filosofia,política e educação

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FILOSOFIA, POLÍTICA E EDUCAÇÃO
CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU
Francis Kanashiro Meneghetti* (UFPR e ISEPE-Guaratuba)
RESUMO
Rousseau pode ser considerado o primeiro grande teórico da pedagogia
moderna. Na busca pelo equilíbrio entre razão e emoção, configura-se herdeiro
do pensamento iluminista ao mesmo tempo em que dele é crítico. Analisandose estas três obras do autor: Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens, Emílio ou da educação e Do contrato social,
evidenciam-se categorias analíticas que se apresentam como princípios
essenciais para as discussões de ordem moral e política nos temas ligados à
educação. Dentre elas, destacam-se: (i) da vontade geral ou da democracia participação efetiva dos indivíduos no projeto social maior; (ii) da
individualidade - respeito à identificação individual e as diferenças dos seres
humanos enquanto únicos; (iii) da crítica à razão vigente - questionamentos
necessários e constantes que visam evitar forma única de conceber a
realidade; (iv) da igualdade e da supressão da opressão - recusa à origem das
desigualdades sociais ; (v) da justiça e da liberdade - efetivação da justiça
social e a reprovação de qualquer forma de sua banalização. Para tanto, a
proposta de Rousseau é fazer da moral e da política o campo de investigação
para a construção de categorias que possibilitem olhares diferenciados sobre
os temas da educação; é garantir que a razão prevaleça sobre os instintos e as
paixões; é evitar que as desigualdades ocasionem momentos de barbárie e de
banalização de princípios necessários para tornar mais humanas as condições
de indivíduos condenados a se utilizarem da crítica-reflexiva para afirmar suas
condições morais e, conseqüentemente, políticas.
Palavras-chave: Filosofia da Educação. Filosofia Moral. Política.
INTRODUÇÃO
Rousseau é tanto um filósofo das Luzes quanto um questionador da
razão que norteia o pensamento iluminista. Atribuindo importância à razão, não
negligencia a emoção como parte constitutiva da construção de uma sociedade
mais humana e certa do contrato social que a regula. Considerado por alguns o
primeiro filósofo da pedagogia moderna, suas contribuições, no entanto, nem
sempre são compreendidas. Para mudar essa realidade e a fim de
*
Pesquisador pela Universidade Federal do Paraná, Professor e Coordenador do Curso de
Administração no ISEPE-Guaratuba.
que
2
possam contribuir para a reflexão contínua dos preceitos da educação, o
presente artigo apresenta referidas categorias analíticas, ao discorrer sobre os
princípios da vontade geral ou da democracia; da individualidade; da crítica à
razão vigente; da igualdade e da supressão da opressão e da justiça e da
liberdade.
Esses
princípios
se
fundamentam
em
reflexões
contidas
basicamente em três obras de Rousseau: Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens; Emílio ou da educação e Do
contrato social. Entre os temas que justificam apresentar tais categorias
analíticas encontram-se: a desigualdade, a democracia, a piedade natural, os
paradoxos do amor de si e do amor-próprio, a razão, a justiça, a liberdade, a
vontade geral, a igualdade. Assim, a proposta do presente trabalho está
centrada na discussão da construção moral e política do indivíduo e sua efetiva
relação com o coletivo.
DESIGUALDADE, DEMOCRACIA, PIEDADE NATURAL E OS PARADOXOS
DO AMOR DE SI E DO AMOR-PRÓPRIO.
