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O PROCESSO EMANCIPATÓRIO DAS MULHERES NA PERSPECTIVA
DO FEMINISMO: a conquista de um espaço
Marli Marlene Moraes da Costa1
Mariane Camargo D’Oliveira2
Resumo: Vislumbra-se que é necessário ressignificar e desmitificar conceitos que
continuam enraizados, opondo-se às injustiças que são cometidas. Assim, a presente
pesquisa, de caráter bibliográfico e cunho qualitativo, revisita algumas reflexões acerca
da trajetória do movimento feminista, uma temática sempre atual. Propõe-se investigar
a influência exercida pelas reivindicações, as quais conduziram a um amplo espectro de
possibilidades para o processo emancipatório das mulheres, especialmente mediante a
ruptura do ideal de domesticidade.
Palavras-Chave: Igualdade, Gênero. História. Poder.
Abstract: Sees that it is necessary to reframe and demystify concepts that remain
rooted in opposition to the injustices that are committed. Thus, this research,
bibliographical and qualitative, revisits some reflections on the history of the feminist
movement, a theme always present. It is proposed to investigate the influence exerted
by the claims, which led to a broad spectrum of possibilities for emancipator process of
women, especially through the breakdown of the ideal of domesticity.
Keywords: Equality. Genre. History. Power.
Introdução
Incessantemente se tem perquirido alternativas para mitigar a problemática da
discriminação existente entre os gêneros3, Isto porque, em que pese ainda se esteja
1
Pós-doutora pela Universidade de Burgos/Espanha, com Bolsa da Capes. Doutora em Direito pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Graduação e do Programa de PósGraduação em Direito – Mestrado e Doutorado, na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Direito, Cidadania e Políticas Públicas” da UNISC. Psicóloga com
Especialização em Terapia Familiar. Autora de livros e artigos em revistas especializadas. E-mail:
[email protected]
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito, com concentração na área de Políticas Públicas
de Inclusão Social, da UNISC. Graduada em Direito pela UNICRUZ. Advogada. E-mail:
[email protected]
3
Cabe aqui um esclarecimento. Consoante elucida Scott (2010, p. 08), o gênero é utilizado para designar
as relações sociais entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas, como
aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de que as
mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O gênero se torna, aliás, uma
maneira de indicar as “construções sociais” – a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis
2
evoluindo lenta e gradualmente, este contexto merece especial atenção, visto que as
mulheres, não raras vezes, foram consideradas – e por muitos ainda o são – seres
inferiores e, por isso mesmo, acabaram sendo subjugadas por seus pares. Verifica-se,
pois, que, algumas vezes, ainda subjaz na sociedade a subserviência, a hierarquização
das relações e o patriarcalismo 4, mormente porque muitas situações pragmáticas se
traduzem na arraigada submissão.
Sob este enfoque, é essencial circunscrever a presente pesquisa em uma
abordagem crítica e consistente, despindo-se de preconceitos, discriminações e
modelos obsoletos, levando-se sempre em consideração as habilidades humanas,
notadamente no que se relaciona à capacidade que possuem, em todas as áreas.
Neste ponto, é útil a lição de Beauvoir5 (1986, p. 26):
[...] é sem dúvida impossível tratar qualquer problema humano sem
preconceito: a própria maneira de pôr as questões, as perspectivas adotadas
pressupõem uma hierarquia de interesses: toda qualidade envolve valores.
Não há descrição, dita objetiva, que não se erga sobre um fundo ético. Ao
invés de tentar dissimular os princípios que se subentendem mais ou menos
explicitamente, cumpre examiná-los. Desse modo, não somos obrigadas a
precisar em cada página que sentido se dá às palavras superior, inferior,
melhor, pior, progresso, retrocesso, etc. Se passarmos em revista algumas
dessas obras consagradas à mulher, veremos que um dos pontos de vista
mais amiúde adotados é o do bem público, do interesse geral; em verdade,
cada um entende, com isso, o interesse da sociedade tal qual deseja manter
ou estabelecer.
próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das
identidades subjetivas masculinas e femininas.
