32º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT 24 - MARXISMO E CIÊNCIAS SOCIAIS O MARXISMO IMPORTA NA ANÁLISE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS? ANDRÉIA GALVÃO – UNIFESP/GUARULHOS CAXAMBU, 27 A 30 DE OUTUBRO DE 2008 O marxismo importa na análise dos movimentos sociais? Andréia Galvão1 A América Latina tem sido, no período recente, palco de diferentes movimentos sociais: movimentos rurais, como o MST no Brasil; urbanos, como os piqueteiros na Argentina; de caráter étnico, como os movimentos indígenas na Bolívia, Peru, Equador e México. Esses movimentos têm sido analisados por perspectivas teóricas distintas, que destacam, sobretudo, sua composição social e sua plataforma reivindicativa, especialmente no que concerne a demandas de participação popular e ampliação da cidadania. Diversamente, a presente comunicação se propõe a analisar esses movimentos a partir de seu caráter de classe, partindo do pressuposto teórico de as classes não desapareceram e importam na análise dos movimentos sociais. Para tanto, discutiremos como o marxismo analisa os movimentos sociais e quais as especificidades de uma análise marxista dos movimentos sociais contemporâneos. Isso requer, de um lado, tratar criticamente perspectivas como a dos novos movimentos sociais, da mobilização de recursos, da mobilização política, do reconhecimento; de outro, distinguir a análise marxista de classes de outras análises que, embora se valendo de um conceito de classes, não se inserem na perspectiva marxista. O presente texto está dividido em três partes. Na primeira, tecemos algumas considerações críticas às abordagens supra-mencionadas. Não se trata, aqui, de apresentá-las de forma pormenorizada, mas tão somente de apontar seus limites. Na segunda parte, buscamos indicar os elementos que nos parecem fundamentais para uma análise marxista dos movimentos sociais. Por fim, empreendemos uma breve análise dos movimentos sociais na América Latina hoje à luz dos elementos que, a nosso ver, caracterizam uma abordagem marxista. 1 Professora de Sociologia da Unifesp/Guarulhos. Este artigo foi elaborado a partir das discussões do grupo de pesquisa “Neoliberalismo e classes sociais”, vinculado ao Cemarx/Unicamp, ao qual sou grata. Entretanto, sempre é bom lembrar que os problemas presentes neste texto são de minha inteira responsabilidade. 2 1. Algumas polêmicas com a bibliografia As teorias dos novos movimentos sociais e a da mobilização de recursos, desenvolvidas, respectivamente, na Europa e nos EUA, constituem-se em contraposição ao marxismo. Touraine, um dos mais profícuos e controversos estudiosos dos movimentos sociais, aponta para o caráter histórico, datado do conceito (Touraine, 1985). O autor possui uma vasta obra dedicada ao exame desse tema, obra em que é possível distinguir três momentos: numa primeira etapa, nos escritos que vão até o fim dos anos 60, a classe operária aparece como um dos atores centrais da sociedade industrial; a partir de 1969, diante da institucionalização do movimento operário e da aposta na emergência da sociedade “pós-industrial”, novos atores assumem o lugar central no conflito social (tornando-se os únicos capazes de mudar o curso da história); em meados dos anos 80, inaugura uma nova fase em que conclui pela impossibilidade de que um outro movimento social ocupe o lugar que outrora pertencera ao movimento operário: nem trabalhador, nem cidadão, o ator passa a ser o indivíduo. A coerência das 3 etapas é assegurada pela idéia de que a ação prevalece sobre a estrutura (Béroud et al, 1998). Touraine define movimento social como “a combinação de um princípio de identidade (lutamos em nome de quem?), de um princípio de oposição (contra quem?) e de um princípio de totalidade (que designa a dinâmica societária)” (Touraine, 1978, p. 109). A partir dessa definição geral, o autor identifica uma sucessão de formas de conflito que portam a “historicidade”2, o sentido da sociedade, fazendo uma série de exigências (que variam de uma obra a outra) para que um movimento possa ser qualificado de movimento social. A despeito das diversas formulações encontradas em sua obra, é possível identificar algumas idéias centrais. A primeira delas é que as mudanças verificadas na sociedade levariam a uma oposição entre “novos” e “velhos” movimentos sociais. Os “novos” se definiriam por aspectos sociais e culturais: se situam no campo da cultura, da sociabilidade, do modo de vida, dos valores, da identidade de “minorias”; não se caracterizam pela luta pela igualdade, mas pelo direito à diferença. Nesse sentido, não concernem mais diretamente os problemas da produção, da economia, nem dizem respeito a um conflito estrutural: “o conflito não está mais associado a um setor 2 Para Touraine há, no seio de cada sociedade, um só movimento social situado no centro das contradições sociais, que encarna um projeto de mudança social, de “direção da historicidade”. 3 fundamental da atividade social, à infraestrutura da sociedade, ao trabalho em particular; ele está em toda a parte” (Touraine, 1989, p. 13). A consequência dessa formulação é que os conflitos de classe teriam sido ultrapassados e a luta de classes não seria mais uma categoria analítica relevante: “Descobrimos que os conflitos de classes não representam mais os instrumentos de mudanças históricas” (Touraine, 1989, p. 15). “O conflito portanto deve ser introduzido e reconhecido em todos os domínios da vida social e particularmente ao nível da organização social e cultural, portanto, da ordem estabelecida. Onde exista uma ordem, deve existir uma contestação da ordem” (Touraine, 1989, p. 16). A respeito dessa primeira idéia, é possível afirmar que Touraine, como veremos a seguir, negligencia as continuidades e supervaloriza as mudanças. Uma das maneiras de fazê-lo é dissociar os movimentos sociais dos processos de exploração e de dominação capitalistas. O segundo aspecto enfatizado pelo autor é que o conflito só é dinâmico se não se institucionaliza; se se dirige ao Estado, deixa de ser movimento social. Por isso não considera mais o sindicalismo um movimento social (Touraine, 1989, p. 11) pois, na medida em que este aceita se integrar ao aparelho de Estado, acaba “funcionando apenas como uma agência de regulação” (Galvão, 2002, p. 161). Nesse sentido, maio de 1968 exprimiria a crise do movimento operário e o ingresso na sociedade “pós-industrial”. Ao se institucionalizar, o movimento operário deixa de ser um ator social para ser um ator político (Mouriaux, 2003, p. 18). Assim, acaba decretando o fim dos conflitos capital/trabalho, sustentando que são outros atores, como as mulheres, os ecologistas, os verdadeiros promotores de mudança nessa nova sociedade. O terceiro aspecto é que o autor não se coloca a questão da unidade do movimento social: cada movimento social é único, não havendo um princípio político que unifique os diferentes movimentos sociais (Touraine, 1985, p. 777). Formulações semelhantes podem ser encontradas na obra de outros estudiosos dos novos movimentos sociais. Para Melucci (1980, p. 200), o marxismo carece de instrumental analítico para compreender os novos atores sociais, já que estes reúnem coletivos distintos das classes. Os novos conflitos sociais se dão em nome da defesa da identidade, da busca do reconhecimento enquanto indivíduo, e não se restringem a uma única classe. Numa abordagem parecida, Evers (1984) enfatiza que a identidade é construída pelos indivíduos, descartando o conceito de classe por considerá-lo um conceito rígido, cuja identidade e papel seriam “pré-estabelecidos”. 