os desafios da construção da igualdade na diferença

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EDUCAÇÃO INCLUSIVA: OS DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DA
IGUALDADE NA DIFERENÇA
BONETI, Lindomar Wessler1 - PUCPR
Grupo de Trabalho - Diversidade e Inclusão
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Argumenta-se no texto que mesmo se considerando um avanço histórico a existência do
instrumento jurídico na perspectiva de se implementar a educação inclusiva, esta política
ainda se restringe ao universo do direito, numa perspectiva de concessão. Isto é, concede-se o
direito de pessoas com diferenças serem recebidas no espaço escolar, regular, mas sem ainda
grandes alterações da prática do dia a dia da escola no sentido de se considerar a criança o
sujeito do processo da apropriação do saber. Isto faz com que para o pessoal da escola a
temática educação inclusiva e, particularamente as diferenças se constitua ainda em tema
restrito à discussão, enquanto um “problema” a ser resolvido. O argumento que se constrói
no texto é o de que a essência do “problema” se encontra no conjunto das próprias regras
escolares, as quais constituem a institucionalidade da escola, as quais se expressam através
dos procedimentos escolares. Estes, os procedimentos, têm como fundamentação a
racionalidade técnica a qual se expressa nos pressupostos de uniformidade cultural, social,
física, domínio e disciplina do corpo, hábitos, o cumprimento de horário, o comportamento
social, a linguagem, a dicotomização entre o certo e o errado, etc. Com isto, a escola utiliza e
produz um saber uniforme e cobra igualmente para todos o mesmo desempenho escolar,
independetemente das particularidades individuais de cada pessoa. A construção deste
argumento no texto inicia-se pela análise da essência do que move o dia a dia da escola, os
fundamentos epistemológicos da instituição escolar, onde pode-se encontrar a explicação em
relação às dificuldade da escola no que concerne à convivência com as diferenças.
Palavras-chave: Normas de publicação. Anais de eventos. Publicação.
1
Possui graduação em Ciências Sociais (licenciatura plena) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(1982), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1987), doutorado (PhD) em
Sociologia - Universidade Laval, Québec, Canadá (1995) e pós-doutorado no Departamento de Ciências da
Educação da Universidade de Fribourg - Suíça em 2008. Atualmente atua como professor e pesquisador do
Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná; Pesquisador da Associação Internacional de Sociólogos de Língua Francesa, no Comitê de Pesquisa
"Identidade, Desigualdades e Laços Sociais".
20299
Introdução
Muito se tem discutido nos dias de hoje sobre a relação entre a escola e diferenças,
especialmente no que se refere às possibilidades e limites da presença na escola de pessoas
diferenciadas por questões físicas, cultura e de condição social. Certamente que, no Brasil, já
se deu grandes avanços no sentido de a escola vir a se constituir num espaço de acolhimento à
diversidade, especialmente no diz respeito às disposições das políticas educacionais e das
próprias instâncias burocráticas do Estado. A presença nos dias atuais da Educação Inclusiva
na escola é um exemplo este avanço. Este avanço se deve, e vem acompanhado, de uma
vontade política que, antes de tudo, tem origem no próprio contexto social, exteriorizada por
discussões e debates envolvendo o público e as organizações sociais. No entanto, o dia a dia
da escola ainda não lida com a diferenças de forma a se constituir de uma ação normal,
sugerindo ainda um certo “mal-estar” da presença no espaço escolar de pessoas diferenciadas
pela cultura, pelo físico e pelas condições sociais. Assim se questiona: quais fatores estariam
distanciando a já existente regulamentação da educação inclusiva expressa nas políticas
educacionais com a sua implementação no contexto do espaço escolar? Este texto se constitui
de um ensaio na perspectiva de responder esta questão.
Argumenta-se, neste texto que mesmo se considerando um avanço histórico
a
existência do instrumento jurídico na perspectiva de se implementar a educação inclusiva, esta
política ainda se restringe ao universo do direito, numa perspectiva de concessão. Isto é,
concede-se o direito de pessoas com diferenças serem recebidas no espaço escolar, regular,
mas sem ainda grandes alterações da prática do dia a dia da escola. Isto faz com que para o
pessal da escola a temática educação inclusiva e, particularmente as diferenças se constitua
ainda em tema restrito ao nível de discussão, como um “problema” a ser resolvido.
