Aula 2: Deus na filosofia medieval Recapitulação da 1ª aula Pré-socráticos: o “princípio” (arché) divino ou fundo do mundo é a physis, “natureza” (aquilo de onde brotam as coisas), a verdadeira realidade. Anaxágoras: o princípio compreende uma Inteligência. Platão: princípios são as Ideias eternas, capitaneadas pelo Bem; Ideias distintas do mundo sensível e fonte do mesmo (Demiurgo forma um mundo bom e belo). Aristóteles: postula um tempo e um movimento (passagem da potência ao ato) eternos, sendo sua condição um Princípio Eterno, Ato Puro. Estoicos: identidade entre Natureza e Razão (Spinoza). Plotino: o Uno é transcendente e imanente (Hegel). A filosofia medieval Idade “Média”? Diálogo fé x razão: 2 atitudes opostas entre os escritores cristãos: “Que têm em comum Jerusalém e Atenas?” (Tertuliano); “Os pagãos têm sementes do Verbo” (S. Justino). Filosofia cristã: aquela que reflete sobre a realidade à luz da Revelação cristã, perguntando-se se determinadas realidades cridas (p. ex.: existência de Deus, criação do mundo, existência da Lei Natural, imortalidade da alma) podem ser também conhecidas intelectualmente [o mesmo critério serve para identificar as filosofias judaica e islâmica, que se reportam, respectivamente, ao Antigo Testamento e ao Alcorão]. Novo horizonte do filosofar: do movimento à criação: as coisas não só passam de um modo de ser a outro (portanto, com um não-ser que é relativo a outro modo de ser), mas vieram do nada (do não-ser absoluto) à existência; isto terá implicações gravíssimas no desenvolvimento da filosofia moderna (que parte da incerteza e da niilidade das coisas para fundar o mundo no Sujeito) e contemporânea (que assume a niilidade com ausência de Fundamento: niilismo). Santo Agostinho e o Deus interior e superior Das verdades à Verdade: nossos sentidos exteriores apreendem as qualidades sensíveis; nosso sentido interior percebe que sente; nossa razão julga, acertando ou errando; quando acerta, apreende o eterno, o imutável (superior a nossa razão): as verdades da Matemática e as leis da Sabedoria prática; sua fonte: a Verdade imutável, Deus, isto é, “a” Verdade; Deus é interior e superior a mim “Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco!” (Santo Agostinho, Confissões, X, 27). “[...] nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós” (Santo Agostinho, Confissões, I,1) O problema do mal: como justificar a existência de Deus Bom diante da existência do mal no mundo? Deus não criou o mal; o mal não é realidade substancial, mas “privação” de bem numa realidade/substância. Santo Anselmo e o chamado “argumento ontológico” Ponto de partida? Não é um conceito a priori, mas a experiência da fé. Trata-se da noção de Deus contida nas Escrituras e na fé cristã, segundo Anselmo (Creio para compreender). “Cremos que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior”; o ignorante entende esta definição, logo, Deus está na sua mente; se só existisse na mente, haveria outros maiores (existir na realidade é “mais” que existir na mente). Logo a análise da definição nominal da fé nos leva a entender que Deus é a Realidade Essencialmente Existente. O argumento é logicamente concludente, correto. Seria válido? O problema reside no ponto de partida: de onde me vem que “Deus é um ser do qual...”? Eu só posso definir aquilo que vejo diretamente ou que infiro a partir do que vejo (o argumento serve para confirmar a fé de quem já crê e, portanto, “vê” que Deus é “um ser do qual....”; para os não cristãos, não é evidente o dado da fé que motiva a prova). Avicena e o Ser Necessário O que o intelecto conhece primeiro é o “ser” (conceito lógico): que se desdobra em ser ou essência possível (puro possível e necessário de fato, porque sua causa existe) e Ser ou Essência Necessária (não tem causa e não pode deixar de existir por sua própria essência). “De fato, a experiência só nos faz conhecer objetos cuja existência depende de certas causas. Cada um deles é, pois, simplesmente ‘possível’; mas suas causas também são tão-somente ‘possíveis’; a série total dos seres é, pois, uma simples possível e, como o possível é o que requer uma causa para existir, se houvesse apenas possíveis, nada existiria. Portanto, se os possíveis existem, é porque existe também um necessário, causa da existência daqueles. Ora, existem possíveis, logo existe um necessário, causa da existência desses possíveis, e esse necessário é