4 Outro elemento encontrado nas teorias dos novos movimentos sociais diz respeito à relação entre movimentos sociais e política. Para Evers, os novos movimentos sociais “não diz[em] respeito principalmente ao poder, e sim à renovação de padrões sócio-culturais e sócio-psíquicos do quotidiano” (Evers, 1984, p. 12). Seu potencial de transformação não é político, mas constituem novas formas de fazer política: não são secundários em relação aos partidos, nem subordinados a eles. Para Offe (1985, p. 819), os novos movimentos sociais seriam afastados em relação ao Estado e à regulação política ou, conforme Melucci (1980, p. 220), não são focados no sistema político. Nesse sentido, exprimiriam a politização da sociedade civil e a tentativa de emancipá-la do Estado, buscando se afastar da política institucional (Offe, 1985, p. 820)3. Esta é, segundo Vakaloulis (2005), uma abordagem “essencialista”, na medida em que o movimento social representa a política autêntica (a valorização da sociedade civil contra o Estado). Embora admita que a base dos novos movimentos sociais é predominantemente de classe média, Offe (1985, p. 833) entende que esta não é movida por uma consciência de classe, porque não age em nome de seus interesses exclusivos, mas sim em nome de demandas e valores universais (como a paz, o meio-ambiente, os direitos humanos...)4. Os novos atores, as demandas mais “qualitativas” (ambientais, étnicas...), levaram Inglehart (1977) a utilizar o termo pós-materialista, para se referir às reivindicações por mais autonomia e qualidade de vida que caracterizariam os novos movimentos sociais. Essas reivindicações seriam possibilitadas pelo desenvolvimento capitalista, cuja abundância material teria gerado uma nova classe média. A despeito das diferenças entre essas teorias, elas baseiam-se em duas hipóteses centrais: 3 Embora apresente vários pontos em comum com os teóricos dos novos movimentos sociais, a abordagem de Santos é, neste ponto, distinta: “A novidade dos novos movimentos sociais não está na rejeição à política, pelo contrário, está na ampliação da política para além do contexto liberal da distância entre estado e sociedade civil” (Santos, 2003, p. 183). Procurando superar a dicotomia novos/velhos, o autor entende que existem novidades nas estruturas organizativas e no estilo da ação política, mas também continuidades, uma vez que os que os novos movimentos sociais continuam e aprofundam a luta pela cidadania. 4 Santos também considera os movimentos ecológico e pacifista como exemplos de formas de opressão que não atingem especialmente uma única classe social e sim grupos sociais transclassistas ou até mesmo a “sociedade como um todo” (Santos, 2003, p. 177). 5 1. A existência de um declínio histórico dos conflitos do trabalho e da greve. 2. A existência de uma cisão entre os conflitos do trabalho e as novas formas de conflituosidade. Essa perspectiva é insatisfatória, entre outros motivos, porque não considera o renascimento dos movimentos sindicais (do trabalho) e desconsidera os elementos de continuidade e de retorno às práticas dos “velhos” movimentos (como, por ex., a institucionalização dos “verdes”). Afinal, “a reivindicação da jornada de trabalho de 8 horas pelo movimento operário do início do século não é qualitativa?” (Neveu, 1996, p. 71). A teoria da mobilização de recursos, por sua vez, constitui um prolongamento do paradigma olsoniano, que procura mostrar os paradoxos da ação coletiva5. Essa perspectiva, representada por autores como McCarthy e Zald (1977), enfatiza os recursos, principalmente econômicos e coercitivos, que possibilitam a mobilização coletiva. Nesse sentido, privilegia menos o movimento, a ação coletiva em si, e mais os meios que são mobilizados para se atingir os objetivos pretendidos. Por esse motivo, tende a desconsiderar as razões que levam à mobilização, menosprezando as crenças, as ideologias, as visões de mundo (Chazel, 1995, p. 325). Tarrow (1994) busca compatibilizar as duas perspectivas anteriores, procurando mostrar como os contextos políticos ampliam ou diminuem as chances de sucesso do movimento social. Para isso, incorpora, de maneira crítica, os clássicos do marxismo. A despeito de suas contribuições6, nenhum desses autores teria considerado os recursos necessários para se engajar na ação coletiva e tampouco teria considerado as oportunidades e constrangimentos políticos7. A partir desse elemento, o autor busca 5 Em linhas gerais, pode-se dizer que Olson (1999) trata dos obstáculos à mobilização: ela não é uma decorrência direta do pertencimento a um grupo, mas sim fruto de um cálculo racional, por meio do qual o militante se mobiliza apenas se considera que pode obter mais ganhos do que prejuízos. Esse cálculo leva em consideração os incentivos materiais eventualmente oferecidos pela organização aos seus membros e os mecanismos de punição destinados aos free riders. 6 Segundo o autor: as clivagens da sociedade capitalista como um potencial de mobilização (Marx), a preocupação com a organização dos trabalhadores (Lênin), a preocupação com a construção da hegemonia (Gramsci) (Tarrow, 1994, p. 13). 7 Trata-se de uma crítica, a nosso ver, infundada. O conceito leninista de crise revolucionária e o gramsciano de crise de hegemonia não indicariam a preocupação dos autores com as oportunidades políticas geradas, de um lado, pelo conflito entre as classes dominantes – que, no limite, levariam à sua incapacidade em sustentar a velha ordem – e, de outro, pelo fortalecimento do projeto político dos dominados? A compreensão de Lênin de que a democracia é a melhor forma de governo para o proletariado sob o capitalismo, na medida em que possibilita a organização e a participação das classes 6 explicar os ciclos de protesto, o que faz com que alguns períodos possam ser marcados pela expansão dos movimentos sociais e outros pelo seu recuo. O autor destaca, entre os aspectos importantes para explicar o surgimento dos movimentos sociais: o funcionamento do sistema econômico, as motivações individuais, as capacidades organizativas do grupo, a criação ou expansão de oportunidades políticas (considerando que essas mudam ao longo do tempo) e o elemento transnacional (isto é, a capacidade das experiências nacionais serem influenciadas por similares estrangeiras ou serem articuladas internacionalmente) (Tarrow, 1999). Por fim, uma perspectiva que tem se desenvolvido no período recente é a da teoria do reconhecimento. Para seu principal expoente, Axel Honneth, os conflitos sociais são decorrência da infração das regras do reconhecimento recíproco, são uma reação moral ao desrespeito. O autor critica as concepções que vêem os conflitos como resultado da disputa de interesses, “que devem resultar da distribuição desigual objetiva de oportunidades materiais de vida” (Honneth, 2003, p. 255). A despeito dessa crítica, o autor busca apresentar a teoria do reconhecimento como um complemento e uma correção ao modelo de conflitos baseado em interesses, na medida em que “permanece sempre uma questão empírica saber até que ponto um conflito social segue a lógica da persecução de interesses ou a lógica da formação da reação moral” (Honneth, 2003, p. 261). Esses dois modelos são, portanto, baseados em lógicas distintas: num caso, a competição por bens escassos ou pelo aumento do poder, tendo em vista a necessidade de preservar as condições de reprodução (perspectiva utilitarista), que elimina o aspecto normativo da luta; no outro, a luta pelas condições intersubjetivas de integridade psíquica, pessoal. Apesar dessa distinção, acaba subordinando os interesses à moral: mesmo os que lutam por interesses o fazem numa perspectiva normativa, pois só a aquisição de determinados bens pode conduzir ao reconhecimento e ao respeito. Além do aspecto normativo, a concepção de Honneth é fortemente individualista: por luta social entende o “processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento” (Honneth, 2003, p. 257). A construção de uma identidade coletiva seria possível a partir de percepções dominadas no jogo político não constitui, ela também, um indício de sua preocupação com as oportunidades políticas? 