O argumento que se constrói neste texto é o de que a essência do “problema” se
encontra no conjunto das próprias regras escolares, as quais constitui a institucionalidade
“legal” da escola, expressas por procedimentos fundamentados em pressupostos de
uniformidade cultural, social, física, domínio e disciplina do corpo, hábitos, o cumprimento
de horário, o comportamento social, a linguagem, a dicotomização entre o certo e o errado,
etc. Com isto, a escola utiliza e produz um saber uniforme e cobra igualmente para todos o
mesmo desempenho escolar, independentemente das particularidades individuais de cada
pessoa.
Portanto, o argumento central da análise que aqui se faz é a explicação pelas
dificuldades encontradas pela escola no sentido de conviver com as diferenças pode ser
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encontradas nos próprios fundamentos epistemológicos da instituição escolar expressos no dia
a dia da escola através de suas normas, regras e valores.
Os fundamentos epistemológicos da instituição escolar
É importante lembrar, de antemão, a diferença entre a escola e a instituição escolar.
Como escola pode-se considerar até mesmo as próprias experiências de vida e aprendizados
produzidos no âmbito da construção da vida material e social. Mas a instituição escolar é
diferente, nela se faz presente as regras, as normas, e os valores institucionais, em síntese, o
que regula o dia a dia da escola. As normas, regras e valores da instituição escolar interfere
decisivamente na prática educativa e, considerando o caso analisado, na prática da educação
inclusiva.
A regulamentação do dia a dia da escola possui fundamentos epistemológicos
construídos historicamente. No caso dos dias atuais estes fundamentos epistemológicos têm
como base os fundamentos teóricos da modernidade, do pensamento moderno. A primeira
característica do pensamento moderno é a ideia da ciência, a cientificidade, a qual teria que
derivar a técnica, como meio, e a indústria, como fazer. Este se constitui no principal projeto
iluminista da busca da redenção humana. Seria de dizer que a partir deste projeto uma
sociedade regida pela Ciência, seria uma sociedade Racional e assim traria a felicidade
humana. O meio para se atingir este objetivo seria a técnica a qual produziria os instrumentos,
as máquinas. Este preceito continua vivo regendo a instituição escolar nos dias de hoje e se
manifesta principalmente através de alguns entendimentos, tais como: a) A idéia da
superioridade do homem sobre a natureza. Não seria apenas de se considerar a natureza física,
a questão ambiental, onde a técnica passou a exercer domínio no sentido de a transformar, de
fazê-la produzir em benefício do homem, mas na natureza interior do ser humano. A partir
deste preceito a escola trata a pessoa como indivíduo exigindo dela um comportamento
racional sobre os seus procedimentos, linguagem, desejos, sexualidade, etc.; b) assim como a
ciência que deriva técnica a qual deriva transformação da natureza, o conhecimento escolar
deve levar a uma evolução entendo que o aluno « normal » é aquele que evolui, que consegue
superar as etapas da vida escolar. Neste caso a seriação se faz importante como procedimento
de avaliação do desempenho do indivíduo na escola; c) Assim como as sociedades são
avaliadas entre si utilizando os elementos de « atrasados » e « desenvolvidos », o tratamento
escolar estigmatiza os indivíduos que não mostram evolução no desempenho escolar; d) o
20301
espaço escolar constrói um sentimento cultural aliando o sucesso individual, quando mostra
evolução com as tarefas escolares, de felicidade. Esta sensação de felicidade, construída no
espaço escolar graças ao sucesso com as atividades escolares, tem sabores de aventura, poder,
alegria, crescimento, transformação de si e do mundo, criando expectativas de um futuro
promissor e de sucesso individual. e) o ser moderno, é aquele que mostra sinais de sucesso e
evolução envolvendo um processo de rupturas com todas as condições históricas precedentes.
Assim cabe à escola preparar o indivíduo para “ser moderno”, para a evolução e para o
progressão. Cabe à escola cobrar dos indivíduos este desempenho, ao contrário, a partir das
regras, normas e valores da instituição escolar, ela própria, a escola, promove o estigma
considerando o indivíduo incapaz e atrasado.
Mas existe outro elemento extremamente importante derivado dos fundamentos
epistemológicos da Razão Moderna, o etnocentrismo. Isto é, a partir da construção histórica
do conhecimento científico dominante, encontrando o seu ápice na filosofia iluminista do
século XVIII, criou-se parâmetros universais de cientificidade, de verdade e de
comportamento e assim estabelecendo dificuldades de se compreender diferenciações no
desempenho escolar, no comportamento dos indivíduos, de condições físicas, sociais e
culturais.