Para entender a construção da moral no homem, é necessário entender
o conceito de homem natural, presente na obra Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens. Para Rousseau, “o homem
selvagem, privado de toda espécie de luzes, só experimenta as paixões desta
última espécie, não ultrapassando, pois, seus desejos e suas necessidades
físicas. Os únicos bens que conhece no universo são a alimentação, uma
fêmea e o repouso, os únicos males que teme, a dor e a fome” (ROUSSEAU,
1999a, p. 66). Assim, o homem selvagem basta-se nas suas condições
naturais. O sentido de felicidade, de bem e de mal, de moral não são
encontrados no estado de natureza, porque “não havendo entre eles espécie
alguma de relação moral ou de deveres comuns, não poderiam ser bons nem
maus ou possuir vícios e virtudes” (ROUSSEAU, 1999a, p. 75). Todavia, o
acaso, que provavelmente rompeu com séculos de perpetuação da suficiência
desse estado, impõe novas necessidades que apresentam novas condições
para as primeiras formas de convivências sociais. Partindo dessa realidade, em
uma das observações, Rousseau distingue dois tipos de desigualdades: a
natural ou física, que consiste nas diferenças das forças físicas, da saúde, das
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idades e outras e a desigualdade moral ou política “porque depende de uma
espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo
consentimento dos homens” (ROUSSEAU, 1999a, p. 51). Nesse tipo de
desigualdade alguns se privilegiam ante o prejuízo de outros. É possível
identificar que o filósofo concebe as desigualdades como frutos da apropriação
do poder vigente por alguns poucos, isto porque o consentimento é a fonte de
legitimidade que confirma o poder daqueles que dele se apropriam.
Algumas reflexões necessitam ser feitas para esclarecer a autorização
do consentimento coletivo em favor de poucos. É necessário um sistema
regulador e punitivo que confira legitimidade coletiva para os privilegiados, mas
mais do que isto é necessária uma forma (seja imaginária ou de construção de
racionalidades) que atenda à ilusão dos excluídos para manter as diferenças
instituídas. Entre as que se destacam, na atualidade, ressaltam-se: (i) a idéia
de que se vive em uma sociedade baseada nos preceitos totais da democracia;
(ii) o entendimento de que as oportunidades são estendidas a todos; (iii) o
destaque do papel dos aparelhos ideológicos (ALTHUSSER, 1999) na
transmissão de conceitos e de deformações imaginárias para a construção de
uma realidade distorcida; (iv) a concepção de que todos são motivados para o
mesmo fim.
A ausência de democracia tem sua origem nas diferenças materiais.
Estas são responsáveis por configurarem relações de poder definidas e
sedimentadas entre os atores sociais. Assim, aqueles que adquirem vantagens
diferenciadas raramente abrem mão de tais conquistas. O discurso
uniformizador da igualdade de oportunidades, já descrita como o único
mecanismo para a justiça social, não se consolida na prática. Buscar a
igualdade pela uniformização de oportunidades é admitir serem iguais os
indivíduos e que, por isso, é possível definir estereótipos que atendam sempre
às mesmas necessidades. Esse equívoco transforma indivíduos em números e
provoca o retorno à impessoalidade dos sujeitos. A individualidade, diferente do
individualismo, deve ser respeitada, sob pena de, se assim não o for, cair na
incoerência das generalizações e relativismos numéricos. Destarte, “o conceito
de Democracia (República) para Rousseau, deve ser compreendido, nesse
sentido, não como uma forma de governo, mas como uma concepção de
existência humana que considera o público superior ao privado e que
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representa um valor moral objetivo que se deve universalizar” (VIEIRA, 1997, p.
95). Assim, em relação à democracia, algumas condições são indispensáveis:
(i) a igualdade de participação; (ii) o espaço político como espaço autônomo
das ações humanas; (iii) participação direta no poder público e, principalmente,
(iii) a supressão da propriedade privada, tal como, segundo Rousseau, originase o princípio das desigualdades.
A piedade natural, conceito importante para o autor, “representa um
sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do amor de si
mesmo, concorre para a conservação mútua de toda espécie. Ela nos faz, sem
reflexão, socorrer aqueles que vemos sofrer; ela, no estado de natureza, ocupa
o lugar das leis, dos costumes e da virtude” (ROUSSEAU, 1999a, p. 79).
