O PROCESSO EMANCIPATÓRIO DAS MULHERES NA PERSPECTIVA DO FEMINISMO: a conquista de um espaço Marli Marlene Moraes da Costa1 Mariane Camargo D’Oliveira2 Resumo: Vislumbra-se que é necessário ressignificar e desmitificar conceitos que continuam enraizados, opondo-se às injustiças que são cometidas. Assim, a presente pesquisa, de caráter bibliográfico e cunho qualitativo, revisita algumas reflexões acerca da trajetória do movimento feminista, uma temática sempre atual. Propõe-se investigar a influência exercida pelas reivindicações, as quais conduziram a um amplo espectro de possibilidades para o processo emancipatório das mulheres, especialmente mediante a ruptura do ideal de domesticidade. Palavras-Chave: Igualdade, Gênero. História. Poder. Abstract: Sees that it is necessary to reframe and demystify concepts that remain rooted in opposition to the injustices that are committed. Thus, this research, bibliographical and qualitative, revisits some reflections on the history of the feminist movement, a theme always present. It is proposed to investigate the influence exerted by the claims, which led to a broad spectrum of possibilities for emancipator process of women, especially through the breakdown of the ideal of domesticity. Keywords: Equality. Genre. History. Power. Introdução Incessantemente se tem perquirido alternativas para mitigar a problemática da discriminação existente entre os gêneros3, Isto porque, em que pese ainda se esteja 1 Pós-doutora pela Universidade de Burgos/Espanha, com Bolsa da Capes. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Graduação e do Programa de PósGraduação em Direito – Mestrado e Doutorado, na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Direito, Cidadania e Políticas Públicas” da UNISC. Psicóloga com Especialização em Terapia Familiar. Autora de livros e artigos em revistas especializadas. E-mail: [email protected] 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito, com concentração na área de Políticas Públicas de Inclusão Social, da UNISC. Graduada em Direito pela UNICRUZ. Advogada. E-mail: [email protected] 3 Cabe aqui um esclarecimento. Consoante elucida Scott (2010, p. 08), o gênero é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” – a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis 2 evoluindo lenta e gradualmente, este contexto merece especial atenção, visto que as mulheres, não raras vezes, foram consideradas – e por muitos ainda o são – seres inferiores e, por isso mesmo, acabaram sendo subjugadas por seus pares. Verifica-se, pois, que, algumas vezes, ainda subjaz na sociedade a subserviência, a hierarquização das relações e o patriarcalismo 4, mormente porque muitas situações pragmáticas se traduzem na arraigada submissão. Sob este enfoque, é essencial circunscrever a presente pesquisa em uma abordagem crítica e consistente, despindo-se de preconceitos, discriminações e modelos obsoletos, levando-se sempre em consideração as habilidades humanas, notadamente no que se relaciona à capacidade que possuem, em todas as áreas. Neste ponto, é útil a lição de Beauvoir5 (1986, p. 26): [...] é sem dúvida impossível tratar qualquer problema humano sem preconceito: a própria maneira de pôr as questões, as perspectivas adotadas pressupõem uma hierarquia de interesses: toda qualidade envolve valores. Não há descrição, dita objetiva, que não se erga sobre um fundo ético. Ao invés de tentar dissimular os princípios que se subentendem mais ou menos explicitamente, cumpre examiná-los. Desse modo, não somos obrigadas a precisar em cada página que sentido se dá às palavras superior, inferior, melhor, pior, progresso, retrocesso, etc. Se passarmos em revista algumas dessas obras consagradas à mulher, veremos que um dos pontos de vista mais amiúde adotados é o do bem público, do interesse geral; em verdade, cada um entende, com isso, o interesse da sociedade tal qual deseja manter ou estabelecer. próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas masculinas e femininas. 