UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO – 8º PERÍODO COMPÊNDIO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL Daniel Leão Souza Fernanda Rodrigues Guimarães Andrade Junia Castro Bernardes Rezende Pedro Brandão e Souza Belo Horizonte Maio de 2010 1. Leiam o livro: “O queijo e os vermes”, de Carlo Ginzburg ou vejam o filme: “Sombras de Goya”, de Milos Forman. Após, apreciem o sistema judicial de apreciação da verdade e, com fundamento, na realidade da sociedade punitiva atual apontem sobrevivências ou persistências no processo penal brasileiro da atualidade. - Pai de Inés: “ Você foi intimada pelo Santo Ofício? Você faz idéia do que pode ser”? - Inés: “Não”. Sem saber a razão de sua intimação, Inés comparece então ao Santo Ofício, onde é levada a uma sala escura em que se encontra uma pequena mesa de madeira com três cadeiras de um lado e uma de outro. Após um tempo, entram três membros da Igreja encapuzados e vestindo longas túnicas. Os que se sentam nas extremidades da mesa têm uma expressão sóbria, imutável. Enquanto aquele que se coloca ao centro, e que será o único a falar durante todo o interrogatório, passa uma impressão de tranqüilidade, e com uma gentileza quase amigável se dirige à menina e lhe convida a se sentar: - Inquisidor: “Temos apenas algumas perguntas a lhe fazer e esperamos que as responda com a verdade”. - Inés: “Sim, eu o farei”. (...) - Inquisidor: “Serviram-lhe porco”? - Inés: “Sim, mas eu não comi”. - Inquisidor: “Por que não”? - Inés: “Eu não gosto de porco”. - Inquisidor: “Você pode jurar pela Santa Cruz que diz a verdade”? - Inés: Sobre o porco”? - Inquisidor: “Então, pode”? - Inés: “Eu juro pelas chagas de Jesus que eu estou dizendo a verdade”. - Inquisidor: “E suponho que não fará objeções a que seja-lhe dada a chance de provar”. - Inés: “Não, eu ficaria grata. Como gostaria que eu provasse”. Inés é então submetida à tortura em frente ao seu inquisidor e dois outros membros do clero que a observam, sem expressar qualquer emoção, enquanto continuam sua busca pela “verdade real”. A deixam nua, amarram suas mãos atrás de suas costas com uma corda e a puxam de modo com que fique içada do chão e todo o peso de seu corpo seja sustentado por seus braços que não podem se mover. Com perfeição técnica os “defensores da fé” repetem diversas vezes a técnica confessional, imprimindo à interrogada uma dor capaz de criar realidades irreais sem verter nem mesmo uma gota de sangue. - Inquisidor: “A senhorita disse a verdade”? - Inés: “Sim, eu disse”! - Inquisidor: “Temos motivo para suspeitar o contrário”. - Inés: “Por quê”? - Inquisidor: “Suspeitamos que tenha evitado o porco por ser uma judaizante”. - Inés: “Uma o quê”? - Inquisidor: “A senhorita é”? - Inés: “Que é isso”? - Inquisidor: “Pratica os ritos judaicos”? - Inés: “Não, eu não faço isso”! - Inquisidor: “Se tem algo a confessar, confesse agora”. - Inés: “Mas eu ... O que quer que eu confesse”? - Inquisidor: “A verdade”. - Inés: “Mas eu já disse”! Recomeçam então o processo de tortura. A dor e o desespero são evidentes na face de Inés, que com dificuldade se dirige a seu inquisidor: - Inés: Diga-me qual é a verdade! Diga-me qual é a verdade”!1 A passagem acima citada, presente no filme “As Sombras de Goya”, demonstra como se dava a investigação acerca de um possível crime no Sistema Inquisitorial Moderno realizado pela Igreja Católica durante a Idade Média. A fase inquisitorial iniciou-se no final do século XII e início do século XIII com os Concílios de Verona e Latrão e foi finalizada apenas quando os Tribunais do Santo Ofício foram extintos em Portugal e na Espanha nos anos 1821 e 1834, respectivamente. A Inquisição começou mais branda (se é que se pode usar tal adjetivo para caracterizar este sistema) e se tornou mais perversa com o passar do tempo. A chamada Inquisição Medieval, em geral subordinada ao poder político, era itinerante e tinha como principal função o fortalecimento do papado. À medida que este sistema se tornava mais difundido, foram editadas Bulas Papais que o normatizavam, sobretudo a Bula Ad Extirpanda, e manuais que possibilitaram a aplicação prática do “sistema jurídicocanônico” recém criado, sendo “Directorium Inquisitorum” (1937) e “Malleus Maleficarum” (1489) os mais importantes destes. “As duas principais obras das Inquisições (romano-germânica e espanhola) forneceram as chaves de leitura que instrumentalizaram procedimentos baseados em denúncias anônimas e vagas, em estruturas probatórias centradas na confissão e na busca da ‘verdade material’, bem 1 Fime: “As Sombras de Goya”, Milos Forma. EUA: 2006 como na prisão processual como regra- um suspeito podia ser preso a qualquer momento, sem saber o que se queria dele. Nunca ficava conhecendo o nome de quem o acusou, nem lhe era comunicado o motivo da prisão, nem o lugar em que havia cometido o crime de que era acusado, nem com quem havia pecado”. 2 Já na Segunda Fase da Inquisição, denominada Moderna, não se tinham mais as Visitações do Santo Ofício, que eram itinerantes, e sim os fixos Tribunais do Santo Ofício. Neste período, coexistiam três jurisdições penais: a central, na qual atuavam os juízes do rei, a locais, tendo em vista a necessidade de se impor a “justiça” nas diversas regiões do reinado, e a eclesiástica, responsável pelo julgamento de questões relevantes para a Igreja. A Inquisição, agora rigidamente sistematizada, estava sob o Poder Estatal, que em contrapartida a apoiava, legitimava-a e lhe dava enorme grau de autonomia para ditar suas próprias normas e institutos. Assim, enquanto a legitimação para o “sistema penal religioso” advinha do Estado, este se fortalecia com o respeito e medo imposto por aquele. Pode-se dizer então, que o sistema inquisitorial surgiu “no seio da Igreja Católica, como uma resposta defensiva contra o desenvolvimento daquilo que se convencionou chamar de ‘doutrinas heréticas’. Trata-se, sem dúvida, do maior engenho jurídico que o mundo já conheceu e conhece”.3 A estrutura inquisitorial inicia a lógica do direito penal de periculosidade, no qual todos eram suspeitos e qualquer conduta podia ser um indício de crime. Neste contexto e seguindo as orientações do “Malleus Maleficarum”, considerado por alguns autores o primeiro modelo integrado de criminalística com direito penal e processual penal4, não existia no processo penal a presunção da inocência, o contraditório ou a ampla defesa; as denúncias eram públicas e podiam ser realizadas por qualquer pessoa, que teriam, inclusive, sigilo quanto à sua identidade, mesmo em relação ao acusado. O inquisidor, que poderia ser aquele que realizou a imputação, era também responsável pela “defesa” (em real, inexistente), pela produção de provas e era ainda, o julgador. O processo era sigiloso, o que contribuía para fomentar a liberdade de ação dos juízesinquisidores, e escrito, impossibilitando ao réu de acompanhar seu próprio julgamento. A insuficiência de provas não auxiliava na absolvição do suspeito, uma vez que elas deveriam mostrar de maneira incontroversa a sua inocência (o que era praticamente impossível) ou apenas confirmar a imputação realizada pelo inquisidor/juiz/defensor. A prova suprema do sistema inquisitorial era a confissão, demonstração evidente da “verdade real”. E para se chegar a esta reconstrução dos fatos era permitida, e muitas vezes incentivada, a tortura. Os juízes deviam se valer dos meios legais (ou seja, a tortura em que não fosse vertido sangue) para fazer com que o acusado confessasse seu crime. Com o fomento de tal prática, aumentaram gradativamente as condenações por heresia, dada a facilidade de fazer com que um suspeito submetido às dores e angústias da tortura confessasse um crime cometido ou que jamais existiu. Leciona Cordero sobre este método de produção de prova: “o instrumento inquisitório desenvolve um teorema 2 CARVALHO, Salo de, Revista à Desconstrução do Modelo Jurídico Inquisitorial. p. 38, e citação de NOVINSKY, A Inquisição, p. 58-59. 3 COUTINHO, O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. 4 ZAFFARONI, BATISTA, SLOKAR E ALAGIA, Direito Penal Brasileiro. p. 511. óbvio: culpado ou não, o indiciado é detentor das verdades históricas, tenha cometido ou não o fato; nos dois casos, o acontecido constitui um dado indelével, com as respectivas memórias; se ele as deixasse transparecer, todas as questões seriam liquidadas com certeza; basta que o inquisidor entre em sua cabeça. Os juízos tornaramse psicoscopia”.5 Assim, o acusado, ao invés de ser um sujeito de direito, era um mero objeto de investigação, que detinha a verdade material, e que deveria, a qualquer custo, expor os acontecimentos (muitas vezes não ocorridos) para que figurassem no papel, e concluíssem o processo penal, caracterizado por um excessivo formalismo gráfico e por uma perversa noção de justiça em nome de Deus. No filme “As Sombras de Goya”, Inés, após ser torturada, confessa ser praticante de ritos judaicos, apesar de nunca tê-los praticado. É depois deixada em um calabouço escuro e sujo, onde ficou acorrentada junto a diversos outros acusados, que também haviam sido submetidos ao “interrogatório”, para esperar seu julgamento, que até a dissolução da Inquisição espanhola pelas ordens de Napoleão (após 15 anos de sua prisão) não ocorreu. Os pais de Inés, ricos comerciantes, não conseguiam notícias de sua filha depois de sua apresentação ao Santo Ofício. Por isso, com o intermédio do artista Francisco Goya, entraram em contato com um padre de importante posição hierárquica dentro do tribunal do Santo Ofício. Este padre, Lorenzo, informou-lhes que Inés deveria aguardar seu julgamento, pois havia confessado o crime pelo qual havia sido acusada. O irmão da menina pergunta a Lorenzo se ela havia sido torturada e ele responde que sim, que ela havia sido submetida ao Interrogatório. O pai então, revoltado, escreve um termo no qual Lorenzo afirma ser o filho de um chipanzé com um orangotango e pede que este o assine. Diante da negativa do padre, o pai, com a ajuda de seus serventes e de seus filhos, tortura-o da mesma maneira em que sua filha havia sido torturada e o instiga a assinar o documento que havia escrito. Após alguns minutos de submissão ao “Interrogatório” realizado pelo pai de Inés, Lorenzo assina o absurdo documento, demonstrando a deturpação do método de confissão mediante tortura. Diante da ameaça de que este termo se torne público, Lorenzo requer ao Bispo, autoridade máxima do Tribunal do Santo Ofício, que aceite a vultosa doação oferecida pelo pai de Inés e que permita que ela retorne à sua casa. -Bispo: “Ela foi submetida ao Interrogatório”? - Lorenzo: “Sim, padre, ela foi submetida ao Interrogatório”. - Bispo: “Aceitaremos esse magnânimo presente com a mais humilde gratidão. Também mandaremos gravar o nome do doador no convento para celebrizar sua generosidade eternamente. Quanto à filha, rogo a Deus que lhe conceda Sua misericórdia mas soltá-la iria contra os princípios da nossa fé, pois sugeriria que a Igreja duvida do valor do interrogatório”. 5 CORDERO, Guida alla Procedura Penale. p. 48. O pai de Inés, após perceber que Lorenzo seria incapaz de interceder pela liberação de sua filha, vai ao rei e mostra o documento assinado pelo padre, alegando a impossibilidade de se valorar a confissão obtida com tortura, como fazia o tribunal eclesiástico. O rei se diverte com a declaração de que o padre seria um macaco e diz que tomará as medidas cabíveis. O documento é então entregue ao Bispo, que depois de constatar que Lorenzo havia fugido, realiza a queima pública de uma pintura de sua imagem, declarando que o padre havia sido “contaminado por forças demoníacas” e devia ser perseguido, e não modifica em nenhuma medida o sistema inquisitorial vigente. Quinze anos após esses acontecimentos, a Espanha (onde se passa todo o filme) é invadida pela França, agora sob o comando de Napoleão. Com base na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o Tribunal do Santo Ofício é dissolvido, seus membros são presos e submetidos a julgamento. Lorenzo é agora promotor e será ele a promover a acusação, pública e oral, contra o Bispo. Utilizando-se do mesmo discurso de perseguição feito pela Igreja, falando, porém, em nome da dignidade humana, e não da supremacia de Deus, afirma o ex-padre, permanente acusador que se adéqua ao modelo inquisitorial: - “Eu estou aqui para servir aos ideais da grande Revolução Francesa! Eles me abriram os olhos como abriram os olhos dos cegos do mundo inteiro porque eles são irresistíveis. Eles são lógicos, são justos, universais. Todos os homens nascem livres. Todos têm os mesmos direitos, e aqueles que se recusam a ver a luz da liberdade não terão misericórdia. Não haverá liberdade para os inimigos da liberdade! Padre Gregorio, não tome isto pessoalmente, no entanto, o senhor é a encarnação do fanatismo cego e do nepotismo. É o instrumento pelo qual uns poucos mantiveram muitos acorrentados. É o exemplo do que há de pior na Espanha, e por isso será julgado pelos seus feitos”. Os seis julgadores senteciam por unanimidade o padre à penal capital. Este, porém, nunca sofreu os efeitos da condenação, uma vez que pouco depois a Inglaterra expulsou os franceses do território espanhol e restituiu à Igreja o poderio sobre a justiça penal eclesiástica. O Bispo assumiu então a função de acusador e julgador, e de acordo com a estrutura processual penal presente em certos aspectos até a atualidade, ou seja, a estrutura inquisitorial, condenou Lorenzo à morte. Com o surgimento do humanismo cívico, da Ilustração e do Renascimento, o Sistema Inquisitorial entra em declínio. O conceito de direitos humanos se espalha para todos os ramos do direito, que no século XIX começa a ser estudado como ciência, ou seja, fruto da razão, desvinculado da Igreja e da fé. Contudo, a separação entre direito e moral não acabou com a lógica inquisitorial presente no sistema penal e processual penal do Ocidente. “O sistema inquisitório confessional foi substituído por um modelo laicizado de idêntica natureza autoritária, obstaculizando o desenvolvimento e consolidação do sistema acusatório”.6 Atualmente, a maior parte dos países democráticos adotam modelos processuais penais acusatórios. Entretanto, dentre estes é exceção possuir um sistema puramente acusatório, sem resquícios do autoritarismo advindo do processo inquisitório. A. O PROCESSO PENAL BRASILEIRO NA ATUALIDADE A maior parte da doutrina considera que o processo penal brasileiro na atualidade possui natureza mista, ou seja, é um sistema acusatório com traços e aspectos do sistema inquisitório. No entanto, há doutrinadores que não incluem o inquérito policial no processo e por isso alegam ser o sistema processual penal nacional somente acusatório, e não misto. Nesse sentido o Procurador Eugênio Pacelli de Oliveira: “No que se refere à fase investigativa, convém lembrar que a definição de um sistema processual há de limitar-se ao exame do processo, isto é, da atuação do juiz no curso do processo. E porque, decididamente, inquérito policial não é processo, misto não será o sistema processual, ao menos sob tal fundamentação”. 7 Entretanto ainda que se leve em consideração a exclusão do inquérito policial do processo, o que para nós seria um excesso de formalismo e uso de conceitos rígidos como forma de amenizar as mazelas presente em nosso sistema, tal classificação não procede, uma vez que também em relação à fase judicial estão presentes em nossa legislação, dispositivos de evidente caráter inquisitório, como o art. 156 do CPP, sobre o qual dissertaremos à frente. O Código de Processo Penal brasileiro foi editado em 1941 sob a inspiração da legislação processual italiana da década de 1930, período em que a Itália se encontrava sob o regime fascista. Por isso, não é surpreendente que o CPP brasileiro tenha um aspecto fortemente autoritário, principalmente em sua redação original. O princípio fundamental do Código era a presunção de culpalidade, o que coadunava com os ensinamentos de grande parte da doutrina da época, bem representada pelo italiano Manzini, que dizia ser ilógica a existência de uma ação penal contra quem seria presumidamente inocente. Pacelli de Oliveira aponta como sendo as mais relevantes características do originário CPP: 1) a potencial e virtual culpa do acusado, 2) a prevalência da segurança pública em relação à liberdade individual, 3) a alegação da busca da verdade real como legitimadora para práticas abusivas e autoritárias por parte das autoridades públicas, 4) a realização do interrogatório do réu em ritmo inquisitivo, sem a intervenção das partes, e exclusivamente como meio de prova, e não de defesa.8 Com o passar dos anos, a mudança do contexto histórico, os horrores vistos nas guerras, nos campos de concentração e nos regimes comunistas, mostraram a necessidade de se proteger o indivíduo acusado contra outros indivíduos e contra o poder Estatal. Os diversos ramos do Direito, incluindo o Direito Processual Penal, foram então sendo modificados para se adequar à nova concepção de justiça. Neste novo sistema, o processo inquisitorial se mostrava completamente inadequado e o 6 CARVALHO, Salo de, Revista à Desconstrução do Modelo Jurídico Inquisitorial. p 1. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 13ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 12. 8 Idem. p. 6. 7 processo acusatório passou a ser incorporado pela legislação nacional. O modelo acusatório é caracterizado pela distinção entre os órgãos de acusação, defesa (que deve ser técnica) e julgamento. Além disso, nesse sistema, o processo se inicia somente com o oferecimento da acusação (não pelo julgador, Princípio da Inércia), e se desenvolve através do contraditório e da ampla defesa, sob os auspícios de um juiz natural e imparcial (o que não significa um juiz neutro, já que é impossível não ser influenciado pela realidade, costumes e contexto histórico no qual se está inserido). Dentro do sistema acusatório não se busca a qualquer custo a “verdade real”. A verdade judicial é sempre uma verdade processual e não é do réu o ônus da prova, e sim do órgão acusador, no Brasil, o Ministério Público. Ademais, a decisão do juiz deve ser sempre fundamentada, possibilitando à parte sua impugnação, caso julgue necessário. Deve-se mencionar ainda, que no sistema acusatório estão presentes o direito ao silêncio (art. 5º, LXII CF/88), que não deve ser valorado positiva ou negativamente e o direito a não auto-incriminação. Na década de 1970, o CPP brasileiro passou por inúmeras alterações, e relevantes mudanças foram realizadas, como a flexibilização de regras restritivas do direito à liberdade. Foi feito, inclusive, o projeto de um novo Código de Processo Penal, que, entretanto, jamais foi aprovado. É em 1988, contudo, com a edição da Constituição da República, que o processo penal no Brasil é radicalmente alterado. A nova Constituição se baseia nas garantias individuais e na defesa da dignidade da pessoa humana. E ao contrário do CPP, que presume a culpabilidade do acusado, a Constituição de 1988 afirma que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII). Em razão da hierarquia de normas, diversos dispositivos do Código de Processo Penal deixaram de viger por não terem sido recepcionados pelo Diploma Superior. Ainda assim, atualmente são aplicados inúmeros dispositivos de clara natureza inquisitória, que vão de encontro com os princípios norte do nosso sistema constitucional. Examinemos agora alguns dos artigos do CPP de natureza inquisitória e que são aplicados na praxe forense: O art. 5º, II do citado diploma permite que o inquérito policial nos crimes de ação pública seja iniciado por requerimento da autoridade judiciária. Permissão esta contrária ao sistema acusatório, no qual o juiz, pelo princípio da inércia, só pode atuar após ser provocado. O juiz não deve atuar na fase do inquérito policial (“a não ser para praticar atos de natureza jurisdicionais que tenham por fim assegurar direitos fundamentais não relacionados, diretamente, com o fato em apuração”)9, por isso mesmo não pode possuir a prerrogativa de ordenar o seu início. Deveria o juiz ter a possibilidade de comunicar o possível fato criminoso ao Ministério Público, como prevê do art. 40 do CPP, que então requisitaria a abertura do inquérito policial se julgasse cabível. Também permitindo a atuação do juiz na fase do inquérito policial, tem-se o art. 10, parágrafo terceiro, que permite ao magistrado impor prazo para a realização de 9 HAMILTON, Sergio Demoro, A Ortodoxia do Sistema Acusatório no Processo Penal Brasileiro: Uma Falácia, in HTTP://amperj.org.br/associados/dalla/artigos41.htm diligências necessárias para elucidar o inquérito pela autoridade policial, o que se mostra incoerente, uma vez que, se para quem é o responsável pela investigação tais providências se mostram difíceis, impossível ao juiz, que ao menos teoricamente estaria afastado da fase inquisitiva, saber o tempo necessário para que elas sejam realizadas. E ainda o art.13, II, que permite que o juiz requisite diligências à autoridade policial. Talvez seja este o dispositivo de maior afronta ao sistema acusatório na fase do inquérito policial. Ao juiz não cabe investigar e ao conceder a ele a possibilidade de requerer diligências nessa fase, permite-se que o juiz imagine situações que podem ter ocorrido e então busque uma forma de prová-las. Isto significa dar ao julgador poder que tinha o inquisidor na Idade Média, ou seja, a busca da confirmação de um fato que pensa ser existente. O art. 127 do CPP dispõe que o juiz, de ofício, pode ordenar o seqüestro de bens, mesmo antes de oferecida a denúncia ou a queixa. Ora, se o seqüestro se mostra necessário, não cabe ao juiz fazê-lo antes de iniciado a fase judicial sem o requerimento do ofendido ou do Ministério Público, por consubstanciar ofensa direta e explicita ao devido processo legal e aos demais princípios garantidores presentes na Constituição Federal. De todas as previsões de natureza inquisitória presentes no CPP, as que permitem ao juiz a iniciativa de prova são provavelmente aquelas de demonstram maior contradição com o modelo processual acusatório. Diz o art. 156: “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida. II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir a sentença, a realização de diligências para dirimir dúvidas sobre ponto relevante”. O inciso II do art. 156 não nos parece desarrazoado uma vez que a iniciativa probatória do juiz está restrita à necessidade de esclarecimento de dúvidas surgidas a partir das provas produzidas pelas partes no processo. Já o inciso I é de transparente caráter inquisitório. Mostra-se novamente presente na legislação a autorização para que o juiz busque a dita verdade real, ou seja, a verdade que pensa ser real. Como poderá o juiz saber qual a prova necessária? Se as provas presentes no processo não o permitem condenar o réu, deveria o juiz concluir pela necessária absolvição e não buscar uma forma de confirmar a culpa que pensa existir. Na mesma esteira, encontram-se também os artigos 168, 209, 234 e 242, todos do CPP. Vale lembrar a lição de Hamilton: “Nunca o juiz, ainda que supletivamente, poderá intervir para buscar prova que incumbia ao querelante produzir. Nos casos de exclusividade da ação privada, a atuação do juiz só se dará em favor do querelado, quando este, não importa a razão, deixe de produzir prova que eventualmente, possa beneficiá-lo. Justifica-se tal atuar em razão do princípio do favor libertatis”10. O requerimento de provas de ofício em favor do réu não está em desacordo com o modelo acusatório e justifica-se pela desigualdade de partes existente no processo penal. Diferentemente do que o ocorre no processo civil, no processo penal a relação é desigual tendo em vista que de um pólo da relação tem-se o acusado e do outro o Estado, e não um outro indivíduo.11 Na legislação esparsa também estão presentes diversas previsões contrárias ao sistema acusatório. A Lei do Crime Organizado (9034/95) e a Lei da Interceptação Telefônica (9296/96) permitem ao juiz, de ofício, determinar a realização de diligências na fase do inquérito policial. A Lei de Falências (Decreto-lei 7661/45) prevê um inquérito presidido pelo juiz, absurdo que nas palavras de Sergio Demoro Hamilton, é um “velho ranço inquisitorial, mais uma vez, a fazer tabula rasa do sistema acusatório”. Cumpre dizer que o legislador nacional não se mostra totalmente alheio às anomalias presentes em nosso sistema processual e vem recentemente promovendo reformas para retificar algumas das falhas presentes. Merece congratulação a Lei 11689/08 ao modificar o art. 474 do CPP permitindo ao acusado submetido ao tribunal do júri não comparecer aos procedimentos judiciais se considerar que assim que lhe será mais vantajoso. E ao estabelecer no art. 384 do CPP que somente ao Ministério Público cabe aditar a denúncia. Entretanto, como não raro acontece no Brasil, no mesmo período em que são editadas normas que fazem com que o Direito nacional caminhe para frente (como deveria ser o processo de acordo com sua etimologia), são também editadas normas que o fazem caminhar para trás. Dessa forma, vale mencionar que o desarrazoado art. 156 já comentado, que permite ao juiz tutelar a qualidade da investigação, é novidade trazida pela Lei 11690/08. O Processo Penal brasileiro e o inquérito policial, considerando-se ou não que o segundo está incluído no primeiro, devem sofrer uma reforma radical com o objetivo de fazer com que qualquer resquício do sistema inquisitorial seja eliminado. Em nome da dignidade da pessoa humana, em sua concretude e não apenas como retórica, forma em que muitas vezes esse princípio foi utilizado no curso da história, o Direito deve formular e extinguir normas com o objetivo de definitivamente acabar com a supressão das liberdades individuais para assegurar a “segurança pública”. Deve-se exterminar qualquer resquício, ainda que brando, da reação diabólica existente entre o inquisidor e o acusado. “Há uma coisa apenas que excita os animais mais do que o prazer: é a dor. Sob tortura tu vives como sob o efeito de ervas que produzem alucinações. Tudo o que ouviste contar, tudo que leste, volta à tua mente como se fosses transportado, não ao céu mas ao inferno. Sob tortura dizes não apenas o que quer o inquisidor, mas também aquilo que imaginas possa lhe dar prazer, porque se estabelece uma 10 11 Idem. p. 14 relação (esta sim, realmente diabólica) entre tu e ele”. (Umberto Eco) 2. Leiam o inteiro teor do AI 762146 RG / PR – PARANÁ/REPERCUSSÃO GERAL AGRAVO DE INSTRUMENTO/Relator(a): Min. CEZAR PELUSO. Julgamento: 03/09/2009 (disponível no site: www.stf.jus.br). Respondam: houve ofensa aos princípios do devido processo legal, do contraditório e do estado de inocência? O Agravo de Instrumento 762146 que teve como relator o Ministro Cezar Peluso, e julgou que o recurso que versa sobre a imposição de efeitos de sentença penal condenatória à transação penal como de repercussão geral não é propriamente o objeto de analise quanto à ofensa ou não dos princípios do devido processo legal, do contraditório e do estado de inocência. No caso em tela é importante analisar se o acórdão do TJPR que tece analise quanto efeitos da sentença homologatória da transação penal realizada no 2º Juizado Especial Criminal de Londrina representa ofensa aos supracitados princípios. O instituto da transação penal encontra guarida constitucional no art. 98, I da Constituição da República, que dispõe: “Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;” (grifo nosso) Posteriormente foi regulado pela lei 9.099 de 1995, que em seu art. 76 estabeleceu que: “Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.” Todavia, a partir da criação deste instituto, alguns questionamentos foram trazidos pela doutrina, e em alguns pontos enfrentados pela jurisprudência, relacionados à natureza do mesmo. Teria a sentença que homologa a transação penal status equivalente ao da sentença condenatória e por conseqüência os efeitos relacionados a esta (como o previsto no art. 91 do Código Penal), ou a decisão que venha a homologála teria efeitos apenas declaratórios. O acórdão da Turma Recursal do Paraná, referente ao caso em tela, que julgou apelação de Luis Carlos de Almeida quanto à impossibilidade de restituição dos bens que constituem instrumento ou produto do crime no caso de transação penal, adotou a posição de considerá-la como de natureza condenatória ainda que sumária ou imprópria e com os efeitos inerentes de uma sentença condenatória. Deve-se observar então se o conferimento de tais efeitos à sentença que homologa a transação penal representa ofensa ou não ao principio do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Antes de uma analise mais aprofundado da questão, cumpre uma breve analise acerca dos princípios acima elencados. I. PRINCIPIOS i. Principio do Devido Processo Legal Historicamente computa-se o nascimento de tal principio à Carta Magna em seu capitulo 39 em 1215, como reação às políticas perpetradas pelo Rei João Sem Terra na Inglaterra. Desde então muito se produziu e se desenvolveu em torno de tal principio. O devido processo legal é o principio que orienta todo o arcabouço jurídico processual, dentro da perspectiva procedimental a clausula do devido processo legal, garante ao cidadão, diante do Estado que as normas existentes e legitimas sejam aplicadas e asseguradas pelos órgãos públicos. Alem disso, possui também aspecto material (doutrina desenvolvido principalmente nos E.U.A) que impede que as normas materialmente ilegítimas ou injustas sejam elaboradas, exercidas ou aplicadas12. . Tal principio está enunciado como clausula pétrea na Constituição em seu art. 5º , LIV, que dispõe: “LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;” Como denota Manoel Gonçalves Ferreira Filho faz parte da analise de devido processo legal “que as normas aplicadas quanto ao objeto do litígio não sejam desarrazoadas e portanto implicitamente injustas”. Importante ressaltar que com o passar dos anos tornou-se necessário esmiuçar aspectos mais específicos do que deve ser um processo justo. Assim, outros princípios ao longo dos anos foram ganhando autonomia e características mais especificas, ainda que se note em muitos deles grande relação de interdependência. É o caso, por exemplo, dos princípios da ampla defesa e do contraditório. I.2 Principio do Contraditório O principio do contraditório faz parte da rede garantista que advêm do devido processo legal e não se resume à simples participação das partes autora e ré no processo, mas está muito ligado à idéia de “paridade de armas” das partes dentro de um processo13. Deve-se observar se as partes durante o processo têm oportunidades de 12 FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Codigo de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2004. p. 15 13 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 32. resposta com mesma intensidade e extensão. A idéia de dialética é parte indissociável de sua compreensão, . Está enunciado na Constituição Federal, também no art. 5º, inciso LV: “V - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;” Alem disso, a própria Convenção Americana de Direitos Humanos enfatiza tal princípio em seu art. 8º, dispondo também sobre o principio da ampla defesa: “Artigo 8º - Garantias judiciais (...) 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal; b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; (...) f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;” A jurisprudência em diversas oportunidades teceu considerações acerca do principio, destacando sua importância fundamental dentro do sistema jurídico pátrio, em especial no direito processual penal. “O principio do contraditório pressupõe a igualdade das partes e se revela na dialética da atividade probatória e das manifestações processuais, em relação às quais deve haver necessidade de informação e possibilidade de reação. O seu limite atinge todos os pontos de fato ou de direito que, durante o desenvolvimento da causa, se mostrem relevantes para o seu deslinde”14 Por fim, cabe observar que o principio do contraditório deve ser exercido de maneira plena dentro da perspectiva do sistema acusatório, podendo ser restringido em dadas situações de procedimentos inquisitivos15 I.3 Principio da Ampla Defesa O principio da ampla defesa está relacionado de maneira muito forte com o principio do contraditório. A alegação fica clara pela própria maneira como costumam ser tratados em conjunto pelo legislador, como se pode observar nos diplomas legais supracitados. Todavia ainda que pareça obvia a alegação, deve-se observar que não se tratam de princípios idênticos. Enquanto o contraditório exige a garantia de participação, o principio da ampla defesa vai alem, impondo a realização efetiva dessa participação. Sendo assim, vem a se manifestar por meio da autodefesa, da defesa efetiva e por qualquer meio de prova capaz de demonstrar a inocência do acusado.16 Segundo o Superior Tribunal de Justiça: “O principio do contraditório enseja contradizer fatos e alegações da acusação. O direito de defesa, por seu turno, dá a oportunidade de deduzir considerações, relativas à situação jurídica do réu”17. Ao tratar da Ampla Defesa o Supremo Tribunal Federal coloca ainda que esta significa “dar ao réu todas as oportunidades e meios que a lei lhe propicia para defender-se”18 Feita breve analise acerca dos princípios do devido processo, do contraditório e da ampla defesa, volta-se para a analise do caso em tela, mais especificamente dos efeitos inerentes à sentença que homologa a transação penal, e de sua conformidade ou não com os princípios acima elencados. B. SENTENÇA QUE HOMOLOGA A TRANSAÇÃO PENAL II.1 Efeitos da Sentença que Homologa a Transação Penal A discussão em torno dos efeitos da sentença que homologa a transação penal é uma das mais controversas dentro do Direito Processual Penal atualmente, e apresenta posições bem diversificadas tanto no âmbito doutrinário quanto no jurisprudencial. 