Anterior à piedade, o que prevalecia era o amor de si como condição sine qua
non do estado de natureza. A piedade, posterior a esse estado, leva o eu para
fora de si mesmo, reconhecendo o outro como possível de ser ele mesmo. É o
princípio de identificação entre os homens. Assim, é a partir da piedade natural
que se tem a origem das idéias, das virtudes e dos sentimentos morais. A
identificação dos semelhantes, sendo o outro do outro, isto é, o si mesmo no
outro, cria um universo propenso para as primeiras associações. No sentimento
de preservação da espécie, os semelhantes associam-se para se manterem na
competição pela sobrevivência, que não deve ser predatória, ou seja, formam
associações voltadas para a constituição de forças de grupos que lutam por
seus interesses individuais. O amor de si, que se centra no eu individual,
precisa transformar-se em amor pela sociedade. Essa mudança de foco deve
incorporar
estratégias
de
defesa
da
comunidade
contra
as
ações
individualistas. Esse amadurecimento dos instintos é possível e consiste no
processo de racionalização que visa à preservação da sociedade como um
todo. Nesse sentido, a identificação entre grupo e indivíduo, e entre este e o
grupo, seria a base de sustentação no processo de transformação do amor de
si para o amor pela sociedade. A respeito do amor de si e do amor próprio,
suas importâncias na constituição e na reprodução moral, as palavras de
ROUSSEAU (1999b, p. 275) remetem para algumas reflexões: “O amor de si,
que só a nós mesmos considera, fica contente quando nossas verdadeiras
necessidades são satisfeitas, mas o amor-próprio, que se compara, nunca está
contente e nem poderia estar, pois esse sentimento, preferindo-nos aos outros,
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também exige que os outros prefiram-nos a eles, o que é impossível”. O amor
de si é constitutivo do sentido de preservação da espécie, que está ligada à
defesa pela sobrevivência. Sua base é fundamentalmente biológica e instintiva.
Nesse caso, o amor de si não é um fator que diferencia os homens dos
demais animais, pois estes são dotados dos mesmos elementos que
caracterizam quaisquer seres vivos. Desse modo, o homem e o animal
manifestam comportamentos semelhantes no momento em que sua vida está
em perigo, quando se vêem ameaçados ou se acovardam e fogem ou
enfrentam o inimigo por meio da luta, utilizando-se da violência. O que
prevalece é o instinto de sobrevivência que, geralmente, leva a atitudes
impensadas; entretanto, evidente e intrínseca sobressai a condição de seres
vivos. Verifica-se que o amor de si não exclui o outro como objeto necessário
para a manutenção de tal amor. A partir do momento em que os homens se
tornaram animais gregários, portanto sociáveis, a presença do outro se tornou
fundamental para a conservação da espécie. A identificação e as estratégias
de sobrevivência, com o passar do tempo, são cada vez mais dependentes do
processo de socialização. Essa passagem, em consonância com o homem
natural isolado, apresenta-o como um ser que, hoje, não consegue mais viver
na solidão. Seus esforços solitários, suficientes no estado de natureza, tornamse incompatíveis com as atuais condições de manutenção da vida.
AS LUZES DE EMÍLIO
Uma das características fundamentais da moral, segundo Rousseau, é
que esta não pode desconsiderar o papel das paixões em detrimento de um
racionalismo crescente. Isso se justifica porque “nossas paixões são o principal
instrumento de nossa conservação; portanto, é uma tentativa em vão quanto
ridícula querer destruí-las. (...) Nossas paixões naturais são muito limitadas,
são os instrumentos de nossa liberdade, tendem a nos
conservar”
(ROUSSEAU, 1999b, p. 273). A pré-concepção de que as paixões levam a
atitudes violentas e agressivas na conservação é um equívoco.
Apesar disso, não há como os homens abandonarem o princípio
primeiro que rege a conduta humana, o instinto de sobrevivência. Assim, “sem
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os instintos e as paixões, a razão torna-se estéril e acadêmica, ao passo que,
sem a disciplina da razão, as paixões e os instintos levam ao caos individual e
à anarquia social” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 756). A razão, como guia das
ações humanas e, sobretudo, como norteadora das condutas sociais por meio
da moral instituída, deve estar em conformidade com o instinto de
sobrevivência. A separação entre razão, instinto, emoções e sentimentos,
freqüente no senso comum, distancia ainda mais a compreensão da natureza
humana, mas as condições humanas sofrem constantes modificações ao longo
da história e, por isso, a necessidade de “conciliar” a relação entre tais
concepções ganha novo direcionamento depois das contribuições de Freud e
da neurociência. Exemplo disto são os trabalhos de DAMÁSIO (1996, 2000).
