O Controle de mérito dos atos administrativos discricionários pelo Poder Judiciário Clarissa Angélica Santos Oliveira∗ Resumo Este artigo analisa a possibilidade de controle jurisdicional do mérito dos atos administrativos discricionários. Estes atos apresentam elementos não regrados no ordenamento jurídico, dependentes do juízo de conveniência e oportunidade do administrador público. Esses elementos são denominados mérito do ato administrativo. Por muito tempo, no Brasil, o mérito dos atos administrativos foi entendido como intocável pelo Poder Judiciário, imune à apreciação jurisdicional. Essa vedação ocorria por entenderem ser este de competência exclusiva do Poder Executivo. Logo, o controle jurisdicional estava limitado à análise da sua legalidade. Todavia, um novo paradigma vem se estabelecendo na doutrina e na jurisprudência brasileiras. O Estado Democrático de Direito deixa de lado o formalismo do Positivismo Jurídico, que se preocupava apenas com a legalidade estrita. Atualmente, busca-se retornar ao Estado de Direito, observando-se o Direito como um todo, que compreende regras e princípios normativos. Os princípios assumem papel principal nesse novo paradigma. Muitos deles chegam a ser normatizados, com previsão expressa na lei. Antes entendidos como subsidiários às regras contidas no ordenamento jurídico, hoje eles fazem parte do conceito de Direito e devem ser observados. Eles trazem consigo valores primordiais do Estado Democrático de Direito, como justiça social, moralidade e ética. Daí vem a noção de juridicidade, que busca adensar as regras aos princípios explícitos e implícitos do Direito, como uma ampliação do princípio da legalidade. ∗ Bacharela em Direito - Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte (MG). 2 O mérito do ato administrativo sofre reflexos desta mudança de entendimento. Antes, detentor de ampla liberdade, por não estar regrado em lei, atualmente ele sofre mais limitações, ao ter de observar os princípios do Direito. Conseqüentemente, amplia-se a possibilidade de controle jurisdicional. O Poder Judiciário passa a exercer um controle de juridicidade da Administração como um todo, inclusive do mérito administrativo. Palavras-chave: Direito Administrativo; Ato Administrativo Discricionário; Mérito Administrativo; Princípio da Juridicidade; Controle Jurisdicional; Estado Democrático de Direito; Abstract This article aims at an analysis of the possibility of jurisdictional control of the merit of the discretionary administrative act. These acts present elements that are not disciplined in the juridical framework, depending of a convenience and opportunity analyses from the public administrator. For a long time, in Brazil, the merit of the discretionary administrative act was understood as untouchable by the Judges, immune from the jurisdictional appreciation. This prohibition occurred because its exam was understood as an exclusive prerogative of the administrator. Therefore, the jurisdictional control was limited to the analysis of its legality. However, a new paradigm has been established in the Brazilian doctrine and jurisprudence. The Democratic State of Law is not so concerned about the formality of strict legality anymore. Currently, there is more concern about the role set of rules, primordially the law principles, which bring important values, like social justice, morality and ethics. The Jurisdiction Principle widens the concept of legality, which will henceforth include not only rules, but also principles of law. This Principle leads to significant consequences on the merit of the discretionary administrative act, since the 3 administrator, once owner of large decision freedom, must now take into account other law principles. Therefore, the possibility of jurisdictional control is amplified. Keywords: Discretionary Administrative Act; Discretion; Principle of Jurisdiction; Judicial Control; Democratic State of Law. INTRODUÇÃO O mérito dos atos administrativos discricionários é entendido por grande parte da doutrina e da jurisprudência atual como imune ao controle exercido pelo Poder Judiciário. Acontece que, muitas vezes, o ato administrativo discricionário é mal utilizado pelo administrador público. Por isso, seu mérito pode vir a ocultar muitos atos de corrupção, de injustiça, de imoralidade e de busca por interesses pessoais. Além disso, o Estado Democrático de Direito, atendendo ao princípio da juridicidade, não observa um Direito composto apenas por regras, mas também por princípios. Estes passam a condicionar o exercício do mérito administrativo, mas nem sempre são observados. Por esses motivos, a "imunidade jurisdicional" do mérito administrativo deve ser questionada. Para propiciar a análise da possibilidade de controle do mérito administrativo pelo Poder Judiciário, o trabalho, inicialmente, consistirá na definição de Direito Administrativo, buscando, em uma análise histórica, o seu surgimento e sua evolução como disciplina jurídica. Para isso, pontuar-se-á a sua origem - que 4 ocorreu com o Estado de Direito - seu conceito, seu objeto e a sua visão diante do Direito comparado. O segundo passo é a definição de discricionariedade administrativa, que será analisada quanto à sua evolução histórica, desde o Estado Absolutista até o Estado Democrático de Direito. Após, os seus conceitos, justificação e uma análise dos aspectos do ato administrativo que são passíveis de discricionariedade. O mérito administrativo é tratado na seção secundária 2.5, quanto ao seu conceito e à sua tangibilidade pelo Poder Judiciário. A influência do Pós-Positivismo no conceito de discricionariedade atual também será objeto de um breve estudo. O controle jurisdicional é estudado no capítulo 3, quanto ao seu conceito, limites, sistemas de controle (sistema de unidade de jurisdição e sistema especial de jurisdição) e meios de controle. Os princípios do Direito Administrativo devem ser observados na edição dos atos administrativos, sendo utilizados pelo Poder Judiciário como base de seu controle. Por isso, serão analisados os princípios expressos e implícitos no ordenamento jurídico, concernentes à Administração Pública: princípio da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, da razoabilidade e da juridicidade. Ao final, serão analisadas duas importantes jurisprudências, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça – o Recurso Especial nº 429570 / GO (STJ) e o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança de número 24823 / DF - que apresentam posicionamentos diferentes quanto ao tema em questão. 1 O DIREITO ADMINISTRATIVO 5 1.1 Origem do Direito Administrativo O nascimento do Direito Administrativo como ramo autônomo veio a ocorrer entre os séculos XVIII e XIX, com o surgimento do Estado de Direito. Mas, mesmo antes desse período, as normas administrativas já existiam onde quer que existisse um Estado, estando vinculadas a este. Mas essas normas pertenciam ao jus civile, juntamente com outras normas dos demais ramos do direito atual, não existindo como ramo autônomo. Além de serem normas esparsas, essas não apresentavam princípios informativos próprios. As normas de Direito Administrativo são relativas ao funcionamento da Administração do Estado, diante da necessidade de normas que disciplinem seus órgãos e agentes, que agirão em seu nome, e o cumprimento de suas funções administrativas. Na Idade Média, configurou-se o chamado Estado de Polícia, não apresentando condições ao surgimento do Direito Administrativo devido à incompatibilidade deste com a forma absolutista de poder, em que todo poder emana do soberano. Nesse Estado, a Administração encontra-se legalmente incondicionada, sob o preceito jurídico do direito ilimitado para administrar. A vontade do soberano era a lei e seus atos estavam acima de qualquer ordenamento jurídico. Logo, o rei não podia ser submetido aos Tribunais. Na verdade, nem mesmo havia Tribunais independentes, muito menos normas delimitadoras do poder real. O rei decidia os conflitos diretamente ou por meio de um conselho subordinado a ele (DI PIETRO, 2007). O Estado de Direito se baseou no princípio da legalidade e no princípio da separação dos poderes. O Direito Administrativo, assim como outros ramos do direito, encontrou neste Estado condições propícias a sua formação como ramo autônomo. Como sistema fundamentado nos ideais liberais, o Estado já se submetia às leis, encontrando-se a administração condicionada legalmente. Daí nasceu o Direito Administrativo, como normas de direito público aplicável à Administração Pública, derrogando as normas de direito comum. Os direitos francês, italiano e alemão contribuíram muito para a formação do Direito Administrativo como ramo autônomo. 6 O conteúdo do Direito Administrativo sofre variações conforme o tipo de Estado adotado, o lugar e a época. Inclusive, quanto menos desenvolvidas as suas normas, maior a aplicação de normas de direito privado. No Estado Liberal, a finalidade dos governantes restringia-se a assegurar a ordem pública, atuando apenas nas atividades essenciais como segurança interna e externa, e justiça. Diante do binômio administrativo composto pela manutenção da autoridade do poder público e pelo respeito pelas liberdades do cidadão, o Estado Liberal tendeu mais a proteger estas últimas. O objeto do Direito Administrativo era mais limitado, devido à menor interferência estatal no domínio privado. Como seus princípios fundamentais estavam o da separação dos poderes e o da legalidade. Já no Estado do Bem-Estar, o Direito Administrativo teve seu conteúdo bastante ampliado, devido à constituição de um Estado muito mais atuante na esfera privada. O Estado passa a intervir no domínio econômico e a desenvolver atividades na área da saúde, educação, assistência e previdência social. O objetivo é assegurar a justiça social e o bem-estar coletivo, limitando o exercício dos direitos individuais. Com isso houve um crescimento da máquina estatal, necessitando da criação de novos instrumentos de ação do poder público, como princípios e prerrogativas, para disciplinar e fiscalizar a atividade privada, com base no seu poder de polícia, e também para exercer atividade econômica diretamente. Consequentemente constituiu-se um Poder Executivo mais fortalecido e a sua preferência pelas "prerrogativas públicas", ao invés da liberdade e direitos individuais. A construção doutrinária do Direito Administrativo passa a ser feita de forma mais sistemática e científica, com a definição de seus institutos específicos e de seus princípios informativos (DI PIETRO, 2007). 1.1.1 A Origem do Direito Administrativo no Brasil No Brasil, a Administração Pública começa a afastar-se dos moldes do direito privado com o início do período republicano. Mas, o Direito Administrativo só veio a sofrer grande evolução com o advento da Constituição de 1934, como conseqüência do Estado Social. Este texto constitucional previa a extensão do Estado nos âmbitos 7 social e econômico. Foi instalado, inclusive, um Tribunal de Direito Administrativo na esfera federal. Essa Constituição seguiu-se à Revolução de 1930, assumindo caráter socializante, com ampliação da intervenção do Estado no âmbito privado, passando realmente a atuar em campos como a saúde, a educação e a economia. Nesse período, ocorre o mesmo fenômeno administrativo ocorrido em diversas partes do mundo: o necessário crescimento da máquina estatal devido à criação de novas pessoas jurídicas e ao aumento do quadro de funcionários públicos. Quanto às suas influências, no primeiro período da República, o Brasil abandonou a influência do Direito Francês de dualidade da jurisdição, caracterizada pelo extinto Conselho de Estado. Passa-se a acolher o modelo anglo-americano, expresso na Constituição de 1891. Como conseqüências no Direito Administrativo brasileiro estão: a unidade de jurisdição, o controle jurisdicional feito sobre a Administração Pública e a jurisprudência adotada como fonte do direito. Mas, ainda assim, as teorias e princípios permaneceram sob a influência francesa, na adoção de um regime jurídico especial ao Direito Administrativo, que derrogava as normas de direito privado (DI PIETRO, 2007). De acordo com Maria Sylvia Z. Di Pietro, o Direito Brasileiro acolheu do direito francês: a idéia de ato administrativo, com o atributo da auto-executoriedade, as sucessivas teorias sobre responsabilidade civil do Estado, o conceito de serviço público, as prerrogativas da Administração Pública, a teoria dos contratos administrativos, o princípio da igualdade. (DI PIETRO, 2007, p.23) 1.2 Objeto do Direito Administrativo O objeto do Direito Administrativo apresenta grande diversidade de amplitude, dependendo do espaço em que se situa. Nos países europeus, em geral, e também no Brasil, a sua amplitude e autonomia são muito maiores, apresentando um corpo de regras e princípios próprios e originais, autônomo em relação às noções, problemas e soluções trazidos pelo direito privado. 