A TRAJETÓRIA HISTÓRICO-CULTURAL E A FORMAÇÃO DO LEITOR: UM ESTUDO SOBRE A EXPERIÊNCIA SOCIAL INFANTIL RETRATADA EM HISTÓRIAS DE VIDA Flávia Cristina Oliveira Murbach de Barros Programa de Pós-graduação em Psicologia FCL -Unesp – Assis/bolsista CNPq/ Grupo de Pesquisa “Leitura e Ensino” CNPq – UENP/FAFIJA [email protected] Encontramos comumente no âmbito das faculdades brasileiras, um grande número de alunos que possuem dificuldades em compreender os textos acadêmicos. Esses alunos encontram barreiras não somente na compreensão das leituras, mas consequentemente, na reflexão da teoria em suas práticas, (aqui se tratando da prática pedagógica). Esse mesmo problema foi percebido no curso de Letras da UENP (Universidade Estadual do Norte Pioneiro) campus – FAFIJA, Jacarezinho. Decorrente da preocupação com esse fato, durante o ano de 2005, as professoras do curso de Letras, Sonia Maria Dechandt Brochado e Vera Maria Ramos Pinto tiveram a iniciativa de estruturar o grupo de pesquisa “Leitura e Ensino”, vinculado ao CNPq, com o intuito de promover uma investigação qualitativa sobre o assunto. Nesse sentido,o objetivo principal do grupo é o de investigar as lacunas na formação do leitor adulto, tendo como foco de análise acadêmicos do 4° ano do curso de graduação em Letras. O grupo de pesquisa “Leitura e Ensino” é formado por alunos de graduação e pós-graduação do curso de letras e pedagogia. Vários projetos, sendo estes, ramificações do projeto piloto, começaram a surgir, com o objetivo de investigar os diferentes envoltórios da problemática. Minha formação acadêmica no curso de Pedagogia pautada na teoria históricocultural, cujo principal representante é Lev Semyonovich Vigostsky, a experiência como bolsista Prograd e Pibic-Cnpq durante o período da graduação na Unesp – Campus de Marília, acrescidas de minha trajetória como professora de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Superior, associada também à pesquisa em desenvolvimento no curso de mestrado em Psicologia, com o título provisório “O brincar e suas contribuições para o desenvolvimento infantil no contexto escolar: caminhos para a prática social”, ajudaram a impulsionar a pesquisa e logo se sentiu a necessidade de elaborar um projeto que analisasse a história de vida dos alunos da graduação e suas experiências sociais desde a infância. Segundo a teoria histórico-cultural somos formados através de nossas relações sociais e apropriações dos objetos da cultura em um momento histórico específico. Desde o nosso pensamento verbal, ao contrário de concepções naturalistas do desenvolvimento, somos determinados pelas relações sociais vivenciadas. O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inata, mas é determinado por um processo histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais de pensamento e fala. Uma vez admitido o caráter histórico do pensamento verbal, devemos considerá-los sujeito a todas as premissas do materialismo histórico, que são válidas para qualquer forma de comportamento histórico da sociedade humana. (VIGOTSKY, 1991, p. 44). Permeando sobre a reflexão vigotskiana, torna-se fundamental refletir sobre a importância da experiência social infantil como uma das contribuições essenciais para a formação do leitor adulto assim como par a própria formação humana. Nesse sentido, é importante ressaltar que a leitura de mundo tem aqui seu papel como antecessora à leitura da palavra, e assim se constrói uma relação recíproca, Refiro-me a que leitura de mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade daquele. Na proposta a que me referi acima, este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas, por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transforma-lo através de nossa prática consciente. (FREIRE, 1982, p. 22) O significado de leitura vai muito “além das letras” (Tema do artigo em processo de julgamento para a publicação enviado ao GEL – Grupo de Estudos Lingüísticos e Literários – Unesp – Araraquara-2006). As crianças desde muito pequenas, já começam a ler o mundo através do contato com os objetos da cultura, mediado pelo adulto. As