4
No decorrer do texto o termo “patriarcado” será utilizado, na conceituação de Scott (2010, p. 155), como
um sistema social de relações de gênero em que existe desigualdade entre estes. Relações de gênero
são relações sociais entre homens e mulheres que estão engastadas numa série de instituições e
estruturas sociais. O conceito de patriarcado incorpora o de relações de gênero, mas o extrapola em dois
aspectos. Primeiro, inclui a desigualdade frequentemente encontrada em relações desse tipo. Segundo,
chama a atenção para a interconectividade dos diferentes aspectos delas, que constituem um sistema
social. A desigualdade de gênero está presente em muitos aspectos da vida social, no sentido de que as
mulheres normalmente se encontram em situação de desvantagem em relação aos homens.
5
A primeira edição da obra de Simone de Beauvoir, no ano de 1949, foi com o título original Le Deuxième
Sexe, época em que o termo “feminismo” nem sequer havia sido cunhado. Entretanto, durante o presente
estudo será utilizada a versão lançada pelo Círculo do Livro S.A. intitulada O Segundo Sexo. Fatos e
Mitos, em 1986. Este livro é, ainda hoje, considerado como o marco da prática discursiva da situação
feminina. Dado o seu caráter revolucionário, foi contestado pela Igreja e inserido no Índex, a lista dos
livros proibidos.
3
Nesse sentido, em uma conjuntura fortemente marcada pelo debate acerca da
questão dos Direitos Humanos, não se pode deixar de mencionar a correlação existente
entre os assuntos esposados, haja vista que, somente em 1993, na Conferência
Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, os direitos das mulheres foram
reconhecidos como Direitos Humanos. Isso tudo é consequência lógica de uma reflexão
atual que leva o ser humano a repensar sobre si mesmo, bem como sobre suas
atitudes, colocando-se como alguém capaz e responsável por aquilo que pensa, fala e
faz. E, sob esta ótica, explicita Touraine (2010, p. 36) que:
A ideia de sujeito implica a ideia de direito, e a ideia de direitos implica a
democracia, definida como o governo da lei a serviço dos direitos, que são
afirmados e defendidos pelos atores e pelos movimentos sociais, que falam
em nome do sujeito, isto é, em nome do direito dos indivíduos terem direitos.
Estas três noções são inseparáveis, da mesma forma que a dominação, o
lucro e a revolução formam um conjunto. Sempre concluímos que a
democracia e a revolução são opostas. A democracia não existe a não ser
quando os direitos dos indivíduos e dos atores sociais podem ser defendidos
dentro de um quadro institucional, isto é, pela lei. Mas o ser de direito não é
um produto da democracia; ele é sua condição.
Vislumbra-se, por conseguinte, que é necessário ressignificar e desmitificar
conceitos que continuam enraizados, opondo-se às injustiças que são cometidas.
Assim, a partir de algumas reflexões sobre a trajetória do movimento feminista, propõese investigar a influência exercida por estas reivindicações, as quais conduziram a um
amplo espectro de possibilidades para o processo emancipatório das mulheres,
especialmente mediante a ruptura do ideal de domesticidade. Logo, caracteriza-se a
pesquisa pelo caráter bibliográfico e cunho qualitativo, mediante um aporte teórico
consistente sobre as bases do feminismo, que revolucionou a vida das mulheres nos
segmentos sociais, rompendo com a subserviência, a discriminação e a inferiorização.
Desta forma, a temática ora posta na pauta de discussão configura-se de
extremo
relevo, eis que
não
se
pode
continuar
imerso,
aguardando
uma
democratização nas situações práticas, mas o inverso, revigorar-se na busca de
instrumentos potencializadores e medidas eficazes de verdadeira igualdade entre
homens e mulheres. Para tanto, é indispensável que se compreenda a historicidade
4
deste movimento feminista, uma vez que é conhecendo o passado que se pode almejar
propor alternativas para um protagonismo feminino em todas as ambiências.
Vindicando Espaço, Vez e Voz Ativa: a trajetória do Feminismo
A História demonstra que a luta engendrada pelas mulheres por um espaço na
sociedade foi – e ainda o é – incansável, sendo, no entanto, muitas vezes, visto como
inexoravelmente
descabido
e
desnecessário.