8 É o Direito chamado por Rivera, citado por Maria Sylvia Z. Di Pietro, de descritivo, pois terá como objeto reger as relações jurídicas que nascem da ação da Administração, de forma a delimitar estatutos, estruturar os serviços públicos, definir os procedimentos referentes a sua atividade, fixar suas prerrogativas e obrigações, reger as garantias dos particulares contra o arbítrio, tudo com base na lei e no regulamento. No caso da França, sua fonte é a jurisprudência (DI PIETRO, 2007, p. 36). Já no sistema anglo-americano, o Direito Administrativo, que foi chamado de descritivo por Rivera, integra a Ciência da Administração, sendo grande parte das relações jurídicas da Administração regidas pelo direito comum. Observa Maria Sylvia Z. Di Pietro que o objeto do direito Administrativo será o regimento, através de um complexo de normas e princípios jurídicos, da "organização administrativa em seus vários aspectos, bem como as relações da Administração Pública com seus particulares". Reduzido apenas às matérias de natureza jurídica (DI PIETRO, 2007, p. 38). 1.3 Conceito de Direito Administrativo Os autores conceituam o Direito Administrativo utilizando critérios diversos. Como critério teleológico, adotado por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (apud Di Pietro, 2007, p.41), acredita-se que o Direito Administrativo compreende normas e princípios jurídicos que disciplinam a atividade concreta do Estado com o objetivo de consecução de fins de utilidade pública. A definição de Maria Sylvia Z. Di Pietro parte de um conceito descritivo, que abrange a Administração Publica em sentido objetivo e subjetivo, dizendo que Direito Administrativo é: o ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública. (DI PIETRO, 2007, p.43) 9 A expressão Administração Pública é utilizada em, basicamente, dois sentidos. Um sentido subjetivo, designando suas pessoas jurídicas, órgãos e agentes públicos que exercem as atividades administrativas. Em sentido objetivo, designa a própria atividade administrativa, sua função, executada principalmente pelo Poder Executivo. 1.4 O Direito Administrativo sob o paradigma do Direito Comparado A Constituição Federal de 1988 está pautada no Estado Democrático de Direito, fundamentando a atuação da Administração Pública nas idéias de legalidade e de participação popular. O legislador se preocupou em garantir expressamente princípios e valores, que irão pautar o Direito Administrativo, expressos nos artigos e no preâmbulo da Constituição, visando pesar a polaridade existente entre prerrogativas da Administração e interesses individuais (DI PIETRO, 1991). A discricionariedade também é conferida à Administração, como forma de alcançar o interesse público, mas não alcança todos os aspectos do ato administrativo. Estão previstos como limitação à sua atuação a ilegalidade e o desvio de poder. O Direito Francês destaca-se como o maior contribuinte para a formação do Direito Administrativo. A Revolução Francesa apresentou este direito como aquele utilizado pelo Estado burguês para sua defesa contra a classe alvo da revolução, e mesmo para a repressão daqueles que vieram a tomar o poder posteriormente. Dizem mesmo que o termo inicial do Direito Administrativo se deu com a Lei de 28 pluvioso do Ano VIII, de 1800. O Direito Administrativo francês se insere no contexto de tratamento jurídico da Administração Pública. A França utiliza o sistema de dualidade de jurisdição, no qual existe um órgão especializado para o julgamento do contencioso administrativo, o Conselho de Estado, órgão independente e com função jurisdicional. Destaca-se a sua formação pretoriana, que contribuiu para a construção do Direito Administrativo, principalmente de seus princípios informativos. Nesse Tribunal se atribui aos princípios força de lei quanto aos atos administrativos. Nesse país o "direito que se 10 faz" apresenta grande força em relação ao "direito feito". É o direito formado pelos juízes administrativos, não restritos à interpretação, menos legislativo (MELLO, 2005). Quanto à discricionariedade administrativa, percebe-se que os princípios são utilizados pelos tribunais administrativos franceses para reduzir a discricionariedade da Administração Pública, controlando seus aspectos discricionários, criando regras de direito (formação pretoriana) que estendem o domínio da competência vinculada e da legalidade. Dentre os princípios de grande contribuição ao Direito Administrativo de vários países feita pelo Direito Francês estão os da responsabilidade civil da Administração, da alteração unilateral dos contratos administrativos e o das decisões executórias. Já na Alemanha, o Direito Administrativo surgiu como um direito autônomo após um longo período de evolução, e não de uma revolução, como ocorrido na França. Fritz Fleiner, citado por Maria Sylvia Z. Di Pietro afirma que "o progresso decorreu da prática das autoridades, da jurisdição administrativa e do trabalho silencioso da doutrina" (DI PIETRO, 2007, p. 9). O primeiro passo de suma importância para esse surgimento foi a teoria do fisco, que buscava combater o Estado Absoluto, como o poder soberano do príncipe. Nessa teoria, o patrimônio público passa a pertencer ao Fisco, e não mais ao Estado, tendo aquele uma personalidade de direito privado. Logo, aumenta a defesa ao indivíduo contra o absolutismo do Estado, já que o Fisco regia-se pelas normas de direito privado, podendo ser submetido a tribunais independentes, sem qualquer vinculação ao príncipe. Muitos direitos dos indivíduos, em detrimento do Fisco, passam a ser reconhecidos. Somente no Estado Moderno o Direito Administrativo passa a se desenvolver, regendo as relações entre Estado e administrados, com aplicação subsidiária do Direito Civil. Ainda assim, a influência civilista sob o Direito Administrativo alemão foi muito acentuada, nem se constituindo uma espécie tão particular de Direito como ocorreu na França. A doutrina italiana também trouxe várias contribuições ao Direito Administrativo. Entre elas a própria utilização da denominação mérito ao designar os aspectos passíveis de apreciação pelo administrador nos atos administrativos discricionários. O princípio da eficiência, expresso na Constituição brasileira, 11 encontra identidade com o princípio italiano da "boa administração", que preceitua o equilíbrio da atuação administrativa com o ordenamento jurídico e a ótima prestação de seus serviços. No direito anglo-saxão, vigente nos Estados Unidos e na Inglaterra, integrantes do sistema da common law (direito não escrito, baseado nos costumes e nas decisões), o Direito Administrativo veio a surgir bem posteriormente ao francês e ao alemão. A possibilidade de abuso por parte do Executivo levou à atribuição, em contrapartida, de controle pelo Legislativo e Judiciário. Nesse sistema, o Poder Judiciário assume papel fundamental. Além das suas decisões criarem o próprio Direito, como sua fonte principal, o Judiciário também exerce sobre a Administração o grande controle, o mesmo exercido sobre os particulares, utilizando-se do direito comum para tanto. O Direito Administrativo era receado devido aos privilégios e prerrogativas dados à Administração. Logo, o Direito Administrativo surge por motivos diversos à limitação e proteção do indivíduo, como ocorrido nos demais países. Esse surgimento deve-se ao clamor da sociedade por crescente atuação do Estado no campo social e econômico, o que leva ao crescimento da máquina estatal, e à conseqüente necessidade de normas que regulem a organização de seus órgãos, seus servidores e a sua atuação. A discricionariedade no direito inglês se encontra muito mais ampla. Chega-se a presumir a presença de todos os requisitos legais em alguns atos administrativos expedidos, vedando-se a apreciação da matéria de fato pelo Judiciário (DI PIETRO, 1991). Capítulo 2 O PODER DISCRICIONÁRIO 2.2 Evolução Histórica No Estado de Polícia, caracterizado pela forma absolutista de poder, o poder discricionário da Administração Publica encontrava-se como poder amplo, sinônimo de arbítrio. A vontade do monarca era a própria lei. Logo, a atividade da 12 Administração não se apresentava condicionada pela lei, nem era atingida por controle judicial. Já no Estado de Direito, a discricionariedade administrativa se encontra como poder político. Baseando-se nos ideais liberais da época, a lei é vista como garantia da liberdade do homem, impondo limites à Administração Pública. A Administração encontrava-se limitada primeiramente pelos direitos subjetivos dos particulares. Mas, ainda assim, a discricionariedade administrativa continuava como uma esfera de atuação livre de vinculação à lei, de livre apreciação e incompatível com o controle judicial. O conceito de legalidade era mais liberal também, permitindo que a discricionariedade fosse utilizada no espaço livre da lei, compreendendo os pontos que a lei não regulou e que esta não proibiu. Diferentemente da concepção atual de legalidade, na qual a Administração só pode agir de acordo com o expressamente permitido em lei (DI PIETRO, 1991). Em outra fase do Estado de Direito, o Estado Social, o conceito de discricionariedade praticamente desaparece, devido à ampla limitação trazida pela lei, constituindo um poder jurídico. Influenciado pelo positivismo jurídico, uma nova concepção de legalidade é trazida, a vinculação positiva. Nesta a Administração Pública só poderia fazer o que fosse permitido em lei, reduzindo o campo de liberdade de apreciação deixado pela lei ao administrador público. Hans Kelsen contribui para a visão positivista do Direito Administrativo desta época, na sua teoria a discricionariedade emana da norma legal, devendo ser aplicada dentro do sistema jurídico. Para Maria Sylvia Z. Di Pietro, isto constitui um retrocesso, devido ao conseqüente "apego excessivo ao formalismo da lei, sem grande preocupação com o Direito", se apegando pouco a jurisprudências e a elaboração dos princípios (DI PIETRO, 1991, p. 28). Quanto ao Estado Democrático de Direito, percebe-se uma maior preocupação com o Direito como todo, já não é um Estado tão formalista como o do positivismo jurídico. Ainda assim, o texto legal constitucional e infraconstitucional se preocupou com a positivação de determinados princípios e valores. Mesmo que não expressos, a Administração Pública deverá se submeter a todos os princípios do Direito, não apenas à lei em sentido formal. Esta nova concepção consagra ampliação dos limites à atuação discricionária da Administração Pública, deixando de ser limitada apenas em sentido formal. 13 Conseqüentemente ocorre a ampliação do controle por parte do Poder Judiciário sobre os atos administrativos discricionários emanados. 2.1. Conceito de discricionariedade Toda atividade administrativa é regrada por lei, se esse regramento não atingir todos os seus aspectos, os aspectos não atingidos serão apreciados com liberdade de avaliação ou decisão pela Administração Pública. Essa liberdade de decisão é conferida pela própria lei, diante do caso concreto. Logo, a lei é a fonte da discricionariedade. A atuação livre é previamente legitimada pelo legislador. A discricionariedade verifica-se como essa liberdade de atuação, mas ainda assim, nos limites traçados pela lei. A atuação administrativa nunca será totalmente livre, discricionária, já que alguns de seus aspectos são sempre passíveis de limitação, a exemplo da competência (DI PIETRO, 2007, p. 197). A apreciação do administrador será realizada diante de um leque de opções possíveis deixados pela lei, todas válidas perante o direito. A apreciação está justamente em adotar uma destas opções, devendo ser feita através de critérios de oportunidade e conveniência. O aspecto do ato administrativo que enseja liberdade de apreciação é denominado mérito (MEDAUAR, 2006, p. 150). E seus critérios de apreciação deverão ser formulados pelo administrador, já que a lei não os determina. Todavia, deverão ser adotados em conformidade com todos os princípios, valores e regras do Direito e com as circunstâncias concretas do caso, não estando completamente livres à subjetividade do administrador. O juízo feito pela Administração Pública, mesmo que não regrados em regra normativa, deverá se vincular ao Direito como um todo, de acordo com os seus princípios expressos e implícitos. Ultrapassados os limites traçados pela lei, no exercício da liberdade conferida, a discricionariedade passa a ser arbitrariedade. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a discricionariedade só existe diante do caso concreto. Já Maria Sylvia Z. Di Pietro afirma que a discricionariedade sofrerá uma redução mediante o caso concreto, se comparada com essa em tese, na lei (MELLO, 2005, p. 398; DI PIETRO, 2007, p. 197). 14 Para alguns autores, como José Cretella Júnior, a discricionariedade encontra-se como faculdade dada pela lei ao administrador, para que este verifique critérios de oportunidade e conveniência no momento de edição do ato, podendo não atuar caso julgue mais conveniente (CRETELLA JÚNIOR, 1997, p. 241). Já em outra visão, como é o caso de Celso Antônio B. de Mello, a discricionariedade encontra-se como pleno dever atribuído pela lei ao administrador, dever de atingir a finalidade, não podendo este se abster de cumprir seu cumprimento. Com o objetivo de cumprir o dever de atingir a finalidade surgiria um poder, como mero instrumento para tal dever. Aí está a visão do autor quanto ao caráter meramente funcional da atividade administrativa, já exposta anteriormente neste trabalho, completamente subordinada à lei (MELLO, 2005, p. 398). Encontra-se a segunda visão mais correta, não podendo o administrador, de forma alguma, deixar de cumprir o seu dever com a finalidade pública da Administração. Este dever se encontra inclusive no agir ou não agir do administrador, sendo cabível escolher o seu momento, mas nunca deixar de agir quando a lei determinar. Imperativo ressaltar a idéia de M. Seabra Fagundes que diz ser a liberdade concedida aos atos administrativos discricionários muito importante devido à variedade de situações que lhe são apresentadas, permitindo que o administrador público atenda melhor à finalidade pública. Todavia, a atuação discricionária da Administração não justifica quebra da sua submissão com a ordem jurídica (FAGUNDES, 1967, p. 103). 2.2. Justificação da discricionariedade Várias teorias buscam justificar a atribuição por parte do legislador da discricionariedade à Administração Pública. A justificação jurídica baseia-se na teoria de Hans Kelsen da formação dos degraus. Maria Sylvia Zanela Di Pietro explica a relação desta teoria com a discricionariedade dizendo que a partir da norma de grau superior (Constituição), outras vão sendo editadas utilizando a discricionariedade. Esta edição é necessária, pois sem o elemento inovador (normas editadas) a norma superior não teria condições de ser aplicada. 15 A justificativa que analisa o caráter prático da discricionariedade, destaca a necessidade de flexibilização da atuação da Administração Pública diante da dinâmica do interesse público. Justifica-se que esta visa evitar o automatismo, em vista da impossibilidade de o legislador prever todas as situações possíveis de atuação da Administração. Logo, é necessário permitir um poder de iniciativa ao administrador, para que este possa atender adequadamente todas as necessidades que vierem a surgir (DI PIETRO, 2007, p. 197 e 198). Conclui-se que a discricionariedade existe em benefício do interesse público visado pela lei, já que permite que em cada caso concreto o administrador faça a escolha adequada para cumpri-lo. 2.3. Aspectos discricionários do ato administrativo A discricionariedade poderá ocorrer em várias hipóteses dentro do ato administrativo, todas permitidas pela lei. Sendo necessário analisar a própria lei para saber quando e como será aplicada. Nem sempre a lei estabelece prazo para que seja praticada determinada conduta, logo o administrador terá liberdade para eleger o momento mais adequado para a persecução do ato, de acordo com a sua finalidade. Quando a Administração não está obrigada pela lei a adotar a providência determinada, ela terá liberdade para avaliar se é melhor agir ou não. Apesar desta posição, Celso Antônio B. de Mello vê a discricionariedade como um dever, não podendo a Administração Pública deixar de cumpri-la quando determinada a conduta em lei (MELLO, 2005). Existem três entendimentos quanto ao regramento da finalidade no ato administrativo discricionário. Maria Sylvia Z. Di Pietro nos fala das duas primeiras correntes. No primeiro entendimento, a finalidade é elemento sempre vinculado, sendo sempre a busca pelo interesse público. No segundo entendimento, a finalidade é elemento vinculado quando em seu sentido amplo, que será sempre o interesse público. Já em seu sentido estrito, a finalidade é discricionária, por ser um resultado específico, dependente de cada ato administrativo (DI PIETRO, 2007, p. 199). 16 Já o último entendimento é trazido por Celso Antônio B. de Mello, que acredita que a finalidade pode ser discricionária mesmo em seu sentido amplo, quando a lei se refere a ela usando noções indeterminadas, imprecisas, não estabelecendo critérios objetivos para que o administrador saiba, no caso concreto, qual finalidade será perquirida. É o caso da utilização de conceitos jurídicos indeterminados para definir o interesse público de determinada norma jurídica, por exemplo, bem comum, ordem pública, pena adequada e outros (MELLO, 2005). Não poderá haver discricionariedade quanto à competência no ato administrativo. Pois, a competência é conferida por lei a determinado sujeito, de modo objetivo, sendo um elemento sempre vinculado. A forma do ato administrativo, normalmente, é vinculada, pois a lê prescreve exatamente a forma na qual deverá ser emitido o ato. Eventualmente, a lei prevê mais de uma forma possível de se emitir o mesmo ato, o que já confere discricionariedade ao administrador para que ele possa escolher, de acordo com o seu juízo de oportunidade e conveniência, qual a melhor a ser utilizada para atingir determinada finalidade. Maria Silvia Z. Di Pietro analisa a possibilidade de sua discricionariedade quando a lei o descrever com conceitos jurídicos indeterminados. Neste caso, caberá a apreciação subjetiva do administrador, já que não há certeza na sua aplicação. O motivo poderá ser vinculado ou discricionário. Será vinculado quando a lei não deixar dúvidas ao descrevê-lo, utilizando-se de "noções precisas" e "vocábulos unissignificativos" (DI PIETRO, 2007, p. 199 e 200). Quanto ao objeto ou conteúdo do ato administrativo, estes poderão ser vinculados ou discricionários, pelo mesmo fundamento do "motivo". Quando a lei definir que determinada medida só tem um objeto possível para que atenda a certa finalidade, este será vinculado. Pelo contrário, se a lei definir várias possibilidades de objeto para atingir determinado fim, todos válidos perante o direito, ao administrador cabe escolher qual o mais adequado. No âmbito da lei, para Maria Sylvia Z. Di Pietro poderá haver discricionariedade nestes casos: quando esta expressamente a conferir; quando a lei for omissa em relação a algum elemento do ato; quando for impossível à lei prever todas as situações que a Administração Pública virá a enfrentar; ou quando a lei prevê a competência, mas não estabelece a conduta que o administrador deve adotar diante dela (DI PIETRO, 2007, p. 198). 17 Celso Antônio B. de Mello ensina que só é possível se inferir a existência ou não da discricionariedade após o exame conjunto de dois aspectos: a própria norma jurídica e o caso concreto (MELLO, 2005). A norma jurídica será responsável pela existência da discricionariedade quando esta padece de precisão. Isso ocorrerá quando a norma: não descreve antecipadamente a situação; descreve a situação, mas mediante conceitos jurídicos indeterminados, irredutíveis a objetividade total; a própria norma confere a "liberdade decisória"; ou o objetivo é descrito de forma genérica, refletindo no motivo. O autor acredita que a norma atribuidora de liberdade é indispensável, mas só haverá discricionariedade diante do caso concreto, logo o seu exame é fundamental. Isso ocorre porque, mesmo que diante características da norma responsável, em "inúmeras situações não haverá dúvida de qual cabimento da qualificação". Mesmo os conceitos jurídicos indeterminados possuem um "núcleo significativo certo", este núcleo é uma "zona de certeza positiva ou negativa" que permite ao administrador eleger a única opção dada pela lei diante do caso concreto. Aqui, cabe ressaltar a problemática com os conceitos jurídicos indeterminados, se estes são fontes ou não de discricionariedade (DI PIETRO, 1991 p. 165). Parte da doutrina não aceita essa possibilidade. Todavia, conclui-se que para Celso Antônio B. de Mello, esses conceitos podem gerar a discricionariedade administrativa, se analisados conjuntamente com o caso concreto. Maria Sylvia Z. Di Pietro também admite essa possibilidade, a exemplo da sua explicação quanto ao motivo do ato administrativo, que poderá ser discricionário se descrito na lei por meio de noções imprecisas, vagas ou plurissignificativas. 2.4. O Mérito do Ato Administrativo Nenhum ato é completamente discricionário, contendo sempre alguns de seus elementos eivados de vinculação pela lei. O ato administrativo discricionário terá alguns elementos, não todos, de necessária apreciação pelo administrador público para a sua aplicação. Todos os atos administrativos, sejam vinculados ou discricionários, deverão ser analisados quanto à sua legalidade, se está esse adequado ou não ao texto legal. 18 Já no ato discricionário, a Administração Pública também deverá fazer um juízo subjetivo, juízo de valor ou juízo pessoal, de acordo com a sua conveniência e oportunidade diante do interesse público. Esta análise é denominada mérito. O mérito corresponde a uma análise valorativa do ato praticado, quanto à sua justiça, adequação, igualdade e mesmo se é bom ou mau, certo ou errado, em face do interesse público a atingir. De acordo com a definição de Maria Sylvia Z. Di Pietro, "o mérito é o aspecto do ato administrativo relativo à conveniência e à oportunidade; só existe nos atos discricionários" (DI PIETRO, 2007, p. 202). Celso Antônio Bandeira de Mello define, de forma muito completa, o mérito administrativo: Mérito é o campo de liberdade suposto na lei que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada. (MELLO, 1996, p. 38) A denominação de mérito sobre os aspectos discricionários do ato administrativo vem por influência da doutrina italiana. Autores como Seabra Fagundes e José Cretella Júnior conferem ao mérito administrativo um caráter político, já que visa atender ao interesse público, ao mesmo tempo em que deve ajustá-lo aos interesses privados. Nenhum dos dois interesses pode ser deixado de lado, levando assim a um juízo comparativo (FAGUNDES, 1967; CRETELLA JÚNIOR, 1997). A problemática encontrada no mérito refere-se à possibilidade ou não da sua análise por parte do Poder Judiciário. Já que considerado como competência privativa da Administração Pública, sujeito à sua apreciação subjetiva. Teria o mérito uma imunidade jurisdicional? E se em desconformidade com normas, princípios ou valores do direito? E em casos de erro na adequação ou apreciação do caso concreto ao direito, de injustiça ou de inutilidade para o alcance de sua finalidade, estaria o ato da Administração imune de qualquer controle? Cino Vitta, citado por Cretella Júnior, refere-se ao vício de mérito que ocorre com a inoportunidade ou inconveniência do ato. Neste caso, o mérito estaria se entrelaçando com a legalidade, permitindo consequentemente a análise jurisdicional. 19 Mas, para Cretella Júnior, essa ampliação do conceito de mérito alcançaria o próprio conceito de legalidade, sendo inaceitável, pois permitiria a intervenção do Poder Judiciário no aspecto político-discricionário do ato. Já que para este autor o mérito trata-se de aspecto político do ato administrativo, envolvendo interesses e não direitos, trata-se de interesses não protegidos pela norma jurídica (CRETELLA JÚNIOR, 1967, p. 242 e 243). Divergente da doutrina de Cretella Júnior, o presente trabalho não preceitua que a discricionariedade administrativa se refere a interesses não protegidos pela norma jurídica. Mesmo que deixada sobre uma esfera de liberdade, a discricionariedade é permitida em lei, por motivos de necessidade para atender melhor à sua finalidade. Não há que se falar em mérito administrativo, mesmo no exercício de competência discricionária, se o ato constituir afronta aos princípios do Direito, atingindo os direitos individuais e coletivos, e fugindo de sua finalidade (interesse público) Válido o ensinamento de Maria Sylvia Z, Di Pietro, que apesar de entender o mérito como insuscetível de controle jurisdicional, diz ser inaceitável a utilização do vocábulo mérito administrativo como "escudo" ao controle jurisdicional, quando o ato administrativo envolver questões de ilegalidade e moralidade administrativas. Sendo "necessário colocar a discricionariedade em seus devidos limites", impedindo que a Administração pratique arbitrariedades "sob o pretexto de agir discricionariamente em matéria de mérito" (DI PIETRO, 1991, p. 91). 