Ou seja, existe uma tendência de alguns povos, sobretudo os que se consideram “mais
desenvolvidos”, adotarem o entendimento segundo o qual suas sociedades centralizam a
verdade em termos de costumes culturais, desenvolvimento social, desenvolvimento
econômico etc. Estas sociedades têm dificuldade de compreender como verdade as diferenças
culturais se não as suas. Segundo este tipo de concepção, a etnocêntrica, portanto, existe uma
verdade única e universal, entendida como o centro, e é a partir dela que se institui os
parâmetros de verdade, estes os quais a escola utiliza para designar o certo ou errado . O
etnocentrismo tem origem justamente da razão científica, do entendimento que a ciência é
única e universal, que a verdade científica guarda requisitos universais que a distingue como
ciência. É deste pensamento que nascem as atribuições do centro e da periferia, como
atribuição de valor de verdade, que o centro retém mais e melhor tecnologia, mais riqueza, e
mais verdade. Com isto, nasce a tendência de se atribuir modelos sociais, culturais e de
desenvolvimento social. A partir desta concepção, as necessidades dos grupos sociais
dominantes são absorvidas pelos setores pobres como parâmetros de suas próprias
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necessidades, assim como a superação das carências da população pobre é feita utilizando-se
das mesmas estratégias utilizadas pelos grupos dominantes.
Esta concepção, no decorrer da história do pensamento científico, adentra as portas da
ciência e faz dela a sua refém, de forma que nos dias atuais a universalidade e a
homogeneidade são requisitos indispensáveis para que a ciência, ela própria, se reconheça
como ciência e guarde para sempre o seu status da infalibilidade.
Garcia (1999, p. 47) explica que: “De início, é preciso considerar que, embora o termo
etnocentrismo, não constasse entre os verbetes da Enciclopédia, os elementos conceituais
importantes da concepção etnocêntrica ou de sua crítica se insinuavam, no entanto, fortemente
nos escritos próximos aos do século XVIII”.
Tratava-se, portanto, da época da construção das ideias mestras da ciência moderna
nas quais pouco a pouco infiltravam-se concepções etnocêntricas. A busca iluminista da razão
indicava como caminho que todos os homens, nos vários cantos do universo, utilizassem
princípios universalistas da ciência, a partir de uma concepção dicotômica entre o certo e o
errado no que concerne aos costumes culturais, trabalho, meio de vida, convívio social e a
própria verdade científica. Isto significa que a razão científica se impôs sobre os hábitos
culturais, sobre a emoção, o desejo, enfim, o humano.
Isto explica certa contradição que se apresenta aos olhos de quem estuda a escola. Se
de um lado a escola é entendida como um produto social e cultural, assim como o seu saber e
prática do dia a dia, por outro lado, esta mesma escola continua adotando princípios
universalistas e anti-diferencialistas. Isto é, são muitas as implicações da influência da
concepção etnocêntrica sobre a elaboração e a operacionalização das políticas públicas
educacionais, entre essas, a de maior destaque é a utilização do princípio da homogeneidade.
Este princípio se expressa na prática escolar na medida em que se utiliza o pressuposto do
anti-diferencialismo para as pessoas que chegam na escola exigindo delas comportamentos e
aprendizados uniformes. A uniformidade do conhecimento, especialmente a partir do século
XIX, com o avanço do ideário positivista associando ciência à produção econômica, tomou
uma característica ideológica e capitalista, constituindo-se, a partir de então, de fundamento
teórico utilizadas na elaboração das políticas educacionais e dos procedimentos de ensino nas
escolas.
Existe outro aspecto extremamente importante fazendo-se presente no conjunto das
normas, regras e valores da escola na modernidade: a utilidade do saber. A ideia de
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racionalidade trazida a qual fundamenta o dia a dia da escola, faz existir o preceito de que o
conhecimento não pode ser associado simplesmente à felicidade humana, mas a uma utilidade
prática. Assim, o saber é poder na medida em que é útil, mas existem diferenças na própria
concepção de utilidade. No mundo da escola a utilidade do saber se encontra muito mais no
âmbito da sua legitimação, o da comprovação. Isto porque este saber é utilizado pelo universo
objetivo da sociedade no âmbito das relações de controle e de atribuições institucionais do ser
social. Isto é, trata-se de um saber utilizado mais como comprovação (atribuindo poder à
pessoa que dele tem posse na perspectiva da construção do seu ser social) que como utilidade
prática do fazer. Mas no mundo da vida, a utilidade do saber é a sua própria legitimação a
partir da prova do saber fazer. Isto é, ambos os saberes têm base na cultura, mas são culturas
diferentes. A base da cultura escolar é a instituição, entendendo-a como um conjunto de
normas, valores, regras que fundamenta uma ação ou uma necessidade humana (como é da
construção de saberes) Por outro lado, a base do mundo da vida tem fundamento na cultura
construída a partir das práticas sociais, nas relações sociais que são construídas
historicamente, na relação com o meio físico, com as próprias relações sociais, etc. Ambas as
culturas dão forma aos saberes construídos, mas por via diferentes.