Independente da centralidade da discussão – razão do indivíduo ou
razão social – é certo que ambas interagem e transformam-se em processo
contínuo. Retornando à discussão de Rousseau sobre a necessidade de a
razão ser o guia das ações sociais, este, após afirmar que a “condenação”
inicial do homem estava posta (ser “expulso” do estado de natureza, à qual era
feliz e bastava-se a si mesmo), levanta a hipótese de que o homem natural,
biologicamente sadio, íntegro, justo e ausente de maldade e opressão original,
não retorna mais a essa condição primeira; dessa forma, é necessário uma
razão construída socialmente para regular os desequilíbrios sociais e, evitar,
assim, a desordem social. Essa necessidade se faz, porque a consciência
imediatamente após o afastamento do estado de natureza apresenta-se como
consciência degenerada ,que, ocasionalmente, corrompe a natureza humana.
A bondade original (então é necessário compreender o sentido desse
conceito1) deve-se ao fato de que o homem essencialmente bom tinha poucas
necessidades. O que modifica esse rumo é a criação de novas necessidades
que, conseqüentemente, levam a novas relações sociais, muitas delas
baseadas na competição e na exploração entre os indivíduos. Por isso, “o que
torna o homem essencialmente bom é ter poucas necessidades e pouco se
comparar com os outros; o que o torna essencialmente mau é ter muitas
necessidades e dar muita atenção à opinião. A partir desse princípio, é fácil ver
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A bondade original não pode ser valorada com a concepção moral atribuída na atualidade.
Essa bondade concentra-se, muito mais, na ausência da maldade das ações do que na
presença de um conceito metafísico de bondade. Assim, é um conceito que tem como atributo
a construção negativa, sem a conotação moral de nossa época.
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como podemos dirigir para o bem ou para o mal todas as paixões das crianças
e dos homens” (ROUSSEAU, 1999b, p. 275).
Uma das características mais marcantes da atual sociedade refere-se à
forma como as paixões se tornaram instrumentalizadas, como se houvesse
uma economia das paixões, dos sentimentos e dos afetos. As trocas afetivas,
todavia, são direcionadas para as satisfações individuais e ao focar o indivíduo
provocam relevante perda social, pois, ao atenderem às necessidades
individuais, deixam as questões do coletivo pormenorizadas, menosprezadas.
O que se criam e se intensificam são necessidades que atendem a interesses
particulares. Por isso que Rousseau afirma a necessidade de uma sabedoria
quanto ao uso das paixões: “Eis, portanto, o sumário de toda a sabedoria
humana quanto ao uso das paixões: 1. sentir as verdadeiras relações do
homem, tanto na espécie quanto no indivíduo; 2. ordenar todas as afecções da
alma conforme essas relações” (ROUSSEAU, 1999b, p. 284). A razão, nesse
sentido, é necessária para a compreensão das paixões, entretanto, sua função
essencial é direcionar as paixões humanas para o entendimento do indivíduo e
do coletivo. A passagem da ordem do indivíduo para a do coletivo é um
imperativo para a consolidação de uma sociedade menos injusta ou
excludente, isso porque:
enquanto sua sensibilidade permanece limitada a
seu indivíduo, não há nada de moral em suas ações.
Somente quando ela começa a se estender para
além dele, é que ele adquire primeiro os
sentimentos, depois as noções do bem e do mal,
que o constituem verdadeiramente como homem e
parte integrante de sua espécie. Portanto, é sobre
este primeiro ponto que devemos concentrar nossas
observações (ROUSSEAU, 1999b, p. 284).
A união dos homens, para Rousseau, ocorre pela fraqueza humana,
cujas necessidades crescentes e modificadas impõem novas ordens sociais,
porque atender a elas requer novos esforços e novas relações sociais. A
condição de homem civil é permeada de características que corromperam o
homem natural, por isso, Rousseau fala de homens que se tornam sociáveis
por suas fraquezas e de corações humanos constituídos das misérias comuns
compartilhadas (ROUSSEAU, 1999b, p. 286).