2.6. A discricionariedade no âmbito do Pós-Positivismo O Estado Democrático de Direito remete a dois aspectos: a participação popular e a justiça material O objetivo desse Estado resume-se à justiça social. Chama à atenção a preocupação em vincular a lei aos ideais de justiça, que pretendem submeter a Administração Pública ao Direito como um todo, não apenas à lei em sentido puramente formal. 20 Para Maria Sylvia Z. Di Pietro, a lei deverá ter seu sentido formal e também material, porque caberá a ela cumprir os valores trazidos na Constituição sob forma de princípios (DI PIETRO, 1991, p. 32). O formalismo excessivo trazido pelo Positivismo Jurídico não atendeu ao seu projeto de emancipação do indivíduo, além de trazer angústia para uma sociedade caracterizada pela sua pluralidade e em busca de justiça. Em geral, as características do Positivismo Jurídico se encontram em conflito com o Estado Democrático de Direito e com o objetivo da sociedade atual. A sua neutralidade, por exemplo, não permite ao cientista discordar do ordenamento jurídico ou avaliá-lo. Pode apenas descrevê-lo. Ela não se preocupa com a noção de justo e injusto, separando o Direito e a Moral. O próprio normativismo Kelseniano não permite enunciar juízos de avaliação sobre o ordenamento jurídico, buscando apenas um conhecimento objetivo. A visão da lei, no Positivismo Jurídico, está no seu sentido apenas formal, pelo fato dela emanar do Poder Legislativo (ressalvadas algumas hipóteses, como a medida provisória). Todo esse rigor jurídico desconhece os conceitos de justiça, moral, e consciência social defendidos no Estado atual. Nem mesmo permitia que estes conceitos se relacionassem com o direito formal. Nesta via, fez-se necessária a mudança do paradigma científico do Positivismo Jurídico. Percebe-se que este não atendeu aos objetivos do Estado atual, regido pelos ideais de justiça, moral e ética, e comprometido com a ação prática. Dilthey, citado por Marcelo Galuppo, sabiamente diz que "É necessário não só descrever, mas também compreender e interpretar o agir humano" (GALUPPO, 2005). O Pós-Positivismo vem se consolidando a partir de meados do século XX, como uma nova maneira de encarar o conhecimento jurídico. Muito mais adequado ao Estado Democrático de Direito, o Pós-Positivismo entende a relação existente entre o direito e a justiça, baseado em valores e princípios. O Pós-Positivismo presta grande importância ao conteúdo axiológico do Direito, entendendo este como norma jurídica produzida pela própria sociedade, através da história. Os princípios irão trazer esse conteúdo axiológico. 21 O conhecimento jurídico passa a ser feito através de casos concretos (pensamento problemático). Um conhecimento mais hermenêutico, não descritivo, pois o sentido puramente formal da lei, que vem da atividade do legislador, é incompleto. Para a melhor aplicação da norma, o aplicador deverá fazer um juízo de adequação da norma ao caso concreto. Mas este juízo deverá vir adequado à lei e aos princípios (GALUPPO, 2005). Toda esta mudança de paradigma trouxe transformações ao conceito de discricionariedade administrativa, objeto desta monografia. A discricionariedade irá se relacionar fortemente com o Pós-Positivismo. Sua concepção não é mais neutra em relação aos ideais de moral, justiça e mesmo de política. É necessária a consciência da lei em seu sentido material, em busca da realização dos princípios trazidos na Constituição. O poder discricionário do administrador, que se encontrava livre para a apreciação, devido à inexistência de regramentos, agora sofre a limitação dos princípios do Direito. Assim, o administrador deverá se preocupar em atender aos princípios da moralidade, da impessoalidade, da razoabilidade, entre outros. Esta transformação é um reflexo do novo paradigma vivido no Estado Democrático de Direito. Não basta que o exercício da discricionariedade atenda à legalidade em sentido estrito, este deverá atender ao Direito como um todo, vinculado à idéia de justiça. Capítulo 3 CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO 3.1. Conceito de controle jurisdicional A atividade da Administração Pública, constantemente em desconformidade com o Direito, por abuso ou erro na aplicação deste, pode vir a violar direitos e a gerar danos aos indivíduos. Nesse caso, o prejudicado poderá buscar o reexame do ato praticado, através dos recursos da via administrativa, ou do Poder Judiciário. 22 A atividade jurídica é a ação desenvolvida pelo Estado para tutelar os direitos individuais e coletivos. Para M. Seabra Fagundes, a finalidade do controle jurisdicional da atuação administrativa é proteger o indivíduo em face da Administração Pública, como meio de "contê-la na ordem jurídica, de modo a assegurar ao indivíduo o pleno exercício de seus direitos" (FAGUNDES, 1967, p. 114). O Poder Judiciário exercerá o reexame jurisdicional do ato administrativo mediante provocação, como meio de controle jurisdicional do ato. O controle externo dos atos da Administração Pública é essencial ao Estado Democrático de Direito, garantindo que esses atos possam ser apreciados e, caso desrespeitem o Direito, invalidades (DI PIETRO, 2007, p. 189). Seria inconcebível que a Administração Pública ficasse imune a qualquer controle externo no exercício de suas atividades. Por isso o Poder Judiciário assume papel muito importante, como o principal meio de controlar essa atuação. O pleito judicial formado dá ao administrado a oportunidade de submeter os atos e fatos administrativos que lesaram o seu direito à análise judicial, assegurados o contraditório e a ampla defesa. A Administração Pública será situada na demanda como parte, em condição de igualdade com o indivíduo. Apesar de gozar de certos privilégios, estes são justificáveis e estritamente discriminados em lei, não prevalecendo a sua posição na lide (MEDAUAR, 1993, p. 160). O controle jurisdicional é um controle externo, feito a posteriori, podendo ser repressivo ou corretivo. Assim como nos demais procedimentos formais existentes no Judiciário, este correrá com observância dos princípios do devido processo legal, juiz natural, contraditório, ampla defesa, entre outros. E a decisão é dotada da força da coisa julgada, impondo-se à Administração Pública (MEDAUAR, 1993, p. 160 e 167). Não há a exigência de que as vias administrativas sejam esgotadas previamente para que se possa ajuizar ação perante o Judiciário. Quem sofrer lesão ou ameaça de lesão poderá defender seu direito diretamente na via judicial. 23 3.2. Sistemas de controle da Administração Pública O Brasil atua no sistema de unidade de jurisdição, diferentemente da França, da Alemanha, da Suécia e de Portugal, por exemplo, que utilizam um sistema de jurisdição especial. No sistema de jurisdição especial, a Administração Pública se submete a Tribunais com competência específica para apreciar seus contenciosos. Existem, paralelamente, a jurisdição comum e a jurisdição administrativa. De regra, o Conselho de Estado será o órgão supremo, encabeçando uma série de juízos e tribunais administrativos, independente do Tribunal de jurisdição comum (MEDAUAR, 1993, p. 163). No sistema uno, adotado pelo Brasil, o Poder Judiciário exerce o monopólio da jurisdição. Este se encontra constitucionalmente assegurado pelo artigo 5º, inciso XXXV, que determina que nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito poderá ser excluída da apreciação jurisdicional. Nesse caso, a Administração Pública submetese à jurisdição comum (DI PIETRO, 2007, p. 689). 3.3. Limites ao controle jurisdicional É pacífico o posicionamento de que o controle jurisdicional poderá incidir sobre atos administrativos de qualquer natureza, mesmo os discricionários, em se tratando da legalidade. A legalidade será analisada em todos os aspectos do ato, desde sua edição, buscando a adequação do ato à lei, o atendimento dos requisitos exigidos e a sua finalidade (abuso de poder). A forma dos atos, da qual se reveste a manifestação de vontade da Administração, também é alvo constante do controle jurisdicional. Nas palavras de Cretella Júnior: O controle jurisdicional da Administração, na quase totalidade dos casos, incide sobre os elementos estruturais do ato administrativo, porque a anatomia, estrutura ou elementos constitutivos do ato são traços que, ao 24 primeiro exame, podem revelar o defeito ou vício da medida estatal, eivada de legalidade. (...) se o defeito é forma, impõem-se a imediata correção. (CRETELLA, 1997, p.213) A apreciação judicial não pode recair sobre atos normativos, pois estes são apenas atacáveis por ações diretas de inconstitucionalidade. E nem sobre os atos interna corporis, salvo se estes exorbitarem em seu conteúdo, violando direitos individuais ou coletivos. Quanto aos atos políticos, estes costumavam ser imunizados ao controle jurisdicional, sendo equiparados aos atos discricionários. Não obstante, parte majoritária da doutrina atual entende que os atos políticos podem sofrer controle jurisdicional, desde que causem lesão a direitos individuais ou coletivos (MEDAUAR, 1993, p. 175). Para Maria Sylvia Z. Di Pietro, a apreciação dos atos políticos por parte do Poder Judiciário, quando estes atentam contra direitos, também se justifica pelo disposto no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição, que determina a não exclusão de lesão ou ameaça de lesão a direito da apreciação judicial (DI PIETRO, 2007, p. 690 e 691). A aplicação deste princípio, permitindo que o Poder Judiciário possa apreciar os atos políticos, antes vedados à apreciação jurisdicional, é mais um exemplo da regência dos princípios no direito brasileiro (FAGUNDES, 1967). Há um posicionamento que defende estar o controle feito pelo Poder Judiciário limitado a analisar os atos administrativos sob a ótica legal ou do abuso de poder, declarando a sua ilegalidade. Odete Medauar denomina esta limitação à apreciação da legalidade como controle restrito. Para ela existem duas justificativas para esta limitação: o princípio da separação dos poderes, impossibilitando ao Judiciário interferir em atividades típicas do Executivo, e a ilegitimidade dos integrantes do Judiciário para apreciar matérias referentes ao interesse público, já que desprovidos de mandato eletivo (MEDAUAR, 1993, p. 394). Vários autores, como Hely Lopes Meirelles e Cretella Júnior acreditavam ser vedada a apreciação jurisdicional do mérito do ato administrativo, apresentando este uma imunidade jurisdicional. Para estes autores, estaria o mérito sob exclusiva competência do Poder Executivo, já que dependente de análise subjetiva por parte do administrador (MEIRELLES, 1989; CRETELLA JÚNIOR, 1997, p. 336). 