7 subjetivas, isto é, do reconhecimento de que essa percepção é comum a outros indivíduos: assim, o desrespeito só leva à resistência coletiva “quando o sujeito é capaz de articulá-los num quadro de interpretação intersubjetivo que os comprova como típicos de um grupo inteiro” (Honneth, 2003, p. 258). “O engajamento individual na luta política restitui ao indivíduo um pouco de seu auto-respeito perdido” (Honneth, 2003, p. 259-60). Dialogando e, ao mesmo tempo, travando uma polêmica com Honneth, Nancy Frazer (2001) busca articular economia e cultura, interesse e reconhecimento. Embora admita que, num dado momento, houve um deslocamento dos movimentos sociais, que assumem bandeiras típicas do reconhecimento, considera que as questões de redistribuição (ou “materialistas”) tornaram-se novamente importantes, no que se diferencia de Honneth. Embora a contribuição dessa autora seja importante para a perspectiva marxista, na medida em que revaloriza as demandas econômicas e de classe, seu enfoque se atém ao horizonte da sociedade capitalista, não busca discutir as possibilidades de os movimentos sociais assumirem demandas anti-capitalistas, buscando uma transformação estrutural da sociedade, mesmo que isso não esteja na ordem do dia. A reabilitação do conceito de classe é feita por outros autores que também não se inserem na perspectiva marxista. Eder (2001) discorda daqueles que consideram que a noção de classe deixou de ser importante. Embora os novos movimentos sociais não considerem classe como um elemento definidor de sua identidade, podem ser definidos como movimentos de classe média: “são formas de radicalismo de classe média e protesto de classe média” (Eder, 2001, p. 7). Isto porque seus membros partilham não apenas uma estrutura de oportunidade social8, mas também uma estrutura de oportunidade cultural, na qual os conceitos de boa vida e de relações sociais consensuais são fundamentais. Para o autor, não adianta atribuir o caráter de classe de um movimento social à composição social de seus integrantes e apoiadores. O importante é analisar a cultura do movimento, o que pode ser feito através da identificação de seus interesses, normas e valores. 8 Essa estrutura “é entendida como os processos socioestruturais (diferenciação ocupacional, diferenciação cultural, diferenciação de renda, diferenciação de estilos de vida etc.) que abrem o espaço social para a diferenciação de classe e as relações de classe” – Eder, 2001, p. 13). 8 Sallum Jr. também enfatiza a importância da cultura, criticando autores como Melucci, Offe e Inglehart por não conseguirem explicar de modo satisfatório por que a classe média predomina nos novos movimentos sociais. Para Sallum Jr., esses autores “subestimam a relevância da cultura não apenas na articulação entre classe e ação coletiva, mas na conformação mesma dos dois termos... as classes e seus interesses são considerados como dedutíveis de suas posições sócio-econômicas” (Sallum Jr., 2005, p. 23-4). Este autor visa contribuir para preencher o vazio teórico decorrente da opção dos estudos sobre classe social se concentrarem na estratificação social, dissociando classe de ação coletiva, e da tendência dos estudos sobre movimentos sociais a desprezar a relação entre estrutura de classe e ação coletiva. Para isso, busca incorporar a dimensão cultural ao sistema de estratificação, valendo-se da noção de habitus (Bourdieu) e de contradição (Marx), articulando, assim, as categorias analíticas que lhe parecem necessárias para pensar tanto a questão da reprodução quanto a da transformação social. As classes sociais não são, por si só, atores coletivos, “mas fixam balizas, por sua posição relativa nos planos material e cultural, à sociabilidade cotidiana, aos movimentos sociais...” (Sallum Jr., 2005, p. 40). 2. Elementos para uma abordagem marxista dos movimentos sociais A teoria marxista, a despeito de seu interesse pelo estudo do movimento operário, não desenvolveu muito a temática dos movimentos sociais. As contribuições dos autores vinculados a essa abordagem, sobretudo os clássicos, priorizaram a discussão sobre as formas partido e sindicato, e a relação entre ambas. Nesse sentido, o movimento operário era o movimento social por excelência, de modo que a noção de movimento social estava vinculada à condição de classe e à luta entre capital e trabalho. Essa perspectiva foi desafiada não apenas pela eclosão dos chamados novos movimentos sociais, mas pelas teorias forjadas para explicá-los, teorias que, como vimos acima, buscavam negar a relevância da dimensão de classe e a centralidade da luta de classes. Nos anos 70, três estudos de autores vinculados ao marxismo se destacaram por abordar essa temática. Trata-se de La question urbaine, de Manuel Castells (1972), de Le marxisme, l’Etat et la question urbaine, de Jean Lojkine (1977) e de Luttes urbaines et pouvoir politique (1973), de Manuel Castells. Os dois primeiros trabalhos não tinham como foco os movimentos sociais: Castells faz menção às lutas sociais urbanas, 9 apontando a determinação, em última instância, dos elementos estruturais sobre as práticas sociais; Lojkine, por sua vez, discute o conceito de Estado capitalista e analisa as políticas sociais urbanas a partir dos interesses de classe. Apenas na conclusão do livro de Castells encontra-se, sob a forma de “tese exploratória”, uma definição de movimento social urbano9. No caso de Lojkine, essa questão é tratada somente no último capítulo do livro: movimento social é definido “pela capacidade de um conjunto de agentes das classes dominadas diferenciar-se dos papéis e funções através dos quais a classe (ou fração de classe) dominante garante a subordinação e dependência dessas classes dominadas com relação ao sistema sócio-econômico em vigor” (Lojkine, 1981, p. 292). Ele compreende dois processos sociais: “A) Um processo de ‘pôr-se em movimento’ de classes, frações de classe e camadas sociais. Esse primeiro processo define a intensidade e a extensão (o campo social) do movimento social pelo tipo de combinação que une: a) a base social, e; b) a organização do movimento social [....] B) Do ‘pôr-se em movimento’ ao ‘desafio’ político” (Lojkine, 1981, p. 296-7). Essa segunda dimensão significa que todo movimento social é portador de um desafio político, por isso, deve ser analisado em sua relação com o poder político (a crítica aqui é a Touraine). Assim, “o movimento social será definido, em última instância, por sua capacidade de transformar o sistema sócio-econômico no qual surgiu” (Lojkine, 1981, p. 298). Isso requer a análise de suas reivindicações e ações (tanto as propostas quanto as realizadas). Apesar de esses trabalhos apresentem teses distintas no que se refere ao papel do Estado e à compreensão do urbano, e de não terem como objetivo a análise dos movimentos sociais, é possível extrair alguns elementos pertinentes para a questão que nos importa: os autores consideram o movimento social como expressão da luta de classes; não estabelecem uma cisão entre mobilização e poder político, entre movimento social e organização política; e apontam para as diferentes dimensões políticas do movimento social: lutar pela transformação do sistema sócio-econômico não equivale a dizer que o movimento seja revolucionário. No terceiro trabalho supra-mencionado, Castells desenvolve a definição anteriormente proposta, definindo os movimentos sociais urbanos como “sistemas de práticas sociais contraditórias que controvertem a ordem estabelecida a partir das 9 “Por movimento social urbano entendemos um sistema de práticas que resulta da articulação de uma conjuntura definida, ao mesmo tempo, pela inserção dos agentes de apoio na estrutura urbana e na estrutura social, e de tal modo que seu desenvolvimento tenda objetivamente para a transformação estrutural do sistema urbano ou para uma modificação substancial da relação de força na luta de classes, quer dizer, em última instância, no poder do Estado” (Castells, 1983, p. 461). 