Diante
desses
acontecimentos,
irromperam contestações. O feminismo começou a ganhar contorno de movimento
sexista, a partir de debelações, mobilizações e mudanças paradigmáticas no momento
em que a própria mulher descobre um “perfil feminino guerreiro”, o qual, até então,
inexistia. Percebendo que poderia se tornar protagonista e reger sua vida, através da
superação dos modelos e dos preconceitos, ela começa a mobilizar-se. É mister, por
oportuno, a compreensão de Fougeyrollas-Schwebel (2009, P. 144), ao referir que:
O feminismo como movimento coletivo de luta de mulheres só se manifesta
como tal na segunda metade do século XX. Essas lutas partem do
reconhecimento das mulheres como específica e sistematicamente oprimidas,
na certeza de que as relações entre homens e mulheres não estão inscritas na
natureza, e que existe a possibilidade política de sua transformação. A
reivindicação de direitos nasce do descompasso entre a afirmação dos
princípios universais de igualdade e as realidades de divisão desigual dos
poderes entre homens e mulheres. Nesse sentido, a reivindicação política do
feminismo só pode emergir em relação a uma conceituação de direitos
humanos universais.
Constata-se que o substrato que o movimento feminista possibilitou fez com que
muitos dos direitos vindicados, até então enclausurados, fossem ganhando força para
além do circuito doméstico. Tanto a Revolução Francesa quanto a Revolução Industrial
tiveram papel primordial nesse processo, contribuindo para a proliferação das lutas
feministas e, consequentemente, para a reivindicação por espaço, vez e voz ativa. Por
se tratarem de pleitos específicos, foram empreendidos esforços redobrados nos
embates travados, para que fossem reconhecidos como tal.
5
Giulani (2010, p. 665) intensifica este posicionamento, aclarando que, para
alcançar os direitos sociais, as trabalhadoras impulsionaram modificações complexas
que atingiram arraigadas dimensões culturais na divisão sexual do trabalho. Elas
questionaram sua marginalização na definição dos direitos, tentaram abolir a
discriminação de gênero nas relações econômicas, culturais e sociais, exigindo também
a igualdade com os maridos no exercício das responsabilidades familiares. Essas
iniciativas buscaram superar as ambiguidades e as tensões no interior dos estatutos
sociais.
Nesse viés, reforça Beauvoir (1986, p. 166) que o movimento feminista esboçado
na França por Condorcet, na Inglaterra por Mary Wollstonecraft em sua obra Vindication
of the Rights of Women, e reiniciado no princípio do século pelos saint-simonianos, não
pôde atingir um resultado enquanto careceu de bases concretas. Agora, as
reivindicações da mulher vão pesar realmente na balança. Elas serão ouvidas até no
seio da burguesia. Perfilhando este entendimento, aduzem Pinsky e Pedro (2003, p.
286) que:
[...] A partir do final do século XVIII, passaram a lutar pela cidadania e a
demandar direitos políticos e sociais como educação e controle de
propriedades, apostando também no poder do Estado democrático como
agente de melhoria da vida das mulheres, capaz de, com leis, reformar as
relações familiares e ampliar a participação das mulheres na sociedade.
A esse respeito, Saboya (2008, p. 84) afirma que os estudos feministas da
década de 1960 procuraram denunciar a segregação política e social sofrida pela
mulher. Desde o início foi refutado o argumento ancorado na ideia da diferenciação
biológica e sexual como justificativa das desigualdades sociais. Isto porque estes
estudos pretendiam demonstrar que as identidades do masculino e do feminino se
constroem cotidianamente na esfera do social, não pelas definições sexuais, mas sim
pela forma como essas características são valorizadas e representadas em diferentes
contextos históricos. O que se deve ao primordial fato de que, em poucas ocasiões, foi
possibilitado à mulher uma verdadeira inclusão, em virtude de séculos de inculcação de
6
uma cultura centrada nos valores masculinos. Quanto a este aspecto, destaca Perrot
(2010, p. 177) que:
Essa exclusão das mulheres pouco condiz com a Declaração dos Direitos do
Homem, que proclama a igualdade entre todos os indivíduos. As mulheres não
seriam “indivíduos”? A questão é embaraçosa; muitos pensadores – como
Condorcet, por exemplo – pressentiram-na. Única justificativa: argumentar
sobre a diferença dos sexos. É por isso que esse velho discurso retoma no
século XIX um novo vigor, apoiando-se nas descobertas da Medicina e da
Biologia. É um discurso naturalista, que insiste na existência de duas
“espécies” com qualidades e aptidões particulares. Aos homens, o cérebro
(muito mais importante do que o falo), a inteligência, a razão lúcida, a
capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a sensibilidade, os
sentimentos.