4 No decorrer do texto o termo “patriarcado” será utilizado, na conceituação de Scott (2010, p. 155), como um sistema social de relações de gênero em que existe desigualdade entre estes. Relações de gênero são relações sociais entre homens e mulheres que estão engastadas numa série de instituições e estruturas sociais. O conceito de patriarcado incorpora o de relações de gênero, mas o extrapola em dois aspectos. Primeiro, inclui a desigualdade frequentemente encontrada em relações desse tipo. Segundo, chama a atenção para a interconectividade dos diferentes aspectos delas, que constituem um sistema social. A desigualdade de gênero está presente em muitos aspectos da vida social, no sentido de que as mulheres normalmente se encontram em situação de desvantagem em relação aos homens. 5 A primeira edição da obra de Simone de Beauvoir, no ano de 1949, foi com o título original Le Deuxième Sexe, época em que o termo “feminismo” nem sequer havia sido cunhado. Entretanto, durante o presente estudo será utilizada a versão lançada pelo Círculo do Livro S.A. intitulada O Segundo Sexo. Fatos e Mitos, em 1986. Este livro é, ainda hoje, considerado como o marco da prática discursiva da situação feminina. Dado o seu caráter revolucionário, foi contestado pela Igreja e inserido no Índex, a lista dos livros proibidos. 3 Nesse sentido, em uma conjuntura fortemente marcada pelo debate acerca da questão dos Direitos Humanos, não se pode deixar de mencionar a correlação existente entre os assuntos esposados, haja vista que, somente em 1993, na Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, os direitos das mulheres foram reconhecidos como Direitos Humanos. Isso tudo é consequência lógica de uma reflexão atual que leva o ser humano a repensar sobre si mesmo, bem como sobre suas atitudes, colocando-se como alguém capaz e responsável por aquilo que pensa, fala e faz. E, sob esta ótica, explicita Touraine (2010, p. 36) que: A ideia de sujeito implica a ideia de direito, e a ideia de direitos implica a democracia, definida como o governo da lei a serviço dos direitos, que são afirmados e defendidos pelos atores e pelos movimentos sociais, que falam em nome do sujeito, isto é, em nome do direito dos indivíduos terem direitos. Estas três noções são inseparáveis, da mesma forma que a dominação, o lucro e a revolução formam um conjunto. Sempre concluímos que a democracia e a revolução são opostas. A democracia não existe a não ser quando os direitos dos indivíduos e dos atores sociais podem ser defendidos dentro de um quadro institucional, isto é, pela lei. Mas o ser de direito não é um produto da democracia; ele é sua condição. Vislumbra-se, por conseguinte, que é necessário ressignificar e desmitificar conceitos que continuam enraizados, opondo-se às injustiças que são cometidas. Assim, a partir de algumas reflexões sobre a trajetória do movimento feminista, propõese investigar a influência exercida por estas reivindicações, as quais conduziram a um amplo espectro de possibilidades para o processo emancipatório das mulheres, especialmente mediante a ruptura do ideal de domesticidade. Logo, caracteriza-se a pesquisa pelo caráter bibliográfico e cunho qualitativo, mediante um aporte teórico consistente sobre as bases do feminismo, que revolucionou a vida das mulheres nos segmentos sociais, rompendo com a subserviência, a discriminação e a inferiorização. Desta forma, a temática ora posta na pauta de discussão configura-se de extremo relevo, eis que não se pode continuar imerso, aguardando uma democratização nas situações práticas, mas o inverso, revigorar-se na busca de instrumentos potencializadores e medidas eficazes de verdadeira igualdade entre homens e mulheres. Para tanto, é indispensável que se compreenda a historicidade 4 deste movimento feminista, uma vez que é conhecendo o passado que se pode almejar propor alternativas para um protagonismo feminino em todas as ambiências. Vindicando Espaço, Vez e Voz Ativa: a trajetória do Feminismo A História demonstra que a luta engendrada pelas mulheres por um espaço na sociedade foi – e ainda o é – incansável, sendo, no entanto, muitas vezes, visto como inexoravelmente descabido e desnecessário. Diante desses acontecimentos, irromperam contestações. O feminismo começou a ganhar contorno de movimento sexista, a partir de debelações, mobilizações e mudanças paradigmáticas no momento em que a