Professor Juarez Rogério Felix SÃO TOMÁS DE AQUINO* INTRODUÇÃO Este pequeno artigo é uma paráfrase das obras indicadas na bibliografia (Giovanni Reale e Humberto Padovani), com poucos esclarecimentos do autor, quase sem importância para o conteúdo, todo ele parafraseado, como se disse. Foi preparado para aula no terceiro semestre do curso de direito, na matéria de filosofia geral. Tem por objetivo a mera divulgação, em termos ainda mais simples do que já vazado nas respectivas obras, do pensamento do grande filósofo que foi Santo Tomás de Aquino. Serve para divulgar um pensamento que dá conta de explicar toda a realidade, Deus e o homem, e que pode perfeitamente ser acatado para os dias de hoje. Quem for ateu, pode desconsiderar as referências a Deus como princípio, aproveitando a filosofia racional que tem plena aplicação e todos os tempos. Propositadamente pulamos a sua teologia, para mostrar que mesmo sem ela todo o resto é válido. Com relação à lei divina e a subordinação do estado à igreja, elas não devem ser tomadas no sentido de que se possa declarar inválida a lei humana com base na bíblia, ou que o estado deva submeter-se à igreja. A separação de estado e igreja está consolidada e não se pretende revertê-la. Mas essas colocações devem sim provocar uma impressão moral, uma admoestação de cunho ético, no sentido de que tanto os cidadãos como os governantes ouçam sua consciência moral, seu coração, para buscar uma recuperação do sentido de dever para com o próximo. A filosofia cristã do amor ao próximo ainda pode salvar a civilização ocidental do buraco negro em que se está conduzindo. 1. ESCOLÁSTICA Escolástica é a filosofia ensinada nas escolas medievais (monacais, anexas a uma abadia, episcopais, anexas a uma catedral e palatinas, anexas à corte) entre os Séc. IX, a partir de quando se consolida o Sacro Império Romano do Ocidente pelas mãos de Carlos Magno (800 d.C.) até o Séc. XVI, com a descoberta da América, em 1492. Ela pode ser dividida em quatro fases (G. Reale): 1) pela ausência de estudos e brutal diminuição da pesquisa cultural essa primeira fase se denomina de obscurantismo medieval, e vai do Séc. V ao IX, correspondente à formação dos reinos românico-bárbaros (godos, anglos, saxões, francos, lombardos, teutões, várnios, alamanos, etc..), culminando com a formação do Sacro Império Romano. Os pensadores destacados aqui são Boécio e Escoto de Eriúgena; 2) o segundo período vai do Séc. X ao Séc. XI, remarcado por lutas pelas investiduras e pelas cruzadas. Os pensadores destacados aqui são Anselmo de Aosta (Escola de Chartres) e Abelardo (Escola de São Victor); 3) o terceiro período ocorre no Séc. XIII, denominado de época de ouro da escolástica, considerada a primeira renascença européia, e seus expoentes são santo Tomás, são Boaventura e Duns Escoto; 4) a quarta fase tem por característica a crise da Igreja e do Império e da relação entre fé e razão, tendo com grande expoente Guilherme de Ockam. Com santo Tomás de Aquino a escolástica vinga a tarefa de forjar uma filosofia cristã, um pensamento que se pode dizer racional e desligado a fé, fora da tendência platônico-agostiniana até então versada, que fazia deste pensamento uma verdadeira teologia católica. Ele elabora a distinção entre natural e sobrenatural, fé e razão, filosofia e teologia. 1.1. A ATUALIDADE DO TOMISMO Certamente é uma filosofia do crente, pois não prescinde de Deus em seu sistema, fora dele, mas ali presente na explicação total da realidade e do homem. Uma filosofia otimista de muito valor para os tempos negros atuais, de grande pessimismo gerado pela total desagregação moral, fruto do pensamento ateu e relativista que impera. Mas seria de indagar, se isso significasse rejeitar o tomismo, quantos filósofos dos que embasam o 1 Professor Juarez Rogério Felix pensamento moderno, poderiam permanecer, se o critério fosse este, de excluir aqueles que tratam de Deus em seu pensamento? O primeiro deles a ser excluído seria Descartes, sem o qual o pensamento moderno se perderia em grande parte. A deusa Razão não poderia mais figurar no panteão dos céticos. É preciso não esquecer, também, que a base sólida do pensamento moderno está na filosofia dos padres da Igreja, dos humanistas espanhóis. Seria bom que lessem Santo Tomás, antes de descartá-lo! Não li e não gostei, não é atitude de quem se diz cientista ou filósofo. 