibana Margarida Maria Alves, assassinada em 1983 por latifundiários.
24
http://contag.org.br/imagens/f43Pauta_reivindicacoes.doc.
21
11
Para Sader, os movimentos sociais passaram de seu ciclo reivindicatório de lutas
sociais, que se estendeu até o final do século XX, para o de lutas e de participação política,
seja através de apoios a candidaturas ou a constituição de partidos, apresentando certa
variabilidade nas opções estratégicas. Assim,
três caminhos distintos trilharam os movimentos sociais: o da renúncia a partir da disputa
político-institucional, como foram os casos dos ‘piqueteros’ argentinos na eleição presidencial
de 2003 e dos zapatistas em todas as eleições mexicanas desde sua aparição em 1994. Um
segundo caminho foi o dos movimentos sociais no Brasil e no Uruguai, que não apresentaram
alternativas próprias, nem se abstiveram, mas, com críticas, apoiaram os candidatos da
esquerda: Lula e Tabaré Vázquez. O terceiro caminho foi o da Bolívia, em que os movimentos
sociais construíram seu próprio partido político, o MAS (Movimiento Al Socialismo). Um
caso especial foi o Equador, em que os movimentos sociais - da mesma forma que na Bolívia-,
protagonizaram a derrubada de sucessivos governos, que pretendiam manter o modelo
neoliberal. Delegaram politicamente a um candidato - Lúcio Gutiérrez - e foram traídos ainda
antes de que este assumisse a presidência. Nas eleições recentes, Rafael Correa triunfou e
canalizou a força social e política acumulada para um projeto pós-neoliberal25.
No entanto, na Argentina o movimento “piqueteiros” não conseguiu construir uma
posição política de fundamentação de esquerda nas novas lutas contra as estruturas
estabelecidas; no México, os grandes movimentos das lutas sociais de Chiapas e de Oaxaca
não se projetaram no campo político, ficando limitados às suas pautas reivindicativas que
formaram sua constituição; no caso de Brasil, os movimentos sociais assumiram uma posição
crítica ao governo, mas sem resultados transformadores das estruturas sociais e econômicas
vigentes e se esvaziam em suas lutas sociais históricas; nos casos da Bolívia, do Equador e da
Venezuela parece que se caminha para uma rearticulação das lutas sociais com as lutas
políticas, evidenciando-se uma efetiva participação nos processos decisórios.
Em abril de 200726 se realizou, em Brasília, o IV Acampamento Terra Livre dos povos
indígenas do Brasil, que reuniu mais de mil representantes dos múltiplos povos indígenas que
constituem estas nações, na Esplanada dos Ministérios, compondo uma ampla pauta
reivindicatória em defesa dos direitos dos povos indígenas. Na medida em que determinados
25
SADER, Emir. Pós-neoliberalismo: da luta social à luta política.
http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=28806
26
De 16 a 19 de abril, “para tornar visível, junto ao Governo, a sociedade e opinião pública nacional e
internacional, a grave situação de desrespeito aos nossos direitos, após analisarmos a conjuntura política e
indigenista no Governo atual, com destaque para nossas preocupações quanto aos impactos do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) sobre as terras que tradicionalmente ocupamos, formulamos nossas
prioridades e estratégias de intervenção diante dos graves desafios relacionados à: violência contra os povos
indígenas; demarcação, proteção, gestão e sustentabilidade das terras indígenas; atenção à saúde; educação
escolar; afirmação e o respeito aos nossos valores culturais; participação na Comissão Nacional de Política
Indigenísta (CNPI) e ao exercício do controle social sobre os órgãos públicos; proposições legislativas em
tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, para exigir do governo vontade política no
atendimento das nossas reivindicações, através de uma política indigenísta, realmente nova, democrática e
sincronizada com os anseios dos nossos povos e organizações”. Ver documento completo em:
http://arruda.rits.org.br/rets/servlet/newstorm.notitia.apresentacao.ServletDeSecao?codigoDaSecao=9&dataDoJo
rnal=1177099631000
12
programas econômicos do governo Lula avançam em sua implantação, muitas terras
indígenas estão sendo atingidas, mesmo que o governo o negue. Os povos indígenas exigem
“uma política indigenista, realmente nova, democrática e sincronizada com os anseios dos
nossos povos e organizações”, como fora prometido na campanha eleitoral. Eles se sentem
enganados e traídos.
Antes de concluir este tópico, podemos questionar a contribuição dos movimentos
sociais à defesa da democracia, aos direitos humanos e ao desenvolvimento sustentável na
América Latina. Como a sociedade civil acolhe as manifestações e protestos dos movimentos
sociais? Como a mídia aborda e trata as questões defendidas pelos movimentos sociais?
Como os governos lidam com os movimentos sociais?