14 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SAO PAULO. 1ª Câmara Criminal. Agravo 276.239-3/0-00 – Rel. Jarbas Mazzoni, 29.11.1999. 15 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 7ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003. p.17 16 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 35. 17 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 6ª Turma. RHC 3242 – Rel. Vicente Cernicchiaro, 07.12.1993. 18 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC – Rel. Moreira Alves – RT 688/385 Para Ada Pellegrini19 e Lucas Pimentel de Oliveira trata-se de sentença homologatória de transação penal com eficácia de título executivo. Para Paulo de Tarso Brandão, Damásio de Jesus trata-se de sentença meramente declaratória. Já Cezar Bitencourt afirma ser essa decisão uma sentença declaratória constitutiva20. O Superior Tribunal de Justiça ao analisar a questão tomou posição favorável à natureza condenatória de tal sentença: “A sentença homologatória da transação penal gera eficácia de coisa julgada material, impedindo a instauração da ação penal no caso de descumprimento da pena alternativa aceita pelo autor do fato. Assim, tendo a sentença homologatória da transação penal natureza condenatória, o descumprimento da pena de multa aplicada pelo Juizado Especial Criminal deve receber o mesmo tratamento pelo Juizado Criminal Comum, aplicando-se o art. 51 do CP com a redação dada pela Lei nº 9.268/96. Após a vigência da referida Lei, a pena de multa passou a ser considerada tãosomente dívida de valor, sendo revogadas as hipóteses de conversão em pena privativa de liberdade ou restrição de direitos. Logo, a pena de multa não cumprida no prazo legal deve ser inscrita na dívida ativa da Fazenda Pública.”21 Nesse mesmo sentido dispõe decisão do Superior Tribunal de Justiça, (inclusive citada no acórdão prolatado pelo TJPR, alvo de analise desta dissertação). “A sentença homologatória da transação penal, por ter natureza condenatória gera a coisa julgada formal e material, impedindo, mesmo no caso de descumprimento do acordo feito pelo autor do fato a instauração de ação penal”.22 Ainda que exista mais de uma manifestação da jurisprudência de tribunais superiores apontado para a natureza condenatória de tal sentença seria pretensioso afirmar que a questão encontra-se pacificada. Tal proposição pode ser demonstrada justamente pela ampla divergência manifestada por parte de respeitados nomes da doutrina pátria. Independentemente da corrente que se adote, no caso em tela é necessário que se analise as conseqüências que teriam o conferimento de uma ou outra natureza. E, mais do que isso, se a inclusão da previsão legal do art. 91 do Código Penal dentre elas, ofenderia princípios do devido processo legal, ampla defesa e contraditório. 19 GRINOVER, Ada Pellegrini. Juizados Especiais Criminais. 3ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 20 BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais Federais, São Paulo: Saraiva, 2003. p 20. 21 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 194.637-SP. Rel. José de Arnaldo Fonseca, 20.04.1999. 22 SUPERIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 223.315-SP. Rel. Fernando Golçaves, 23.10.2001. II.2 Aplicação do art. 91 do Código Penal em casos de Sentença que Homologam a Transação Penal Dispõe o art. 91 do Código Penal: “Art. 91 - São efeitos da condenação: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito; b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso. Retomando a discussão do tópico anterior, dentro da perspectiva de que a decisão que homologa transação penal não representa sentença condenatória, fica claro que não incidiriam sob a mesma os efeitos previstos no art. 91, que se refere expressamente a efeitos da condenação. Todavia, se partirmos da perspectiva que a coloca com natureza condenatória, é indispensável que seja feita uma analise mais profunda acerca da extensão dos efeitos dessa natureza condenatória, e quanto à aplicação ou não do art. 91 do Codigo Penal no rol de tais efeitos. Deve-se observar que o instituto da transação penal representa termo consensual entre autor do fato e Ministério Público em que se impõem determinadas penas restritivas de direito ou multa. Contudo, não há espaço para discussão em tal procedimento acerca da culpabilidade ou não, comprovação dos fatos ocorridos, analise de provas, etc. Com tal afirmação não se busca questionar, neste momento, a legitimidade do instituto da transação penal em si (que nos parece inclusive ser legitimo - visto que acolhido pela própria Constituição Federal, e por constituir um direito subjetivo do réu (ponto também controverso), que deve no momento de sua escolha estar assessorado por um advogado, dentro de um procedimento próprio estabelecido pela lei 9.099 de 199523, que visa evitar que seja aplicada pena restritiva de liberdade em hipóteses de cometimento de delitos de menor potencial lesivo). Contudo, ao pretender estender os efeitos decorrentes da sentença homologatória e em ultima instancia da própria transação àqueles presentes em uma sentença 23 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 7ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003. p.269 condenatória “ordinária”, isto é, fruto de processo regular que culmina em sentença prolatada pelo juiz, acaba-se por ofender princípios do contraditório, da ampla defesa e por conseguinte do próprio devido processo legal. Isto porque, não há nem mesmo averiguação quanto a incidência ou não do crime, tornando-se abusivo impor o recolhimento do instrumento que tenha sido usado para o mesmo. Alem disso, o argumento mais substancial, no caso em tela, refere-se ao fato do art. 91 não fazer parte do acordo celebrado entre autor do fato e Ministério Público e posteriormente homologado pelo juiz de Direito. Fica clara a diferenciação da extensão destes efeitos quando se observa que a transação penal não importa na caracterização de reincidência nem consta de anotações criminais, registrando-se a aplicação da penalidade apenas com vistas a impedir que o autor do fato, no período de 5 (cinco) anos, se veja novamente alcançado pela medida benéfica Nesse sentido ensina Julio Fabrini Mirabete: Por disposição expressa, a sentença homologatória da transação não tem os efeitos civis (art. 76, parágrafo 6º), como previsto para a sentença penal condenatória (art. 91, I, do Código Penal, art. 63 do Código de Processo Penal). Fica excluída, também, a possibilidade de invocação do art. 584, III, do Código de Processo Civil, que considera como título executivo judicial a sentença homologatória de transação. Assim, a vítima e os demais interessados deverão propor ação de conhecimento no juízo cível para obter a reparação dos danos e outros efeitos civis. Sendo genérico o dispositivo, ao se referir a 'efeitos civis', também não gera a sentença homologatória da transação a perda dos instrumentos ou produto do crime (art. 91, 'a' e 'b', do Código Penal). Também se pode afirmar que, tratando-se de sentença condenatória imprópria, não causa a sentença os efeitos civis e administrativos previstos no art. 92, do Código Penal, eventualmente aplicáveis ao autor da infração de menor potencial ofensivo, mesmo porque tais efeitos não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença (art. 92, parágrafo único, do Código Penal)."24 Tal posição é corroborada pela própria jurisprudência, conforme decisão do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, ao estabelecer que: "A sentença homologatória de transação penal não pode ter o efeito de condenação do artigo 91, II 'a', porque não cabe interpretação extensiva contra o réu. Ademais, a sentença não pode ir além do que foi acordado pelas partes. (impedir a restituição de arma apreendida)" C. CONCLUSÃO Independentemente da natureza que se coloque para a sentença que homologa a transação penal, a negativa de restituição de bens apreendidos no caso de transação penal constitui ofensa aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. 24 MIRABETTE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 4a. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 75. Para tanto, basta analise aprofundada dos princípios acima enunciados. Diante de tal situação não se estabelece a possibilidade de ampla defesa, nem de contraditório pelo autor do fato, uma vez que com a transação opera-se extinção da punibilidade, e não há espaço para discussão acerca da culpabilidade ou não do autor. Alem disso, ofende-se o devido processo legal em sentido amplo por não haver previsão especifica quanto a tal efeito condenatório, que não consta inclusive no próprio termo estabelecido entre autor e Ministério Público. 3. . Apreciem os problemas relativos ao moderno garantismo e à mitigação das garantias individuais processuais – os casos de quebra de sigilo de dados na internet, em bibliotecas etc. na persecução ao terrorismo e à lavagem de capitais. “… e tratar de compreender que o imenso organismo era inatacável…Se alguém, no lugar em que lhe cabia estar, mudava algo por sua conta, teria tão-somente removido o chão sob os seus próprios pés e se desnucaria, enquanto o grandioso organismo facilmente poderia se ressarcir em outra parte – posto que tudo estava relacionado – da ferida sofrida em algum ponto”. (Franz Kafka, O Processo). O garantismo consiste no conjunto de direitos e garantias de cunho processual que resguardam o indivíduo contra as arbitrariedades, excessos e abusos do jus puniendi estatal. No magistério de Aury Celso Lima Lopes Junior, O processo, como instrumento para a realização do Direito Penal, deve realizar sua dupla função: de um lado, tornar viável a aplicação da pena, e de outro, servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do Estado. Nesse sentido, o processo penal deve servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir a plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, defesa, etc. O objeto primordial da tutela não será somente a salvaguarda dos interesses da coletividade, mas também a tutela da liberdade processual do imputado, o respeito a sua dignidade como pessoa, como efetiva parte do processo.25 O autor identifica cinco princípios básicos sobre os quais se assenta o garantismo: (i) jurisdicionalidade – a aplicação da pena tem como pressuposto o processo penal, realizado por juiz natural que satisfaça os requisitos de independência e 25 LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima Lopes. A Instrumentalidade Garantista do Processo Penal. Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/17011/public/1701117012-1-PB.htm. Acesso em: 27 de abril de 2010. imparcialidade; (ii) inderrogabilidade do juízo; (iii) separação das atividades de julgar e acusar; (iv) presunção de inocência; (v) contraditório e ampla defesa.26 Atualmente, assiste-se a verdadeiro atentado ao garantismo. Esta tendência, que se assemelha à reprodução, na realidade fática, de todas as violações retratadas por Kafka, no clássico da literatura ocidental O Processo, verifica-se de forma particularmente clara na persecução ao terrorismo e à lavagem de capitais. Passa-se, agora, a análise pormenorizada de cada uma destas situações. No tocante às estratégias de repreensão ao terrorismo, concentrar-se-á em três vertentes, quais sejam: (i) a adoção do Ato Patriótico pelo governo norte-americano; (ii) a flexibilização da proibição da tortura e de outras modalidades de maus-tratos; (iii) e, o desrespeito ao devido processo legal pelo Ato das Comissões Militares (Military Commission Act) de 2006 e pela prática de blacklisting no Conselho de Segurança. Ressalve-se que outros aspectos são igualmente dignos de atenção. Porém, devido às limitações da presente proposta pedagógica, decidimos nos ater à questão de forma abrangente, apresentando apenas os seus contornos principais. Para tanto, as aludidas vertentes mostram-se suficientes. Importa observar, outrossim, que tomamos os Estados Unidos como referência, por ter este país se apresentado como o baluarte da luta internacional contra o terrorismo. Quanto ao crime de lavagem de capitais, realizar-se-á análise dos dispositivos da Lei 9.613/98, à luz dos direitos e garantias fundamentais consagradas pela Constituição da República Federativa do Brasil (CF). D. O GARANTISMO PROCESSUAL NA PERSECUÇÃO AO TERRORISMO ii. O Ato Patriótico O Ato Patriótico, submetido ao Senado dos Estados Unidos em 24 de outubro de 2001, objetiva, como esclarece a sua ementa, “deter e punir atos terroristas nos Estados Unidos e em todo o mundo, expandir mecanismos investigativos para o cumprimento da lei, entre outros propósitos”.27 Para tanto, estabelece uma série de medidas excepcionais, que, provavelmente não seriam admitidas em outras circunstâncias, por contrariarem o espírito democrático de que tanto se orgulha a sociedade norte-americana. Sem 26 Ibidem. H. R. 3162. Disponível em: http://frwebgate.access.gpo.gov/cgi-bin/getdoc.cgi? dbname=107_cong_bills&docid=f:h3162enr.txt.pdf. Acesso em: 26 de abril de 2010 (tradução livre). 27 pretender realizar estudo pormenorizado das referidas medidas, os títulos do Ato Patriótico são esclarecedores quanto aos seus contornos: título I – expandindo a segurança doméstica contra o terrorismo; título II – procedimentos de vigilância ampliada; título V – removendo obstáculos à investigação do terrorismo; título VIII – fortalecendo as leis penais contra o terrorismo; título IX – inteligência melhorada. Igualmente reveladores são os títulos de alguns dispositivos elencados pelo diploma em tela, dos quais destacam-se: seção 105 – expansão da Iniciativa da Força Tarefa Nacional contra Crimes Eletrônicos; seção 201 – autoridade para interceptar comunicações telegráficas, orais e eletrônicas relativas ao terrorismo; seção 202 – autoridade para interceptar comunicações telegráficas, orais e eletrônicas relativas a fraude informática e ofensas abusivas; seção 209 – apreensão de mensagens de voz conforme mandado; seção 217 – interceptação de comunicações de transgressores de informática. Tais determinações foram recentemente acompanhadas da exigência de que os servidores de internet forneçam todos os registros de IP e que as bibliotecas disponibilizem o histórico das obras consultadas por seus usuários. Destarte, sob a justificativa de perseguir, de forma mais eficiente, a consecução de seus objetivos e, notadamente, do combate ao terrorismo, o Ato Patriótico elimina, como obstáculos indesejáveis, direitos e garantias fundamentais de ordem constitucional, como a intimidade, a privacidade e a liberdade de expressão. Esclareça-se que não se está aqui a sustentar que tais direitos devem ser compreendidos em termos absolutos. Ao contrário, admitem exceções, quando sopesados com outros direitos e princípios fundamentais, no caso concreto. O que suscita estranhamento e preocupação no Ato Patriótico é o fato de que, apropriando-se de discurso embasado na segurança nacional e na defesa do interesse público e bemestar coletivo, justifica genérica e abstratamente restrições ilegítimas a direitos de todos os cidadãos norte-americanos, mesmo daqueles que nunca estiveram envolvidos em práticas terroristas. Além de maléfica em si mesma, a flexibilização em abstrato de direitos e garantias fundamentais se encontra na origem de problemas mais amplos e graves. Isso porque pode ser utilizada para legitimar violações a outros direitos, contrariamente ao que determina o princípio da proibição do retrocesso, para o qual os direitos historicamente conquistados se incorporam automaticamente ao patrimônio jurídico de seus titulares, não podendo ser alvo de quaisquer medidas tendentes a anulá-los, revogálos ou aniquilá-los. A título de ilustração, a quebra de sigilo de dados na Internet, efetuada para investigar e reprimir atos terroristas, pode passar a ser aceita em outros contextos, e antes que se perceba a proteção à intimidade e à