própria mulher descobre um “perfil feminino guerreiro”, o qual, até então, inexistia. Percebendo que poderia se tornar protagonista e reger sua vida, através da superação dos modelos e dos preconceitos, ela começa a mobilizar-se. É mister, por oportuno, a compreensão de Fougeyrollas-Schwebel (2009, P. 144), ao referir que: O feminismo como movimento coletivo de luta de mulheres só se manifesta como tal na segunda metade do século XX. Essas lutas partem do reconhecimento das mulheres como específica e sistematicamente oprimidas, na certeza de que as relações entre homens e mulheres não estão inscritas na natureza, e que existe a possibilidade política de sua transformação. A reivindicação de direitos nasce do descompasso entre a afirmação dos princípios universais de igualdade e as realidades de divisão desigual dos poderes entre homens e mulheres. Nesse sentido, a reivindicação política do feminismo só pode emergir em relação a uma conceituação de direitos humanos universais. Constata-se que o substrato que o movimento feminista possibilitou fez com que muitos dos direitos vindicados, até então enclausurados, fossem ganhando força para além do circuito doméstico. Tanto a Revolução Francesa quanto a Revolução Industrial tiveram papel primordial nesse processo, contribuindo para a proliferação das lutas feministas e, consequentemente, para a reivindicação por espaço, vez e voz ativa. Por se tratarem de pleitos específicos, foram empreendidos esforços redobrados nos embates travados, para que fossem reconhecidos como tal. 5 Giulani (2010, p. 665) intensifica este posicionamento, aclarando que, para alcançar os direitos sociais, as trabalhadoras impulsionaram modificações complexas que atingiram arraigadas dimensões culturais na divisão sexual do trabalho. Elas questionaram sua marginalização na definição dos direitos, tentaram abolir a discriminação de gênero nas relações econômicas, culturais e sociais, exigindo também a igualdade com os maridos no exercício das responsabilidades familiares. Essas iniciativas buscaram superar as ambiguidades e as tensões no interior dos estatutos sociais. Nesse viés, reforça Beauvoir (1986, p. 166) que o movimento feminista esboçado na França por Condorcet, na Inglaterra por Mary Wollstonecraft em sua obra Vindication of the Rights of Women, e reiniciado no princípio do século pelos saint-simonianos, não pôde atingir um resultado enquanto careceu de bases concretas. Agora, as reivindicações da mulher vão pesar realmente na balança. Elas serão ouvidas até no seio da burguesia. Perfilhando este entendimento, aduzem Pinsky e Pedro (2003, p. 286) que: [...] A partir do final do século XVIII, passaram a lutar pela cidadania e a demandar direitos políticos e sociais como educação e controle de propriedades, apostando também no poder do Estado democrático como agente de melhoria da vida das mulheres, capaz de, com leis, reformar as relações familiares e ampliar a participação das mulheres na sociedade. A esse respeito, Saboya (2008, p. 84) afirma que os estudos feministas da década de 1960 procuraram denunciar a segregação política e social sofrida pela mulher. Desde o início foi refutado o argumento ancorado na ideia da diferenciação biológica e sexual como justificativa das desigualdades sociais. Isto porque estes estudos pretendiam demonstrar que as identidades do masculino e do feminino se constroem cotidianamente na esfera do social, não pelas definições sexuais, mas sim pela forma como essas características são valorizadas e representadas em diferentes contextos históricos. O que se deve ao primordial fato de que, em poucas ocasiões, foi possibilitado à mulher uma verdadeira inclusão, em virtude de séculos de inculcação de 6 uma cultura centrada nos valores masculinos. Quanto a este aspecto, destaca Perrot (2010, p. 177) que: Essa exclusão das mulheres pouco condiz com a Declaração dos Direitos do Homem, que proclama a igualdade entre todos os indivíduos. As mulheres não seriam “indivíduos”? A questão é embaraçosa; muitos pensadores – como Condorcet, por exemplo – pressentiram-na. Única justificativa: argumentar sobre a diferença dos sexos. É por isso que esse velho discurso retoma no século XIX um