2. SANTO TOMÁS DE AQUINO O Aquinate, apelidado de Boi Mudo, pelo seu temperamento calado, era filho do Duque de Aquino, de família rica, que não queria seu envolvimento com a Igreja. Chegou a ser raptado por seus irmãos quando ingressaria na ordem dominicana. Nasceu em 1221 no castelo de Roccasecsa, Campânia, no sul do Lácio, em família com laços de sangue com as famílias reais de França, Aragão e Sicília. Sua educação infantil se deu na abadia de Montecassino, e depois se transferiu para a Universidade de Nápoles, recém fundada por Frederico II. Depois foi discípulo, primeiro na Universidade de Paris e depois em Colônia, de Alberto Magno, que, ouvindo uma exposição brilhante do aluno disse: “Este moço, que nós chamamos de ‘boi mudo’, mugirá tão forte que se fará ouvir no mundo inteiro”. Lecionou na Universidade de Paris entre 1252 e 1260, quando voltou a Nápoles. Faleceu em 1274, com apenas 53 anos de idade, quando se dirigia a participar do Concílio de Lião, por ordem do Papa Gregório X. 3. SÍNTESE ARISTOTÉLICA: FÉ E RAZÃO A grande característica do pensamento de São Tomás de Aquino é ter cristianizado Aristóteles, criando a filosofia cristã, na medida em que foge do pensamento platônicoagostiniano, em que não se separava claramente o natural do sobrenatural, a fé da razão, filosofia de teologia. Na teologia tomista a fé melhora a razão como a teologia melhora a filosofia, a graça melhora a natureza e não a supera. A teologia conserta, arruma, retifica a filosofia e não a substitui, do mesmo modo que a fé não elimina a razão, mas a orienta. A filosofia é feita por meios e métodos próprios que a fazem autônoma em relação à fé, ela é a ante-sala, o preâmbulo da fé, mas é separada da teologia, que tem seus métodos próprios e diferentes dos filosóficos. Há uma nítida diferença em relação ao modelo platônico-agostiniano. São Tomás diz: “Há algumas verdades que superam todo o poder da razão humana, como, por exemplo, as verdades de que Deus é uno e trino. Outras verdades podem ser pensadas pela razão natural, como, por exemplo, as verdades de que Deus existe, de que Deus é uno, e outras mais”. Separando as verdades sobrenaturais das verdades naturais, estas acessíveis à razão, aquelas não, mostra que as verdades racionais (naturais) é que nos une e por isso é delas que devemos partir, aprofundando o discurso para chegar até as verdades teológicas (sobrenaturais). 4. ONTOLOGIA: ESTUDO DO SER A metafísica tomista, no estudo do ser enquanto ser, separa ente de essência, dando maior importância ao ente do que à essência, numa atitude de realismo moderado, porque não nega a essência. 4.1. ENTE Ente é qualquer coisa que exista, mas como nem tudo o que é pensado tem existência real, é importante fazer uma distinção entre ente lógico e ente real. 4.1.1. ENTE LÓGICO 2 Professor Juarez Rogério Felix Ente lógico é mental, conceitual, e sua função é unir conceitos, sem que a ele corresponda um ente real necessariamente. Ao conceito de cegueira, não corresponde nenhum ente real. A cegueira é o modo como definimos o fato de que alguns olhos não vêem. Nem tudo o que é pensado tem existência real, pois o que existe são olhos que não atendem à sua função de ver, não a cegueira, que é apenas um conceito, uma definição desta disfunção ocular. A importante conclusão que se tira disto é que o caráter universal dos conceitos é fruto do poder de abstração do intelecto e que por isso o universal não é real, porque somente o indivíduo é real. O universal não é real, mas faz parte da realidade, porque é extraído dela pela experiência sensível, mas elevado a essa condição por abstração do intelecto: o universal é expressão da abstração do intelecto e também é expressão da realidade. 4.1.2. ENTE REAL O ente real é extramental (não é ente lógico) porque existe no mundo natural e no mundo sobrenatural (Deus). Toda a realidade é ente. O mundo e Deus é ente. Ambos existem e são ente, Deus e o mundo criado. Em Deus se identificam a essência e a existência, porque Deus é ser. O homem e a natureza têm o ser. Deus é ato puro, ser subsistente. O homem tem Deus, participa de Deus como criatura, mas sua essência difere de sua existência. Só Deus é e só em Deus essência e existência subsistem ao mesmo tempo como ato puro. 4.2. ESSÊNCIA/EXISTÊNCIA No homem e na natureza essência é potência de ser e existência é ser em ato pela graça divina. Em Deus, só em Deus, subsistem essência e existência, como ato puro, Deus como ser subsistente. A criatura