Deus” (Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média). A existência de todo ser possível é um acidente da essência (lógica). Santo Tomás e suas vias O ato de ser e a essência: Deus é o Próprio Ser, Sua essência (seu quid real) é existir, ser; todo ser criado tem uma essência limitadora de seu ser, portanto, todo ente participa do Ser (não é totalmente seu próprio ser, nem é todo o ser); todo ente é um composto de ser e essência (real e não lógica; não é uma distinção entre o conceito mental e a realidade, nem entre Deus /Essência eterna e a realidade; não são duas coisas, mas uma distinção dentro do ente ou coisa real). Não tendo o ser, a realidade, por essência, os entes que conhecemos diretamente são criados! Participar = ser criado! Via do movimento: tudo que muda passa da potência (ser virtual) ao ato (ser real) através de algo em ato (algo que já possui a realidade a ser atualizada numa dada potência); este outro algo, também passou da potência ao ato, etc.; não pode haver uma regressão ao infinito (isto suspenderia a realidade atual: uma sequência infinita de seres que não têm o ser por si não tem sentido), logo há um Primeiro Motor Imóvel, Ato Puro, fonte de toda realidade do mundo. Desde a perspectiva da criação, Deus, Ato Puro, não é só Causa Final; sendo Ser Subsistente, Ele é fonte de realidade, doador do ser ou existência. Ele é, portanto, Amor que doa a realidade ao mundo: eis o grande ganho da filosofia tomasiana em relação à aristotélica! A “imobilidade”, aqui, não tem um caráter estático, mas remete às imagens da “fortaleza” e da “rocha firme” dos salmos, onde podemos nos abrigar com segurança. Deus como fonte de possibilidades reais é Alguém a Quem se pode orar, suplicar! Ele não é um Primeiro Motor em sentido cronológico, mas ontológico, das atualidades reais do aqui e do agora (“nele somos, nos movemos e existimos”). Via dos graus das perfeições (da “participação”): consideramos as coisas mais ou menos boas, mais ou menos verdadeiras, mais ou menos nobres, por exemplo; então, existe um parâmetro máximo do qual o mais e o menos se aproxima ou se afasta; como o bom, o nobre e o verdadeiro por excelência é o Ser por excelência, logo existe este Ser, fonte de ser, de bondade, de verdade, de toda perfeição. São Boaventura e o itinerário da mente a Deus “[...] não chega a nossa inteligência a analisar exaurientemente a noção de qualquer dos seres criados, se não é ajudada pela noção do ser puríssimo, actualíssimo, completíssimo e absoluto. E esse é o ser como-tal e eterno, no qual estão na sua pureza as ideias de todos os outros. Realmente, como seria a inteligência capaz de saber que um ser qualquer é defectivo e incompleto, se não tivesse conhecimento nenhum do ser que é isento de toda a deficiência?” (S. Boaventura, Itinerário da mente a Deus). “Nada por conseguinte busca o desejo humano, senão porque ou é o sumo bem, ou se ordena para ele, ou oferece qualquer representação dele. É tão grande a potência do sumo bem, que nada pode ser amado pela criatura, a não ser por desejo dele” (S. Boaventura, Itinerário da mente a Deus). Duns Escoto e o Ser Infinito A prova sobre Deus não pode partir do mundo físico, pois, segundo Escoto, não chegaria a um Deus transcendente; é preciso de um conceito de ser que inclua o ser finito e o Ser Infinito: o “ser unívoco” (ser conceitual, similar ao ser aviceniano). Os seres são produtíveis: ou por nada, ou por si ou por um outro. Não podem sê-lo por nada, pois o que não é coisa alguma não causa coisa alguma. Não pode sê-lo por si, pois nada é causa de si mesmo. Portanto, deve sê-lo por um outro. Suponhamos que o seja por A; se A é absolutamente primeiro, temos nossa conclusão. Se A não é primeiro, é uma causa segunda, logo causada por outra. Suponhamos que essa causa anterior seja B: raciocinaremos para ela como para A. Portanto, ou continuaremos assim até o infinito, o que é absurdo, pois, nesse caso, nada seria produtível, por falta de uma primeira causa, ou nos deteremos numa causa absolutamente primeira, o que era preciso demonstrar. , uma causa primeira e, consequentemente, incausada, não é limitada por nada em sua causalidade; logo, é infinita. Guilherme de Ockham e o nominalismo fideista Só se pode provar o que é imediatamente evidente (pela percepção) ou o que pode ser deduzido necessariamente do imediatamente evidente. Deus, a imortalidade da alma, os mandamentos