novo vigor, apoiando-se nas descobertas da Medicina e da Biologia. É um discurso naturalista, que insiste na existência de duas “espécies” com qualidades e aptidões particulares. Aos homens, o cérebro (muito mais importante do que o falo), a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos. É certo, pois, que o embate travado entre homens e mulheres originou-se há longínquo lapso de tempo, mais especificamente, há milênios. Prosseguindo nesse caminho, Beauvoir (1986, p. 18) corrobora que, “em toda parte e em qualquer época, os homens exibiram a satisfação que tiveram de se sentir os reis da criação”. Levando-se em conta, inclusive, que, em uma passagem bíblica é retratado que “Deus criou a mulher a partir de uma costela de Adão”. Indo nesta direção, é possível perceber que a mulher sempre foi relegada e, desse modo, ficando sujeita à dominação masculina. Isso é herança de uma sociedade patriarcal, comprovada pela história da humanidade em seu transcurso temporal. Assim destaca Silva (1995, p. 110) que: Pode-se perceber originariamente que o mito patriarcal começa a sedimentarse pelo discurso religioso e reforça-se através dos cânones sociais que, valendo-se de estereótipos, constroem um “perfil feminino”. Daí, que esses estereótipos mistificam-se, tornando-se cada vez mais impermeáveis aos modelos do que seja “ideal” masculino e feminino, gerando protótipos que dificilmente perdem força. Sabe-se que, desde os primórdios dos tempos, a mulher era considerada uma “coisa”, um objeto passível de troca, de venda pelo pai para o marido. Denota-se que a mulher não detinha nenhum poder sobre sua vida, ficando à mercê do destino escolhido por seu genitor. Essa situação perdurou, já que estabelecida desde a Grécia Antiga, 7 porquanto as mulheres apenas podiam exercer trabalhos domésticos. É o que relata Camargo (2009, p. 116): Quanto às desigualdades de gênero, vemos por que já na Grécia Antiga os mais famosos artistas, sábios, filósofos, arquitetos, matemáticos, teatrólogos, professores, governantes, etc. eram todos do sexo masculino: nesta época, como em muitas outras, o trabalho feminino não podia ser outro senão o de dona-de-casa. Assim, às mulheres não era permitido um lugar de destaque nas artes nem em outra profissão, cabendo-lhes tão-somente realizar trabalhos domésticos. Com exceção das camponesas, que trabalhavam no campo, as mulheres da Grécia Antiga também não podiam participar da vida pública. Colazo (2008, p. 41), por sua vez, ressalta que “la mujer vivía la mayor parte del tiempo recluida en su casa, atendiendo el hogar. En su ausencia del marido, un esclavo cuidaba de ella. Como éste también tenía a su cargo a los niños, era llamado ‘pedagogo’”. As mulheres estavam, pois, alijadas do convívio social e, consequentemente, do poder, sob o infundado argumento de que tinham uma compleição física frágil e radicalmente diferente da dos homens e, por isso mesmo, eram inadequadas para exercê-lo. Assim, na sociedade, as vozes eram dissidentes: aqueles que pregam a tese de que a mulher somente deveria permanecer no lar, arguiam que não poderia ela ocupar posições de liderança, pois sua função natural era simplesmente outra – a de procriar. Inversamente, os que defendiam a emancipação da mulher, sustentavam que, biologicamente, o poder feminino poderia livrar o mundo das guerras e crises masculinas, das rixas e lutas por status e dominação. Entretanto, a História não proporciona elementos realmente concretos sobre a influência pela conquista do poder, baseada em atividades hormonais versus atividades cerebrais. A liderança era, em contrapartida, determinada pelas regras sociais e pelos talentos individuais, e a alcançava quem possuísse tais competências morais e sociais, sendo que, em vários momentos, eram somente os homens que as detinham. Em meados do século XIX, a explicação para que as mulheres fossem afastadas da atividade política era concisa: mulheres são inferiores aos homens tanto física quanto intelectual e psicologicamente. Desta maneira, não poderiam, de modo algum, exercer o poder, tampouco participar da vida pública e, por conseguinte, da política. Vê- 8 se que em praticamente todas as épocas o alicerce desta teoria