É certo, pois, que o embate travado entre homens e mulheres originou-se há
longínquo lapso de tempo, mais especificamente, há milênios. Prosseguindo nesse
caminho, Beauvoir (1986, p. 18) corrobora que, “em toda parte e em qualquer época, os
homens exibiram a satisfação que tiveram de se sentir os reis da criação”. Levando-se
em conta, inclusive, que, em uma passagem bíblica é retratado que “Deus criou a
mulher a partir de uma costela de Adão”. Indo nesta direção, é possível perceber que a
mulher sempre foi relegada e, desse modo, ficando sujeita à dominação masculina. Isso
é herança de uma sociedade patriarcal, comprovada pela história da humanidade em
seu transcurso temporal. Assim destaca Silva (1995, p. 110) que:
Pode-se perceber originariamente que o mito patriarcal começa a sedimentarse pelo discurso religioso e reforça-se através dos cânones sociais que,
valendo-se de estereótipos, constroem um “perfil feminino”. Daí, que esses
estereótipos mistificam-se, tornando-se cada vez mais impermeáveis aos
modelos do que seja “ideal” masculino e feminino, gerando protótipos que
dificilmente perdem força.
Sabe-se que, desde os primórdios dos tempos, a mulher era considerada uma
“coisa”, um objeto passível de troca, de venda pelo pai para o marido. Denota-se que a
mulher não detinha nenhum poder sobre sua vida, ficando à mercê do destino escolhido
por seu genitor. Essa situação perdurou, já que estabelecida desde a Grécia Antiga,
7
porquanto as mulheres apenas podiam exercer trabalhos domésticos. É o que relata
Camargo (2009, p. 116):
Quanto às desigualdades de gênero, vemos por que já na Grécia Antiga os
mais famosos artistas, sábios, filósofos, arquitetos, matemáticos, teatrólogos,
professores, governantes, etc. eram todos do sexo masculino: nesta época,
como em muitas outras, o trabalho feminino não podia ser outro senão o de
dona-de-casa. Assim, às mulheres não era permitido um lugar de destaque
nas artes nem em outra profissão, cabendo-lhes tão-somente realizar
trabalhos domésticos. Com exceção das camponesas, que trabalhavam no
campo, as mulheres da Grécia Antiga também não podiam participar da vida
pública.
Colazo (2008, p. 41), por sua vez, ressalta que “la mujer vivía la mayor parte del
tiempo recluida en su casa, atendiendo el hogar. En su ausencia del marido, un esclavo
cuidaba de ella. Como éste también tenía a su cargo a los niños, era llamado
‘pedagogo’”.
As
mulheres
estavam,
pois,
alijadas
do
convívio
social
e,
consequentemente, do poder, sob o infundado argumento de que tinham uma
compleição física frágil e radicalmente diferente da dos homens e, por isso mesmo,
eram inadequadas para exercê-lo. Assim, na sociedade, as vozes eram dissidentes:
aqueles que pregam a tese de que a mulher somente deveria permanecer no lar,
arguiam que não poderia ela ocupar posições de liderança, pois sua função natural era
simplesmente outra – a de procriar. Inversamente, os que defendiam a emancipação da
mulher, sustentavam que, biologicamente, o poder feminino poderia livrar o mundo das
guerras e crises masculinas, das rixas e lutas por status e dominação.
Entretanto, a História não proporciona elementos realmente concretos sobre a
influência pela conquista do poder, baseada em atividades hormonais versus atividades
cerebrais. A liderança era, em contrapartida, determinada pelas regras sociais e pelos
talentos individuais, e a alcançava quem possuísse tais competências morais e sociais,
sendo que, em vários momentos, eram somente os homens que as detinham.