não é a existência, mas tem a existência, que é diferente da sua essência, como sua participação em Deus. No homem essência e existência são diferentes. É pela graça divina que a essência humana, potência de existir, se torna existência real, ser em ato. Pela graça o homem passa de ente lógico para ente real. E assim também as coisas da natureza, que têm Deus na essência, em potência, passam pela graça divina para a existência em ato. Por isso só Deus é necessário e o resto todo da realidade é contingente, pode ser e pode não ser, pode existir e deixar de existir. Os entes se distinguem pela sua essência, pelo que eles são em si, e têm, enquanto essência, potência de ser, passam a existir em ato pela criação divina. A essência humana significa aptidão para ser, para existir, mas em Deus a essência significa identificação com o ser. As criaturas adquirem o ato de ser por participação com Deus, que possui originalmente o ato de ser. 5. FILOSOFIA DO SER A metafísica tomista difere da metafísica grega porque se revela num estudo do ser como ato que realiza a essência, vista como mera potência de ser. Não é uma filosofia das essências e dos entes, mas uma filosofia do ser, que permite às essências se realizarem e se transformarem em entes. Estudando o ser enquanto entes realizados em ato pela potência de sua essência, a metafísica tomista alicerça bases mais sólidas do conhecimento, propõe um fundamento mais profundo do que se pode propor pelo saber apenas das essências, conseguindo por esta via explicar como se funda a realidade e também demonstrar a própria possibilidade das essências. 6. GNOSIOLOGIA: ESTUDO DO CONHECIMENTO 3 Professor Juarez Rogério Felix Para São Tomás a filosofia é teorética e sua teoria do conhecimento (gnosiologia) é empírica e racional, se dá através dos sentidos do homem e pela razão que busca o seu conteúdo da experiência, sem idéias inatas - a razão é vazia, uma tábula rasa - nem iluminação divina - o conhecimento é do próprio homem pelo próprio homem. O conhecimento humano tem dois momentos, um sensível, pelo qual capta a realidade natural e outro inteligível, que depende da sensibilidade, através do qual entende a essência das coisas através do encontro do sujeito com o objeto. Conhecer é conhecer o ser, o objeto, através de uma identificação intencional entre sujeito e objeto. O intelecto é agente e passivo. O intelecto agente é a faculdade que anima o conhecimento sensível para captar a essência que está no objeto e o intelecto passivo recebe esse conhecimento e o apreende pelos conceitos, fixa o conhecimento ativado pela intelecção ativa que entende a essência, e o faz pelo raciocínio, pelo julgamento, pela elaboração do saber filosófico. A verdade lógica não está nas coisas, nem no intelecto, ela é a adequação da coisa ao intelecto. A verdade se revela para nós através da evidência e os conhecimentos que não nos chegam pela evidência, que não são intuitivos, tornam-se verdadeiros pela explicação filosófica. 7. A TEORIA DO DIRETO A base da ética e da política tomista reside na concepção do homem como ser racional, capaz de conhecer o fim para o qual todas as coisas tendem pela sua própria natureza, reconhecendo uma ordem das coisas na qual Deus figura no ponto mais alto, como Bem supremo. 7.1. LIVRE ARBÍTRIO E O MAL O homem é racional, conhece os fins naturais das coisas, segundo a ordem natural do mundo, em relação a qual Deus, sumo Bem, figura acima de tudo. Se o intelecto, a mente humana, pudesse alcançar a visão de Deus, não deixaria de querer o sumo Bem, a vontade humana não se desviaria Dele. Mas na vida terrena o intelecto humano só conhece o bem e o mal que não são Deus, coisas e atitudes que não são Deus. A vontade é livre para escolher entre o bem e o mal que se apresenta ao homem na vida mundana. O homem é livre para escolher entre fazer o bem e fazer o mal, e é deste livre arbítrio que decorre o mal no mundo, como ausência de bem, conforme a concepção agostiniana. 7.2. SINDÉRESE: CONSCIÊNCIA MORAL O homem possui naturalmente um hábito de compreender os princípios do conhecimento que indicam e dirigem sua conduta para as boas ações. Este hábito é a sindérese, consciência moral, princípio do juízo moral. Mas o homem se dirige livremente para um fim e peca quando escolhe o mal ao invés de seguir a sua consciência moral, que o leva naturalmente a fazer o bem. Sempre que faz o mal o homem sabe que está fazendo o mal, porque conhece naturalmente o princípio do juízo moral. 