baseava-se, de modo fundamental, no sentido de que as mulheres não possuíam constituição física que lhes possibilitasse o exercício do poder. Inclusive já alguns filósofos da Grécia Antiga, como Platão, exaltavam e agradeciam aos deuses por ser homem e não mulher. Conforme elucida Beauvoir (1986, p. 21), “legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios empenharam-se em demonstrar que a condição subordinada da mulher era desejada no céu e proveitosa à terra”. Assinale-se, assim, que a tese de autojustificação era plenamente difundida em todas as esferas da vida social. E é por isso que as mulheres ficaram escondidas na História. Esta autora (1986, p. 20) frisa, ainda, que “desde a Antiguidade, moralistas e satíricos deleitaram-se em pintar o quadro das fraquezas femininas”. Nota-se que, nas mais diversas áreas do conhecimento, desde o princípio, as mulheres foram desvalorizadas, notadamente pela visão masculina de que não eram seres pensantes e não poderiam competir por lugares, que não o ambiente doméstico. Neste âmbito, constata-se que a mulher, nos mais variados campos do conhecimento – seja do Direito, das Artes, da Literatura, da Política, dentre inúmeros outros – ainda não alcançou um status que realmente possa significar respeito e aceitabilidade. Decorrência, em muitos casos, de a figura feminina ainda ser considerada um ser dotado de muitas habilidades, como a maternidade, mas desprovida das mesmas capacidades intelectuais do homem. No que concerne a este ponto de vista, sublinham Pinsky e Pedro (2003, p. 265) que, em determinados momentos de ampliação de direitos e progressos democráticos, as mulheres não foram favorecidas do mesmo modo que os homens. Além disso, fatos frequentemente ignorados na narrativa histórica, como a contracepção ou a evolução das roupas, mostraram ser cruciais na melhoria da qualidade de vida das mulheres e importantes em suas lutas por valorização social, igualdade de oportunidades e reconhecimento de demandas específicas. Foram milênios de obscurantismo, vivenciados sob estado de ignorância e desconhecimento total. É somente no século XVIII que a questão da mulher, como ser dotado das mesmas capacidades, é encarada sob outro prisma. “Diderot, entre outros, 9 esforça-se por demonstrar que a mulher é, como o homem, um ser humano. Um pouco mais tarde, Stuart Mill defende-a com ardor”, na afirmação de Beauvoir (1986, p. 21). Embora alguns homens tenham aderido a esta corrente feminista, a maioria continuou a perpetuar a desvalorização, o desrespeito e a subjugação da mulher ao poder masculino. Ressalta-se que foi exatamente no período da Revolução Francesa que o movimento feminista ganhou força, e, considerando os ideários de liberdade, igualdade e fraternidade, muitas mulheres transpuseram o medo e a insegurança e, por conseguinte, debelaram a submissão pela qual passavam. Há relatos, inclusive, de que desde o momento em que se desencadeou a mencionada Revolução, as francesas organizaram clubes de ativistas femininas. Com as transformações ocorridas – principalmente quando da Revolução Industrial no século XIX –, as lutas femininas proliferaram-se com maior intensidade. Isto porque muitas mulheres lançaram-se no mercado de trabalho, para se empregarem em indústrias e oficinas, abandonando o exclusivo trabalho em seus lares. Diante deste fato, exsurgiram outros tantos movimentos contrários ao trabalho feminino, eis que a concorrência se afigurava cada vez maior, já que as mulheres estavam acostumadas a obedecer e a receber salários mais baixos. Nesta época, as reivindicações das mulheres não se embasavam tão somente na igualdade jurídica e no direito ao voto, mas também na equiparação salarial, porquanto auferiam menos que os operários – que já eram mal pagos. Dessa forma, guardadas as devidas proporções, houve um estreitamento entre o feminismo e os movimentos de esquerda na luta pelos direitos referidos. Contudo, a maioria das mulheres ainda continuava à mercê da subjugação. Simone de Beauvoir, Frida Kahlo, Joana D’Arc, Tarsila do Amaral, Rosa Parks, entre inúmeras outras, foram algumas das mulheres que deixaram para trás estas atitudes passivas e lançaram-se em busca de novos