Em meados do século XIX, a explicação para que as mulheres fossem afastadas
da atividade política era concisa: mulheres são inferiores aos homens tanto física
quanto intelectual e psicologicamente. Desta maneira, não poderiam, de modo algum,
exercer o poder, tampouco participar da vida pública e, por conseguinte, da política. Vê-
8
se que em praticamente todas as épocas o alicerce desta teoria baseava-se, de modo
fundamental, no sentido de que as mulheres não possuíam constituição física que lhes
possibilitasse o exercício do poder. Inclusive já alguns filósofos da Grécia Antiga, como
Platão, exaltavam e agradeciam aos deuses por ser homem e não mulher. Conforme
elucida Beauvoir (1986, p. 21), “legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios
empenharam-se em demonstrar que a condição subordinada da mulher era desejada
no céu e proveitosa à terra”.
Assinale-se, assim, que a tese de autojustificação era plenamente difundida em
todas as esferas da vida social. E é por isso que as mulheres ficaram escondidas na
História. Esta autora (1986, p. 20) frisa, ainda, que “desde a Antiguidade, moralistas e
satíricos deleitaram-se em pintar o quadro das fraquezas femininas”. Nota-se que, nas
mais diversas áreas do conhecimento, desde o princípio, as mulheres foram
desvalorizadas, notadamente pela visão masculina de que não eram seres pensantes e
não poderiam competir por lugares, que não o ambiente doméstico.
Neste âmbito, constata-se que a mulher, nos mais variados campos do
conhecimento – seja do Direito, das Artes, da Literatura, da Política, dentre inúmeros
outros – ainda não alcançou um status que realmente possa significar respeito e
aceitabilidade. Decorrência, em muitos casos, de a figura feminina ainda ser
considerada um ser dotado de muitas habilidades, como a maternidade, mas
desprovida das mesmas capacidades intelectuais do homem. No que concerne a este
ponto de vista, sublinham Pinsky e Pedro (2003, p. 265) que, em determinados
momentos de ampliação de direitos e progressos democráticos, as mulheres não foram
favorecidas do mesmo modo que os homens. Além disso, fatos frequentemente
ignorados na narrativa histórica, como a contracepção ou a evolução das roupas,
mostraram ser cruciais na melhoria da qualidade de vida das mulheres e importantes
em suas lutas por valorização social, igualdade de oportunidades e reconhecimento de
demandas específicas.
Foram milênios de obscurantismo, vivenciados sob estado de ignorância e
desconhecimento total. É somente no século XVIII que a questão da mulher, como ser
dotado das mesmas capacidades, é encarada sob outro prisma. “Diderot, entre outros,
9
esforça-se por demonstrar que a mulher é, como o homem, um ser humano. Um pouco
mais tarde, Stuart Mill defende-a com ardor”, na afirmação de Beauvoir (1986, p. 21).
Embora alguns homens tenham aderido a esta corrente feminista, a maioria continuou a
perpetuar a desvalorização, o desrespeito e a subjugação da mulher ao poder
masculino.
Ressalta-se que foi exatamente no período da Revolução Francesa que o
movimento feminista ganhou força, e, considerando os ideários de liberdade, igualdade
e fraternidade, muitas mulheres transpuseram o medo e a insegurança e, por
conseguinte, debelaram a submissão pela qual passavam. Há relatos, inclusive, de que
desde o momento em que se desencadeou a mencionada Revolução, as francesas
organizaram clubes de ativistas femininas.
Com as transformações ocorridas – principalmente quando da Revolução
Industrial no século XIX –, as lutas femininas proliferaram-se com maior intensidade.
Isto porque muitas mulheres lançaram-se no mercado de trabalho, para se empregarem
em indústrias e oficinas, abandonando o exclusivo trabalho em seus lares. Diante deste
fato, exsurgiram outros tantos movimentos contrários ao trabalho feminino, eis que a
concorrência se afigurava cada vez maior, já que as mulheres estavam acostumadas a
obedecer e a receber salários mais baixos.
Nesta época, as reivindicações das mulheres não se embasavam tão somente
na igualdade jurídica e no direito ao voto, mas também na equiparação salarial,
porquanto auferiam menos que os operários – que já eram mal pagos. Dessa forma,
guardadas as devidas proporções, houve um estreitamento entre o feminismo e os
movimentos de esquerda na luta pelos direitos referidos. Contudo, a maioria das
mulheres ainda continuava à mercê da subjugação.