10 contradições específicas da problemática urbana” (Castells, 1991, p. 3). Embora essa definição se restrinja a movimentos relativos à moradia, acesso a serviços coletivos e atividades culturais da juventude, o autor fornece pistas importantes para pensar os movimentos sociais em geral a partir da perspectiva marxista: a relação entre vida cotidiana e vida no trabalho (na medida em que a lógica produtiva domina a vida cotidiana); a relação indireta entre problemas urbanos e interesses de classe; a articulação entre os diferentes problemas urbanos; a politização da questão urbana; o potencial de mudança dos movimentos sociais urbanos; sua capacidade de questionar as leis estruturais da sociedade; a base social inter-classista desses movimentos. Todavia, essa perspectiva não foi desenvolvida, tendo sido inclusive abandonada pelo autor, que posteriormente se afastou do marxismo. Nos anos 80, já num contexto de crise do marxismo, dois autores influenciados por Gramsci, Laclau e Mouffe (1985) produziram um trabalho que criticava tanto a teoria dos novos movimentos sociais quanto uma certa abordagem marxista, na medida em que recusava a idéia de um agente histórico privilegiado, seja ele um grupo ou uma classe social. Os autores criticavam o marxismo da Segunda Internacional, opondo-se ao economicismo e à tese da proletarização das classes médias e do campesinato, considerando que sem levar em conta as especificidades dessas classes não seria possível construir uma alternativa hegemônica das classes dominadas. Por outro lado, valendo-se da noção de identidade, entendiam que as novas contradições sociais provocadas pelo desenvolvimento do capitalismo não poderiam ser reduzidas ao conceito de interesses de classe. Essas novas contradições, não situadas no nível das relações de produção, faziam com que o “inimigo” contra o qual os movimentos sociais lutam não pudesse mais ser definido em função da exploração, mas da posse de certo poder derivado de uma organização social, a um só tempo, capitalista, sexista, patriarcal e racista (Laclau e Mouffe, 1981, p. 21), já que o antagonismo de classe constitui apenas uma das formas de dominação e opressão. Diante disso, os autores se colocam se a seguinte questão: como articular essas identidades sociais dispersas, fragmentadas? A resposta enfatiza a importância do projeto político, pois as identidades políticas não são dadas de antemão, são construídas com base num complexo de práticas discursivas (Laclau e Mouffe, 1985). Se reconhecem que o sujeito de classe não é unificado, os autores apontam a necessidade de construir uma identidade comum, a despeito das diferenças entre os 11 agentes. Nesse sentido, defendem a articulação entre as demandas apresentadas pelos distintos movimentos sociais. Essa articulação é importante para superar as dificuldades e fraquezas de uma lógica fragmentada. Todavia, articulação não significa homogeneização: ela não deve reduzir ou eliminar as especificidades dos movimentos, de modo que estes devem preservar sua autonomia. A unidade não reside na vinculação com o trabalho, nem na condição de classe, embora entendam ser possível pensar a articulação entre o trabalho e as demais formas de dominação e, portanto, entre a luta dos “novos” movimentos sociais e a luta da classe trabalhadora. Para isso, é importante ver como a lógica capitalista, a maximização do lucro, está presente em esferas aparentemente desconectadas da economia, como a questão ambiental, já que é esta lógica que comanda a destruição dos recursos naturais. Assim, ao mesmo tempo em que sustentam que os movimentos sociais permitem fortalecer a luta anti-capitalista, na medida em que lutam contra diferentes formas de dominação, reiteram a necessidade de um projeto político que possibilite unificar esses movimentos em torna da luta anti-capitalista. Apenas nos anos 90 houve uma renovação dos estudos dos movimentos sociais a partir de uma perspectiva teórica marxista. Vejamos como alguns autores franceses têm contribuído para esse debate. Vakaloulis (2003) reconhece a extensão das formas de conflituosidade para além do universo do trabalho. As contradições da nova ordem produtiva, flexível, ultrapassam as fronteiras da empresa e dão origem a lutas distintas: desempregados, sem-direitos, contra o racismo e a xenofobia, igualdade de direitos entre homens e mulheres, defesa das liberdades individuais e coletivas... Assim, distingue dois pólos do movimento social: trabalhista, que se inscreve na trilha das lutas operárias (são conflitos de trabalho, embora a “recomposição sociológica do salariato” leve esses conflitos para além da fábrica) e societal, que compreende a ampliação dos direitos sociais, manifestações contra a guerra, “lutas cidadãs contra o racismo e o Front Nacional”. Esses dois pólos são interdependentes posto que são resultado das “mesmas causas estruturais e suas práticas se opõem aos efeitos combinados produzidos pelo sistema” (Vakaloulis, 2003, p. 89). A abordagem do autor busca pensar o que muda e o que permanece. A luta de classes mudou, não é mais aquela do capitalismo fordista. Novos atores e pólos de resistência emergem, que não se reduzem ao movimento operário, mas as lutas operárias 12 continuam a existir. Reconhecer a existência de movimentos policlassistas não significa que a dominação e a exploração de classes deixaram de ser importantes. Admitir que os movimentos sociais não surgem apenas da luta de classes, não é o mesmo que afirmar que estas foram eliminadas. Por fim, embora esses movimentos não sejam anticapitalistas, não se situam no exterior da relação capital/trabalho. Para o autor, os movimentos sociais são “fatores de politização e de emancipação das trocas sociais” (Vakaloulis, 2003, p. 81). A dimensão política dos movimentos sociais pode ser observada nos seguintes aspectos: 1. os movimentos sociais levantam e politizam problemas como emprego, segurança social, saúde, aposentadoria... 2. ao mesmo tempo, recusam a instrumentalização pela e a submissão à política partidária e institucional, o que não significa uma versão pósmoderna do anarco-sindicalismo, mas a demanda por igualdade com o político. 3. adotam práticas que ampliam o espaço público (participação direta, novos repertórios de ação). Os movimentos sociais emergem num contexto determinado, no qual há uma dificuldade de apreender a esfera política (as dificuldades de se exprimir através das instituições disponíveis, dos canais de representação tradicionais). Ou seja, eles não exprimem uma rejeição à política, tampouco se dirigem somente ao Estado. Eles têm projetos próprios, alternativos, expressam uma tentativa de transformação da sociedade. Não demandam apenas uma reorientação da política de Estado, uma intervenção, uma política pública, eles tentam fazer política de outro modo, são portadores de concepções distintas do que deve ser a política de Estado. A análise dos movimentos sociais deve articular aspectos econômicos, políticos e ideológicos, das condições objetivas e subjetivas (Béroud et al., 1998): a “origem comum [dos diferentes movimentos sociais], se é que existe uma, está no fato de que certos grupos sociais dominados entram em conflito, de forma direta ou indireta, com a materialidade das relações de poder e de dominação, mas também com o imaginário social marcado pela dinâmica da valorização/desvalorização” (Vakaloulis, 2005, p. 132). Do mesmo modo, deve articular elementos (e motivações) conjunturais e determinantes estruturais: “A força de um movimento social não se mede somente por 13 seus efeitos conjunturais (impacto temporário) ou substanciais (satisfação de reivindicações). Nem exclusivamente por sua capacidade de ‘pesar’ sobre a política institucional, modificando o que os cientistas políticos chamam de ‘estrutura de oportunidades políticas’. Se se coloca do ponto de vista de uma política de emancipação, a contribuição fundamental dos movimentos sociais é a de colocar os explorados e os dominados na frente da cena, mostrando que o espaço de contestação se constrói não em termos de contra-poderes mas, sobretudo, em termos de positividade” (Vakaloulis, s/d, p. 17). Béroud, Mouriaux e Vakaloulis apontam a polissemia da expressão movimento social e utilizam-na para designar “um processo amplo e multiforme de mobilizações” em busca de transformações sociais (Béroud et al., 1998, p. 21). Partindo da contribuição de Tarrow, que define movimentos sociais como “contestações coletivas, baseada em objetivos comuns e solidariedades sociais, numa interação prolongada com elites, oponentes e autoridades” (Tarrow, 1994, p. 4), esses autores se propõem a prolongar a problemática marxista do movimento social, definindo-o como a “dinâmica própria de um grupo social portador de reivindicações importantes, duráveis e conflituosas” (Béroud et al., 1998, p. 57). Distinguem movimento social de outras formas de expressão coletiva, que não se excluem mutuamente, para sustentar que nem toda ação coletiva é um movimento social. Este se caracteriza pela tendência à autonomia, por reivindicações explícitas, pela importância da oposição de classes na estruturação do movimento, pela emergência de solidariedade e pela necessidade de negociação: “Todo movimento social em sua especificidade mesma, não pode ser compreendido sem que seja considerada a centralidade da oposição capital/trabalho no seio das sociedades contemporâneas” (Béroud et al., 1998, p. 58). Assim, trata-se de pensar a possibilidade estrutural da ação coletiva, “as articulações e as sobreposições entre os conflitos do trabalho e os mais transversais” (Mouriaux, Béroud, 2005, p. 166)10. 