horizontes para combater o sistema vigente. Na época em que viveram, seus comportamentos foram tachados como anticonvencionais e, por isso mesmo, foram ainda mais discriminadas, desvalorizadas, relegadas a um segundo plano e, até mesmo, mortas. Apesar disso, 10 serviram – e continuam servindo – como exemplo para a perpetuação da luta a favor da igualdade de gêneros. Sob este prisma, Camargo (2009, p. 117-118) revela que: Todas essas questões a respeito da situação da mulher... nos levam a perceber que, muito mais que uma questão de gênero, há a categoria “mulher”, que é uma construção social. Por isso, as mulheres foram, através dos tempos, marginalizadas e secundarizadas na produção literária e artística. Wolf relata que, para evitar o prejuízo causado por críticos e editores, as mulheres escritoras adotaram pseudônimos masculinos. Assim, não é por acaso que as novelistas francesas de mais êxito no século XIX, George Eliot e George Sand e as irmãs Bronté, adotaram pseudônimos masculinos. A busca intensa pela inserção social é fruto destas conquistas originadas através do processo de lutas a favor da equidade. Nas primeiras décadas do século XX, as mulheres trazem para a sociedade patriarcal alguns dos seus valores até então não manifestados, cultivando-os e perpetuando-os. Verifica-se, pois, que a pauta de reivindicações formulada sai do terreno teórico e vai pesar realmente na balança. Nesse sentir, as demandas expostas conduzem as mulheres a repensar sobre o seu papel na divisão sexual do trabalho e a reivindicar uma remodelação. É o que explicita Giulani (2010, p. 649): [...] ao longo dos anos 80 ocorre uma revisão da imagem social da feminilidade. Difundem-se novas proposições que reafirmam o princípio de equidade entre os sexos e são debatidas modificações na ordem cultural e jurídica. [...] Chega-se à consciência de que qualquer definição dos papéis, da imagem, da identidade e dos códigos de comportamento da mulher, é instável e transitória, já que tais concepções culturais são o resultado do confronto entre os valores dominantes e os anseios de mudança. Sob este panorama, há uma tendência, cada vez maior, de robustecimento da abordagem do feminino em todas as searas. Nessa linha, Saboya (2008, p. 84) salienta que o feminismo, por meio de suas lutas específicas, chamou a atenção para a desigualdade política, jurídica, social e econômica das mulheres; por outro, foi a fundo em suas reflexões sobre a desigualdade, possibilitando o aparecimento de trabalhos sobres as relações de gênero e a mulher, pondo em xeque argumentos historicamente tomados como naturais, desfragmentando-os. 11 Prosseguindo nesse caminho, a mulher pouca vezes subverteu a ordem daquilo que lhe foi imposto, ou seja, em raríssimas ocasiões insurgiu-se contra o sistema de dominação masculina. Foram muitos anos de passividade e, em decorrência disso, de corroboração deste modelo, ou seja, de revigoramento da subjugação. A própria mulher acreditava ser inferior ao homem e, por isso, compactuava com esse paradigma, inclusive educando seus filhos neste modelo. Sob este ângulo, Bourdieu (2007, p. 44) retrata que a visão androcêntrica é assim continuamente legitimada pelas próprias práticas que ela determina: pelo fato de suas disposições resultarem da incorporação do preconceito desfavorável contra o feminino, instituído na ordem das coisas, as mulheres não podem senão confirmar seguidamente tal preconceito. Esta autojustificação que permeou toda a historicidade sucedeu-se devido ao fato de que os homens sempre foram os protagonistas e impuseram a subserviência. Nesta esteira, assevera Beauvoir (1986, p. 17) que, “por mais longe que se remonte na história, sempre estiveram subordinadas ao homem: sua dependência não é consequência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu... Uma situação que se criou através dos tempos pode desfazer-se num dado tempo”: [...] Os proletários dizem “nós”. Os negros também. Apresentando-se como sujeitos, eles transformam em “outros” os burgueses, os brancos. As mulheres... não dizem “nós”. Os homens dizem “as mulheres” e elas usam essas palavras para se designarem a si mesmas: mas não se põem autenticamente como Sujeito. Quando a mulher se coloca como sujeito de sua própria história, ela modifica o ambiente social. A partir da conscientização de que seria necessário constituírem um grupo e mobilizarem-se em prol de seus direitos, não se mostrando mais passivas frente à discriminação, à submissão e à inferiorização, esta ideia de sujeito fica mais forte. Foi com a força proporcionada pelo movimento feminista que se desacorrentaram da estagnação a que estavam submersas e vindicaram pelo lugar que lhes cabia na sociedade, com a consequente busca permanente de efetivação da igualdade em todas as suas dimensões. 