4 Conclusão
Sem dúvida, a grande contribuição na história recente da América Latina, por parte dos
diferentes movimentos sociais, foi na construção do processo de redemocratização do
continente. Lamentavelmente, este processo estagnou naquilo que os especialistas classificam
de “democracia eleitoral”, não se tendo atingido o nível da participação decisória, substância
ímpar da democracia. Neste sentido, é preciso caminhar na direção da construção dos valores
democráticos, não só no plano das leis, mas no da prática social do cotidiano no campo
econômico, social, cultural e político. Nesta perspectiva, alguns movimentos latinoamericanos estão sendo cada vez mais estrategicamente políticos do que apenas sociais,
constituindo-se como interlocutores que dialogam diretamente com o Estado. Por isso,
desenvolver a capacidade de intervir e construir a esfera pública é um grande salto estratégico
dos movimentos sociais. Neste modo de ver, A. Touraine coloca os movimentos sociais no
centro da reflexão sociológica, atribuindo-lhes uma ação histórica de relevância, de modo
particular, no incipiente século XXI.
Para Gohn, na América Latina “as mudanças advindas com a globalização da economia e a
institucionalização dos processos gerados no período da redemocratização levaram ao surgimento de
um novo ciclo de movimentos e lutas, menos centrados na questão dos direitos e mais nos mecanismos
de exclusão social” (Gohn, 1997, p. 336). Neste período entram em ascensão as ONGs que
deslocam os interesses políticos, apoiados pelo Estado, para ocuparem os vazios deixados
pela reforma do Estado ao se retirar, sob a égide neoliberal, dos setores sociais, aumentando a
histórica dívida social. Abre-se, igualmente, um novo espaço de interlocução que é o campo
empresarial que canaliza recursos financeiros para as ONGs dentro de sua política da
“responsabilidade social”. É um “casamento” interesseiro entre o primeiro e o segundo setores
para sustentar o terceiro, o enaltecido campo do voluntariado. Sinaliza-se, com esta prática
política, que a tendência humanitária prevalecerá no século XXI, para a qual se exige um
13
cidadão voluntário com espírito humanista, superando o perfil do homem consumista,
hedonista e unidimensional apregoado por H. Marcuse.
Na medida em que os movimentos sociais estão mergulhados em uma crise de
identidade, fomentada pelas aceleradas mudanças econômicas e tecnológicas da globalização,
resgata-se o discurso de enaltecer a sociedade civil como o universal mais abrangente em
detrimento da autonomia dos grupos e movimentos sociais, sem se contrapor ao Estado, mas
dando forças ao mercado, esta entidade “reguladora da sociedade”, por que o axioma
walrasiano “tudo se compra e tudo se vende” dá sustentação ao “reino do dinheiro”, tão
enaltecido pelo capitalismo neoliberal. Por outro lado, os movimentos não abandonaram as
grandes marchas, as concentrações, os congressos e manifestações de protestos, expressões
simbólicas de espaços de poder, congregando populares que se somam em número muito
superior aos militantes propriamente ditos. Entram nesta categoria os movimentos das
mulheres, dos ecologistas, dos povos indígenas, dos trabalhadores rurais, dos sem-terra e dos
sem-teto etc., muitas vezes articulados entre si.
Gohn (1997) relata de que o novo padrão de ser humano retratado pela mídia e por
alguns intérpretes e que tenha condições de sobreviver no século XXI, seria aquele que se
aproxima do perfil dos militantes dos movimentos sociais do final do século XX, ou seja, um
cidadão com interesses difusos, uma disposição meio racionalista e utilitarista (os interesses
do meu grupo, da minha empresa), sem um engajamento social transformador mas atento às
mudanças tecnológicas e se adaptando continuamente às mesmas, exigências da cultura do
mercado. A autora, por sua vez, discorda desta interpretação e se posiciona claramente de que
é preciso acreditar em utopias e que os movimentos sociais voltem a restaurar “a esperança e
a crença de que vale a pena lutar por uma sociedade mais justa e igualitária” (Gohn, 1997, p.
342).
Em derradeiro, é necessário apontar para uma construção utópica inspirada na defesa
dos direitos humanos, numa efetiva orientação e conscientização política com a identificação
dos valores universais relativos à condição humana (e não a particularismos de grupos ou
partidos políticos), movido na direção da formação de sujeitos, na busca da justiça e de uma
sociedade mais igualitária. Eis uma possível plataforma para os movimentos sociais deste
século, com a qual concordamos.
14
Referências
DOIMO, Ana Maria. A Vez e a Voz do Popular: Movimentos sociais e participação política
no Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: ANPOCS, 1995.
GOHN, Maria da Glória. Teorias dos Movimentos Sociais: Paradigmas clássicos e
contemporâneos. São Paulo: Ed. Loyola, 1997.
MARTINS, José de Souza. A Sociedade vista do Abismo: novos estudos sobre exclusão,
pobreza e classes sociais. 2ª ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2003.
RENON, Karin. Verbete: Movimento social. In: OUTHWAITE, W. e BOTTOMORE, T.
Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p.
500-503.
TOURAINE, A. O retorno do actor: ensaio sobre sociologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1984.
_______. Crítica da modernidade. 5ª ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1998.
_______. Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis/RJ: Vozes, 1998.
_______. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. Petrópolis/RJ: Vozes,
2006.
Visitar:
1 http://www.adital.com.br/site/tema.asp?lang=PT&cod=7
2 http://www.adital.com.br/site/tema.asp?lang=PT&cod=23
3 http://www.razonypalabra.org.mx/anteriores/n51/lmartell.html
4 http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=28406
5 www.unisinos.br/ihu nº213 América Latina em Movimento
6 www.unisinos.br/ihu nº 229 Economia Solidária
15
Download