10 É por esse motivo que Mouriaux fala em feminismos, não em feminismo no singular: “Nas formações sociais capitalistas, as mulheres são objeto de uma opressão específica herdada do passado e desde então articulada aos diversos pertencimentos de classe. O feminismo é o movimento de emancipação das mulheres que não vislumbram da mesma maneira seu combate libertador, em razão de suas origens sociais diferentes. A diversidade dos feminismos tem, portanto, um fundamento social que se cristaliza em ideologias distintas que, todavia, têm em comum um objetivo emancipador” (Mouriaux, 1995, p. 184). Em outras palavras: “quando se fala em feminismo, utiliza-se uma expressão aproximativa pois há vários feminismos: o feminismo burguês existe e não tem nada a ver com o feminismo de origem popular. Antes de mais nada, não são as mesmas organizações. É surpreendente que se coloque na categoria novos 14 A partir dessas considerações, pode-se afirmar que a perspectiva marxista faz diferença (ou importa) na análise dos movimentos sociais ao buscar a relação entre ideologia e classe, entre política e economia. Compreender o posicionamento de classe requer a análise das condições materiais, do impacto da ideologia dominante, da relação com as outras classes11. O movimento social não é fruto de uma oportunidade política desconectada da base econômica12, a ação política não está desvinculada de interesses materiais. Trabalhar com as contradições de classe ajuda a compreender os conflitos, as resistências dos dominantes à ação das classes dominadas, sobretudo quando elas são capazes de desvelar e apontar para as causas da desigualdade e da exploração. A abordagem marxista também permite ao analista se interrogar sobre a diversidade dos movimentos e, ao mesmo tempo, buscar seus elementos comuns13. Ainda possibilita compreender os movimentos de modo não linear, uma vez que a conflituosidade é feita de avanços e retrocessos. Isso requer examinar as contradições que o movimento encerra, seus limites. Por fim, possibilita considerar os níveis distintos movimentos sociais o movimento feminista, que é um movimento bastante antigo, que remete a contradições que são anteriores ao capitalismo” (Mouriaux, In: Galvão, 2002, p. 165). A abordagem de Hirata a esse respeito é, igualmente, interessante, embora distinta. A autora trata “a exploração no trabalho assalariado e a opressão de sexo” como relações indissociáveis, “a esfera da exploração econômica – ou aquela das relações de classes – sendo simultaneamente aquela onde se exerce o poder masculino sobre as mulheres” (Hirata, 1995, p. 82). A ligação indissociável “entre opressão sexual (e de classe) e exploração econômica (e de sexo)” permite reconceitualizar o trabalho, que passa a comportar as duas dimensões: relações de classe e de sexo (Hirata, 1995, p. 83). Desse modo, o trabalho (assim como suas categorias de análise) é sexuado, tem sexo. 11 Cumpre esclarecer de que maneira utilizamos o conceito de classes. Em primeiro lugar, descartamos os conceitos de classe que se circunscrevem à renda e/ou dimensão ocupacional. Em segundo lugar, a nosso ver, a posição de classe não pode ser considerada como mero reflexo da posição econômica. Mas se entendemos que não há uma relação mecânica entre posição no processo produtivo e posição de classe, isso não significa que não haja nenhuma relação entre ambas: consideramos que a localização no processo produtivo circunscreve um campo de interesses, que vai ser construído na luta de classes. Definido desse modo, o emprego do conceito de classe é útil para entender as razões de certas reivindicações e determinadas formas de ação coletiva. 12 A esse respeito, é importante inclusive considerar o papel do direito burguês que, ao estabelecer o respeito às liberdades individuais e a igualdade de todos perante a lei, fornece elementos para que os movimentos sociais, a exemplo do próprio movimento sindical, possam se constituir legalmente. 13 “Nós não queremos proclamar a unidade do movimento social a priori. Nós tentamos ver qual era a raiz comum, o que faz com que as mulheres, os desempregados, os sem-teto, os assalariados, se mobilizem. Há em comum a recusa do liberalismo enquanto lógica de um sistema econômico que é cega [...] Essa lógica do lucro atinge níveis de irracionalidade e é isso que unifica o movimento social atualmente: a recusa da desumanidade, mas trata-se ainda de um movimento bastante distinto, tanto por sua origem, pelos grupos sociais que são implicados, quanto por suas reivindicações” (Mouriaux, In: Galvão, 2002, p. 165). 15 de atuação política que, esquematicamente, podem ser resumidos nos seguintes aspectos: 1. Demandas pontuais ao Estado: subsídios para subsistência imediata (como os movimentos dos “sem”); 2. Reformas (econômicas, como a distribuição de renda; das instituições políticas, como mais participação, democratização14), ampliação da cidadania, direitos sociais (perspectiva anti-neoliberal); 3. Mudanças das práticas políticas e dos valores sociais: novas relações de gênero, raciais, de preferência sexual; 3. Anti-capitalista: requer pensar a questão da emancipação social. Feitas essas considerações de ordem teórica, passemos à análise empírica. 3. Os movimentos sociais na América Latina em questão15 Nesta parte do texto, buscaremos refletir sobre algumas experiências latinoamericanas recentes. Essa reflexão – que toma por base a bibliografia disponível (nem toda ela inspirada no marxismo, é bom que se diga) – leva em conta os seguintes aspectos: a composição social, a plataforma reivindicativa e a forma de atuação desses movimentos. Para tanto, parte de algumas questões e de algumas hipóteses: 1) Que condições teriam possibilitado a constituição e a ascensão desses movimentos? A hipótese presente na maior parte da bibliografia sustenta que esses diferentes movimentos, a despeito de sua heterogeneidade, constituem uma resposta aos efeitos nefastos da política neoliberal que vem sendo implantada, desde os anos 70 (se se leva em conta a experiência do Chile) por diferentes governos da região. 2) Que tipo de relação esses movimentos estabelecem com a esfera política? Essa questão contém em si mesma um suposto, qual seja, o de que esses movimentos 14 As demandas por mais participação podem assumir diferentes formas: a participação nas instituições existentes; a busca de novas formas de participação como forma de combater as instituições existentes. Aqui é preciso advertir que se pode lutar contra as instituições existentes apenas para substituí-las, mantendo-se o arcabouço institucional e suas regras de funcionamento e que a não-participação, longe de ser uma perspectiva que possa ser definida a priori como isolacionista ou sectária, também constitui um posicionamento político. 15 Retomo e desenvolvo aqui alguns aspectos da comunicação apresentada no 6º Encontro da ABCP (Galvão, 2008). 16 possuem uma dimensão política, dimensão essa que pode ser observada sob dois ângulos: de um lado, porque se constituem em contraposição a instituições, projetos e medidas políticas; de outro porque ao resistirem a essas instituições, projetos e medidas produzem um impacto político de monta. Esse impacto político passa pela criação de novas forças políticas; por sua posição – de oposição ou apoio – frente aos governos; por sua relação com os partidos políticos e com os demais movimentos sociais, como o sindical; pela luta por uma inserção institucional ou pela recusa a ela16. 