25 O controle jurisdicional da ilegalidade ou abuso de poder da Administração está dentro da função do Poder Judiciário. Todavia, em vista da divisão das funções do Estado, com fundamento no princípio da independência dos poderes, o Poder Judiciário não poderia interferir nesse âmbito de atuação do Poder Executivo. O mérito administrativo é imune à interferência do Judiciário, mesmo que ocorra injustiça, inoportunidade ou inconveniência. Este é o posicionamento de Cretella Júnior: Se, em qualquer operação administrativa, ocorre injustiça, inoportunidade, irrazoabilidade, inconveniência, nada pode fazer o Judiciário. (CRETELLA, 1997, p.213, grifos meus). O controle jurisdicional dos atos da Administração Pública incide, só e só, nos aspectos da ilegalidade e do abuso de poder das autoridades, ficando fora, totalmente, daquele controle o terreno do mérito do ato administrativo, imune à apreciação do Poder Judiciário, precisamente por tratar-se da discricionariedade administrativa, campo reservado à Administração, único juiz da oportunidade e da conveniência das medidas a serem tomadas, mas interdito a qualquer ingerência de outros poderes. (CRETELLA, 1997, p. 248). Já Maria Sylvia Z. Di Pietro chama à atenção uma ampliação nessa possibilidade de controle sobre o ato administrativo. Para ela, a apreciação do Poder Judiciário não se limita aos aspectos de legalidade, mas também de moralidade, de acordo com o disposto no artigo 37 da Constituição Federal, no qual este princípio sofre uma normatização, passando a ser expresso no ordenamento jurídico (DI PIETRO, 2007, p. 689). Para a autora, ao se tratar de atos discricionários, esse controle encontra limites quanto ao mérito administrativo, que é aspecto de apreciação subjetiva do administrador público. Para ela os motivos do ato podem ser apreciados quanto à sua existência e veracidade. Odete Medauar também fala da "tendência de ampliação do controle jurisdicional da Administração". De acordo com a autora, a Constituição Federal acentuou uma "evolução já verificada na doutrina e na jurisprudência" mesmo antes da Constituição, caracterizada pela "priorização dos direitos e garantias ante o poder público", indicando muito mais parâmetros para a atuação administrativa, por meio principalmente dos princípios (MEDAUAR, 1993, p. 395). Ao Poder Judiciário também é permitido apreciar os motivos que levam ao ato administrativo discricionário, analisando a sua existência, falsidade e adequação quanto ao fim pretendido. Deverá haver nexo entre o ato administrativo e os fatos 26 que o antecederam, além da observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade (DI PIETRO, 2007, p. 690). Outra observação importante refere-se à escolha do administrador entre as opções de atuação possíveis trazidas pela lei, ao praticar o ato administrativo discricionário. Sabe-se que a lei deixa ao administrador um leque de opções, todas válidas perante o direito. Diante desse leque o administrador deverá optar pela mais adequada ao caso concreto, obedecendo às regras e aos princípios de Direito. Ocorre que as circunstâncias do caso concreto, muitas vezes, conduzem o administrador para um campo reduzido de opções possíveis, ou mesmo a uma única solução possível. Se a opção tomada pelo administrador, no exercício de sua discricionariedade, não recair sobre uma das opções possíveis, e sim sobre opção irrazoável, injusta ou inválida, é cabível a apreciação judicial. Em momento algum o magistrado fará apreciação entre as opções possíveis, mas poderá anular judicialmente a opção tomada pelo administrador, se este se afastar delas (MELLO, 2005). A noção de juridicidade abranda muito os limites impostos ao controle jurisdicional. Além de apreciar a adequação dos atos às regras jurídicas, também poderá ser apreciada a adequação aos comandos principiológicos previstos no Direito. Fato é que ocorre uma mudança de paradigma quanto ao limite do controle feito pelo Poder Judiciário sobre a Administração Pública. Não se atém apenas aos aspectos da legalidade, mas também aos da juridicidade. Os elementos discricionários do ato administrativo poderão sofrer a apreciação jurisdicional em face dos princípios gerais do Direito, principalmente se envolverem injustiça, inconveniência, inoportunidade e afronta a direitos individuais, não obstante alguns autores os entendam como imunes ao referido controle. 3.4 Meios de controle jurisdicional do ato administrativo O controle jurisdicional dos atos da Administração Pública ocorrerá mediante provocação ao Judiciário, previstos na lei vários meios para essa provocação, 27 utilizando o direito de ação garantido no artigo 5º da Constituição Federal. São utilizadas ações previstas na legislação ordinária, como as ações reivindicatórias. Todavia, o texto constitucional oferece os remédios constitucionais. São ações específicas para o controle jurisdicional da Administração Pública, previstas no artigo 5º da Constituição, como habeas corpus, habeas data, mandado de injunção, mandado de segurança e ação popular, além da ação civil pública, não prevista neste artigo. Estas garantias têm natureza instrumental, objetivando resguardar os direitos individuais e coletivos. E são facultadas, pelo próprio Direito de ação, aos prejudicados pelo ato administrativo em desacordo com as regras e princípios do Direito. Maria Sylvia Z. Di Pietro acredita que as ações citadas, que têm natureza de garantias dos direitos fundamentais, preceituados no mesmo Título II da Constituição, têm exatamente este objetivo de provocar a intervenção de autoridades para que os atos administrativos lesivos aos direitos individuais e coletivos sejam corrigidos, em geral pelo Poder Judiciário (DI PIETRO, 2007, p. 690 e 698; MEDAUAR, 1993). Capítulo 4 O CONTROLE PRINCIPIOLÓGICO 4.1. A utilização dos Princípios e o Controle do ato administrativo Os princípios são os alicerces da Ciência, causa ou base do ordenamento jurídico. Estes apresentam suma importância para o Direito Administrativo na garantia do equilíbrio da bipolaridade "liberdade do indivíduo e autoridade da Administração", principalmente pelo fato de ser um direito não codificado. O Direito Administrativo apresenta princípios específicos e outros próprios também de outros ramos do direito (DI PIETRO, 2007, p. 124). Com a superação do positivismo jurídico, a discricionariedade passa a ser a liberdade de apreciação do administrador público, não apenas limitada pela lei, mas pelo Direito como um todo, composto por regras e princípios normativos. 28 A Legalidade, princípio basilar do Estado de Direito, passa a ser concebida, não no sentido estrito concebido pelo positivismo, restrito às regras, mas em sentido amplo que abrange também os princípios. Esta nova face é denominada Juridicidade. A observância dos princípios é obrigatória à Administração, constituindo parâmetros da atuação administrativa. Se contrariados princípios constitucionais, o ato administrativo constituirá vício de inconstitucionalidade. Se contrariar princípio constante de norma infraconstitucional, poderá ocorrer a invalidade do ato administrativo, sendo passível de controle pelo Poder Judiciário. Logo, ao ter que escolher uma dentre as várias opções possíveis conferidas pela lei, o Administrador Público deverá obrigatoriamente fazer seu juízo observando os princípios presentes no Direito, explícita ou implicitamente. Os princípios atuam como garantia contra o abuso da atuação discricionária da Administração Publica, não podendo deixar de serem observados. Quando o ato administrativo passa a ter a obrigação de atender princípios do direito, incidentes também nos seus critérios de oportunidade e de conveniência, logo nos aspectos não-vinculados do ato, aumenta o âmbito passível de controle jurisdicional. Esse controle não vem como uma forma de intervir nestes juízos pessoais do administrador público, mas como meio de mantê-los atrelados às suas condicionantes. Bom exemplo é o dos tribunais administrativos franceses, que apelam aos princípios para reduzir a discricionariedade da Administração Pública, controlando certos aspectos da conveniência e da oportunidade, criando regras de direito que estendem o domínio da competência vinculada e da legalidade. Esta é uma tradição de órgão criador do Direito Administrativo, de característica pretoriana, atendida pelo direito francês. Bom exemplo de como os tribunais administrativos franceses apelam aos princípios para reduzir a discricionariedade da Administração Pública é um caso contado por Vedel e Delvolvé, citado por Maria Sylvia Z.Di Pietro em seu livro: uma senhora (Trompier-Gravier) interpôs recurso por excesso de poder contra o ato administrativo que lhe retirou a autorização para explorar uma banca de jornal. Embora se tratasse de decisão discricionária, em que a lei não previa qualquer direito de defesa para o interessado, o Conselho de Estado entendeu que a Administração não poderia retirar a autorização sem assegurar o direito de defesa à interessada. A decisão judicial anulou 29 o ato, não por infringência à lei, mas por desrespeito ao princípio geral da ampla defesa. É uma forma de o juiz transformar uma questão de oportunidade e conveniência em uma questão de legalidade (1991, p.124). Atualmente, vários princípios encontram-se normatizados no nosso texto constitucional e infra-constitucional, assumindo foros de pauta jurídica. Essa previsão de forma alguma esgota os princípios do direito brasileiro, contemplando os implícitos o ordenamento. Os princípios componentes do sistema jurídico administrativo brasileiro encontram-se explícitos ou implícitos na Constituição Federal de 1988 e em leis esparsas, sendo os princípios expressos no texto constitucional uma inovação desta Constituição. O artigo 37, caput, da Carta Magna enumerou cinco princípios que devem reger a Administração Pública: da legalidade, da imparcialidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. Outras leis esparsas trouxeram menção expressa a princípios específicos do processo, como a Lei de Licitação e Contrato (Lei nº 8.666/ 93) e a Lei de Concessão e Permissão de Serviço Público (Lei nº 8.987/95). E a Lei do Processo Administrativo Federal que, em seu artigo 2º, contempla outros princípios, não citados na Lei Maior, da seguinte forma: Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. (Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, art. 2º). Logo, passa o Poder Judiciário à análise da juridicidade dos atos, não somente da legalidade, mas também dos princípios do direito, fazendo-se um controle principiológico. Para Maria Sylvia Z. Di Pietro, no contexto atual do Estado Democrático de Direito, não se tem optado pelo mesmo formalismo do direito positivo, pendendo-se muito mais ao retorno ao Estado de Direito, do que ao Estado Legal (DI PIETRO, 1991, p. 29). Por isso a preocupação com determinados valores e princípios presentes em peso na Constituição, inclusive no seu preâmbulo. Os princípios passam a reger a 30 atividade dos três poderes do Estado, gerando inconstitucionalidade de lei que os contrarie. A autora destaca que: a Administração Pública já não está submetida apenas à lei, em sentido formal, mas a todos os princípios que consagram valores expressos ou implícitos na Constituição, relacionados com a liberdade, igualdade, segurança, desenvolvimento, bem-estar e justiça. (DI PIETRO, 1991, p. 34) 4.2. Os Princípios da Administração Pública 4.2.1. Princípio da legalidade Encontra-se positivado no artigo 37, caput da Constituição Federal. Este é o princípio basilar do Estado de Direito, logo também do Direito Administrativo, que nasce com aquele, constituindo uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Com caráter nitidamente liberal, segundo o qual a lei é instrumento de garantia da liberdade do homem, mediante a imposição de limites às prerrogativas estatais. Esse princípio determina a submissão do Estado à lei e a proteção do particular contra arbitrariedades. Em um contexto político, o princípio da legalidade determina que a atuação do Executivo esteja submetida a um poder concreto, a um quadro normativo, impedindo desvios e arbitrariedades. A Administração Pública só poderá agir com base no que for permitido na lei, ao contrário dos particulares, que poderão agir de qualquer forma não proibida em lei (princípio da autonomia da vontade), como estipulado no artigo 5º, II da Lei Maior. Assim, resta demonstrado o caráter subordinado da atividade administrativa, limitada à expedição de comandos complementares à lei, como regulamento, instrução, resolução ou portarias. Sua função normativa é na maior parte derivada. Tanto que, se a lei à qual se destinou a complementar for declarada inconstitucional, aquela terá o mesmo destino. 31 No mesmo sentido é a observação de Celso Antônio B. de Mello, que define a atividade administrativa com um caráter subalterno, pois se subjuga inteiramente à lei preexistente, "nunca lhe assistindo instaurar originariamente qualquer cerceio a direitos de terceiros" (MELLO, 2005, p. 94). Apenas nos atos administrativos detentores de elementos discricionários, a lei não disciplinaria a atividade da Administração em todos os seus aspectos, apesar de estar na lei a previsão, mesmo a permissão, da discricionariedade. Todavia, percebe-se hoje uma ampliação desse princípio, que prevê que os elementos discricionários devem respeitar, não somente a lei, mas o Direito como um todo, composto também por princípios e valores. Dentro da Constituição Federal, os artigos 5º, II e 84, IV reafirmam a regência do princípio da legalidade, atrelando sem sombra de dúvidas a atividade do Executivo à lei. Em outros países como França, Alemanha e Itália, a esfera de atuação administrativa em relação à lei é muito maior. O nosso sistema é conseqüência da nossa tradição constitucional e da própria estrutura do Estado de Direito (DI PIETRO, 2007, p. 58). A observância deste princípio vem garantida na Constituição por meio de controles interno e externo feitos sobre a Administração. De acordo com o princípio do juízo natural, "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão". Além do controle exercido pelo Poder Legislativo, auxiliado ou não pelo Tribunal de contas e o controle interno exercido pelo próprio Poder Executivo. 