são assuntos exclusivos da Fé (fideísmo antimetafísico). Não podemos saber de Ideias Eternas e da Lei Natural. Solução nominalista ao problema dos “universais”: só existe o indivíduo; os conceitos são meros “nomes”, símbolos que reúnem realidades individuais similares. Realiza a separação da teologia e da filosofia (antes de Descartes), inaugurando o fideísmo (antes de Lutero); prepara: 1) a logificação da filosofia primeira (o idealismo); 2) a matematização da filosofia natural/física, isto é, a ciência moderna (antes de Copérnico), 2) a separação do Império e Igreja, ou seja, a política moderna separada da moral apoiada na Revelação e na ética da Lei Natural (antes de Maquiavel), e o nacionalismo; 3) a cultura moderna individualista em geral (base do liberalismo teorizado por Hobbes e Locke). Mestre Eckhart e a “centelha da alma” Eckhart afirma existir na alma, além da memória, do intelecto e da vontade, um elemento mais secreto e propriamente divino, que designa como a cidadela ou a centelha da alma. Trata-se de uma centelha do Intelecto divino, una e simples como ele. É uma das proposições de Eckhart que foram censuradas: “Há na alma algo incriado e incriável; se toda a alma fosse tal, ela seria incriada e incriável, e isso é o intelecto”. Presença de Deus na alma? Gnose? Nicolau de Cusa, a docta ignorantia e a coincidentia oppositorum Fontes do pensamento: devotio moderna (Eckhart), a via moderna (Ockham), humanismo italiano. Todo conhecimento pressupõe uma comparação, que é uma medição (lógica aristotélica categorial). A condição para tal é a homogeneidade. Não posso passar de realidades finitas, condicionadas, rumo ao que está além de toda medição. Não há metodologia racional para vencer tal abismo. O infinito é desconhecido. O Ser divino exige um novo tipo e uma nova forma de conhecimento. O verdadeiro instrumento para conhecê-lo é a visão intelectual, onde as oposições lógicas deixam de existir, pois nos transportamos a sua origem simples, a um ponto anterior a toda divisão, além de todas as diferenças empíricas do ser. Trata-se da matemática: a distância dos vários raios de uma circunferência inexiste no centro do qual eles partem. Divisão (khorismós) e participação (méthexis) só podem ser pensadas respectivamente. O saber empírico se refere a um ser ideal, mas não contém a verdade deste ideal. O empírico é indefinidamente determinável; o ideal é sua plenitude. O condicionado visa ao incondicionado, sem poder alcançá-lo. A teologia é um “não-saber que sabe” e a experiência é um “saber que não sabe”. Cada enunciado pode ser suplantado por outro mais preciso (é sempre conjectura). Onde a distância é infinita, cessam as diferenças finitas relativas. Cada ser natural está igualmente próximo e distante desta origem. Deus é o centro, e o centro está em toda parte. A multiplicidade e heterogeneidade das religiões não contradiz a unidade e universalidade da religião. “Tu és aquele a quem chamam de diferentes nomes e que, não obstante, permanece desconhecido e inefável [...] todos verão que só existe uma religião em meio à multiplicidade dos ritos” (Nicolau de Cusa, De pace fidei). Nenhuma fé pode se subtrair à alteridade, que é momento básico, especulativamente exigido, da própria doxa. Excurso: a inteligência e a realidade Inteligência perceptiva: apreende um “conteúdo sensível real (que se autopertence no interior da percepção)” [é, na realidade, o fundo de toda outra intelecção, mais do que uma primeira intelecção cronológica]. Inteligência abstrativa 1: separa o conteúdo essencial do conteúdo acidental ou particular (perceba-se que o conteúdo essencial, aqui, é de algo material, ou seja, o “conceito” está transido de materialidade). Inteligência abstrativa 2: separa a pura materialidade dos conteúdos essenciais específicos (aqui se atinge a “matéria-prima”, o espaço enquanto âmbito da realidade matemática). Inteligência abstrativa 3: separa-se o puro existir (ato de ser) da materialidade. Inteligência judicativa: une e separa os conteúdos abstraídos ou construídos, nas afirmações e negações. Inteligência pensante ou razão: desde o sistema de referência de nossos conceitos e juízos, constrói teorias para encontrar experiencialmente a estrutura profunda (além da apreensão mental) da realidade, de um ponto de vista material ou empírico (conhecimento científico) ou de um ponto de vista transcendental (filosofia ou metafísica).