privacidade é definitivamente banida do cyber espaço. Da mesma maneira, o acesso das autoridades competentes a livros locados em bibliotecas públicas, inicialmente um elemento da política anti-terrorismo, pode ser logo generalizado. Rapidamente, até mesmo os livros didáticos utilizados por crianças para pesquisas escolares, e as obras literárias pegas por senhoras aposentadas para entreter suas horas vagas, poderão ser registrados nas bases de dados do governo. A partir daí, já não é tão difícil resignar-se a interceptações telefônicas, quebra de sigilo bancário, instalação de câmaras de vigilância em espaços públicos – enfim, à recriação do programa Big Brother no âmbito da sociedade. Ressalte-se que estes novos mecanismos de controle podem ser explorados pelos órgãos que compõem o aparato punitivo estatal para obterem provas de condutas criminosas e enrobustecerem a acusação e as penas aplicadas. Trata-se de releitura de todo o sistema processual penal, desenvolvido em torno da pessoa do acusado e assentado em princípios como a não auto-incriminação e a vedação a utilização de provas produzidas por meios condenados pela moral, a ordem pública, os bons costumes e as normas jurídicas. Aliás, a proibição de provas ilícitas já tem sido flexibilizada nos Estados Unidos e na Alemanha. A Suprema Corte dos EUA – defensora da doutrina dos “frutos da árvore envenenada” (fruits of the poisonous tree), que veda as provas ilícitas por derivação – passou a admitir as provas que, apesar de ilícitas, poderiam ser obtidas no curso das investigações regulares. Já a Corte Constitucional da Alemanha adota a teoria da proporcionalidade, segundo a qual as provas ilícitas podem ser aceitas, desde que haja interesse público a esse respeito. O pior é que os cidadãos muitas vezes não se encontram em condições de se oporem a este movimento. Sensibilizados pelo discurso oficial, atemorizados com o terrorismo e outras ameaças, aceitam e apóiam todas as iniciativas aptas a fazer frente a elas. O que lhes importa é que os “bandidos” sejam detidos e que as suas vidas e de suas famílias sejam resguardadas, ainda que, para isso, a dignidade da pessoa humana tenha que ser desrespeitada. Para concluir, pode-se questionar a compatibilidade entre o Ato Patriótico e o devido processo legal. Este, em sua dimensão material ou substantiva, orienta a produção normativa, a fim de assegurar a observância de direitos fundamentais, como o trinômio vida-liberdade-propriedade, privacidade, intimidade, personalidade e família.28 Como se propõe a sacrificar estes direitos e garantias, em nome de um suposto interesse maior de segurança nacional, o Ato Patriótico contraria o devido processo legal. Deve-se atentar para que a lógica do Ato Patriótico não se reproduza no Brasil, onde já se observa maior rigor na repreensão ao terrorismo. A título de exemplo, observe-se que o artigo 5º, inciso XLIII da CF o define como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, assim como o faz o artigo 2º da Lei 8.072/90. O artigo 83, inciso V, do Código Penal, por sua vez, impõe requisitos mais severos para a concessão do livramento condicional àquele que o haja perpetrado. Já a Lei Complementar 105/2001, em seu artigo 1º, § 4º, admite expressamente a quebra de sigilo bancário no tocante aos crimes de terrorismo. Todavia, antes que sequer se cogite de aplicar estes artigos e de punir o terrorismo como crime, no Brasil, é necessário tipificá-lo, conforme todos os requisitos do princípio da legalidade – v.g. clareza e precisão. De fato, os diplomas nacionais e tratados internacionais ratificados pelo país que tratam do assunto são insuficientes para que se possa falar em tipo de terrorismo em nosso ordenamento jurídico. I.2 A Flexibilização da Proibição da Tortura e de Outras Modalidades de Maus-Tratos Antes de adentrar o mérito da questão, convém distinguir entre as diversas espécies que compõem o gênero maus-tratos, ou seja: tortura, tratamento desumano (também denominado cruel) e tratamento degradante. De acordo com a jurisprudência das Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos, não se pode definir a priori quais atos pertenceriam a cada uma destas categorias. Tal somente poderia ser feito casuisticamente, a partir de uma análise das circunstâncias específicas de cada caso concreto, com destaque a: “duração do tratamento, os seus efeitos físicos ou mentais e, em alguns casos, o sexo, idade e estado de saúde da vítima”.29 A conduta vexatória seria, então, classificada conforme a intensidade do sofrimento infligido e o fim almejado.30 A tortura seria a forma mais grave de maus-tratos, praticado com o intuito, 28 STONE, Geoffrey R.; SEIDMAN, Louis M.; SUNSTEIN, Cass R.; TUSHNET, Mark V. Constitutional Law, 4th ed. New York: Aspen, 2001, pp. 710, 810 29 Corte Européia de Direitos Humanos, Case of Ireland v. the United Kingdom., [1978] ECHR 1, 1978, para.162 (tradução livre). 30 Corte Européia de Direitos Humanos, Aksoy v. Turkey., [1996] ECHR 68, 1996, paras.63-64; Corte Européia de Direitos Humanos, Case of Aydin v. Turkey., [1997] ECHR 75, para.82; Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório sobre Terrorismo e Direitos Humanos, 22 out. 2002. OEA/Ser.L/V/II.116 Doc. 5 rev. 1 corr., para.158; Caso Luis Lizardo Cabrera. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Caso 10.832, 1997, para. 80; Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso inter alia, de obter informação ou confissão da vítima ou de terceiro, castigar, intimidar, coagir ou discriminar. Já o tratamento degradante, considerado o menos grave entre as três modalidades de maus-tratos, poderia ser definido como aquele que humilha o indivíduo “de maneira grave diante de terceiros ou o leva a atuar contra a sua vontade ou consciência”.31 Finalmente, o tratamento desumano, de nível intermediário, é “aquele que deliberadamente causa sofrimento físico e particularmente grave, que, dado a situação particular, é injustificado”.32 Observa-se, contudo, no Direito Internacional, tendência a expandir o conceito de tortura, de modo que este abarque atos antes definidos como tratamento desumano ou degradante. Nesse sentido, de acordo com a Corte Européia de Direitos Humanos: levando em consideração que a Convenção [a Convenção Européia de Direitos Humanos] é ‘um instrumento vivo que deve ser interpretado à luz das condições hodiernas’ (...), a Corte considera que certos atos que eram classificados no passado como ‘tratamento desumano ou degradante’ em oposição à tortura poderiam ser classificados de forma diferente no futuro. Ela adere à visão de que os altos e crescentes padrões requeridos na área de proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais, de acordo e inevitavelmente, requerem maior firmeza na determinação da violação de valores fundamentais às sociedades democráticas.33 Na contramão do movimento internacional, o governo norte-americano defende uma definição restritíssima de tortura, que compreenderia apenas as condutas mais extremas e egrégias, responsáveis por dor física equiparável à falha de órgãos e funções corporais e à morte. É o que se depreende do Memorandum enviado pelo AdvogadoGeral Adjunto, Jay Bybee ao Conselheiro da Casa Branca Alberto R. Gonzales34: para um ato constituir tortura (...) ele deve infligir dor que é difícil de suportar. Dor física correspondente à tortura deve ser equivalente em intensidade à dor acompanhando sérias lesões físicas, como falha dos órgãos, prejuízos a funções corporais ou até mesmo a morte. Para sofrimento ou dor puramente mental corresponder à tortura (...), deve resultar em significativo Loayza Tamayo. Serie C No. 33, 2000, para.57; Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Ximenes Lopes v. Brasil. Serie C No. 149, 2006, para.127. 31 Greek Case. Anuário da Convenção Européia de Direitos Humanos, No. 12, 1969, p.186 (tradução livre). 32 Idem (tradução livre). 33 Corte Européia de Direitos Humanos,Case of Selmouni v. France. [1999] ECHR 66, 1999, para.101 (tradução livre). 34 Ressalte-se que, devido à repercussão negativa que ocasionou junto ao público, o Memorandum de Jay Bybee foi substituído por Memorandum formulado pelo então Advogado-Geral Adjunto Daniel Levin ao Vice Advogado-Geral James B. Comey. Porém, apesar de criticar a concepção restritiva de tortura de seu antecessor, Levin não se afastou da mesma. Com efeito, ilustra, como práticas passíveis de serem consideradas tortura “espancamentos severos na genitália, cabeça e outras partes do corpo, com canos de mental, nós de latão, bastões, tacos de baseball e vários outros itens; remoção de dentes com alicates; chutes no rosto e costelas; fratura de ossos e costelas e deslocamento de dedos” (Office of the Assitant Attorney General. Memorandum for James B. Comey Deputy Attorney General: Legal Standards Applicable under 18 U.S.C 2340-2340A, 2004, p. 10 (tradução livre). dano psicológico de longa duração, e.g. durando por meses ou até mesmo anos (grifos nossos)”.35 A adoção, por Bybee, do aludido marco teórico não se deu de forma isolada. Ao contrário, foi acompanhada por manifestações de outras autoridades. A título de exemplo, o então Vice Advogado-Geral Adjunto, Mark Richard – em discurso perante o Senado por ocasião da deliberação sobre a adoção da Convenção da ONU contra a Tortura – esclareceu que “a tortura é compreendida como sendo aquela crueldade bárbara que se encontra no topo da pirâmide de condutas vexatórias envolvendo os direitos humanos”. Similarmente, o Comitê de Relações Exteriores do Senado sustentou que “para um ato ser tortura, deve ser uma forma extrema de tratamento cruel e desumano, causando dor severa e intencionada a causar dor e sofrimento severos”.36 A veiculação de uma definição restritiva de tortura associa-se ao argumento de que – ao contrário do que determinam os tratados,37 a doutrina38 e a jurisprudência internacionais39 - o tratamento desumano ou degradante não caracterizaria violação do ordenamento jurídico norte-americano. Com efeito, a lei que internaliza a Convenção da ONU contra a Tortura se limita a criminalizar a tortura, não estendendo qualquer punição ao tratamento desumano ou degradante. Estas duas espécies de maus-tratos abarcariam somente “atos que não devem ser cometidos e os quais os Estados devem se esforçar para prevenir, mas que os Estados não precisam criminalizar, deixando-os sem o estigma das penalidades criminais”.40 Ainda que assim não fosse, argumentava-se também que, por força de reserva feita pelo Senado à Convenção da ONU contra a Tortura, não haveria, sob o artigo 16, qualquer proibição a respeito do uso de tratamento cruel, desumano ou degradante contra estrangeiros além-mar (inclusive na Baía de Guantánamo que, para esses efeitos, não era considerada como parte do território norte-americano).41 35 Office of the Assistant Attorney-General. Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel for the President: Standards of Conduct for Interrogation under 18 U.S.C. 2340-2340A, 2002, p.1. 36 Memorandum Daniel Levin, op.cit., p. 7 (tradução livre). 37 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Nova York, 16 Dez. 1966, em vigor 23 Mar. 1976. 999 U.N.T.S. 171, art.7; Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (Convenção Européia sobre Direitos Humanos). Roma, 4 nov. 1950, art.3; Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San José da Costa Rica, 22 nov. 1969, em vigor 18 jul. 1978, UNTS 17955, art.5(2): 38 QUIROGA, Cecília Medina. La Convención Americana: Vida, Integridad Personal, Libertad Personal, Debido Proceso y Recurso Judicial. San José: Centro de Derechos Humanos, Facultad de Derecho, Universidad de Chile, 2005, p. 153. 39 A jurisprudência entende mesmo que a proibição de todas as formas de maus-tratos atingiu o status de norma imperativa de Direito Internacional (jus cogens): C.f. Ximenes Lopes, op.cit., para. 126; Caso Cantoral Benavides. Corte Interamericana de Direitos Humanos, Serie C No. 69, 2000, para. 95. 40 Memorandum Jay Bibee, op.cit., p. 15 41 Responses to Senator Richard J. Durbin’s Written Questions for Timothy Flanigan, Nominee to be Deputy Attorney General. Disponível em http://balkin.blogspot.com/flanigan.durbin.pdf, acesso em: 26 de abril de 2010, p.1. Apoiando simultaneamente uma concepção restritiva de tortura e a não criminalização de outras condutas vexatórias, o governo norte-americano pretendia excluir o maior número possível de situações do espectro de condutas legalmente proibidas e, portanto, viabilizar práticas que do contrário seriam condenadas. Nesse sentido, à época em que era Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld elaborou relatório sobre as técnicas de interrogatório oficialmente autorizadas para uso contra os “combatentes ilegais” (unlawful combatants) detidos em Guantánamo. Dentre elas, incluem-se: o aumento moderado ou significativo do medo do inquirido; a sua humilhação; a manipulação de seu regime alimentar e de sono, apta a ocasionar transtornos biológicos e fisiológicos; o seu isolamento de outros detentos.42 Ademais, até mesmo os atos passíveis de serem definidos como tortura não seriam peremptoriamente vedados: eles poderiam ser realizados se visassem a fim mais nobre do que a mera integridade física da vítima. Trata-se de revisita ao velho aforismo maquiavélico de que os “fins justificam os meios”. Particularmente ilustrativo dessa perspectiva é o paradigmático caso da ticking bomb. Imagine-se a seguinte situação: o FBI prendeu suspeito de terrorismo em Nova York, que lhes informa ter instalado bombas em pontos estratégicos da cidade. Ele já as tinha ativado e em algumas horas, toda a cidade seria destruída e milhares de pessoas morreriam. Apesar de saber como desativá-las, ele se recusa a contar a seus captores. Poderiam eles torturá-lo, a fim de extrair a informação vital que impediria o desastre? Nesta hipótese excepcional, na qual o problema é colocado em termos simples, como a escolha entre a integridade corporal de um indivíduo e a preservação da vida de milhares de pessoas, não seria difícil angariar apoio generalizado à utilização da tortura. Porém, a realidade fática nunca se apresenta com tamanha obviedade. A maioria das situações envolve fatores e variáveis que não são contempladas no paradigma da ticking bomb: o prisioneiro pode nada saber sobre as bombas ou como desativá-las; as próprias bombas podem ser um mero rumor; a confissão extraída pode ser falsa ou não ser obtida a tempo de salvar os indivíduos ameaçados. Além disso, é mais provável que os valores em confronto não sejam tão díspares quanto àqueles apresentados hipoteticamente, e, então, torna-se ainda mais complicado determinar quem teria a autoridade para decidir que a integridade física de alguém é menos digna de proteção do que outro direito. 42 Department of Defense of the United States of America – the Secretary of Defense. Memorandum for the Commander, US Southern Command. Subject: Counter-Resistance Techniques in the War on Terrorism. April 16 2003. Disponível em http://www.humanrightsfirst.com/us_law/etn/gonzales/memos_dir/mem_20030416_Rum_IntTec.pdf. Acesso em: 26 de abril de 2010. O dilema da ticking bomb é manipulado com o objetivo de priorizar a perspectiva do torturador em detrimento daquela do torturado e de apresentar a tortura como ato heróico e não como uma conduta vexatória e degradante. Novamente colocase o risco, já discutido na sessão anterior, de que uma pequena abertura na norma, permitida para um caso específico e excepcional, transforme-se em um rombo, representado pela flexibilização generalizada da norma a uma infinidade de outras circunstâncias. Atenta a isso, a Suprema Corte de Israel, no caso Public Committee Against Torture v. Israel enfatizou que o emprego da tortura em estado de necessidade não implica em autorização indiscriminada para o seu uso no futuro: a defesa de ‘necessidade” não constitui uma fonte de autoridade autorizando os investigadores do GSS [General Security Service – Serviço Geral de Segurança, em sua sigla em inglês] a fazerem uso de meios físicos durante o curso das interrogações (...). A defesa de ‘necessidade’ tem o efeito de permitir aquele que age sob circunstâncias de ‘necessidade’ a escapar de condenação criminal (...). Ela não autoriza o uso de meios físicos para o propósito de permitir que investigadores executem os seus deveres em circunstâncias de necessidade. O próprio fato de que um ato em particular não constitui um ato criminoso (devido à defesa da ‘necessidade’) não autoriza, em si, a administração a conduzir este fato e, em fazendo isso, infringir os direitos humanos. A Regra do Direito requer que uma infração de um direito humano seja prescrita por um estatuto, autorizando a administração neste sentido. A suspensão da responsabilidade criminal não implica autorização para infringir um direito humano.43 Deve-se estar atento, portanto, para que o terrorismo não seja utilizado para legitimar a violação de uma das principais garantias individuais contra o poder de investigação e punição do Estado. Foi à custa de muita luta e esforço que a tortura foi banida do processo penal e “pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, este importante consenso da comunidade internacional parece ter sido posto sob questionamento”.44 Aderir a este entendimento é abrir as portas para um dos maiores retrocessos da história da humanidade e do garantismo processual penal. I.3. O Ato das Comissões Militares e a Prática de Blacklisting no Conselho de Segurança 43 ISRAEL. Corte Suprema de Israel. Public Committee Against Torture in Israel v. The State of Israel and The General Security Service. HCJ 5100/94, 1999, p. 34. 