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Perceber essa condição é uma tarefa da razão sem negar a dimensão
dos instintos e das paixões; é tornar-se sensível socialmente sem perder a
noção da individualidade; é ir além da aparência e entender a essência, isto
porque “julgamos demais a felicidade pelas aparências; supomo-la onde menos
ela está; procuramo-la onde não poderia estar” (ROUSSEAU, 1999b, p. 299). A
experiência do outro, dessa forma, é essencial para o auto-conhecimento e
compreensão das relações sociais, porque “não há conhecimento moral que
não possamos adquirir pela experiência de outra pessoa ou pela nossa própria.
No caso em que essa experiência é perigosa, em vez de nós mesmos a
realizarmos, tiramos a sua lição da história” (ROUSSEAU, 1999b, p. 328).
A história, assim, desempenha papel significativo e relevante na
constituição da sociedade e da consciência dos homens. O grande ponto de
reflexão é saber se essa história é escrita pela maioria ou se pela minoria que
detém o poder das instâncias determinantes. A realidade parece demonstrar
que a segunda opção é mais evidente; todavia, argumentos contrários,
baseados no pensamento de SARTRE (1997) ao afirmar que a omissão é
também uma forma de escolha e, conseqüentemente, de liberdade, remete a
questionamentos que não requerem regressões nesse momento. Pensar de
que forma direcionar os esforços para a formação de uma sociedade que
renove seus valores morais de maneira a preservar o amor à humanidade é
uma das tarefas que requer árduo engajamento. Como elemento para tal feito,
as virtudes são essenciais, só “o exercício das virtudes sociais leva ao fundo
dos corações o amor da humanidade; é fazendo o bem que nos tornamos
bons; não conheço outra prática mais segura” (ROUSSEAU, 1999b, p. 331).
Essa afirmação de Rousseau remete a uma reflexão simples, porém,
importante: a ação é o ponto central para a transformação da realidade; mas as
ações devem estar em conformidade com o sentido do que pode ser
considerado bom. Só o conjunto dos indivíduos dotados de consciência
emancipada tem a possibilidade de definir o que é benéfico ou não para a
sociedade. Para que isso ocorra, o pensar do cotidiano é essencial. “O homem
não começa facilmente a pensar; mas, assim que começa, não pára mais.
Quem já pensou, pensará sempre, e, uma vez exercitado na reflexão, o
entendimento não poderá mais permanecer em repouso” (ROUSSEAU, 1999b,
p. 339). O homem está condenado, dessa forma, a refletir e, para tirar proveito
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disso, precisa entender a realidade sob diversos aspectos. O problema do
conhecimento e, portanto, de sua ausência limita a compreensão da totalidade.
Essa condenação se deve ao fato que “a única coisa que não sabemos é
ignorar o que não podemos saber” (ROUSSEAU, 1999b, p. 359). O estímulo,
portanto, é a busca do conhecimento e de sua democratização, mesmo que
aparente um projeto utópico. Não pode haver socialização sem conhecimento
das condições essenciais da natureza humana. Outro fator importante que
Rousseau ressalta é o papel da liberdade. “Não há verdadeira vontade sem
liberdade. O homem, portanto, é livre em suas ações e, como tal, animado de
sua substância imaterial: este é o meu terceiro artigo de fé” (ROUSSEAU,
1999b, p. 378). As formas de fuga das determinações só se efetivam por meio
da liberdade inerente aos seres humanos. Essa liberdade está focada na
prevalência da razão sobre os instintos.
Da mesma forma, é importante que os deveres morais devam guiar os
homens para as ações de bondade, evitando a subsunção dos sujeitos a
imposições de regras e de deveres que, no fundo, servem como medida de
escravidão social. Essa lógica de transformação da realidade está presente no
pensamento de Rousseau: “Os deveres morais têm suas modificações, suas
exceções, suas regras. Quando a fraqueza humana torna inevitável uma
alternativa, dos dois males escolhamos o menor; em qualquer ocasião, mais
vale cometer um erro do que contrariar um vício” (ROUSSEAU, 1999b, p. 460).