Simone de Beauvoir, Frida Kahlo, Joana D’Arc, Tarsila do Amaral, Rosa Parks,
entre inúmeras outras, foram algumas das mulheres que deixaram para trás estas
atitudes passivas e lançaram-se em busca de novos horizontes para combater o
sistema vigente. Na época em que viveram, seus comportamentos foram tachados
como anticonvencionais e, por isso mesmo, foram ainda mais discriminadas,
desvalorizadas, relegadas a um segundo plano e, até mesmo, mortas. Apesar disso,
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serviram – e continuam servindo – como exemplo para a perpetuação da luta a favor da
igualdade de gêneros. Sob este prisma, Camargo (2009, p. 117-118) revela que:
Todas essas questões a respeito da situação da mulher... nos levam a
perceber que, muito mais que uma questão de gênero, há a categoria
“mulher”, que é uma construção social. Por isso, as mulheres foram, através
dos tempos, marginalizadas e secundarizadas na produção literária e artística.
Wolf relata que, para evitar o prejuízo causado por críticos e editores, as
mulheres escritoras adotaram pseudônimos masculinos. Assim, não é por
acaso que as novelistas francesas de mais êxito no século XIX, George Eliot e
George Sand e as irmãs Bronté, adotaram pseudônimos masculinos.
A busca intensa pela inserção social é fruto destas conquistas originadas através
do processo de lutas a favor da equidade. Nas primeiras décadas do século XX, as
mulheres trazem para a sociedade patriarcal alguns dos seus valores até então não
manifestados, cultivando-os e perpetuando-os. Verifica-se, pois, que a pauta de
reivindicações formulada sai do terreno teórico e vai pesar realmente na balança.
Nesse sentir, as demandas expostas conduzem as mulheres a repensar sobre o seu
papel na divisão sexual do trabalho e a reivindicar uma remodelação. É o que explicita
Giulani (2010, p. 649):
[...] ao longo dos anos 80 ocorre uma revisão da imagem social da
feminilidade. Difundem-se novas proposições que reafirmam o princípio de
equidade entre os sexos e são debatidas modificações na ordem cultural e
jurídica. [...] Chega-se à consciência de que qualquer definição dos papéis, da
imagem, da identidade e dos códigos de comportamento da mulher, é instável
e transitória, já que tais concepções culturais são o resultado do confronto
entre os valores dominantes e os anseios de mudança.
Sob este panorama, há uma tendência, cada vez maior, de robustecimento da
abordagem do feminino em todas as searas. Nessa linha, Saboya (2008, p. 84) salienta
que o feminismo, por meio de suas lutas específicas, chamou a atenção para a
desigualdade política, jurídica, social e econômica das mulheres; por outro, foi a fundo
em suas reflexões sobre a desigualdade, possibilitando o aparecimento de trabalhos
sobres as relações de gênero e a mulher, pondo em xeque argumentos historicamente
tomados como naturais, desfragmentando-os.
11
Prosseguindo nesse caminho, a mulher pouca vezes subverteu a ordem daquilo
que lhe foi imposto, ou seja, em raríssimas ocasiões insurgiu-se contra o sistema de
dominação masculina. Foram muitos anos de passividade e, em decorrência disso, de
corroboração deste modelo, ou seja, de revigoramento da subjugação. A própria mulher
acreditava ser inferior ao homem e, por isso, compactuava com esse paradigma,
inclusive educando seus filhos neste modelo. Sob este ângulo, Bourdieu (2007, p. 44)
retrata que a visão androcêntrica é assim continuamente legitimada pelas próprias
práticas que ela determina: pelo fato de suas disposições resultarem da incorporação
do preconceito desfavorável contra o feminino, instituído na ordem das coisas, as
mulheres não podem senão confirmar seguidamente tal preconceito.
Esta autojustificação que permeou toda a historicidade sucedeu-se devido ao
fato de que os homens sempre foram os protagonistas e impuseram a subserviência.