4.2.2 - Princípio da impessoalidade Uma vez que a atividade da Administração deve ser sempre norteada pelo interesse público, esta deve atuar com impessoalidade. O princípio da impessoalidade está previsto expressamente no art. 37, caput, da Constituição Federal. Ocorrem divergências na doutrina quanto ao seu propósito. Para alguns, o presente princípio visa impedir discriminações entre os administrados no exercício da atividade administrativa. Por esta corrente, o princípio da impessoalidade seria 32 como uma face do princípio da igualdade e da isonomia, "todos são iguais" perante a Administração Pública (MELLO, 2005). A concretização dessa interpretação encontra-se, por exemplo, no Capítulo VII da Lei Magna, referente à Administração Pública, ao exigir a realização de concurso público para provimento de cargos públicos e de licitação para a celebração de contratos com a Administração. Por outro lado, o princípio da impessoalidade é interpretado como relacionado à própria Administração. Os atos e provimentos administrativos praticados pela Administração Pública não deverão ser imputados ao agente ou funcionário que o praticou em nome da Administração, mas ao órgão ou entidade que este representa, que é o autor institucional do ato (DI PIETRO, 2007, p. 62). Os agentes públicos ou pessoas com atribuição pública são meros representantes do órgão ou entidade da Administração Pública, que não poderiam agir por si próprios. Exemplo disso é que quando um ato é praticado por funcionário irregularmente investido no cargo ou função pública, aquele pode ser reconhecido válido, já que os atos são de autoria do órgão e não do seu representante. Esse preceito encontra-se garantido no artigo 37, §1º, onde está vedada a vinculação de "nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos" aos atos administrativos. A Lei do processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/99) também emprega esse princípio implicitamente, no artigo 2º, parágrafo único, III, no qual é "vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades". O presente princípio deverá, assim como os demais, nortear a apreciação feita pelo administrador ao praticar o ato administrativo discricionário. Neste entendimento está parte da jurisprudência, norteando suas decisões com base no princípio em tela, mesmo se tratando de ato discricionário. É o caso do acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que trata de concurso público para magistratura: CONSTITUCIONAL - ADMINISTRATIVO - RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA - CONCURSO PÚBLICO MAGISTRATURA ESTADUAL - ENTREVISTA - INVESTIGAÇÃO SOCIAL E DA VIDA PREGRESSA - ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO MOTIVAÇÃO - CARÁTER SUBJETIVO - IMPOSSIBILIDADE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (ART. 5º, INCISO LVII, CF) INEXISTÊNCIA DE PUNIÇÃO REFERENTE A PROCESSO DISCIPLINAR, 33 POR RETENÇÃO DE AUTOS, JUNTO A OAB-BA - CANDIDATO APROVADO - SITUAÇÃO FÁTICA CONSOLIDADA - NOMEAÇÃO. 1 - O ato administrativo, para que seja válido, deve observar, entre outros, o princípio da impessoalidade, licitude e publicidade. Estes três pilares do Direito Administrativo fundem-se na chamada motivação dos atos administrativos, que é o conjunto das razões fáticas ou jurídicas determinantes da expedição do ato. Tratando-se, na espécie, de ato do tipo discricionário e não vinculado – posto que visa a examinar a vida pregressa e investigar socialmente o candidato à admissão em concurso público -, uma vez delimitada a existência e feita a valoração, não há como o administrador furtar-se a tais fatos. Não se discute, no caso sub judice, se o ato que prevê a análise da conduta pessoal e social do indivíduo, através da apuração de toda sua vida anterior, é legal ou não, porquanto, notoriamente sabemos que o é. Há previsão tanto na lei (LOMAN, art. 78, parág. 2º), como nas normas editalícias (item 3.4.1). Entretanto, o que não se pode aceitar é que este ato, após delimitado e motivado, revista-se do caráter da subjetividade, gerando uma verdadeira arbitrariedade. 2 - Tendo o Tribunal a quo embasado a motivação do ato, real e exclusivamente, na existência de procedimento disciplinar contra o candidato, por retenção de autos, junto a OAB-Bahia, e sendo juntado a este writ certidão do referido Órgão de Classe (fls. 31) asseverando, textualmente, que "o requerente não sofreu, por parte deste Conselho, até a presente data, qualquer penalidade disciplinar relacionada com o exercício da advocacia", inexiste fato concreto que obste seu ingresso na carreira pretendida, sendo nulo o ato impugnado, por falta de motivação. Presunção de inocência (art. 5º, LVII, da Magna Carta) violada. 3 - Consolidada a situação fática por força de liminar, anteriormente, deferida, resultando na aprovação final do impetrante em 40º lugar, conforme Edital nº 10/97 (fls. 105/109), configurado está o direito líquido e certo a ser agasalhado por esta via mandamental. 4 - Recurso conhecido e provido para, reformando o v. acórdão recorrido, conceder a ordem, assegurando ao impetrante-recorrente, em virtude de sua aprovação no Concurso para o Cargo de Juiz Substituto do Estado de Pernambuco, sua nomeação neste, obedecida sua classificação no certame. 5 - Custas ex leges. Honorários advocatícios indevidos a teor das Súmulas 105/STJ e 512/STF. (STJ, RMS 11336 / PE, Relator Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUINTA TURMA, DJ 19 fevereiro de 2001 p. 188) grifos meus. O acórdão em questão determina que, para a validade do ato administrativo, é essencial a observância do princípio da impessoalidade, entre outros. Mesmo que se trate de um ato discricionário, se não observados esses princípios o ato poderá gerar uma arbitrariedade, sendo passível de controle jurisdicional. 4.2.3 Princípio da moralidade 34 O princípio da moralidade disciplina as atividades da Administração Pública e de seus agentes, de acordo com os princípios de ética e honestidade. Esse princípio atinge também os atos do particular no seu relacionamento com a Administração. A atividade administrativa deverá pautar-se na lealdade, boa-fé e sinceridade relativamente aos administrados. É o que ocorre também com os atos administrativos discricionários. Mesmo que em consonância com o ordenamento jurídico, se o ato atentar contra a ética, honestidade, probidade, decoro, lealdade, sinceridade e boa-fé estará havendo violação ao princípio da moralidade administrativa e ao Direito, logo, este ato será passível de controle feito pelo Poder Judiciário. A existência desse princípio não é pacífica na doutrina, pois alguns doutrinadores o consideram muito vago e impreciso ou acreditam na sua absorção pelo conceito de legalidade. Ocorre que ser lícito não significa ser moral. A distinção entre moralidade e legalidade é visível. Não basta à Administração agir de acordo com a lei, devendo também agir com moralidade (DI PIETRO, 2007, p. 68). Importante ressaltar que para esses doutrinadores, a idéia de se ter a moralidade dentro do conceito de legalidade, como um tipo de ilegalidade, deve-se também ao desvio de poder. O desvio de poder passou a ser hipótese prevista em lei de ilegalidade quanto aos fins do ato administrativo. O seu conceito corresponde à finalidade do ato praticado, configurada no aspecto subjetivo do ato, referente à intenção do agente. Nesse caso, mesmo que se utilizando de meios lícitos, o agente busca atingir fins meta-jurídicos irregulares. Após ser considerado como ilegalidade, o desvio de poder ampliou a possibilidade de controle judicial sobre a atividade administrativa. De toda forma, o princípio da moralidade encontra-se muito mais amplo do que o desvio de poder, sendo este apenas uma de suas espécies. São completamente distintas a moralidade e a legalidade, mesmo que a legalidade passe a abranger no direito positivo uma de suas faces. Maria Sylvia Z. Di Pietro fala da visão de Maurice Hauriou sobre a importância de se distinguir entre o honesto e o desonesto, sobre a existência de uma moral administrativa, e do condicionamento que esta exerce no poder discricionário: 35 da existência de uma moral institucional, contida na lei, imposta pelo Poder Legislativo, e da moral administrativa, que é imposta de dentro e que vigora no próprio ambiente institucional e condiciona a utilização de qualquer poder jurídico, mesmo o discricionário. (DI PIETRO, 2007, p.69) O presente princípio assume suma importância ao tratar-se de "improbidade administrativa", determinada na Lei nº 8.429 de 1992. Condutas atentatórias à probidade administrativa configuram crime de responsabilidade. Como penalidade ao crime de responsabilidade, nos termos do artigo 85, V da Lei Magna, poderá haver a destituição de cargo do Presidente da República. E para os servidores públicos, nos termos do artigo 37, §4º, também da Constituição, a "suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário", sem prejuízo da ação penal cabível. Versa a presente Lei de "improbidade administrativa", em sua Seção III, "Dos Atos de Improbidade Administrativa que Atentam Contra os Princípios da Administração Pública", em seu artigo 11: Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente (...) (Lei nº 8.429 de 1992 – Lei de "Improbidade Administrativa") A moralidade administrativa também está assegurada pela ação popular, por via judicial, com intuito de anular os atos lesivos a esta, nos termos do art. 5º, LXXIII, que determina: Art. 5º - Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência. (Constituição Federal, 1988, grifos meus) Fato é que a normatização de tal princípio na Constituição Federal implica, mais claramente, a obrigatoriedade do seu atendimento. Caso contrário ocorrerá violação do próprio Direito. Mesmo não se identificando com o conceito de legalidade, a violação ao princípio da moralidade gera efeitos jurídicos como a invalidade do ato, determinada pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário. 36 A moralidade aglutina muitos dos imperativos necessários à boa administração. A atividade administrativa deverá atender não apenas à lei, mas também a esse princípio. Esse é o entendimento atual de boa parte das decisões nos Tribunais, mesmo ao se tratar de atos detentores de discricionariedade, mesmo porque são nos atos administrativos discricionários que se apresenta, mais facilmente, a imoralidade, devendo haver controle judicial. Cita-se decisão do Superior Tribunal de Justiça que apóia o controle jurisdicional baseado no princípio da moralidade, mesmo que em ato discricionário: ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO. 1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei. 2. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade. 3. O Ministério Público não logrou demonstrar os meios para a realização da obrigação de fazer pleiteada. 4. Recurso especial improvido. (STJ, Relatora Ministra ELIANA CALMON, REsp 510259/SP, SEGUNDA TURMA, DJ 19 de setembro de 2005, p. 252, grifos meus) Este acórdão, que se trata de um Recurso Especial, refere-se a uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público, no estado de São Paulo. O objetivo da ação era determinar que a Administração Pública criasse e mantivesse vagas em creches municipais para as crianças menores de seis anos. A Relatora Ministra Eliana Calmon determinou que as razões de conveniência e oportunidade do ato administrativo em questão estão obrigadas a observar critérios de moralidade e de razoabilidade, o que justifica a possibilidade de exame jurisdicional. 4.2.4 Princípio da publicidade Também consagrado expressamente no art. 37, caput, da Constituição Federal, o princípio em questão determina o dever da Administração de manter a transparência e a ampla divulgação de todas as suas atividades. 37 Esse princípio tem grande importância quanto à motivação do ato administrativo. A ausência, nos casos em que a motivação é obrigatória, e a falsidade do motivo geram ilegalidade. Compete à Administração Pública o exercício de atividades de interesse público. Logo os administrados são titulares legítimos a obter as informações pertinentes à atividade administrativa, principalmente os sujeitos individualmente afetados (DI PIETRO, 2007, p. 66). A Lei do Processo Administrativo no âmbito Federal traduz bem o sentido desse princípio, determinando em seu artigo 2º, parágrafo único, inciso V, a obrigatoriedade de "divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previsto na Constituição" (BRASIL, 1999). Esse princípio apresenta nítida relação com o direito à informação, presente no Título II, da Constituição, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, no seu artigo 5º, XXXII. Tanto os assuntos de interesse particular, quanto os de interesse geral ou coletivo são objetos desse princípio, ampliando a possibilidade de controle por parte da população sobre a atividade administrativa. Quanto aos atos administrativos discricionários, a publicidade do ato será de suma importância, permitindo a análise do atendimento ou não do Direito no seu juízo de conveniência e oportunidade. Não se justifica o sigilo das informações pertinentes ao interesse público, a publicidade só poderá ser restringida se necessário ao interesse social, à defesa da intimidade e à segurança da sociedade e do Estado, como previsto no artigo 5º, XXXIII e LX da Lei Maior. 