3) Como definir esses movimentos? Esses movimentos caracterizam-se pela luta por direitos econômicos, como acesso à terra, garantia de trabalho ou benefícios sociais; e políticos, como o direito à participação política. Não se trata de lutar somente pelo reconhecimento de identidades étnicas ou de “minorias”, pois as reivindicações vão além dessas questões. Também não se trata de novos movimentos sociais stricto senso, não apenas porque alguns desses movimentos não são tão novos assim17, mas porque também não constituem necessariamente uma oposição ao movimento operário e sindical, mas se associam a ele, de formas distintas. Além disso, ao contrário do que propugnam as teorias sobre os novos movimentos sociais, é possível encontrar um caráter de classe nesses movimentos, o que permite pensar sua unidade, a despeito de sua heterogeneidade. 3.1 A relação entre neoliberalismo e movimentos sociais As causas que se encontram na origem desses diversos movimentos sociais são múltiplas, mas é possível encontrar, em todos eles, um aspecto comum: eles constituem uma reação ao neoliberalismo, muito embora a política neoliberal se apresente sob formas distintas e tenha sido aplicada com intensidade variada nos países latino16 Não se trata, portanto, de pensar a autonomia como ausência de vínculos com as instituições políticas, sejam elas Estado, governos ou partidos, ao contrário do que propugna a bibliografia produzida sob a influência da teoria dos novos movimentos sociais. Diferentemente do que defendem os autores ligados a essa corrente, os movimentos sociais não têm propósitos meramente culturais, de transformação da sociedade civil, mas também políticos, mesmo que a tomada do poder de Estado não esteja em questão. Daí a necessidade de se distinguir as diferentes formas de luta política. Nesse sentido, também se destaca a contribuição de Tarrow (1994), para quem os movimentos sociais são influenciados pelo sistema político, bem como buscam exercer influência sobre ele. Isto posto, seria interessante analisar seu impacto sobre a nova configuração política da AL, mediante a eleição dos diferentes governos de esquerdas. 17 O campesinato é um velho sujeito social, que alguns autores, inclusive marxistas, com a disseminação das relações de produção capitalista no campo, consideraram que estivesse fadado ao desaparecimento (por se tratar de uma classe não central no modo de produção capitalista). Aqui, é importante destacar a importância do movimento camponês na Revolução Russa de 1905, na Revolução Mexicana (1910-20), na Revolução Boliviana (1952), as Ligas Camponesas no Brasil (1954-64). O mesmo se pode dizer dos indígenas, cujos levantes em prol da reconstrução da nação andina marcaram a Bolívia e o Peru no século XVIII. 17 americanos. A Argentina talvez tenha sido o caso mais exemplar de uma política neoliberal levada ao extremo, cujo colapso teve um efeito devastador, dando origem à crise de 2001. A crise financeira provocada pela paridade peso/dólar deu origem ao corralito (retenção de dinheiro nos bancos, mediante o estabelecimento de um limite semanal de retirada) e provocou a explosão do desemprego e um empobrecimento generalizado. Essa conjuntura deu origem a movimentos distintos, cuja unidade pode ser encontrada no questionamento do neoliberalismo. São movimentos que reagem ao desemprego, à precarização e à pobreza, exprimindo o descontentamento com as falsas promessas do neoliberalismo e com o slogan da modernidade: compreendem o panelaço da classe média contra o corralito, os piquetes dos desempregados, o movimento das fábricas recuperadas, as assembléias de bairro (Chesnais, Divès, 2002; Palomino, 2006). Isso indica que o impacto negativo do neoliberalismo afetou, embora o tenha feito de maneira diferente, não apenas a classe operária, mas também as classes médias e até “grupos de burguesia dependente vinculados ao mercado interno” (Quijano, 2004, p. 75), produzindo uma contínua e crescente polarização social da população: “As três décadas de neoliberalismo na América Latina criaram as condições, as necessidades e os sujeitos sociais de um horizonte de conflitos sociais e políticos” (Quijano, 2004, p. 82). Esses movimentos denunciam os tratados de livre comércio, a ingerência dos organismos multilaterais sobre as políticas governamentais, declaram-se antiimperialistas18, criticam o capitalismo neoliberal, defendem Estados plurinacionais que reconheçam sua autodeterminação e seus direitos coletivos, demandam a participação em assembléias constituintes, cujos representantes não seriam escolhidos “‘via partidos ou eleições tradicionais’” (Almeida, 2006/7, p. 75). O caso mexicano produziu movimentos significativos, como os zapatistas de Chiapas e os manifestantes de Oaxaca. O primeiro tornou-se mundialmente conhecido a partir do levante de 1º de janeiro de 1994, quando os zapatistas se insurgiram contra a entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). Trata-se de uma luta pelo resgate da identidade e da autonomia, pela dignidade, que passa pela “recuperação e defesa da cultura, do fortalecimento da luta pelos direitos humanos individuais e coletivos, assim como pela geração de novas formas democráticas de 18 E alguns deles anti-capitalistas, embora esse elemento faça mais parte do discurso do que da prática política dos movimentos. 18 participação nos assuntos públicos” (Gándara, 2004, p. 104). Os segundos tornaram-se conhecidos em 2006, a partir de um movimento desencadeado por associações de professores em greve por aumento de salário e melhorias no sistema educativo. Esse movimento também exprime uma reação ao governo corrompido do PRI (mais particularmente, à eleição fraudulenta de Ulyses Ruiz ao cargo de governador em 2004) e à deterioração das condições de vida da população: 2/3 da população daquele estado é indígena, ¾ vive na pobreza, sendo que a situação sócio-econômica foi agravada pelo Nafta, que piorou as condições de vida no campo, levando à migração. Também as mudanças constitucionais promovidas pelo governo Salinas de Gortari, possibilitando a divisão e venda das terras comunais, produziram forte impacto num Estado onde 85% do território é de propriedade comunal, ao levar à remercantilização das terras e ao fim dos ejidos. Esses antecedentes mais amplos levaram ao apoio ao movimento dos professores e à ampliação de suas demandas, que passa de uma ação corporativa (greve dos professores) à luta pela destituição do governador (Gogol, 2007). A relação entre neoliberalismo e movimentos sociais também é evidente no caso boliviano: a Marcha Indígena pelo Território e a Dignidade, de 1990, constitui uma reação às políticas de ajuste estrutural que passaram a ser aplicadas em 1985 (com a eleição de Victor Paz Estenssoro) e que se chocavam com as autonomias departamentais, já que pretendiam restaurar a autoridade e a unidade do Estado (Regalsky, 2007), e com as autonomias indígenas, como a justiça comunitária. O ciclo de protestos, que envolveu organizações sindicais indígenas e de bairro e provocou a queda dos presidentes Gonzalo Sánchez de Lozada e Carlos Mesa, rechaçava os efeitos da política neoliberal, como “o aumento das tarifas dos serviços públicos (principalmente a água) e a desnacionalização da economia [que resultou no] (controle transnacional dos hidrocarburetos)” (Stefanoni, 2007, p. 54). A privatização das minas estatais contribuiu para fortalecer o movimento camponês e para sua articulação com o movimento sindical, já que mineiros se tornaram camponeses após terem sido “desalojados das minas estatais que foram privatizadas entre 1985 e 1988” (Sanjinés, 2004, p. 210). Também contribuiu para reativar o nacionalismo indígena, contra as transnacionais que adquiriram as empresas privatizadas (Do Alto, 2007, p. 90). A guerra da água, de Cochabamba (2000), contra a privatização do serviço municipal de água (Consórcio Águas Del Tunari), que provocou o aumento do preço da água e também assegurou à empresa o controle sobre os sistemas de irrigação e poços 19 administrados pelas próprias comunidades camponesas; os bloqueios aymaras em La Paz, em 2000 y 2001; e as guerras do gás, em 2003 e 2005, contra um consórcio transnacional de exportação do gás para a América do Norte, e em prol da nacionalização e reestatização dos hidrocarburetos e da convocação de uma Assembléia Constituinte, constituem os momentos mais expressivos desses movimentos19. Esses exemplos indicam que esses movimentos exprimem uma crítica ao neoliberalismo e, ao mesmo tempo, sinalizam que as criticas e resistências à política neoliberal provocam mudanças e adaptações no neoliberalismo, contribuindo para deslegitimá-lo política e ideologicamente, bem como para modificar o cenário político, como se verifica por meio da eleição de partidos de centro-esquerda20. 