7.3. LEX AETERNA Toda a ordem da natureza e do cosmos, das coisas existentes e seu funcionamento dirigido para o fim a que tendem segue a um plano de Deus, conhecido só por ele e por uns poucos eleitos: esta é a lex aeterna. 7.4. LEX NATURALIS Uma parte desta lei eterna é possível de ser conhecida pelo intelecto humano, que capta os fins das coisas e conhece parte de sua existência e capta sua essência, através da razão, pelo uso do intelecto: esta é a lex naturalis, pela qual o homem participa das coisas divinas, nos limites de sua razão e de seu intelecto. A essência da lei natural é: “fazer o bem, evitar o mal”. Tanto para o homem como para qualquer ser é princípio primeiro a 4 Professor Juarez Rogério Felix sua conservação: princípio vital. E tudo o que leva à conservação é bom, sendo mal tudo o que leva ao perecimento, à destruição. 7.5. LEX HUMANA Ligada à lei natural, o tomismo prevê a lei humana, o direito positivo, criado para dissuadir o homem de fazer o mal. Como toda lei é racional, e como a razão estabelece os meios para os fins, para atingir o bem segundo uma ordem que reconhece, o direito positivo é a ordem editada pelo meio social, ou pelo governante legítimo, para atingir o bem comum. Sendo racional nem precisariam ser editadas, porque todo homem é capaz de entendê-la e conhecê-la (sindérese = consciência moral). Mas há pessoas que são propensas aos vícios e neles obstinadas. Precisam ser persuadidas pela força da lei positiva para que se abstenham de fazer o mal, possibilitando a vida social pacífica. Surge daqui o caráter pedagógico do direito positivo, que deve servir também para orientar para as boas ações as pessoas tendentes ao mal. Se não fazem o bem voluntariamente devem fazê-lo por medo da força da lei. 7.5.1. JUS GENTIUM O direito positivo deriva do natural por dedução ou por determinação. O direito positivo deduzido do natural é o direito das gentes (direitos humanos = proibição do homicídio = não matar). 7.5.5. JUS CIVILE O direito positivo determinado é o direito civil/penal na sua aplicação histórica e social (direito de cada povo = pena de morte de prisão perpétua). 7.5.6. A LEI JUSTA Essas leis humanas têm base na lei natural (fazer o bem e evitar o mal) e devem ser leis justas. A lei positiva que não está de acordo com a lei natural não é lei, é corrupção de lei. A lei humana é moralmente válida se deriva da lei natural. A lei injusta pode ser obrigatória só na medida de evitar escândalos ou desordem. Pior do que a ordem injusta é ordem nenhuma, a desordem, porque gera ainda mais injustiças e iniqüidades. A desobediência à lei e à ordem contrárias à lei natural não pode ter lugar, se levar a um custo maior do que a própria tirania ou injustiça. 7.6. LEX DIVINA Acima de todas as leis está a lei divina, lei positiva de Deus, pela qual o homem pode alcançar bens maiores do que as virtudes terrenas e o bem comum proporcionado pelo estado: a bem-aventurança eterna. Além de guia para a vida eterna bem-aventurada a lei divida supre as omissões das leis humanas aperfeiçoando-as. 8. A MORAL A moral tomista é intelectualista e não voluntarista como a agostiniana. O querer humano (vontade) é condicionado pela razão (intelecto), pelo conhecimento, e tem no conhecimento o seu fim como perfeição humana. A ordem moral não depende da vontade de Deus, mas da essência divina, que é racional. Ela é imanente, essencial e inseparável da natureza humana, como determinada imagem da essência divina, realizada por Deus no mundo. Agir moralmente significa agir conforme a natureza racional do homem. O homem é animal racional e político social. As formas de vida social são a família e o estado. Como só o indivíduo tem realidade substancial, só o indivíduo existe, e transcendente, só o indivíduo tem essência divina, são as formas de organização que se submetem a ele, a 5 Professor Juarez Rogério Felix família e o estado, e não o indivíduo a elas. O estado se subordina à Igreja porque nele se vê a realização do fim temporal e nela a realização do fim eterno. BIBLIOGRAFIA 1. PADOVANI & CASTAGNOLA, Humberto e Luis. História da Filosofia, 17ª edição. São Paulo: Melhoramentos, 1995, pp. 223 a 252. 2. REALE, Gionanni & ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Filosofia Pagã. Vol. I. São Paulo: Paulus, pp. 211-252. * Paráfrase dos textos de Giovanni Reale e Humberto Padovani. 6