A decisão, fato que comprova a autonomia dos indivíduos, deve se guiar
sempre no sentido da menor perda para a sociedade. A ausência do erro é
impraticável, porque a noção de certo e de errado está condicionada,
infalivelmente, a concepções morais vigentes. Mesmo que se procure um
sentido metafísico para a moral, esta não conseguirá livrar-se da condição
humana do interlocutor. O que ocorre, destarte, é a construção de deveres
morais que estruturam o sentido de justiça. Assim, é possível falar que “onde
tudo está bem, nada é injusto. A justiça é inseparável da bondade; ora, a
bondade é o efeito necessário de uma potência sem limite e do amor de si,
essencial a todo ser que sente” (ROUSSEAU, 1999b, p. 380).
A relação dever moral, sentimento, razão e justiça constrói e formata as
relações sociais. É nessa perspectiva que se encontram três máximas
apresentadas por Rousseau em Emílio ou da Educação, são elas: (i) “Não
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pertence ao coração humano colocar-se no lugar de pessoas mais felizes do
que nós, mas apenas no lugar das que estão em situação mais lastimável”
(ROUSSEAU, 1999b, p. 290); (ii) “Só lamentamos no outro os males de que
não nos acreditamos isentos” (ROUSSEAU, 1999b, p. 291); (iii) “A piedade que
se tem pelo mal de outrem não se mede pela quantidade desse mal, mas pelo
sentimento que atribuímos aos que o sofrem” (ROUSSEAU, 1999b, p. 292).
O primeiro item refere-se às condições pelas quais os sujeitos se
identificam
diante
das
dificuldades
que
reconhecem
afligirem
seus
semelhantes. Situações de dificuldades são, muitas vezes, fatores de
agregação de semelhantes que procuram soluções para os problemas em
comum. O segundo concerne à lamentação, pois o reconhecimento das
fraquezas dos outros torna-se o balizamento das nossas, uma vez que a
sensibilidade só se efetiva na percepção do si mesmo como o outro da relação.
O terceiro, atinente ao sentimento de piedade, apresenta um caráter qualitativo,
porque o sofrimento é sempre sentido de maneira singular, e quantitativo,
porque está relacionado à intensidade com que esse sofrimento se apresenta.
Emílio divide-se, fundamentalmente, entre os seus interesses particulares - a
identificação entre individualismo, particularidade e egoísmo e os interesses
públicos – identificação entre coletivismo e altruísmo (BARROS, 1995, p. 141).
Assim, toda construção de identificação social passa na relação desta com a
sociedade. O todo (a sociedade) e as partes (os indivíduos) são sempre postos
no centro das discussões.
O CONTRATO SOCIAL E O INDIVÍDUO NA SOCIEDADE
Um dos pontos centrais do pensamento de Rousseau refere-se ao
estabelecimento de uma vontade geral que deveria respeitar a autonomia dos
indivíduos sem, contudo, esquecer as condições humanas originais dos
homens. Destarte, “o homem, voltado para a sua própria conservação, é capaz
de considerar a espécie em geral, impondo-se deveres que o levam a sair de si
mesmo, uma vez que não percebe diretamente sua ligação com a espécie”
(ROUSSEAU, 1999c). Os deveres são originários da própria conservação e, no
momento oportuno, manifestam-se nas ações exteriores a si mesmo. O homem
passa ser uma fração do todo, idéia já defendida em Emílio. O problema, que,
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eventualmente, problematiza as relações sociais e, mais especificamente, os
fatos relacionados ao cumprimento do contrato social, é que o processo de
socialização apresenta-se mal direcionado.São pouco valorizados aqueles que,
de todas as formas, lutam pela manutenção de uma sociedade baseada na
igualdade de oportunidades e liberdades. Um dos passos fundamentais dos
homens é garantir participação política para seus cidadãos. O primeiro ato para
isso é criar a luta contra as diferenças, porque “a sociedade política deve
nascer como uma negação das desigualdades, responsável pelos problemas
da vida social” (VIEIRA, 1997, p. 95). Assim, no Contrato Social, o que é
vislumbrado não é um retorno à natureza originária, mas a construção de um
modelo social, cujos instintos e impulsos passionais, assim como a pura razão
contraposta aos sentimentos, não ditam a ordem existente. Ascende uma
consciência global no homem aberto para a comunidade, que passa a ter a
individualidade preservada a partir do momento em que a vontade geral se
consolida. É a lógica da realização do indivíduo na realização dos projetos
coletivos.