3.2 A composição social dos movimentos e as formas de luta Esses movimentos possuem uma abrangência social ampla, sendo possível apontar, em alguns casos, a múltipla condição dos mobilizados: no exemplo de Oaxaca, os mobilizados são, a um só tempo, indígenas, mulheres, jovens e trabalhadores urbanos (professores) (Gogol, 2007). Essa múltipla condição indica que, para além dos pertencimentos de ordem étnica, de gênero, geracional, é possível identificar um caráter de classe nesses movimentos. Essa intersecção entre identidade étnica e de classe também é visível no caso boliviano, tanto no caso do sindicalismo mineiro (operários), quanto dos camponeses produtores de coca: “O processo de demanda de reconhecimento identitário começou a se ligar às reivindicações camponesas e de classe, à demanda pela terra e pelo território e, pouco a pouco, à luta pelo controle dos recursos naturais [...] a Guerra pela Água [2000] como confluência dos movimentos urbanos com os camponeses” (Regalsky, 2007, p. 56). Assim, a luta é, a um só tempo, contra a opressão econômica, de um lado, e contra a opressão sócio-cultural (provocada pela condição indígena), de outro (Do Alto, 2007, p. 88). As convergências entre trabalhadores de categorias ou universos distintos (no caso boliviano, urbanos e rurais; no caso dos zapatistas, a confluência entre guerrilheiros revolucionários e indígenas), ocorrem em outras experiências: no caso 19 No caso da Venezuela, pode-se mencionar o Caracazo, de 1989, quando se registraram saques provocados pelo aumento generalizado do preço de produtos de primeira necessidade, após a eleição de Carlos Andres Perez. 20 Não vamos aqui discutir a natureza dos governos comandados por esses partidos. 20 argentino, verifica-se a confluência entre trabalhadores (assalariados entram em greve para obter o pagamento de salários), desempregados (sobretudo operários) e classe média, que passa por um processo de pauperização (Quijano, 2004; Chesnais, Divès, 2002). No caso brasileiro, a composição social do MST inclui desempregados urbanos e trabalhadores informais, bem como camponeses expulsos de suas terras. Com efeito, a política neoliberal bloqueia as possibilidades de acomodar os ex-camponeses e assalariados rurais nas cidades. Impossibilitados de encontrar um emprego, mesmo que no setor informal, estes se juntam ao MST. O mesmo acontece com os desempregados urbanos, ao verem negadas as oportunidades de se reintegrar à empresa ou de serem “requalificados” e transferidos a uma outra ocupação. Nesse sentido, as conseqüências das políticas neoliberais, no campo e nas cidades, acabam fornecendo uma base social para a expansão do MST (Coletti, 2002). Esses movimentos, tão diversos em sua composição social e em suas demandas, também se diferenciam em termos de correntes e tendências político-ideológicas, bem como em suas formas de atuação. Estas são condicionadas pelas tradições locais, de modo que não há características únicas. Por exemplo, os países com forte presença indígena são marcados por experiências coletivistas e comunitárias; os países mais industrializados, com um proletariado urbano mais expressivo, são marcados pela experiência do movimento sindical e por suas relações com os partidos políticos e com o Estado, a exemplo do corporativismo no México, Brasil e Argentina. Os movimentos latino-americanos se originam ou se amplificam num contexto de crise da democracia representativa, cuja expressão são os limites à participação popular (decorrentes de sistemas políticos excludentes) e a degeneração de instituições políticas tradicionais (partidos e sindicatos marcados pela corrupção, por práticas autoritárias e pela incapacidade de representar as demandas sociais que emergem nesse novo contexto histórico). Sua constituição desafia o espaço institucionalizado da política tradicional, fazendo frente à crise de representação, recusando a democracia delegativa e buscando novas formas de participação. Essas formas de participação passam pela constituição de organismos sem inserção no sistema político tradicional, a exemplo das assembléias de bairros na Argentina, da Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO), dos municípios autônomos de Chiapas, que constituem uma espécie de duplo poder, na medida em que as autoridades territoriais constituem-se paralelamente 21 ao Estado central e gozam de autonomia, já que controlam, através de assembléias comunitárias e autoridades tradicionais ou sindicais, o que ocorre em seu espaço territorial (Regalsky, 2007)21. Além de experiências de democracia direta, as formas de luta incluem práticas de autogestão (no caso das fábricas recuperadas) e ações de solidariedade, dentre as quais se destacam os clubes de troca (espaços destinados à troca de bens e serviços, que têm moeda própria: o crédito social), merenderos e comedores da Argentina. Também é possível encontrar mecanismos historicamente empregados pelo movimento operário, como barricadas, piquetes e ocupação de fábricas, acrescidos dos bloqueios de estrada promovidos por mineiros e camponeses, dos saques promovidos pelos desempregados, dos panelaços da classe média, da ocupação de terras pelos sem-terra. Algumas experiências valem-se habilmente dos meios de comunicação, como o rádio e a própria internet, para difundir suas bandeiras de luta para além de suas fronteiras, a exemplo do caso mexicano (tanto em Oaxaca como em Chiapas) e ainda assumem um perfil militarizado, como o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Alguns movimentos surgem espontaneamente, por fora de estruturas institucionais e partidos políticos tradicionais e até mesmo sem a mediação de sindicatos, como os movimentos de desempregados, das fábricas recuperadas e as assembléias de bairro argentinas. As jornadas de 19 e 20 de dezembro de 2001, que culminaram na queda do presidente Fernando De la Rúa e na adoção do lema “que se vayan todos”, caracterizou-se pela ausência de organizações de trabalhadores, salvo os de extrema esquerda. Estes, todavia, não dirigiram o movimento, de modo que a participação se deu de maneira individual e não organizada (Palomino, 2006). Outros movimentos, embora contem com a participação de organizações de esquerda em seu processo de constituição, dão origem a outras forças políticas e espaços organizativos. Esse é o caso de algumas associações de piqueteiros na Argentina, do MST no Brasil, do Pachakutik no Equador22, do Movimento ao Socialismo (MAS) e do Movimento Indígena Pachacuti (MIP) na Bolívia, do EZLN em Chiapas. 21 O debate bibliográfico referente a Chiapas tende a caracterizar essa experiência como uma tentativa de “mudar o mundo sem tomar o poder” (Holloway, 2003). Elogiada por alguns, que apontam as virtudes da sociedade civil em contraposição aos defeitos do Estado, essa estratégia é criticada por outros, como Borón (2003), que a caracteriza como a antipolítica do zapatismo. 