44 Statement of the Special Rapporteur on Torture, Manfred Nowak to the 61st Session of the UN Commission on Human Rights apud FOOT, Rosemary. Torture: The Struggle over a Peremptory Norm in a Counter-Terrorist Era. Thousand Oaks, London, 2006. Analisadas as ofensas aos direitos à liberdade de expressão, à intimidade, à privacidade e à integridade física, deve-se examinar como as estratégias de repressão ao terrorismo violam os direitos e garantias de índole propriamente processual. Para tanto, cumpre chamar atenção para os dispositivos mais relevantes do Ato das Comissões Militares de 2006 (Military Commissions Act). Primeiramente, por serem estabelecidas ex post facto por ato do executivo,45 para julgarem condutas específicas (violação das leis da guerra e outras ofensas passíveis de serem julgadas por comissões militares46) perpetradas por um grupo determinado de pessoas (estrangeiros definidos como combatentes inimigos envolvidos em hostilidades contra os Estados Unidos47), em 11 de setembro de 2001, ou depois desta data, 48 concluí-se que constituem tribunais de exceção e, por isso, violam o princípio do juiz natural. Este é corolário do Estado Democrático de Direito e do devido processo legal e determina que é competente o juiz constitucionalmente pré-constituído para a causa, por critérios abstratos previstos em lei. Ele também exige que o juiz seja imparcial e que não tenha qualquer interesse na resolução da lide. Em segundo lugar, nos processos perante as comissões militares, observa-se desrespeito à proibição da apresentação de provas obtidas ilicitamente, sendo admitidas, em algumas circunstâncias, até mesmo provas produzidas por meio da coerção. Nesse sentido, o § 948r determina que os depoimentos anteriores ao estabelecimento do Ato de 2005 sobre o Tratamento de Detentos, em relação aos quais se questiona o nível de coerção utilizado, poderão ser admitidos se o juiz militar considerar que “a totalidade das circunstâncias torna o depoimento confiável e portador de valor probatório suficiente” e “se os interesses da justiça seriam melhor atendidos pela admissão do depoimento como evidência”. Quanto aos depoimentos de mesmas características que sejam posteriores ao aludido diploma normativo, eles serão aceitos se satisfeitos aqueles dois requisitos e se “os métodos de interrogatórios utilizados para obter o depoimento não constituem tratamento cruel, desumano ou degradante proibido pela seção 1003 do Ato de 2005 relativo ao Tratamento de Detentos”. Contrario sensu, a interpretação gramatical do dispositivo sugere que os depoimentos anteriores a este ato seriam acolhidos mesmo se houvessem decorrido da prática de maus-tratos. 45 Military Commissions Act of 2006, Public Law 109–366—OCT. 17, 2006. Disponível em: http://frwebgate.access.gpo.gov/cgi-bin/getdoc.cgi? dbname=109_cong_public_laws&docid=f:publ366.109.pdf. Acesso em: 26 de abril de 2010, § 948h. 46 Ibidem, § 948b (a). 47 Idem. 48 Ibidem, § 948d (a). Há, também, a autorização de que, ao elaborar as regras sobre evidência aplicáveis as comissões militares, o Secretário de Defesa preveja o seguinte: “a evidência será admissível se o juiz militar determinar que ela teria valor probatório a uma pessoa razoável”; “a evidência não será excluída do julgamento pela comissão militar sob o fundamento de que a evidência não foi apreendida conforme mandado de busca ou outra autorização”; “um depoimento do acusado que é de outra forma admissível não será excluída do julgamento por comissão militar sob o fundamento de suposta coerção ou auto-incriminação compulsória desde que a evidência cumpra os requisitos da seção 948r”; “a evidência será admitida como autêntica, desde que – (i) o juiz militar da comissão militar determine que há base suficiente para considerar que a evidência é o que considera ser; e o juiz militar instruir os membros a considerarem quaisquer questões de autenticação ou identificação da evidência na determinação do peso, se algum, a ser dado a ela”.49 Dos dispositivos supracitados, depreende-se que, nas comissões militares, é acolhida evidência que seria rejeitada como ilícita no trâmite processual regular, além de haver clara violação do princípio da não auto-incriminação, para o qual ninguém deve ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. Outra característica digna de ser mencionada é a confusão entre os papéis de acusador e julgador, que afeta a imparcialidade do mesmo e remete ao sistema inquisitorial. Com efeito, ao juiz são conferidos poderes significativos no tocante à determinação das provas que serão ou não apreciadas. Os artigos do Ato das Comissões Militares também impõem inúmeras restrições aos direitos à ampla defesa e ao contraditório. Particularmente importantes a este respeito são as seguintes regras: (i) o acusado deve ser representado por um defensor militar; se optar por um defensor civil, este deve satisfazer todos os requisitos enumerados no § 949c (b) (3), inclusive ter sido considerado apto ao acesso a informação confidencial classificada no nível Secreto ou mais elevado; (ii) o juiz é autorizado a excluir o acusado de determinados procedimentos, nos termos do § 949d (3) (e), se considerar que tal é necessário para garantir a segurança física de indivíduos ou prevenir que o acusado perturbe o trâmite processual; (iii) para proteger informações definidas como confidenciais pelo chefe de departamento executivo ou militar ou agência governamental, o juiz pode permitir: a supressão ou substituição de tais informações de documentos submetidos ao acusado ou apresentados como evidência 49 Ibidem, § 949a (b) (A)-(D). perante a comissão militar; a substituição de um relato de fatos relevantes que a informação confidencial se destinaria a provar; (iv) ao juiz militar é dado admitir que a acusação não revele as fontes, métodos ou atividades pelas quais teve acesso a prova, se decidir que as referidas fontes, métodos e atividades são confidenciais e que a prova é confiável; (v) a pedido do Governo, materiais tidos como “privilegiados” não deverão ser divulgados ao acusado; (vi) são limitadas as normas jurídicas nas quais o réu pode se embasar; ele não pode, por exemplo, invocar as Convenção de Genebra de 1949. O acima exposto indica que, além das restrições que sofre no tocante à escolha de seu advogado e às suas oportunidades de defesa no plano do Direito Material, o acusado vê limitadas sobremaneira as suas possibilidades de contradizer os fatos e provas apresentados pela acusação. Basta que uma informação seja considerada confidencial ou privilegiada – sem que ele possa questionar a sua definição como tal – para que se torne inacessível. Não restam dúvidas de que tal abre um vasto espectro de arbitrariedade e abuso pela acusação e pelo julgador. Finalmente, a seção 7 priva o indivíduo de uma das mais importantes garantias e ferramentas contra o jus puniendi estatal: o habeas corpus. De acordo com o dispositivo em comento, “nenhuma corte, justiça, ou juiz, terá jurisdição para ouvir ou considerar pedido por um writ de habeas corpus interposto por ou em nome de um estrangeiro detido pelos Estados Unidos que é considerado pelos Estados Unidos como tendo sido propriamente detido como combatente inimigo ou que esteja aguardando tal determinação”.50 É de se observar, contudo, que a Suprema Corte do país contradisse o teor de tal decisão, tendo decidido, no caso Rasul v. Bush, que os detentos de Guantánamo também são titulares dos direitos assegurados sob a Constituição, incluindo o habeas corpus, uma vez que os EUA exercem jurisdição sobre a Baía e seus prisioneiros.51 Sendo o devido processo legal o aglutinador de todos os direitos e garantias processuais, com destaque ao contraditório e à ampla defesa, é de se concluir que ele é desrespeitado pelas Comissões Militares norte-americanas. Outra prática que contraria frontalmente o devido processo legal é levada a cabo pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e, notadamente, por seu Comitê de Sanções. Em procedimento conhecido como blacklisting, este pode elaborar, por conta própria, ou a requerimento de Estados, lista de suspeitos de 50 51 Ibidem, sec. 7 (tradução livre). Rasul v.Bush [2004] 542 U.S.466, 124 S.Ct.2686, pp.2692-2698. terrorismo e outras transgressões, a quem serão aplicadas sanções, como o congelamento de bens e ativos financeiros.52 No entanto, eles não são notificados e não têm a oportunidade de se defender. Apenas depois de terem sofrido a sanção é que podem se manifestar pela retirada de seus nomes da lista, procedimento este que, além de lento e pouco eficaz, depende da boa-vontade dos Estados. Paradigmáticos a este respeito são os casos Kadi53 e Yusuf54, nos quais estes indivíduos interpuseram ações perante o Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Européias, requerendo a supressão de seus nomes da lista do Conselho de Segurança, assim como reparação pelos danos sofridos. O Tribunal indeferiu os pedidos, tendo concluído que, apesar de contrariar a exigência de acesso à justiça, o procedimento de blacklisting era válido como mecanismo de repressão ao terrorismo. Após alvoroço causado pela decisão, Kadi e Yusuf foram retirados da lista, por iniciativa do governo suíço. Curioso observar que os procedimentos seguidos pelas Comissões Militares e pelo Conselho de Segurança não são muito diferentes da descrição de Kafka do processo a que se submete seu personagem K. em O Processo: Lamentavelmente, e tinha que se advertir K., poderia ocorrer que as primeiras alegações não fossem sequer lidas. Eram anexadas ao expediente porque, de momento, os interrogatórios e a observação direta do acusado eram mais importantes que todos os escritos juntos. Quando o peticionário se mostrava demasiado insuportável, era informado que, antes da sentença, e quando todo o material estivesse reunido, estudar-se-iam todas as atas em seu conjunto e, com elas, naturalmente, também as primeiras alegações. Porém, lamentavelmente, isso tampouco era de todo seguro, porque as primeiras alegações quase sempre se transpapelavam, se não se perdiam por completo; se eram conservadas até o final, segundo rumores, quase nunca eram lidas. Tudo isso era penoso, mas não de todo injustificado. K. deveria levar em conta que não se tratava de um procedimento público. Se o tribunal o julgasse necessário, poderia fazê-lo público, mas a lei não o exigia. Devido a isso, nem o acusado, nem a defesa tinha acesso às atas do tribunal, e menos à ata de acusação. Por isso, via de regra, não se sabia ou não se sabia bem o que concretamente se devia refutar nas alegações iniciais, e era casual que contivessem algo que pudesse ser de interesse para a causa. As boas alegações se podiam elaborar muito mais tarde, quando no curso dos interrogatórios se delineassem ou ao 52 BIANCHI, Andrea. Security Council’s Anti-terror Resolutions and their Implementation by Member States. Journal of International Criminal Justice, pp 1045-1073, Volume 4, NO. 5, November 2006. 53 Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Européias, Yassin Abdullah Kadi v. Council of the European Union and Commission of the European Communities. Caso T-315/01, 21 de setembro de 2005. 54 Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Européias, Ahmed Ali Yusuf and Al Barakaat International Foundation v. Council of the European Union and Commission of the European Communities, Caso T-306/01, 21 de setembro de 2005. menos se deixassem adivinhar os diversos aspectos da acusação e seus fundamentos. Nestas condições, a defesa padecia uma situação desfavorável, difícil. Porém, era justamente isso o que se buscava. Porque a lei não estipulava a defesa, unicamente a tolerava, e nem todos estavam de acordo neste ponto.55 Pedindo perdão pelo truísmo e pela obviedade da constatação, não se pode falar em garantismo processual nesse contexto. E. II. O GARANTISMO PROCESSUAL NA PERSECUÇÃO AO CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS A lavagem de capitais consiste na ocultação da origem ilícita dos ganhos obtidos, com o objetivo de conferir-lhes aparência de legalidade. Este crime encontra-se disciplinado na Lei 9.613, de 03 de março de 1998, que o define, em seu artigo 1º, § 1º, como a ocultação ou dissimulação dos valores provenientes da prática das condutas tipificadas no caput, através de: sua conversão em ativos ilícitos; sua aquisição, recebimento, troca, negociação, dação ou recebimento em garantia, guarda, depósito, movimentação ou transferência; importação ou exportação de bens com valores não correspondentes aos verdadeiros. O caput do dispositivo em comento, por sua vez, identifica como antecedentes da lavagem de capitais: o tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas afins; o terrorismo e seu financiamento; o contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; a extorsão mediante seqüestro; crime contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; crime contra o sistema financeiro nacional; crime praticado por organização criminosa; crime praticado por particular contra a administração pública estrangeira. A gravidade do crime de lavagem de capitais, assim como de terrorismo, justifica a atuação mais incisiva da máquina repressiva estatal. De fato, ele produz resultados em nível macro – capazes de afetar toda a sociedade, e não apenas um único indivíduo -, como: “concorrência desleal, oscilações nos índices de câmbio, ingresso de capitais especulativos, instabilidade econômica, precariedade e imprecisão na delimitação das políticas públicas”.56 Contudo, por mais séria que seja a conduta 55 KAFKA, Franz. El Proceso. Madrid: Narrativa, pp. 112-113 (tradução livre). LIMA, Vinicius de Melo. Apontamentos Críticos à Lei Brasileira de Lavagem de Capitais (Lei n. 9.613, de 3 de MARÇO de 1998). Disponível em: 56 incriminada, não se justificam violações nos direitos e garantias processuais consagrados pela Constituição Federal e que compõem a essência do garantismo, na concepção de Ferrajoli. Cumpre, pois verificar, se a Lei 9.613/98 encontra-se em conformidade com as aludidas exigências. Uma primeira crítica que se pode fazer a ela diz respeito ao artigo 1º, caput, inciso VII c/c artigo 1º, § 1º, que tipificam a lavagem de capitais provenientes de quaisquer atividades ilícitas perpetradas por organizações criminosas. Por ser demasiado abrangente e não ter contornos bem definidos, a descrição da conduta incriminada contraria o princípio penal da legalidade. Retratado no brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege, este impõe, como pressuposto da persecução penal, a previsão da conduta em lei que especifique os elementos que permitam a sua delimitação com precisão. Em segundo lugar, o artigo 2º, § 1º da Lei em exame determina que “[a] denúncia será instruída com indícios suficientes da existência do crime antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento o autor daquele crime”. Em razão de seu caráter estigmatizante, a admissibilidade da ação penal requer justa causa, ou seja, lastro probatório mínimo que corrobore a razoabilidade da suspeita quanto à autoria e à materialidade do delito. Diante disso, a autorização de que seja interposta ação por lavagem de dinheiro, com base tão-somente em indícios da ocorrência de crime antecedente – a respeito do qual pode não haver sentença condenatória transitada em julgado e cuja investigação não tenha sido talvez sequer iniciada, como se depreende do artigo 2º, caput, inciso II57 – é insuficiente para proteger o indivíduo dos abusos do jus puniendi estatal. Argumenta Thais Bandeira Oliveira: Num processo penal onde vigora a presunção de não culpabilidade, indícios não podem ser levados à categoria de prova, mesmo que, erroneamente, o critério topográfico do Código de Processo Penal assim os tenha disposto. Aury Lopes Júnior adverte, com exatidão: “ninguém pode ser condenado a partir de meros indícios [...]