12 Considerações Finais Embora as questões de gênero sempre tenham sido trabalhadas de forma desfavorável para as mulheres, o feminismo, este movimento sexista sublevado, foi essencial para desmitificar e romper com a assimetria existente. A procura intensa pela inserção social e laboral foi fruto destas conquistas originadas através do processo de lutas feministas. Nesta compreensão, as mulheres conseguem fazer emergir no contexto patriarcal alguns dos seus valores internalizados. Sobre esta questão, Moraes (2003, p. 510) assevera que: Uma das dimensões mais relevantes do movimento feminista no Brasil foi ter contribuído para a construção de uma nova experiência de cidadania, forjada na prática da reivindicação na arena pública. Sem jamais abdicar de suas “questões específicas” – aborto, direitos da maternidade, igualdade salarial, etc. –, o movimento das mulheres foi o primeiro a levantar a bandeira da anistia política... Mais do que isso, foi uma das forças que inovaram o campo das lutas sociais e renovaram as práticas políticas. Já Bourdieu (2007, p. 139), em uma perspectiva sempre crítica e objetiva, a despeito da importância das lutas desencadeadas pelo feminismo, alude que “o movimento feminista contribuiu para uma considerável ampliação da área política ou do politizável, fazendo entrar na esfera do politicamente discutível ou contestável objetos e preocupações afastadas ou ignoradas pela tradição política”. De igual modo, Pinsky e Pedro (2003, p. 286) destacam que: Ideias e práticas feministas nunca foram homogêneas. Contudo, as feministas têm sido unânimes na convicção de que a opressão às mulheres deveria acabar, na rejeição de ideias tradicionais – como a inferioridade natural das mulheres e a necessidade da submissão feminina – e na crença de que a ampliação de papéis e opções para as mulheres criaria um mundo melhor para todos. Nessa conjuntura, infere-se que é clarividente a relevância desta temática do feminismo, embora seja mister considerar que são revisitadas questões que, longe de serem novas e já com numerosas respostas, ainda permanecem atuais. É essencial apreender, portanto, que em que pese as lutas feministas tenham se desencadeado no 13 decorrer dos séculos XIX e XX, é imprescindível permanecer na busca constante para salvaguardar aquilo que o ser humano possui de mais essencial: a sua dignidade. Entende-se, por fim, que tal discussão não se esvazia em meras digressões, mas sim em um conhecimento útil para almejar um verdadeiro protagonismo feminino. Haja vista, também, que a tendência, cada vez mais, é a de revigoramento da abordagem do feminismo. Isto porque foi a partir dos estudos científicos possibilitados pelo movimento feminista e realizados, precipuamente, pelas áreas da Biologia e da Antropologia, que houve o desvelamento do fato de que homens e mulheres são dotados das mesmas capacidades intelectuais. Assim, muitos dos mitos acerca de uma ordem masculina predefinida e preexistente, tão inculcados no imaginário de homens e mulheres, foram, e continuam sendo, paulatinamente, desconstruídos. Referências BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Fatos e Mitos. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. CAMARGO, Maria Aparecida Santana. Educação em Arte: desmitificando e ampliando concepções estéticas. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2009. COLAZO, Pablo. Grecia: historia y sociedade. Buenos Aires: Arte Grafic Argentino, 2008. FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, Dominique. Movimentos Feminstas. 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