brincadeiras, os diversos contatos com o mundo, suas experiências diversas, tem papel essencial para a construção do leitor. O brincar, atividade principal da criança, é essencial para que elas vivenciem a realidade social, construam limites, debatam e critiquem a realidade. Leontiev (1978) aponta : Chamamos atividade principal aquela em conexão com a qual ocorrem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da criança e dentro da qual se desenvolvem processos psíquicos que preparam o caminho de transição da criança para um novo e mais elevado nível de desenvolvimento. (1978, p. 122) O brincar amplia as experiências sociais das crianças. Elas adotam um tipo de atividade específica em cada período de seu desenvolvimento e de suas particularidades. É a atividade através da qual a criança mais aprende, relacionando-se com o mundo da cultura, provocando assim, mudanças em seus processos psíquicos e consequentemente sociais. Dentre as brincadeiras, as experiências diversas vividas também com os adultos, são fundamentais para a construção da formação leitora. O adulto, podendo ser pais, avós, professores ou entes mais próximos, pode proporcionar às crianças experiências com o mundo da cultura, através de diversas atividades como: a brincadeira, o desenho, a pintura, a atividade de modelar com massinhas e argila, atividades artísticas diversas, ouvir, histórias, poesias, o contato com os livros, jornais e demais materiais escritos. Tudo isso conduz à leitura de mundo, como ressalta Faria As crianças têm mostrado várias formas de leitura e várias formas de comunicação, sejam bidimensionais no papel-e-lápis, por exemplo, sejam tridimensionais com os movimentos, brincadeiras e narrativas através de engenhocas, [....] (FARIA, 2005, p. 3). Assim, a criança é conduzida a explorar diversas linguagens, o que possibilita expressar-se de diversas formas. Não devemos nos esquecer de que ouvir as crianças torna-se fundamental. Ouvi-las não apenas com os ouvidos, mas com todos os sentidos. Ouvi-la no olhar, nos gestos, na expressão, na escuta, ao que chamamos de escuta visível ou Pedagogia da escuta (Rinaldi,1999), cujo conceito passa a ser propulsor desse processo de leitura. A partir desses pressupostos, destacando a importância das experiências sociais, através do lúdico e da leitura de mundo na experiência infantil para a formação do leitor, torna-se importante para o desenvolvimento dessa pesquisa valorizar a trajetória histórico-cultural dos acadêmicos do 4° ano de Letras (UENP/FAFIJA). Assim, justifica-se como fundamental retratar, através dos relatos dos alunos, suas vivências, experiências diversas com o mundo da cultura. Focalizar o período da infância e traçar assim, uma investigação em relação à influência das experiências histórico-culturais dos alunos e sua formação leitora. Trabalhar com histórias de vida é como se os participantes desse processo estivessem doando um pedaço de si mesmos, pois são histórias vivenciadas por eles, onde envolvem sentimentos, conflitos, vivência, que fazem parte da construção da subjetividade de cada um. É um processo que exige do pesquisador delicadeza, compreensão das relações histórico-culturais dos pesquisados. Nesse tipo de trabalho de pesquisa, a memória e a cultura tornam-se elementos essenciais de análise e reflexão. Ainda em fase inicial, o projeto de pesquisa intitulado “A trajetória históricocultural e a formação do leitor: um estudo sobre a experiência social infantil retratada em histórias de vida”, pretende utilizar-se de depoimentos, narrativas pessoais dos envolvidos, pois O importante é observar, nestas narrativas pessoais, os eixos temporais que se delineiam à medida que as características ancestrais da sociedade, e especificamente aquelas relativas à comunidade, se confrontam com a realidade atual e ativam um processo de lembrança. E compreender esses relatos como as fontes que dariam início a montagem do quebra-cabeça. (SANTOS, 1998, p. 3) Dar importância às histórias de vida dos alunos do 4° ano de Letras da FAFIJA, significa acreditar na relevância de suas experiências sociais, o que