. Pensar o contrário significa desprezar o sistema de direitos e garantias previstos na Constituição”. É preciso mais do que isso. É preciso prova. E como se falar em prova, se o delito antecedente não precisa estar transitado em julgado? Mais uma das mazelas de uma incriminação feita para não funcionar, cheia de defeitos e http://www.amprs.org.br/arquivos/comunicao_noticia/LAVAGEM%20DE%20CAPITAIS.pdf. Acesso em: 27 de abril de 2010. 57 “O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei: (...) independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes referidos no artigo anterior, ainda que praticados em outro país”. brechas, prontas para serem alegadas durante a instrução criminal, como forma de furtar-se à aplicação da lei penal.58 Em terceiro lugar, o artigo 3º da Lei 9.613/98 esclarece que os crimes por ela disciplinados “são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória e, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”. O princípio do estado de inocência (também denominado princípio da não culpabilidade ou presunção de inocência) determina que, até a prolação de sentença condenatória transitada em julgado, o acusado deve ser tratado como se inocente fosse, não podendo ser juridicamente estigmatizado por inquérito ou processo a que responde. Corolário deste princípio é a excepcionalidade e indispensabilidade do confinamento provisório: a regra é a liberdade e o acusado só pode ser preso antes da conclusão do processo, se as circunstâncias do caso concreto o justificarem. Destarte, ao estabelecer, em abstrato, a inaplicabilidade da liberdade provisória, o dispositivo em tela contraria as exigências do estado de inocência. Igualmente digno de preocupação é o artigo 4º. De acordo com seu caput: O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou representação da autoridade policial, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas, havendo indícios suficientes, poderá decretar, no curso do inquérito ou da ação penal, a apreensão ou o seqüestro de bens, direitos ou valores do acusado, ou existentes em seu nome, objeto dos crimes previstos nesta Lei, apreendendo-se na forma dos arts. 125 e 144 do Decreto-lei n. 3.869, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal. Desta redação, pode-se extrair um resquício do sistema inquisitorial no ordenamento jurídico brasileiro, a saber: a confusão entre as funções de acusação e julgamento, já que se faculta ao juiz, de ofício, ou seja, mesmo sem o requerimento do Ministério Público, determinar o seqüestro ou a apreensão de bens, direitos e valores do acusado. Ademais, o § 2º do mesmo dispositivo dispõe que “[o] juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou seqüestrados quando comprovada a licitude de sua origem”. Tal poderia implicar em inversão do ônus da prova: o seqüestro e a apreensão poderiam ser realizados com base em simples indícios; caberia ao acusado provar a licitude da origem dos seus valores, bens e direitos para que estes fossem liberados. 58 OLIVEIRA, Thais Bandeira. Lavagem de Capitais. (Dis)Funções Político-Criminais no seu Combate. A Perda de Efetividade do Sistema Penal, a Quebra das Garantias Constitucionais e os seus Prejuízos à Cidadania. Salvador, 2009. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_busca/arquivo.php? codArquivo=2434. Acesso em: 27 de abril de 2010, p. 154. Finalmente, o artigo 10 da Lei 9.613/98 impõe às pessoas referidas no artigo 9º,59 as obrigações de: (i) identificar seus clientes e manter cadastro atualizado, nos termos de instruções emanadas das autoridades competentes; (ii) manter registro de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente e nos termos de instruções por esta expedidas60. O artigo 11, inciso II, determina, ainda, que aquelas pessoas comuniquem, abstendo-se de dar aos clientes ciência de tal ato, no prazo de 24 (vinte e quatro horas), às autoridades competentes todas as transações (ou suas propostas) constantes do inciso II do art. 10 que ultrapassarem limite fixado, para esse fim, pela mesma autoridade e na forma e condições por ela estabelecidas. Já o artigo 10-A prevê que o Banco Central do Brasil manterá registro centralizado formando o cadastro geral de correntistas e clientes de instituições financeiras, bem como de seus procuradores. Sendo essas informações sigilosas, em respeito ao direito à intimidade e à privacidade, assegurado pelo artigo 5º, inciso X, da CF, as pessoas a que se refere o artigo 9º e o Banco Central do Brasil deverão mantê-las em sigilo. É o que dispõe o artigo 1º da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001: “[a]s instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados”. 59 (i) pessoas jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não: a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira; a compra e venda de moeda estrangeira ou ouro como ativo financeiro ou instrumento cambial; a custódia, emissão, distribuição, liquidação, negociação, intermediação ou administração de títulos ou valores mobiliários; (ii) as bolsas de valores e bolsas de mercadorias ou futuros; (iii) as seguradoras, as corretoras de seguros e as entidades de previdência complementar ou de capitalização; (iv) as administradoras de cartões de credenciamento ou cartões de crédito, bem como as administradoras de consórcios para aquisição de bens ou serviços; (v) as administradoras ou empresas que se utilizem de cartão ou qualquer outro meio eletrônico, magnético ou equivalente, que permita a transferência de fundos; (vi) as empresas de arrendamento mercantil (leasing) e as de fomento comercial (factoring); (vii) as sociedades que efetuem distribuição de dinheiro ou quaisquer bens móveis, imóveis, mercadorias, serviços, ou, ainda, concedam descontos na sua aquisição, mediante sorteio ou método assemelhado; (viii) as filiais ou representações de entes estrangeiros que exerçam no Brasil qualquer das atividades listadas neste artigo, ainda que de forma eventual; (ix) as demais entidades cujo funcionamento dependa de autorização de órgão regulador dos mercados financeiro, de câmbio, de capitais e de seguros; (x) as pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras, que operem no Brasil como agentes, dirigentes, procuradoras, comissionárias ou por qualquer forma representem interesses de ente estrangeiro que exerça qualquer das atividades referidas neste artigo; (xi) as pessoas jurídicas que exerçam atividades de promoção imobiliária ou compra e venda de imóveis; (xii) as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem jóias, pedras e metais preciosos, objetos de arte e antigüidades; (xiii) as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem bens de luxo ou de alto valor ou exerçam atividades que envolvam grande volume de recursos em espécie. (Incluído pela Lei nº 10.701, de 9.7.2003) 60 Nos termos do artigo 10, § 3º, este registro “será efetuado também quando a pessoa física ou jurídica, seus entes ligados, houver realizado, em um mesmo mês-calendário, operações com uma mesma pessoa, conglomerado ou grupo que, em seu conjunto, ultrapassem o limite fixado pela autoridade competente”. Esta lei, entretanto, autoriza a quebra de sigilo quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, especialmente nos crimes, inter alia, de terrorismo e lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores (artigo 1º, § 4º, incisos I e VIII). Particularmente no tocante à lavagem de dinheiro, dados confidenciais poderão ser disponibilizados ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) (artigo 2º, §6º da Lei Complementar 105/2001), responsável por disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas na Lei 9.613/98 (artigo 14 da Lei 9.613/98). A retro mencionada quebra de sigilo (tanto nos casos de terrorismo quanto de lavagem de dinheiro), inclusive ao COAF, só poderá ocorrer, se assim o determinar ordem judicial. Nesse sentido o artigo 3º, caput, da Lei Complementar 105/2001: “[s]erão prestadas pelo Banco Central do Brasil, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelas instituições financeiras as informações ordenadas pelo Poder Judiciário, preservado o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas não poderão servir-se para fins estranhos à lide”. Deverão ser observados, também, os demais requisitos da Lei Complementar nº 105/2001. Esta é a interpretação mais compatível com a CF: embora o sigilo bancário não deva ser protegido de forma absoluta e inderrogável, é uma garantia fundamental e, portanto, só admite restrições em situações excepcionais e indispensáveis. Destarte, deve se submeter a controle de necessidade, proporcionalidade e de legitimidade dos fins a que visa a atender. Em um Estado Democrático de Direito, tal controle deve caber ao Poder Judiciário. 4. Os irmãos Grimm, famosos como fabulistas e como estudiosos da lingüística, apreenderam em vários de seus contos, lendas e fábulas a percepção popular do certo e do errado. Aprecie a fábula seguinte à luz do princípio da não auto-incriminação. A protegida de Maria Irmãos Grimm Tradução de Karin Volobuef “Na orla de uma extensa floresta morava um lenhador e sua esposa. Eles tinham apenas uma filha, que era uma menina de três anos. Mas eles eram tão pobres que não tinham mais o pão de cada dia e já não sabiam o que haveriam de dar-lhe para comer. Certa manhã o lenhador foi com grande preocupação até a floresta para cuidar de seu trabalho e, quando estava cortando lenha, lá apareceu de repente uma mulher alta e bela que trazia na cabeça uma coroa de estrelas cintilantes e lhe disse "Sou a Virgem Maria, mãe do Menino Jesus, e tu és pobre e necessitado: traga-me tua filha, vou levá-la comigo, ser sua mãe e cuidar dela." O lenhador obedeceu, foi buscar a filha e entregou-a à Virgem Maria, que a levou consigo para o Céu. Lá a menina passava muito bem, comia pão doce e bebia leite açucarado, e seus vestidos eram de ouro, e os anjinhos brincavam com ela. Quando completou quatorze anos, a Virgem Maria a chamou e disse "Querida menina, partirei em uma longa viagem; tome sob tua guarda as chaves das treze portas do reino celestial; tu poderás abrir doze delas e contemplar os esplendores que há lá dentro, mas a décima terceira, cuja chave é esta pequena aqui, está proibida para ti: cuidado para não abri-la, pois seria a tua infelicidade." A menina prometeu ser obediente e, quando a Virgem Maria havia partido, começou a olhar os cômodos do reino celestial: a cada dia abria um deles, até que todos os doze tinham sido vistos. Em cada um dos cômodos estava sentado um apóstolo cercado de grande esplendor, e toda aquela suntuosidade e magnificência dava grande alegria a ela, e os anjinhos, que sempre a acompanhavam, alegravam-se também. Até que, então, faltava apenas a porta proibida, e ela sentiu um grande desejo de saber o que estava escondido atrás dela. Por isso disse aos anjinhos "Não abrirei a porta por inteiro e também não entrarei, mas vou entreabri-la para olharmos um pouquinho pela fresta". "Oh, não," disseram os anjinhos, "seria um pecado: a Virgem Maria proibiu fazer isso, além do mais, isso poderia facilmente trazer-te a desgraça." Então ela se calou, mas o desejo não silenciou em seu coração, mas, ao contrário, continuou roendo e corroendo-a com força, não lhe permitindo ficar em paz. E certa vez, quando os anjinhos haviam todos saído, pensou "Agora estou totalmente sozinha e poderia olhar lá dentro, afinal, ninguém ficará sabendo o que fiz". Procurou a chave e, tão logo a apanhou, enfiou-a na fechadura e, uma vez ela estando lá, sem pensar duas vezes, girou-a. A porta abriu de um salto e ela viu a Trindade sentada em meio ao fogo e à luz. Ficou parada um momento, observando tudo com assombro, depois tocou de leve com o dedo aquela luz, e o dedo ficou totalmente dourado. No mesmo instante foi tomada de intenso pavor, bateu a porta com força e correu dali. Mas o pavor não diminuía, ela podia fazer o que fosse mas o coração continuava batendo acelerado e não havia como acalmá-lo: assim também o ouro continuou no dedo e não saía de jeito algum, não importa o quanto lavasse e esfregasse. Não passou muito tempo e a Virgem Maria retornou de sua viagem. Ela chamou a menina e solicitou as chaves de volta. Quando ela apresentou o molho, a Virgem olhou em seus olhos e perguntou: "E não abriste mesmo a décima terceira porta?" "Não", respondeu. Então ela pousou a mão sobre o coração da menina e sentiu como ele estava batendo sobressaltado, de modo que percebeu que sua ordem tinha sido desobedecida e a porta fora aberta. Então perguntou mais uma vez: "Realmente não a abriste?" "Não", respondeu a menina pela segunda vez. Aí a Virgem avistou o dedo que ficara dourado pelo toque do fogo celestial e teve certeza de que ela pecara, e perguntou pela terceira vez: "Não a abriste?" "Não", respondeu a menina pela terceira vez. Então a Virgem Maria disse: "Tu não me obedeceste e além disso ainda mentiste, portanto não és mais digna de permanecer no Céu." Nesse momento a menina caiu em profundo sono e quando despertou jazia lá embaixo sobre a terra em meio a um lugar agreste. Quis gritar, mas não conseguiu emitir qualquer som. Levantou-se de um salto e quis fugir, mas para onde quer que se dirigisse sempre era detida por sebes espinhosas que não conseguia atravessar. Nesse ermo em que estava encerrada havia uma velha árvore oca que agora teria de ser sua morada. Era lá para dentro que rastejava quando caía a noite, e era lá que dormia, e, quando vinham chuvas e tempestades, era lá que buscava abrigo. Levava uma vida lastimável, e quando recordava como tudo havia sido tão bom no Céu, e como os anjinhos costumavam brincar com ela, chorava amargamente. Raízes e frutas silvestres eram seus únicos alimentos, e ela os procurava ao redor até onde podia ir. No outono juntava as nozes e folhas que haviam caído no chão e levava-as para o oco da árvore; comia as nozes no inverno e, quando chegavam a neve e o gelo, arrastava-se como um animalzinho para debaixo das folhas para não sentir frio. Não demorou muito e suas vestimentas começaram a se rasgar e um pedaço após outro foi caindo do corpo. Tão logo o Sol voltava a brilhar trazendo o calor, ela saía e sentava-se diante da árvore e seus longos cabelos encobriam-na de todos os lados como um manto. Assim foi passando ano após ano e ela ia experimentando a miséria e sofrimento do mundo. Uma vez, quando as árvores tinham acabado de cobrir-se outra vez de verde, o rei que lá reinava estava caçando na floresta e perseguia uma corça, e como esta havia se refugiado nos arbustos que rodeavam a clareira da floresta, ele desceu do cavalo e com sua espada foi arrancando o mato e abrindo caminho para poder passar. Quando finalmente chegou do outro lado, avistou sob a árvore uma donzela de maravilhosa beleza que lá estava sentada totalmente coberta até os dedos dos pés pelos seus cabelos dourados. Ficou parado admirando-a com assombro até que finalmente dirigiu-lhe a palavra e disse: "Quem és tu? Por que estás aqui no ermo?" Mas ela não respondeu, pois sua boca estava selada. O rei falou novamente: "Queres vir comigo até meu castelo?" Ela apenas assentiu levemente com a cabeça. Então o rei a tomou nos braços, carregou-a até seu corcel e cavalgou com ela para casa, e, quando chegou ao castelo real, ordenou que a vestissem com belos trajes e tudo lhe foi dado em abundância. Embora não pudesse falar, ela era afável e bela, e assim ele começou a amá-la do fundo de seu coração e, não demorou muito, casou-se com ela. Quando se havia passado cerca de um ano, a rainha deu à luz um filho. Nessa mesma noite, quando estava deitada sozinha em seu leito, apareceu-lhe a Virgem Maria, que disse "Se quiseres dizer a verdade e confessar que abriste a porta proibida, destravarei tua boca e devolverei tua fala, mas se insistires no pecado e teimares em negar, levarei comigo teu filho recém-nascido." Nesse momento foi dado à rainha responder, porém ela manteve-se obstinada e disse: "Não, não abri a porta proibida", e a Virgem Maria tomou-lhe o filho recém-nascido dos braços e desapareceu com ele. Na manhã seguinte, quando não foi possível encontrar a criança, começou a correr um murmúrio no meio do povo de que a rainha comia carne humana e teria matado seu próprio filho. Ela ouvia tudo isso e não podia dizer nada em contrário, mas o rei recusou-se a acreditar naquilo porque a amava muito. Depois de um ano nasceu mais um filho da