4.2.5 Princípio da eficiência Este princípio foi acrescentado ao Capítulo VII da Constituição Federal por força da Emenda Constitucional nº 19/98 (Emenda da Reforma Administrativa). É um princípio moderno, segundo o qual a Administração Pública deverá praticar suas atribuições adequadamente, não satisfatoriamente aos administrados. apenas com legalidade, mas atendendo 38 O objetivo é aferir melhores resultados, obtidos pelo bom desempenho das atividades administrativas. Esse princípio encontra identidade com o princípio da doutrina italiana da "boa administração", concernente ao equilíbrio da atividade administrativa com o ordenamento jurídico e a ótima prestação de seus serviços. Apresenta-se, de acordo com Celso Antônio B. de Mello como providência desejável, mas juridicamente fluido e de difícil controle pelo direito, que, segundo o autor, "mais parece um simples adorno agregado ao art. 37 ou extravasamento de uma aspiração dos que buliram no texto" (MELLO, 2005, p. 112). Outrossim, tal princípio deverá ser exercido nos limites de outro princípio, o da legalidade, pois a busca pela eficiência jamais poderia postergar o exercício deste, que é fundamental à Administração e ao Estado de Direito, assim como o exercício dos demais princípios pertinentes à matéria. A atuação da Administração deverá ser adequada, objetivando os melhores resultados, mas sempre limitada pelo ordenamento jurídico. Já para Hely Lopes Meirelles, citado por Maria Sylvia Z. Di Pietro, a eficiência é legítimo dever da Administração, definindo-o como: O que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros. (DI PIETRO, 2007, p.75) Quanto ao exercício da discricionariedade no ato administrativo, permitido em lei, o princípio da eficiência influirá diretamente na apreciação de oportunidade e conveniência da Administração Pública. Independente da adequação do ato com a lei, o presente princípio impõe ainda que o administrador opte pela solução mais adequada à persecução do interesse público, atingindo os melhores resultados de acordo com o princípio da eficiência. 39 4.2.6 Princípio da Razoabilidade A razoabilidade é um princípio geral do direito, pertinente ao Direito Administrativo, previsto expressamente na Lei nº 4.717, da Ação Popular. A razoabilidade corresponde à adequação dos meios aos fins, devendo estes ser adequados e correlatos. A matéria de fato ou de direito que fundamentou o ato deve estar adequada ao resultado visado (objeto), constituindo o motivo do ato administrativo. Outra aplicação do princípio em tela seria quanto à correlação entre o ato administrativo e a finalidade pública almejada. No Direito brasileiro os princípios em questão assumem grande importância quanto às sanções disciplinares e de polícia, fazendo o controle das penalidades aplicadas. As sanções devem ser adequadas à infração praticada. Mesmo sendo a arbitragem da penalidade de competência discricionária da Administração Publica, ao Poder Judiciário compete apreciar a observância do princípio da razoabilidade quanto à finalidade punitiva, controlando os excessos por parte do administrador (DI PIETRO, 2007, p. 71; MELLO, 2005). Maria Sylvia Zanella Di Pietro defende sabiamente essa posição, determinando que: ninguém pode ser punido por razões de mérito (oportunidade e conveniência). Se a Administração, ao qualificar os fatos, o fizer de forma que acarrete desproporção entre o motivo (infração) e o objeto (sanção), ao Judiciário caberá invalidar a decisão, sem que isso implique exame de mérito. (DI PIETRO, 2007, p.150) Logo, apresenta-se o princípio da razoabilidade como limitador à discricionariedade administrativa. É possível ao Poder Judiciário apreciar a aplicação desse princípio nos atos da Administração, mesmo que discricionários, quanto à existência dos motivos e à adequação destes ao caso concreto. Se a opção administrativa recair sobre hipótese irrazoável o ato será inválido, passível de anulação judicial. 4.2.7 Princípio da Juridicidade 40 O princípio da juridicidade é um princípio moderno, que compreende de forma mais ampla a totalidade das regras, princípios e valores do Direito. O princípio da legalidade já não atende mais os objetivos do Estado de Direito. Passa a ocorrer um fenômeno de se analisar de um lado a legalidade, e de outro, os princípios, também elementos pertencentes ao Direito. Devido à constitucionalização dos princípios, o princípio da juridicidade passa a limitar e legitimar a atuação estatal. Segundo esse princípio, a atividade do Estado deve ser regida pelo Direito como um todo, compreendendo este as regras e também os princípios. O princípio da juridicidade chega a abranger a própria concepção de legalidade estrita, pois compreende também a necessidade dos atos jurídicos obedecerem às regras do ordenamento jurídico. Além disso, ele aglutina todos os princípios de Direito, que deverão reger a atividade do Estado. Canotilho, citado por Emerson Garcia, discute uma evolução dogmática vinculada ao Estado de Direito. Esta evolução vem da necessidade de "conformar as estruturas do poder político e a organização da sociedade segundo a medida do direito", compreendido o direito como "meio de ordenação racional e vinculativa de uma comunidade organizada", necessária a criação de regras, medidas, formas, procedimentos e instituições (GARCIA, 2001). Daí a ocorrência de um princípio mais amplo, que abrange o próprio princípio da legalidade, em observância a um direito por regras e também por princípios. A Administração Pública, ao praticar ato administrativo discricionário, além de agir em conformidade com todas as regras do ordenamento jurídico, deverá ater seu juízo subjetivo de oportunidade e conveniência (mérito) a todos os princípios do Direito, sejam eles expressos ou implícitos, próprios da Administração ou gerais do direito, em observância ao princípio maior da juridicidade. Capítulo 5 Jurisprudências atuais contrapostas quanto Jurisdicional do Mérito nos atos administrativos discricionários ao Controle 41 No Estado Democrático de Direito, não resta dúvida quanto à possibilidade de controle feito pelo Poder Judiciário sobre os atos emanados do Poder Executivo. Resta a problemática do limite imposto a esse controle. Sobre quais aspectos do ato administrativo poderá recair o controle jurisdicional? Após a exposição e a análise das diversas doutrinas referentes ao assunto desta monografia, o objetivo deste capítulo é analisar os diversos posicionamentos quanto ao controle jurisdicional do mérito no ato administrativo discricionário, diante de algumas jurisprudências atuais dos nossos Tribunais Superiores e de Tribunais de Justiça, estabelecendo uma comparação entre elas. Para isso, tomar-se-ão por base duas jurisprudências, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, que trazem posicionamentos diversos quanto ao assunto: a decisão proferida pelo STJ, no Recurso Especial nº 429570/ GO e o acórdão do STF, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 24823/ DF. A Relatora Ministra Eliana Calmon, na decisão proferida no Recurso Especial nº 429570/ GO, posiciona-se a favor da possibilidade de controle jurisdicional do mérito administrativo. O recurso em questão foi interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, em sede de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público daquele Estado contra o Município de Goiânia. A Administração Pública teria sido omissa ao não promover obras de recuperação de área degradada por erosões, que estavam causando danos ao meio ambiente e riscos à população circunvizinha. Para a Ministra, diante da omissão da Administração, é possível ao Poder Judiciário analisar os aspectos intrínsecos do ato administrativo. Estes são entendidos como as razões de conveniência e oportunidade do ato administrativo discricionário. Não se limita o Judiciário à análise dos aspectos de legalidade (aspectos extrínsecos) da Administração, podendo analisar também a discricionariedade administrativa, quanto ao atendimento aos princípios, no caso, a moralidade e a razoabilidade. Este é o acórdão do referido Recurso Especial: ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO. 1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo. 42 2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la. 3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade. 4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la. 5. Recurso especial provido. (STJ, SEGUNDA TURMA, REsp 429570 / GO ; Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ 22.03.2004 p. 277 RSTJ vol. 187 p. 219) – grifos meus A fundamentação do voto proferido é de especial importância neste trabalho de monografia. A Min. Eliana Calmon relatou como o Judiciário estava atrelado ao Princípio da Legalidade, de forma "exacerbada e literal". A importância dada a esse princípio pelo Estado era tanta que a Ministra chega a referir-se ao Poder Legislativo como "super poder". É apenas no final do século XX que o Brasil inicia uma revisão crítica do seu Direito, ampliando o conceito do princípio da legalidade: A pergunta que se faz é a seguinte: pode o Judiciário, diante de omissão do Poder Executivo, interferir nos critérios da conveniência e oportunidade da Administração para dispor sobre a prioridade da realização de obra pública voltada para a reparação do meio ambiente, no assim chamado mérito administrativo, impondo-lhe a imediata obrigação de fazer? Em caso negativo, estaria deixando de dar cumprimento à determinação imposta pelo art. 3º, da lei de ação civil pública? O acórdão recorrido adotou entendimento de que não poderia fazê-lo por se tratar de ato administrativo discricionário, sobre o qual não cabe a ingerência do Judiciário. Não obstante, entendo que a ótica sob a qual se deve analisar a questão não é puramente a da natureza do ato administrativo, mas a da responsabilidade civil do Estado, por ato ou omissão, dos quais decorram danos ao meio ambiente. Estando, pois, provado que a erosão causa dano ao meio ambiente e põe em risco a população, exige-se do Poder Público uma posição no sentido de fazer cessar as causas do dano e também de recuperar o que já foi deteriorado. O primeiro aspecto a considerar diz respeito à atuação do Poder Judiciário, em relação à Administração. No passado, estava o Judiciário atrelado ao princípio da legalidade, expressão maior do Estado de direito, entendendo-se como tal a submissão de todos os poderes à lei. A visão exacerbada e literal do princípio transformou o Legislativo em um super poder, com supremacia absoluta, fazendo-o bom parceiro do Executivo, que dele merecia conteúdo normativo abrangente e vazio de comando, deixando-se por conta da Administração o facere ou non facere, ao que se chamou de mérito administrativo, longe do alcance do Judiciário. A partir da última década do Século XX, o Brasil, com grande atraso, promoveu a sua revisão crítica do Direito, que consistiu em retirar do Legislador a supremacia de super poder, ao dar nova interpretação ao princípio da legalidade. 