nos conduz a materializar a teoria que alicerça não somente o projeto em pauta, mas também o projeto piloto do grupo de pesquisa, a teoria histórico-cultural. Nesse sentido, ao focalizar o leitor adulto, é fundamental considerar as experiências sociais dos alunos, para que já com o conhecimento da língua escrita, possa atribuir significados aos conteúdos de um texto. Para que essa compreensão da leitura seja possível, devem se considerar os mecanismos da memória e da atenção, a compreensão da fala, as relações interpessoais, as diferenças socioculturais, entre outras habilidades que adquirimos através das nossas diversas experiências. Nesse sentido, Smith ressalta a relevância da compreensão da teoria de mundo: A fundamentação da compreensão é a teoria do mundo que nós todos construímos e carregamos conosco permanentemente. Essa teoria é testada e modificada constantemente em todas as nossas interações com o mundo. É a fonte das previsões que nos possibilita encontrar sentido nos acontecimentos e na linguagem. Não poderemos encontrar sentido no mundo se a situação que enfrentamos não puder ser relacionada com a nossa teoria do mundo. (SMITH, 1999, p.80) Para que o texto seja compreendido, é importante considerar o conhecimento prévio do leitor, pois é desta forma que se consegue elaborar uma interpretação, atribuindo significados que caracterizam a compreensão. Cabe aqui refletirmos sobre o leitor que encontramos hoje, destacando nossos universitários. “Quem são esses leitores?” ou “Quem são esses ledores?” (Silva, 1998). Ler significa interpretar a realidade que nos cerca, ser crítico e autônomo diante dela, e não apenas decodificar palavras. Mesmo por que A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não seja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (BAKHTIN, 1995, p . 36) O ato de ler no sentido de compreensão, interpretação e reflexão, vai muito além das palavras que apenas passam diante dos olhos, sem sentido ou significado para o leitor. Seguindo esses pressupostos, a presente pesquisa pretende investigar a relevância da trajetória histórico-cultural dos envolvidos, sendo esta crucial para alcançarmos o objetivo proposto, ou seja, destacar a importância da experiência social infantil desses alunos como uma das contribuições essenciais para a formação do leitor adulto. Pretende-se, com o desenvolvimento do projeto, contribuir para desvendar alguns dos problemas que afetam a formação do leitor inserido no Ensino Superior, como um compromisso não somente com o grupo de pesquisa, mas com a sociedade. Considerando a teoria histórico-cultural, objetiva-se também que esta pesquisa torne-se um material de discussões, sendo possível levantar críticas que venham a enriquecer uma concepção de criança capaz, que tem voz e vez na sociedade, suas particularidades e necessidades respeitadas, considerando que o homem é produto de suas relações sociais e do contato com os objetos da cultura ao logo da história e esse processo se inicia na infância. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995. FARIA, Ana Lúcia Goulart de; MELLO, Suely Amaral de. (orgs.). Linguagens infantis: Outras formas de leitura. – Campinas, SP: Autores Associados, 2005. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados, Cortês, 1982. LEONTIEV, Alex N. O homem e a cultura. In: O Desenvolvimento do Psiquismo. Lisboa: Livros Horizontes, 1978. LUDKE, Menga. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. RINALDI, Carla. A escuta visível, in: I Taccuini, n°. 7, Maio de 1999. SILVA, Ezequiel Teodoro da. Elementos da pedagogia da leitura. São Paulo Martins Fontes, 1998. SANTOS, Fernando Sérgio Dumas dos. Histórias de vida e história da cultura. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro. 1998. V (1), p. 1-11. ISSN. 01104-5970. SMITH, Frank. Leitura significativa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. VIGOTSKY, Lev Semyonovich; LÚRIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV, Alex N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/EDUSP,1988. ______. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.