CONTRIBUIÇÕES DE ROUSSEAU À FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
Por meio do pensamento de Rousseau, é possível apresentar algumas
categorias analíticas, decorrentes das reflexões feitas de algumas passagens
de suas obras, que, de forma alguma, pretendem ser definitivas ou
apresentadas como verdades absolutas. São categorias apresentadas como
princípios, que procuram sistematizar algumas reflexões possíveis de serem
feitas nos horizontes da educação. Todas estão fundadas no questionamento
de concepções políticas, baseadas na consolidação moral vigente, que
norteiam a construção de uma educação voltada para a emancipação e para a
igualdade social. A seguir, discorre-se sobre tais categorias: Princípio da
vontade geral ou da democracia: é a participação efetiva dos indivíduos no
projeto social maior. Os interesses coletivos prevalecem e são assegurados de
forma a garantir a ordem social, incorporando e realizando os projetos
individuais por meio do seu projeto e promovendo a transição da centralidade
dos interesses individuais e particulares para o do coletivo. Princípio da
individualidade: é o respeito à identificação individual e das diferenças dos
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seres humanos como únicos, intimamente ligado ao processo de identificação
pela piedade natural. Pelo seu exercício, efetiva-se a passagem do amor de si
para o amor-próprio. A consolidação da identidade coletiva não pormenoriza,
minimiza o instinto e os sentimentos necessários para a preservação da
condição humana. Princípio da crítica à razão vigente: são os questionamentos
necessários e constantes que visam evitar forma única de conceber a
realidade. É o fim dos dogmas e da aceitação, da passividade dos indivíduos
frente às imposições morais e racionalizadas do mundo. É o não conformismo
das instâncias de poder instauradas, que engessam as relações de poder.
Constitui a dialética da transformação de forma a garantir a prevalência da
razão em relação aos instintos. Princípio da igualdade e da supressão da
opressão: É a recusa à origem das desigualdades sociais; o questionamento
do domínio de poucos sobre a vontade geral; a recusa por qualquer forma de
violência; a constante construção da participação social na divisão dos ganhos
materiais e sociais. Princípio da justiça e da liberdade: Constitui a efetivação da
justiça social e a reprovação de qualquer forma de sua banalização; o evitar do
pensamento totalitário e dogmático; a concretização dos interesses gerais e de
regras que garantam o pacto social; a solidificação dos interesses coletivos. É
a garantia da liberdade baseando-se no que é de direito, afastando todas as
formas de autoritarismo.
Esses são alguns princípios que devem guiar o questionamento moral e
político da sociedade em busca de consolidar seu pressuposto de igualdade
entre os homens. Assim, “educar para as exigências do novo pacto social é
empresa árdua, que exige coragem e força. Com efeito, não se trata de
abandonar o homem à voz dos instintos, mas sim de educá-lo para que se
deixe subjugar à voz superior da razão” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 772).
Dessa forma, os atos humanos devem se fazer no sentido de garantir que a
razão prevaleça sobre os instintos e as paixões; de evitar que as
desigualdades ocasionem momentos de barbárie e de banalização de
princípios necessários para tornar mais humanas as condições de indivíduos
condenados a se utilizarem da crítica-reflexiva para afirmar suas condições
morais e, conseqüentemente, políticas.
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
BARROS, Gilda Naércia Maciel de. Platão, Rousseau e o Estado Total. São
Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1995.
DAMÁSIO, Antônio. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
_____. O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
VIEIRA, Luiz Vicente. A democracia em Rousseau: a recusa dos
pressupostos liberais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 4. ed. São Paulo:
Paulus, 1991.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos
da Desigualdade entre os Homens. Coleção dos Pensadores. Vol. II.
São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999a.
_____. Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999b.
_____. Do contrato social. Coleção dos Pensadores. Vol I. São Paulo: Editora
Nova Cultural, 1999c.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
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