22 Todavia, os indígenas que se sublevaram em 1990, organizados na Conaie, dialogaram diretamente com o Estado, sem a participação das principais instituições democráticas como os partidos políticos e o 22 3.3 As reivindicações e suas implicações políticas É possível afirmar que esses movimentos, cujas singularidades estão relacionadas às experiências político-organizativas e à história pregressa dos países em que se desenvolvem, exprimem uma recusa às instituições políticas tradicionais, recusa essa que passa pela criação de novas forças políticas – ainda que a relação com organizações já existentes não esteja descartada. Aqui também é possível observar características diferenciadas quanto à participação nos espaços institucionalizados, já que, na maioria dos casos, verifica-se uma recusa a esse tipo de participação, muito embora a criação de novas forças políticas destine-se, por vezes, a assegurar essa participação por fora das organizações tradicionais. Esse debate não pode ser traduzido em termos dicotômicos, numa polarização entre autonomia X institucionalização. Todo movimento social cria instituições e/ou se relaciona com as instituições políticas existentes, ainda que o faça de formas e em graus variados. O que é central é a discussão sobre autonomia, para verificar se a relação com outras organizações e a participação nos espaços institucionalizados da política implica o abandono de sua plataforma reivindicativa e se comporta o risco de cooptação23. Isso não significa associar automaticamente participação e cooptação. A participação não é por si só virtuosa, nem, de maneira oposta, a causa de todos os males. Por outro lado, a recusa à participação não é sinônimo de sectarismo e isolacionismo. É necessário avaliar a conjuntura em que ela se produz. Do mesmo modo, é necessário qualificar o que se entende por institucionalização. Ela compreende tanto a constituição de instituições (que tendem à burocratização à medida que se consolidam) quanto a participação em instituições já reconhecidas pelo sistema político. São dois processos independentes, ou seja, um não leva necessariamente ao outro. Algumas experiências buscam constituir uma alternativa de poder – ainda que não necessariamente numa perspectiva anti-capitalista, mas de implementar mudanças na concepção de Estado, a fim de democratizá-lo e de mudar a estrutura econômica –; outras não se colocam a questão da tomada do poder, operando desde reivindicações ao Congresso. A interlocução direta com o presidente, sem passar pelos mecanismos da democracia representativa, ocorre devido à exclusão dos indígenas do sistema político (Dávalos, 2004). 23 Ao mesmo tempo, convém destacar a necessidade de discutir os limites da luta meramente institucional (quando a via legal é a única opção/opção prioritária), que produz uma tendência à acomodação, ao conformismo, à integração à ordem, ao respeito às “regras do jogo”. Pode-se lutar contra as instituições existentes, mas apenas para substitui-las, mantendo-se o arcabouço institucional e suas regras de funcionamento. 23 Estado (como políticas públicas e benefícios sociais para assegurar sua subsistência imediata) até a constituição de territórios autônomos baseados em critérios étnicos, como no caso do zapatismo24. A política está presente nos movimentos étnicos, que têm como objetivos a “redefinição da questão nacional dos atuais Estados e a autonomia territorial das nacionalidades dominadas” (Quijano, 2004, p. 78). Observa-se, aqui, um entrecruzamento de demandas. O movimento equatoriano, por exemplo, articula um projeto nacional (como a proposta de plurinacionalidade do Estado), à uma identidade étnica. Os indígenas viam o movimento social não como complemento à democracia, mas como questionamento da democracia existente, como forma de disputar a hegemonia na construção de um novo Estado, de redefinir as regras do jogo político. Concebem a proposta de um Estado plurinacional, que se baseia em: “reforma jurídica sob condições de pluralismo jurídico, direitos coletivos, reconhecimento dos territórios ancestrais sob a figura das circunscrições territoriais, reconhecimento das instituições econômicas ancestrais etc” (Dávalos, 2004, p. 187). Estabelecem uma política de alianças como outros setores sociais, com quem se unem para deter a privatização da seguridade social, na tentativa de resistir à modernização neoliberal. Nesse processo, porém, os indígenas constituem organismos para atuar no interior do sistema político, como o movimento Pachakutik no Equador, “criado com o objetivo de levar ao interior do sistema de representação política a discussão sobre a plurinacionalidade” (Dávalos, 2004, p. 189); o MAS e o MIP na Bolívia. Todavia, a institucionalização produz paradoxos: de um lado, tem um potencial transformador; de outro, apresenta limites. A participação do movimento Pachakutik da coalizão indígena-militar que elegeu Lucio Gutiérrez em 2002 e, posteriormente, em seu 24 O conflito social em Chiapas é multidimensional e multicausal. Tem uma dimensão nacional, ainda que relacionada à luta contra a globalização neoliberal; e política, ainda que não se proponha a tomar o poder. Suas demandas vão além das reivindicações de direitos indígenas (cuja incorporação está relacionada às carências e marginalização à que essa população foi historicamente submetida). Compreendem a luta pela transformação do Estado e da sociedade, por meio da constituição de estruturas de representação política e de exercício de governo alternativos (Gándara, 2004). Assim, o zapatismo não busca tomar o poder central, mas constituir territórios autônomos em relação a ele. Esses territórios, administrados por instâncias próprias (os Caracoles), distintas das estruturas oficiais, contam também com seu próprio exército. Porém, o zapatismo tem uma autonomia limitada, porque abrange uma parte muito pequena do país e não impede que o poder central refreie, política e militarmente, os avanços zapatistas (Lemoine, 2007, p. 118). 24 governo fez com que o movimento adotasse uma estratégia dual, articulando a luta institucional à não institucional (Ramírez, 2003, p. 45). A presença marginal do movimento no governo e sua incapacidade de alterar a agenda neoliberal levaram à deterioração e à ruptura da aliança, após 7 meses. Embora tenha resistido a medidas governamentais, como o aumento do preço do gás, “o movimento político Pachakutik é pego em suas próprias contradições: deve questionar o sistema político desde dentro, mas ao participar finalmente o legitima” (Dávalos, 2004, p. 190). Isso evidencia os limites do potencial transformador dessa forma de participação, que se dá com determinados aliados e numa determinada conjuntura25. A novidade desses movimentos não reside em seu sujeito, já que indígenas se manifestaram em outros momentos históricos, assim como camponeses e desempregados. A novidade também não reside em suas formas de luta ou em suas demandas, já que piquetes e barricadas são historicamente empregados pelo movimento operário. A novidade se deve à conjunção de todos esses elementos numa nova conjuntura, marcada pelo neoliberalismo. As reivindicações e formas de ação dos movimentos aqui mencionados revelam um conteúdo político variável. A despeito das críticas às instituições políticas existentes, das demandas por autonomia, não se trata de se opor ao âmbito organizativo, nem mesmo de recusar as relações com o Estado. Verificam-se desde a criação de novas organizações e práticas políticas, até demandas que, muitas vezes, passam pelo Estado (como financiamento público, mudanças na legislação – seja uma nova lei de falências, um novo regime jurídico para as empresas, ou do reconhecimento das autonomias indígenas). Por fim, os conflitos sociais que conduziram a esses movimentos podem ser lidos à luz do pertencimento de classe. Nesse sentido, há uma articulação entre identidades étnicas e ocupacionais e condição de classe. A despeito das diferentes classes e identidades envolvidas, são movimentos de classes trabalhadoras (consideradas aqui em sentido amplo, a fim de incluir as classes médias e os camponeses), que têm em comum o fato de partilhar uma ideologia antineoliberal. 25 A participação também pode ser discutida num outro registro, como forma de combater as instituições existentes, a exemplo das experiências impulsionadas pelo governo Chávez que, não obstante o fato de ocupar o poder central, incentiva a participação popular, nas missões e conselhos comunais, buscando articular a conquista do poder de Estado às mudanças na sociedade civil. 25 Bibliografia Almeida, Lúcio Flávio Rodrigues de. Lutas sociais e questões nacionais na América Latina: algumas reflexões. Lutas Sociais, n. 17/18, 2006/7, p. 64-77. Béroud, Sophie et al. Le mouvement social en France: essai de sociologie politique. Paris: La Dispute, 1998. Borón, Atilio A. 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