Nesta esteira, assevera Beauvoir (1986, p. 17) que, “por mais longe que se remonte na
história, sempre estiveram subordinadas ao homem: sua dependência não é
consequência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu... Uma situação
que se criou através dos tempos pode desfazer-se num dado tempo”:
[...] Os proletários dizem “nós”. Os negros também. Apresentando-se como
sujeitos, eles transformam em “outros” os burgueses, os brancos. As
mulheres... não dizem “nós”. Os homens dizem “as mulheres” e elas usam
essas palavras para se designarem a si mesmas: mas não se põem
autenticamente como Sujeito.
Quando a mulher se coloca como sujeito de sua própria história, ela modifica o
ambiente social. A partir da conscientização de que seria necessário constituírem um
grupo e mobilizarem-se em prol de seus direitos, não se mostrando mais passivas
frente à discriminação, à submissão e à inferiorização, esta ideia de sujeito fica mais
forte. Foi com a força proporcionada pelo movimento feminista que se desacorrentaram
da estagnação a que estavam submersas e vindicaram pelo lugar que lhes cabia na
sociedade, com a consequente busca permanente de efetivação da igualdade em todas
as suas dimensões.
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Considerações Finais
Embora as questões de gênero sempre tenham sido trabalhadas de forma
desfavorável para as mulheres, o feminismo, este movimento sexista sublevado, foi
essencial para desmitificar e romper com a assimetria existente. A procura intensa pela
inserção social e laboral foi fruto destas conquistas originadas através do processo de
lutas feministas. Nesta compreensão, as mulheres conseguem fazer emergir no
contexto patriarcal alguns dos seus valores internalizados. Sobre esta questão, Moraes
(2003, p. 510) assevera que:
Uma das dimensões mais relevantes do movimento feminista no Brasil foi ter
contribuído para a construção de uma nova experiência de cidadania, forjada
na prática da reivindicação na arena pública. Sem jamais abdicar de suas
“questões específicas” – aborto, direitos da maternidade, igualdade salarial,
etc. –, o movimento das mulheres foi o primeiro a levantar a bandeira da
anistia política... Mais do que isso, foi uma das forças que inovaram o campo
das lutas sociais e renovaram as práticas políticas.
Já Bourdieu (2007, p. 139), em uma perspectiva sempre crítica e objetiva, a
despeito da importância das lutas desencadeadas pelo feminismo, alude que “o
movimento feminista contribuiu para uma considerável ampliação da área política ou do
politizável, fazendo entrar na esfera do politicamente discutível ou contestável objetos e
preocupações afastadas ou ignoradas pela tradição política”. De igual modo, Pinsky e
Pedro (2003, p. 286) destacam que:
Ideias e práticas feministas nunca foram homogêneas. Contudo, as feministas
têm sido unânimes na convicção de que a opressão às mulheres deveria
acabar, na rejeição de ideias tradicionais – como a inferioridade natural das
mulheres e a necessidade da submissão feminina – e na crença de que a
ampliação de papéis e opções para as mulheres criaria um mundo melhor
para todos.
Nessa conjuntura, infere-se que é clarividente a relevância desta temática do
feminismo, embora seja mister considerar que são revisitadas questões que, longe de
serem novas e já com numerosas respostas, ainda permanecem atuais. É essencial
apreender, portanto, que em que pese as lutas feministas tenham se desencadeado no
13
decorrer dos séculos XIX e XX, é imprescindível permanecer na busca constante para
salvaguardar aquilo que o ser humano possui de mais essencial: a sua dignidade.
Entende-se, por fim, que tal discussão não se esvazia em meras digressões,
mas sim em um conhecimento útil para almejar um verdadeiro protagonismo feminino.
Haja vista, também, que a tendência, cada vez mais, é a de revigoramento da
abordagem do feminismo. Isto porque foi a partir dos estudos científicos possibilitados
pelo movimento feminista e realizados, precipuamente, pelas áreas da Biologia e da
Antropologia, que houve o desvelamento do fato de que homens e mulheres são
dotados das mesmas capacidades intelectuais. Assim, muitos dos mitos acerca de uma
ordem masculina predefinida e preexistente, tão inculcados no imaginário de homens e
mulheres, foram, e continuam sendo, paulatinamente, desconstruídos.
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