rainha. Naquela noite voltou a parecer a Virgem Maria junto dela dizendo: "Se quiseres confessar que abriste a porta proibida, devolverei teu filho e soltarei tua língua; mas se insistires no pecado e negares, levarei também este recém-nascido comigo." Então a rainha disse novamente: "Não, não abri a porta proibida", e a Virgem tomou-lhe a criança dos braços e levou-a consigo para o Céu. De manhã, quando mais uma vez uma criança havia desaparecido, o povo afirmou em voz bem alta que a rainha a tinha devorado, e os conselheiros do rei exigiram que ela fosse levada a julgamento. Mas o rei a amava tanto que não quis acreditar em nada, e ordenou aos conselheiros que, se não estivessem dispostos a sofrer castigos corporais ou mesmo a pena de morte, que deixassem de insistir no assunto. No ano seguinte a rainha deu à luz uma linda filhinha e, pela terceira vez, apareceu à noite a Virgem Maria e disse: "Acompanha-me". Tomou-a pela mão e conduziu-a até o Céu, mostrando-lhe então os dois meninos mais velhos, que riam e brincavam com o globo terrestre. A rainha alegrou-se com aquilo e a Virgem Maria disse: "Teu coração ainda não se abrandou? Se confessares que abriste a porta proibida, devolverei teus dois filhinhos." Mas a rainha respondeu pela terceira vez "Não, não abri a porta proibida". Então a Virgem Maria a fez descer novamente à terra, tomando-lhe também a terceira criança. Na manhã seguinte, quando a notícia correu, todo o povo gritava "a rainha come gente, ela tem que ser condenada", e o rei não conseguiu mais conter seus conselheiros. Ela foi submetida a julgamento e, como não podia responder e se defender, foi condenada a morrer na fogueira. Quando haviam juntado a lenha e ela estava amarrada a um pilar e o fogo começava a arder a sua volta, então derreteu-se o duro gelo do orgulho e seu coração encheu-se de arrependimento e ela pensou: "Ah, se antes de morrer eu ao menos pudesse confessar que abri a porta". Nesse momento voltou-lhe a voz e ela gritou com força "Sim, Maria, eu a abri!" No mesmo instante uma chuva começou a cair do céu apagando as chamas do fogo, e sobre sua cabeça irradiou uma luz, e a Virgem Maria desceu tendo os dois meninos, um de cada lado, e carregando a menina recém-nascida no colo. Ela falou-lhe com bondade: "Quem confessa e se arrepende de seu pecado, sempre é perdoado", e entregou-lhe as três crianças, soltou-lhe a língua e deu-lhe de presente a felicidade para a vida inteira.” A análise da fábula “A protegida de Maria” sob a perspectiva do princípio da nãoauto incriminação imprescinde de uma explanação prévia sobre o mesmo, dada a relevância de sua função no Processo Penal contemporâneo. Portanto, antes de se proceder ao tratamento contextualizado do princípio, far-se-á uma explanação sobre sua definição, sua história e sua configuração em alguns ordenamentos jurídicos. Em poucas palavras, o princípio da não-auto incriminação, também conhecido pela expressão nemo tenetur se detegere, “assegura que não se pode exigir legalmente de homens e mulheres que forneçam respostas as quais contribuirão na sua condenação por um crime.”61 Cabe destacar, a este respeito, a relação existente entre a garantia de não auto-incriminação e o direito ao silêncio. Segundo Helmholz, autor de estudo autorizado sobre o tema, o direito de permanecer calado surgiu com o fim preencher de conteúdo o princípio da não auto-incriminação, compondo o seu significado atual.62 Daí a necessidade de abordagem do referido princípio à luz do direito ao silêncio na presente questão – tema este, também, central à compreensão da fábula dos irmãos Grimm, em que a busca pela confissão dá vida e sentido à história. Difícil tarefa é determinar, com algum grau de exatidão, a origem histórica do princípio. Já se disse que alguns sistemas jurídicos da Antiguidade previam-no em uma forma embrionária, geralmente associada a valores religiosos. O Direito Hebreu, a exemplo, impedia que um acusado depusesse contra si mesmo. Tal atitude poderia levar uma disposição, pelo acusado, de seu corpo ou vida, bens pertencentes tão apenas à entidade divina.63 Afirma-se, ainda, que o Direito Canônico também contém algumas bases do princípio de não auto-incriminação: em comentário de São João Crisóstomo à Carta de São Paulo aos Hebreus, datado do século V, afirmava-se a desnecessidade de autoincriminação diante de outros homens, pois revelações dessa ordem eram indispensáveis apenas perante Deus.64 A exegese medieval do referido comentário teria permitido a inclusão do princípio em questão no ius commune da Europa Continental, de forma a que o Speculum Iudiciale, famoso manual de processo compilado em 1296, bem como 61 HELMHOLZ, R.H. et al. The privilege against self-incrimination : its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 1 (tradução livre) apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. Extensão e limites da garantia de não auto-incriminação. Belo Horizonte: UFMG, 2006. 168 p. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006. 62 HELMHOLZ, R.H. et al. op. cit. apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. op. cit. 63 COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. pp. 30 e 31 apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. op. cit.. 64 HELMHOLZ, R.H. et al. The privilege against self-incrimination : its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 26. apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. op. cit. outras obras jurídicas disseminadas no continente, trouxesse previsão expressa de seus dizeres.65 Apesar das divergências sobre o nascimento do princípio da não auto-incriminação, ponto pacífico se refere à sua influência no Direito Inglês – apontado por alguns, inclusive, como seu verdadeiro berço.66 Naquele país, a garantia, alcunhada privilege against self-incrimination, nasceu na transição entre os séculos XVI e XVII, em reação às persecuções religiosas conduzidas por tribunais eclesiásticos contra pessoas acusadas de heresia. As práticas inquisitoriais realizadas por essas cortes, como os juramentos ex officio, o exame compulsório de pessoas condenadas por heresia e mesmo a tortura, recebiam certa rejeição desde aquela época, “não tanto porque um acusado se via obrigado a depor contra si mesmo a respeito das acusações específicas formuladas contra ele, mas sobretudo em razão de que tal prática permitia a investigação geral sobre a conduta e o comportamento de uma pessoa, por mais alheios que eles fossem à acusação em jogo.”67 Não muito tempo após a adoção do princípio nas jurisdições eclesiásticas inglesas, sua recepção também se daria nos tribunais de common law, aos quais também se passou a negar a autoridade para o exercício de poderes inquisitoriais quando da condução de um processo. Assim, os tribunais de direito comum passaram a reconhecer o princípio primeiro em casos envolvendo a prática de crimes e, após, mesmo em processos civis. Ao final do século XVII, o princípio já havia galgado tamanha importância no ordenamento inglês que, aparentemente, o Parlamento teria considerado redundante sua inclusão no Bill of Rights.68 Importa destacar, ainda, que a não auto-incriminação recebeu contribuições doutrinárias relevantes, datadas também do século XVII. Thomas Hobbes, por exemplo, afirma em, Do Cidadão, que “ninguém está obrigado, por pacto algum, a acusar a si mesmo, ou a qualquer outro, cuja eventual condenação vá tornar-lhe a vida amarga.”69 65 Ibidem, pp. 17 e 18 apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. op. cit. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 432. 67 INBAU, Fred. E. Self-incrimination – What can an accused person be compelled to do? Journal of Criminal Law and Criminology, Chicago, v. 89, n. 4, p. 1330, verão, 1999. (tradução livre) 68 Idem. 69 HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 50 apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. op. cit.. 66 Em O Leviatã, o pensador britânico voltaria a se referir ao princípio, dessa vez, com enfoque processual mais pronunciado: “Se alguém for interrogado pelo soberano ou por sua autoridade, relativamente a um crime que cometeu, não é obrigado (a não ser que receba garantia de perdão) a confessá-lo, porque nenhum homem, conforme mostrei no mesmo capítulo, pode ser obrigado por um acordo a acusarse a si próprio.”70 A expansão colonial inglesa à América do Norte se deu no mesmo momento em que o nemo tenetur se detegere gozava de grande aplicação nos tribunais eclesiásticos, e já algum reconhecimento nos tribunais de common law. Não surpreende, portanto, que o mesmo princípio ganhasse espaço também nas Treze Colônias, onde viria a ser, posteriormente, objeto de importante atenção legislativa e jurisprudencial. A Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, datada de 1791, afirma que “nenhuma pessoa será compelida, em qualquer caso criminal, a ser testemunha contra si mesma”71. Tal dispositivo recebeu aplicação paradigmática no caso Miranda v. Arizona, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Nele, o demandante, sob custódia policial, havia sido questionado em uma sala isolada, sem haver sido previamente informado de seus direitos. O interrogatório havia conduzido à produção de provas orais, utilizadas no provimento final de acusação. Quando do julgamento do caso, a Suprema Corte concluiu, inter alia: 1. A promotoria não pode se valer de declarações obtidas em interrogatório conduzido enquanto o indivíduo se encontrava sob custódia ou privado de sua liberdade, a menos que tenham sido respeitados os procedimentos previstos pela Quinta Emenda para se assegurar o privilege against self-incrimination. 2. Interrogatórios conduzidos sob o modo incommunicado têm o efeito de intimidar o interrogado, razão pela qual destituem de valor o princípio da não auto-incriminação. 3. O privilege against self-incrimination desempenha função basilar no sistema acusatório e garante o direito de permanecer calado a não ser que se opte por falar, em um exercício genuíno da própria vontade, durante interrogatório conduzido sob 70 HOBBES, Thomas.O Leviatã. São Paulo: Rideel, 2005. p. 129 apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. op. cit.. 71 ISRAEL, Jerold H.; LAFAVE, Wayne R. Criminal Procedure: Constitutional limitations. Minnesota: West Group, 2004, p. 202 (tradução livre) apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. op. cit. custódia, no âmbito de uma corte ou durante o desenvolvimento de outras investigações oficiais. 4. Em respeito à Quinta Emenda, é necessário informar ao interrogado sob custódia de seu direito de permanecer calado. Tal procedimento deve anteceder ao início do interrogatório. 5. Se o interrogado indicar que prefere se manter em silêncio, o interrogatório deverá ser interrompido. 6. O fato de que um indivíduo respondeu a algumas questões durante um interrogatório realizado sob custódia não significa a renúncia de seu direito de permanecer calado. Portanto, tal indivíduo poderá invocar esse direito a qualquer momento.72 À luz das considerações supra, a Suprema Corte resolveu que o interrogatório do caso Miranda havia, portanto, violado os padrões constitucionais de proteção do privilege against self-incrimination.73 A Décima Quarta Emenda à Constituição estadunidense também já foi aplicada pela Suprema Corte do mesmo país como fonte do princípio da não auto-incriminação. Segundo a Corte, no caso Malloy v. Hogan, o mesmo nível de proibição da não observância do privilege against self-incrimination, incidente sobre o Governo Federal por força da Quinta Emenda, seria estendido a cada um dos Estados norte-americanos, pela Décima Quarta Emenda.74 Aspecto interessante é que o princípio da não auto-incriminação, em sua conformação norte-americana, não inclui o direito do acusado de mentir. 75 A Suprema Corte dos Estados Unidos também já teve oportunidade de se declarar a respeito do tema, no caso Janice R. LaChance, Acting Director, Office of Personnel Management v. Lester E. Erickson Jr. et al. A decisão da Corte, datada de 21 de 1998, rejeita, em termos expressos, a noção de que a oportunidade de ser ouvido por um tribunal inclui o 72 Supreme Court of the United States. Miranda v. Arizona. Decisão de 13 de junho de 1966. Pontos resolutivos 1, 1.a, 1.b 1.d, 1.e, 1.g. 73 Ibidem, ponto resolutivo 3. 74 Supreme Court of the United States. Malloy v. Hogan. Decisão de 15 de junho de 1964. Pontos resolutivos 1, 2 e 3. 75 The New York Times. No constitutional right to lie. 24 jan. 1998. http://www.nytimes.com/1998/01/24/opinion/no-constitutional-right-to-lie.html?pagewanted=1. Acesso em: 28 de abril de 2010. direito de proferir declarações falsas sobre a acusação.76 Contudo, mesmo antes, em decisão de 1969, a Suprema Corte já havia adotado orientação semelhante, de modo ainda mais claro: “Nosso sistema legal oferece instrumentos para se questionar o direito do Estado de interrogar – mentir não é um deles. Um cidadão pode recusar-se a responder a uma pergunta, ou respondê-la honestamente, mas não pode, de forma consciente e voluntária, respondê-la com falsidade, sem ser punido por isso.”77 Como se depreende da passagem supra, a prática de declarações falsas por um interrogado em processo criminal pode até mesmo dar ocasião a punições por parte do Estado. Tal posição também já foi proferida pela Suprema Corte norte-americana: “É bem estabelecido que o direito de um acusado de testemunhar não inclui o direito de cometer perjúria (ex.: Nix v. Whiteside, 475 U.S. 157, 173, 106 S.Ct. 988, 997, 89 L.Ed.2d 123), e que punições podem lhe ser constitucionalmente impostas (ex.: United States v. Wong, 431 U.S. 174, 178, 97 S.Ct. 1823, 1825-1826, 52 L.Ed.2d 231) ou elevadas, se já existentes (ex.: United States v. Dunnigan, 507 U.S. 87, 97, 113 S.Ct. 1111, 1118, 122 L.Ed.2d 445), pela prática de perjúria”.78 Outros ordenamentos jurídicos, outrossim, contêm previsão expressa do princípio nemo tenetur se detegere, assimilado, em geral, com o fim de vedar métodos de interrogatório que resultem na auto-incriminação e que infrinjam a integridade física e moral do acusado.79 É assim, por exemplo, que o Código de Processo Penal alemão reconhece a prerrogativa de se manter em silêncio sobre fatos que possam conduzir à incriminação própria ou de parentes (arts 55.1 e 55.2). Igualmente, em Portugal, o argüido não é obrigado a prestar declarações, sem que o exercício de seu silêncio possa desfavorecê-lo (art. 343.1 do Código de Processo Penal daquele país). O direito espanhol, por sua vez, 76 Supreme Court of the United States. Janice R. LaChance, Acting Director, Office of Personnel Management v. Lester E. Erickson Jr. et al. Decisão de 21 de janeiro de 1998. Opinião do Chief Justice Rehnquist. 77 Supreme Court of the United States. Bryson v. The United States. Decisão de 8 de dezembro de 1969. Opinião do Mr. Justice Harlan (tradução livre). 78 Supreme Court of the United States. Janice R. LaChance, Acting Director, Office of Personnel Management v. Lester E. Erickson Jr. et al. Decisão de 21 de janeiro de 1998. Opinião do Chief Justice Rehnquist (tradução livre). 79 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 240 apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. op. cit. tem alguns elementos da não auto-incriminação erigidos à categoria constitucional: o art. 24.2 da Carta Política do país prevê aos acusados o direito de não declararem contra si mesmos, de não se confessarem culpados e de se beneficiarem da presunção de inocência. Merece destaque, ainda, o ordenamento argentino, que traz rica disposição a respeito do tema, dado o seu grau de detalhamento. Por isso, digna de nota: “O imputado poderá se abster de declarar. Em nenhum caso lhe será requerido juramento ou promessa de dizer a verdade, nem se exercerá contra ele coação, ameaça ou outro meio para obrigá-lo, induzi-lo ou determiná-lo a declarar contra sua vontade, nem lhe serão feitos encargos ou repreensões tendentes a obter sua confissão” (art. 296, Código de Processo Penal da Nação Argentina – tradução livre). No Brasil, em semelhança ao que se verifica no ordenamento espanhol, do princípio da não auto-incriminação decorreu uma norma de status constitucional: o art. 5°, LXIII da Constituição Federal prevê que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”. Trata-se, como afirmado pela doutrina pátria, de dispositivo protetor da pessoa física e da dignidade do acusado, vez que veda a pressão para confessar – presente, por exemplo, nas instituições policiais. Proíbe, também, a utilização de declarações inverídicas ou distorcidas, proferidas pelo acusado em situações intimidadoras.80 Ponto de que não se deve descuidar, quando da leitura do art. 5°, LXIII da Constituição brasileira, é que muito embora seu texto contenha o vocábulo preso, o direito ao silêncio ali assegurado não deve se restringir a essa figura, mas encontrar aplicação também para indivíduos não presos e para interrogados. De forma semelhante entendem Ada Pellegrini, Scarance e Magalhães, ao afirmarem que “aludindo ao direito ao silêncio e à assistência do advogado para o preso, a Lei Maior denota simplesmente sua preocupação inicial com a pessoa capturada: a esta, mesmo fora e antes do interrogatório, são asseguradas as mencionadas garantias. Mas isto não pode nem quer dizer que ao indiciado ou acusado que não esteja preso não seja 80 SOUZA, José Barcelos de. “Bafômetro”, intervenções corporais e direitos fundamentais. In SOUZA, José Barcelos de. Recursos, artigos e outros escritos: doutrina e prática civil e criminal. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, p. 142 apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. op. cit. estendida a mesma proteção, no momento autodefesa, que é o interrogatório.”81 maior da O Código de Processo Penal brasileiro também traz disposições relativas ao silêncio do interrogado. O art. 186, em sua redação antiga, dispunha que “Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”. Em face do texto constitucional transcrito supra, a doutrina majoritária orientava-se pela não recepção da parte final do art. 186: a ineficiência da atividade dos órgãos acusatórios em trazer elementos de prova suficientes para a condenação não devia ser recebida pelo juiz em prejuízo do réu. Nucci afirma, a esse respeito, que “o processo penal deve ter instrumentos suficientes para comprovar a culpa do acusado, sem a menor necessidade de se valer do próprio interessado para compor o quadro probatório da acusação.”82 A jurisprudência, por sua vez, dividia-se acerca do tema, havendo entendimentos favoráveis a ambas as vertentes interpretativas: i) “o silêncio do réu é garantia constitucional e de forma alguma poderá ser prejudicado por isso! (...) O réu pode permanecer absolutamente inerte, comparecer ou não aos interrogatórios, responder ou não, sem que essa conduta lhe prejudique a defesa”83; ii) “embora sendo um direito constitucional seu, a apelante permanecera silente na fase inquisitorial, o que se mostra deveras estranhável, uma vez que devidamente assistida por advogado, poderia de pronto, oferecer sua versão exculpatória, justificando seus atos e refutando a acusação”84. A dúvida foi suprimida quando a edição da Lei 10.792/2003, que modificou o art. 186, suprimindo-lhe a última parte e introduzindo-lhe um parágrafo único, no qual se lê que “O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.” 81 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 67. (grifo no original) 82 NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit. 83 TJSP. Ap. 286.117-3. São Paulo, 7ª C. Férias de Janeiro de 2000, rel. Celso Limongi, 12.01.2000 apud NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit. 84 TJSP. Ap. 262.056-3/8, Ribeirão Preto, 2ª C. rel. Egydio de Carvalho, 08.02.1999 apud NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit. Resta ainda, no Código de Processo Penal, o art. 198, que prevê que o silêncio do acusado, apesar de não importar confissão, poderá ser elemento empregado na formação do convencimento do juiz. Deve-se reputar tal artigo como portador de clara inconstitucionalidade: não há sentido em se conceder ao réu o direito de se calar, como o faz a Constituição, em seu art. 5°, se o silêncio pode ser a base de convencimento do juiz em uma eventual sentença condenatória.85 No ordenamento brasileiro, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, a mentira por parte do réu não lhe importa punição.86 O Código Penal, ao prever o crime de falso testemunho ou falsa perícia (art. 342), elenca como sujeitos ativos a testemunha, o perito, o contador, o tradutor ou o intérprete, excluindo o imputado de sua abrangência. No mesmo sentido, afirma Mirabete: “não há um verdadeiro direito de mentir, tanto que as eventuais contradições em seu depoimento podem ser apontadas para retirar qualquer credibilidade das suas respostas. Mas o acusado não presta compromisso de dizer a verdade como a testemunha, e sua mentira não constitui crime, não é ilícita”87. Também no Direito Internacional Público, o princípio da não auto-incriminação é assegurado – com enfoque sobre o direito a permanecer em silêncio – por tratados de grande relevância em matéria de proteção dos direitos fundamentais do homem. A exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), conhecida como Pacto de San José da Costa Rica e documento-base do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, prevê, em seu artigo 8°: “2.Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;” 85 NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit. p. 432. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 278 apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. op. cit. 87 MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado: referencias doutrinárias, indicações legais, resenha jurisprudencial. São Paulo: Atlas, 1994. p. 282 apud ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. op. cit. 86 Outro sistema regional de proteção dos Direitos Humanos, atuante no continente europeu, também já teve ocasião de se posicionar sobre o assunto. Naquele sistema, embora não haja uma previsão convencional expressa sobre a não auto-incriminação, a Corte Européia de Direitos Humanos estendeu o âmbito de aplicação do artigo 6° (devido processo legal) da Convenção Européia de Direitos Humanos (1950) com o fim de nele incluir a garantia do referido princípio. O caso Saunder v. United Kingdom é paradigmático neste sentido: “A Corte destaca que, embora não especificamente mencionado no Artigo 6 da Convenção (art. 6), o direito ao silêncio e o direito a não se auto-incriminar são standards internacionalmente reconhecidos, nucleares à noção de um processo justo sob o Artigo 6 (art. 6).”88 De forma análoga, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), atinente ao sistema protetivo conduzido pelas Nações Unidas, possui norma semelhante em seu artigo 14.3.g. Recente previsão internacional da não auto-incriminação pode ser encontrada, ainda, no Estatuto de Roma (1998), fundamento jurídico da criação do Tribunal Penal Internacional. O Estatuto dispõe, em seus artigos 55.1.a, 55.2.b – fase de inquérito – e 67.1.g – fase de julgamento –, o direito de não depor contra si mesmo ou declarar-se culpado e de manter silêncio, sem que tal atitude seja considerada para efeitos da condenação ou da absolvição. Realizada a análise do princípio nemo tenetur se detegere em sua definição, história e tratamento em distintos sistemas de Direito – sobretudo sob a perspectiva do direito ao silêncio –, passa-se, agora, à sua aplicação à fábula “A protegida de Maria”, de autoria dos irmãos Grimm. A história delineia, na Virgem Maria, uma figura essencialmente inquisitória. Ao voltar de sua viagem, havendo ordenado à criança que não abrisse a décima terceira porta, Maria procede a um interrogatório. Nele, assume postura deveras investigativa: olha fixamente nos olhos da garota ao proferir as perguntas; pousa-lhe a mão no coração, a fim de perscrutar seu estado de nervosismo e, daí, realizar inferências sobre seu comportamento prévio; procura por outros sinais de desobediência, como o dedo dourado da garota; e, por fim, insiste em perguntar-lhe a mesma questão repetidas 88 European Court of Human Rights. Saunders v. The United Kingdom. Decisão de 17 de dezembro de 1996, § 68. (tradução livre) vezes, em claro exercício de um poder de intimidação sobre a menina, tendente a que ela confessasse sua falta. Trata-se, com efeito, da representação de uma entidade religiosa onisciente e feitora de justiça, a quem se deve prestar contas e que detém o poder de aplicar sanções pelo descumprimento de preceitos morais e religiosos. A relação estabelecida entre a Virgem e a criança, neste ponto específico, atinge o domínio da superioridade religiosa e do respeito, mas não só: envolve também, e principalmente, o medo. Diante desses elementos – autoridade religiosa da Virgem, função inquisitória e ameaça da aplicação de sanções – seria materialmente impossível à garota permanecer em silêncio, em exercício de um eventual direito a não se declarar culpada. É esta, a propósito, uma situação próxima à registrada nos tribunais eclesiásticos europeus da Idade Média, baluartes do modelo inquisitorial e porta-vozes de uma figura divina opressora e vingativa. Não surpreende, por isso, que a versão mais aceita pela doutrina identifique o nascedouro do princípio da não auto-incriminação justamente nas cortes eclesiásticas inglesas dos sécs. XVI e XVII, como afirmado em momento anterior. Ademais, percebe-se que o convencimento da Virgem Maria sobre a conduta pecaminosa da garota havia se dado com base em provas produzidas contra a vontade desta última, obtidas a partir da análise de seus batimentos cardíacos e de seu dedo, sem a sua autorização. Vejam-se as seguintes passagens a esse respeito: “Então ela pousou a mão sobre o coração da menina e sentiu como ele estava batendo sobressaltado, de modo que percebeu que sua ordem tinha sido desobedecida e a porta fora aberta. (...) Aí a Virgem avistou o dedo que ficara dourado pelo toque do fogo celestial e teve certeza de que ela pecara”. (grifos nossos) Tal atitude, por parte da Virgem, pode ser interpretada como afronta ao princípio nemo tenetur se detegere, vez que a própria garota foi utilizada como fonte das provas analisadas em seu desfavor. Um terceiro elemento digno de nota é que a Virgem Maria, no decurso da narrativa, parece obedecer à lógica segundo a qual a resposta do acusado deve corresponder obrigatoriamente à verdade dos fatos. Não haveria, portanto, um direito do acusado à mentira, estando ele sujeito a sofrer punições caso opte por dizer inverdades. Como já visto, trata-se da postura assumida hodiernamente no Direito norteamericano, para o qual o acusado não pode, voluntariamente, fornecer respostas inverídicas de forma impune. Tal é a orientação exposta por Maria, na fábula: “Tu não me obedeceste e além disso ainda mentiste, portanto não és mais digna de permanecer no Céu.” A esse episódio, o leitor vê seguir-se a sanção imposta à garota por sua infidelidade: do Céu, onde recebia alimentação e vestimentas de qualidade, na afável companhia de anjos, a garota é transportada a uma floresta inócua, em que se vê sozinha, obrigada a se alimentar de raízes e frutas silvestres, sujeita às intempéries do tempo e destituída de roupas. Quando do nascimento de seus três filhos, a garota, agora rainha, também viria a sofre sanções por mentir perante a Virgem Maria. Ao insistir em negar sua desobediência, a Rainha viu cada um de seus bebês ser levado ao Céu, sendo privada de sua companhia. O silêncio imposto à garota também foi, efetivamente, uma última forma de punição. Apesar de não lhe ser permitido falar desde que voltara do Céu, o silêncio, em um primeiro momento, não havia impedido a garota de conquistar o amor do rei e de ser por ele esposada. Essa punição adquire relevância na narrativa, contudo, a partir do momento em que a rainha é acusada pelo povo de se alimentar de seus próprios filhos. Não podendo se defender – ou, em outros termos, sendo obrigada a manter silêncio acerca de sua inocência – a rainha é levada a julgamento e condenada após o desaparecimento de seu terceiro filho. A relação de causalidade entre o silêncio da rainha e sua condenação fica clara na seguinte passagem: “Ela foi submetida a julgamento e, como não podia responder e se defender, foi condenada a morrer na fogueira.” (grifo nosso). Importa destacar, aqui, que uma análise rigorosa do princípio da não autoincriminação – sob a perspectiva do direito ao silêncio – impediria a condenação da rainha. Não havendo provas que conduzissem a uma certeza acerca das acusações contra ela – os rumores dos súditos não seriam suficientes para tal fim –, a condenação seria destituída de razões. Como afirma Nucci, em trecho já citado supra, o processo penal deve conter elementos suficientes para a condenação, sem se valer do acusado para tanto. A ausência de defesa da rainha, portanto, não deveria ter sido interpretada em seu desfavor. Tal atitude é, obviamente, contrária ao princípio nemo tenetur se detegere. Como já bem se disse “não teria o menor sentido dar ao réu o direito de se calar, ao mesmo tempo em que se usa tal ato contra sua própria defesa. Ninguém, em sã consciência, permaneceria em silêncio, sabendo que, somente por isso, o juiz poderia crer na sua culpa.”89 Daí afirmar-se que o silêncio, em um sistema no qual sua interpretação é desfavorável ao réu, como na fábula em análise, foi também uma forma de punição imposta pela Virgem Maria à rainha. Por fim, a história passa a mensagem final de que a confissão, como expressão de arrependimento da prática de um ato indevido, é o meio idôneo para a expiação da culpa e, ademais, conducente à felicidade posterior de quem lhe pratica. De fato, pode-se cogitar que caso a garota tivesse confessado suas atitudes quando do primeiro interrogatório conduzido pela Virgem, não teria sido submetida, talvez, às agrúrias da floresta, ao rapto de suas crianças e ao julgamento dos súditos. É o que se pode depreender da frase final da fábula: “Ela falou-lhe com bondade: ‘Quem confessa e se arrepende de seu pecado, sempre é perdoado’, e entregou-lhe as três crianças, soltoulhe a língua e deu-lhe de presente a felicidade para a vida inteira.” Situação diversa acontece por ocasião de um processo criminal. Nele, a confissão, ainda que represente o alívio de consciência do acusado, pode acarretar em sua condenação.90 De fato, “a confissão do réu (...) constitui uma das modalidades de prova com maior efeito de convencimento judicial, embora, é claro, não possa ser recebida como valor absoluto.”91 A condenação e a pena privativa de liberdade que se lhe segue, bem se sabe, são diametralmente opostas à expiação da culpa e à “felicidade para a vida inteira”, experimentadas pela rainha após a confissão de seus atos pregressos. Tal afirmativa adquire sentido quando da simples constatação de que uma sentença condenatória apenas corrobora o efeito de estigmatização social já sofrido no transcorrer do processo, o qual, certamente, perseguirá o indivíduo mesmo após o cumprimento de sua pena. 89 NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit. p. 432 (grifo no original). O art. 197 do Código de Processo Penal brasileiro prescreve, por exemplo, que o juiz confronte a confissão com as demais provas existentes no processo, a fim de verificar a existência de compatibilidade daquela para com estas. Não há, portanto, uma relação necessária entre confissão e condenação, embora ela possa se concretizar, eventualmente. Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit. p. 431 e OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 425. 91 OLIVEIRA. Eugênio Pacelli de. op. cit. p. 424. 90 Não menos importantes são as condições de encarceramento a que se submeterá o acusado, caso lhe seja aplicada a pena privativa de liberdade: superlotação, privações de água e alimentos, enfermidades e um sem-número de outras circunstâncias próximas à barbárie são de conhecimento geral, inclusive daqueles que respondem a um processo criminal. Seria possível exigir-lhe, portanto, atribuir valor honorífico à confissão ou a qualquer outra prova produzida com a participação próprio acusado, tal qual o fez a fábula analisada? A resposta mais provável é negativa: pertence à natureza humana fugir à incriminação e às suas conseqüências. Não se deve exigir de alguém – nem mesmo o Direito deve fazê-lo em relação a um acusado da prática de condutas criminosas – o exercício de forças sobre-humanas. O Direito é feito por homens e se destina aos homens, e não a heróis. <a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/"><img alt="Creative Commons License" style="border-width:0" src="http://i.creativecommons.org/l/by/3.0/88x31.png" /></a><br /><span xmlns:dc="http://purl.org/dc/elements/1.1/" href="http://purl.org/dc/dcmitype/Text" property="dc:title" rel="dc:type">Compêndio de Direito Processual Penal</span> by <span xmlns:cc="http://creativecommons.org/ns#" property="cc:attributionName"> Daniel Leão Souza Fernanda Rodrigues Guimarães Andrade Junia Castro Bernardes Rezende Pedro Brandão e Souza </span> is licensed under a <a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/">Creative Commons Attribution 3.0 Unported License</a>.