43 Em verdade, é inconcebível que se submeta a Administração, de forma absoluta e total, à lei. Muitas vezes, o vínculo de legalidade significa só a atribuição de competência, deixando zonas de ampla liberdade ao administrador, com o cuidado de não fomentar o arbítrio. Para tanto, deu-se ao Poder Judiciário maior atribuição para imiscuirse no âmago do ato administrativo, a fim de, mesmo nesse íntimo campo, exercer o juízo de legalidade, coibindo abusos ou vulneração aos princípios constitucionais, na dimensão globalizada do orçamento. A tendência, portanto, é a de manter fiscalizado o espaço livre de entendimento da Administração, espaço este gerado pela discricionariedade, chamado de "Cavalo de Tróia" pelo alemão Huber, transcrito em "Direito Administrativo em Evolução", de Odete Medauar. Dentro desse novo paradigma, não se pode simplesmente dizer que, em matéria de conveniência e oportunidade, não pode o Judiciário examinálas. Aos poucos, o caráter de liberdade total do administrador vai se apagando da cultura brasileira e, no lugar, coloca-se na análise da motivação do ato administrativo a área de controle. E, diga-se, porque pertinente, não apenas o controle em sua acepção mais ampla, mas também o político e a opinião pública. Na espécie em julgamento, tem-se, comprovado, um dano objetivo causado ao meio ambiente, cabendo ao Poder Público, dentro da sua esfera de competência e atribuição, providenciar a correção. Ao assumir o encargo de gerir o patrimônio público, também assumiu o dever de providenciar a recomposição do meio ambiente, cuja degradação, provocada pela erosão e o descaso, haja vista a utilização das crateras como depósito de lixo, está provocando riscos de desabamento e assoreamento de córregos, prejudicando as áreas de mananciais. Com essas considerações, dou provimento ao recurso especial para ordenar que a Administração providencie imediatamente as obras necessárias à recomposição do meio ambiente. É o voto. (STJ, SEGUNDA TURMA, REsp 429570 / GO ; Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ 22.03.2004 p. 277 RSTJ vol. 187 p. 219) Conseqüentemente, passa-se a aumentar o controle do Poder Judiciário sobre o ato administrativo, exercendo o seu juízo de legalidade, e também coibindo os "abusos ou vulneração" aos princípios constitucionais. O acórdão proferido no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 24823 / DF, do STF, tendo como Relatora a Ministra Ellen Gracie, é contrário ao controle jurisdicional do mérito do ato administrativo discricionário: MANDADO DE SEGURANÇA. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. 1. O art. 5º, LV, da CF ampliou o direito de defesa dos litigantes, para assegurar, em processo judicial e administrativo, aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes. Precedentes. 2. Cumpre ao Poder Judiciário, sem que tenha de apreciar necessariamente o mérito administrativo e examinar fatos e provas, exercer o controle jurisdicional do cumprimento desses princípios. 3. Recurso provido. (STF, Segunda Turma, RMS 24823 / DF, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ 19-05-2006, LEXSTF v. 28, n. 330, 2006, p. 113-117) 44 O mandado de segurança em questão foi impetrado contra ato de exoneração feito por meio de processo administrativo. Contrariamente ao acórdão do STJ, neste afirma-se que cabe ao Poder Judiciário analisar matérias de fatos e provas, sem penetrar no mérito do ato administrativo, limitando-se a verificar a regularidade do ato impugnado. O acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no qual foi relator o Desembargador Dorival Guimarães Pereira, também demonstra um posicionamento contrário à análise do mérito administrativo pelo Poder Judiciário: EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO - MANDADO DE SEGURANÇA - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL - APLICAÇÃO DA PENA DE DEMISSÃO - RECEBIMENTO DE VERBAS DE FORMA IRREGULAR GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO ACUSADO - OBSERVÂNCIA EXCESSO DE PRAZO - INVALIDAÇÃO DO PROCEDIMENTO DESNECESSIDADE - PRETENSÃO DE RECEBIMENTO DE PARCELAS IMPOSSIBILIDADE - VIA ELEITA INADEQUADA - CONTROLE DO JUDICIÁRIO - LEGALIDADE - DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA INTELIGÊNCIA DO ART. 5º, LV DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, LEI MUNICIPAL Nº 152/2003 E SÚMULA Nº 269 DO SUMO PRETÓRIO. O excesso de prazo, para a conclusão do Processo Administrativo Disciplinar, não acarreta, de imediato, nulidade susceptível de invalidar o procedimento, salvo se tal fato tenha significado a impossibilidade do exercício do direito de defesa. É defeso ao Poder Judiciário adentrar-se no mérito do ato administrativo, para análise da conveniência, oportunidade, eficiência ou justiça do ato praticado, sob pena de substituir os deveres próprios do administrador, em cumprimento ao princípio da independência entre os Poderes. Observadas as garantias constitucionais do acusado e comprovada a prática de atos incompatíveis com o exercício de suas funções, deve ser mantida a decisão administrativa, que houve por aplicar a pena de demissão ao servidor público. A Ação Mandamental não é meio idôneo de recebimento de valores pretéritos, por não ser substituto de Ação Ordinária de Cobrança, nos termos da norma de regência. (TJMG, 5º Câmara Cível, MS 1.0184.05.010044-7/002(1), Rel. Des. DORIVAL GUIMARÃES PEREIRA, 13-02-2007) O acórdão é um exemplo do posicionamento majoritário desse Tribunal. Ao analisar o pedido do mandado de segurança interposto, que versa sobre a decisão proferida em um processo administrativo disciplinar, o Desembargador nega a possibilidade de o Poder Judiciário adentrar o mérito do ato administrativo praticado. A análise jurisdicional do mérito importaria em substituição dos "deveres próprios do administrador" e em ofensa ao princípio da independência dos Poderes do Estado. 45 Por outro lado, o acórdão proferido no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul nos mostra posicionamento a favor da possibilidade do controle jurisdicional do mérito administrativo: De AGRAVO DE INSTRUMENTO. LICITAÇÃO E CONTRATO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO. MEDIDA LIMINAR. HABILITAÇÃO NO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. QUALIFICAÇÃO TÉCNICA. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA COMPETITIVIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. IMPETRANTE QUE NÃO FOI LICITANTE. Possível a interposição de agravo de instrumento contra decisão proferida em sede liminar no mandado de segurança. Acesso ao duplo grau de jurisdição que é direito fundamental do cidadão, decorrente da necessária observância dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, insculpidos no art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal. Precedentes da Câmara e do STJ. Ao longo do Século XX, superou-se a vetusta idéia de que os atos discricionários da Administração Pública estariam à margem do controle judicial, como reflexo, inclusive, da passagem ao contemporâneo Estado Democrático de Direito. A Administração Pública se submete não apenas à lei, mas ao Direito como um todo (regra essa doutrinária no Direito Administrativo moderno e positivada no art. 2º, parágrafo único, I, da Lei nº 9.784/99), podendo o Poder Judiciário sindicar todos os aspectos jurisdicizados do assim chamado ‘mérito’ do ato administrativo. O provimento judicial que atende tal direito não ofende o princípio da independência e harmonia dos Poderes (art. 2º da CF/88). Princípio da universalidade da jurisdição ou da inafastabilidade do controle judicial (art. 5º, XXXV, da Carta Magna). O Poder Público não está acima do controle jurisdicional. Precedentes do STJ e deste TJRS. A Lei nº 8.666/93, a respeito da qualificação técnica, dispõe de forma expressa, em seu art. 30, II e § 5º, que a documentação limitar-se-á à comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível com as características do objeto da licitação, descabendo a exigência de comprovação de atividade ou de aptidão com limitações de tempo ou de época ou ainda em locais específicos, ou quaisquer outras não previstas nesta Lei, que inibam a participação na licitação, e admitindo-se a comprovação de aptidão através de certidões ou atestados de obras ou serviços similares de complexidade tecnológica e operacional equivalente ou superior. A atividade administrativa vincula-se à lei para que seja proporcionada a finalidade pública, afrontando a razoabilidade e a finalidade do processo de licitação a exigência de excessiva formalidade realizada pela Administração Pública, o que ofende ainda, indiretamente, os princípios da vinculação ao edital, do julgamento objetivo e da competitividade (art. 3º da Lei de Licitações). Se a impetrante tem por objeto a prestação de serviços de advocacia na área tributária, possui legitimidade para, pela via mandamental, impugnar edital de concorrência nas circunstâncias acima especificadas, que lhe impediram a participação, ainda que não tenha sido licitante. Precedente do STJ. AGRAVO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJRS, 2ª Câmara Cível, AI nº 70018006007, Rel. Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, 15-08-2007) O acórdão do TJRS, que decidiu Agravo de Instrumento nº 70018006007, versa sobre um procedimento licitatório. O Relator Adão Sérgio justifica a 46 tangibilidade do mérito administrativo pelo Poder Judiciário com o fato da Administração Pública ter de atender não apenas à lei, mas ao Direito como um todo (princípios e regras). Ele fala em aspectos "jurisdicizados" se referindo aos critérios de finalidade e razoabilidade e ao atendimento aos princípios constitucionais. Estes critérios são "jurídicos", fazem parte do Direito, e condicionam o mérito administrativo. CONCLUSÃO Diante de todo o exposto no presente trabalho, pode-se concluir a favor da possibilidade do controle jurisdicional de mérito dos atos administrativos discricionários. Baseado no conceito de juridicidade, esse trabalho parte da idéia de que todos os aspectos do ato administrativo discricionário devem observar o Direito como um todo. Ou seja, os aspectos discricionários do ato administrativo devem observar, quando não a lei (já que não estão regrados por esta), os princípios expressos e implícitos que compõem o Direito. O administrador, ao exercer o seu juízo de conveniência e oportunidade (mérito), tem obrigação de observar os princípios da moralidade, da impessoalidade, da razoabilidade, da publicidade, entre outros. Baseado nessa obrigação, o controle jurisdicional incidirá no mérito administrativo, não com o intuito de intervir no juízo de conveniência e oportunidade do administrador público, pois estes são de sua competência exclusiva, mas como meio de manter o mérito atrelado aos seus princípios condicionantes. Não só quando houver afronta à lei, mas também quando houver afronta aos princípios, não há que se falar em imunidade jurisdicional do mérito administrativo. Nesses casos, não há desrespeito ao Princípio constitucional da independência dos Poderes do Estado, presente no artigo 2º da Constituição Federal. A atividade do Poder Judiciário não se prestará a praticar o ato administrativo, muito menos a fazer o seu juízo de mérito, limitando-se a declarar a invalidade do ato, se está se caracterizar. Impõe-se à Administração a obrigação de editar novo ato, em substituição àquele que foi invalidado pelo Judiciário. 47 A liberdade de apreciação, concedida pela lei à Administração Pública, não justifica que esta pratique atos em desrespeito à moralidade, à justiça, à razoabilidade, aos direitos individuais e coletivos, entre outros, desvirtuando a sua finalidade (interesse público). Quando o administrador público faz um mau uso da discricionariedade, poder legítimo concedido pela lei, esta se torna arbitrariedade. A própria preceituação dos princípios e valores na lei, na doutrina e na jurisprudência, objetiva infringir maior controle ao uso do poder discricionário da Administração. Boa observação é a de Mauro Roberto Gomes de Mattos, que vê esse novo entendimento de mérito como um amadurecimento do ato administrativo qualitativamente (MATTOS, 2005). Todos os atos da Administração Pública sujeitam-se à Constituição. E a constitucionalização dos princípios da Administração Pública, na Constituição Federal de 1988, deixou ainda mais claro que todos os atos administrativos devem obedecer a todos os seus princípios. A obrigação do Poder Judiciário é zelar pela observância da Constituição, declarando a inconstitucionalidade dos atos administrativos que a desrespeitem. Além disso, deve-se obedecer ao Princípio constitucional da inafastabilidade da apreciação judicial, preceituado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Na verdade, é inconcebível que algum ato, de qualquer dos Poderes do Estado, goze de imunidade total de controle externo. Principalmente os atos da Administração Pública, que exerce atividades cotidianas de governo, que repercutem nos direitos individuais e coletivos. A Administração Pública como um todo deverá atender igualmente aos princípios do Direito. Nesse caso, o controle jurisdicional será o principal meio de exercer esse controle. REFERÊNCIAS BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa. Brasília, DF: Senado, 1988. 48 BRASIL, Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999. regula o processo administrativo no âmbito da administração pública federal. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, DF, 01 e fevereiro de 1999. BRASIL, Lei nº 8.429, de 2 de junho 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, CANOTILHO, J. J. 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