Nesta relação diferenciada entre estes dois mundos, o da escola e o do mundo a vida,
também pode se encontrar as razões de algumas dificuldades que a escola enfrenta na sua
relação com o mundo social. A maior delas é a dificuldade que a escola enfrenta no sentido de
bem gerenciar o acolhimento das diferenças sociais em termos físicos, culturais e sociais.
Esta dificuldade se explica porque a escola, fundamentada na cultua institucionalizada, parte
do pressuposto de que a verdade está nela própria, na ação do “saber saber” e se fecha para o
mundo exterior, o do saber fazer. A partir dos valores escolares existem dois mundos: o do
saber formal (racional) e o do mundo prático da vida, partindo do pressuposto de que compete
a quem chega na escola se “adequar” ela, na utilização e na absorção dos seus saberes, traços
culturais e comportamentais. Neste sentido pode-se compreender a escola como espaço de
concessão de direitos às diferenças sem, no entanto, alterar suas normas, regras e,
especialmente, os seus valores.
20304
O Ser Igual e o Ser Diferente no mundo da escola
A noção da igualdade e da diferença utilizada no dia a dia da escola se constitui de um
fundamento da instituição escolar e pode interferir significativamente na relação da escola
com as diferenças e singularidades.
A construção da noção da condição social, elaborada a partir de parâmetros
racionalistas e cientificistas de instâncias burocráticas do Estado, se materializa no meio
social, pela construção de identidades coletivas aos moldes como Manuel Castells (1999, p.
22-25) pensa, de “identidade legitimadora, introduzida pelas instituições dominantes da
sociedade, no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais
[...]”. Isto explica o fato que alguns segmentos sociais, como as classes médias e altas, mais
afinados com a racionalidade burguesa, utilizam os mesmos parâmetros de delimitação da
condição social daqueles utilizados pelas instâncias burocráticas do Estado, conforme
demonstra uma pesquisa realizada sobre a noção da condição social (BONETI, 2004). Além
desta “identidade legitimadora” da qual se faz referência acima, pode-se considerar que os
critérios racionalistas e etnocêntricos utilizados por alguns segmentos sociais na delimitação
da condição social, são iguais aqueles utilizados pelas instâncias burocráticas do Estado tendo
origem também na construção histórica de uma racionalidade capitalista, muito própria do
mundo Ocidental, fundamentada na razão instrumental.
Na prática, no meio social, existe uma mistura de imaginário e realidade na construção
da noção da desigualdade normalmente envolvendo diferentes conceitos que se entrelaçam,
como é o caso do da condição social com o da diferença. Pensar sobre desigualdade implica
pensar a condição social; pensar sobre a condição social implica pensar sobre diferença. A
diferença aparece sempre como uma espécie de parâmetro de determinação da condição. A
diferença explicita aquela condição social, aquele comportamento, aquele modo de produção
da vida etc. que foge ao padrão convencional etnocêntrico. Portanto, a noção de diferença, é
vista de uma forma positiva enquanto que a noção da desigualdade aparece sempre com
conotação negativa. Mas a positividade da diferença acaba se restringindo ao discurso de
forma que na realização prática das relações sociais, especialmente as da escola, a diferença
acaba sendo submergida pela negatividade da desigualdade.
A negatividade imbuída na noção da desigualdade nasce dos parâmetros utilizados
para determinar uma condição social julgada “digna” para o sujeito social. Neste caso, a
desigualdade estaria associada a uma condição social dita inferior, o desigual seria o pobre e
20305
não o rico, o diferente seria o pobre e não o rico, mesmo que o pobre se apresente na maioria.
A diferença entre um e outro sujeito social acaba sendo associada, tanto pelo imaginário
social quanto pelas instâncias burocráticas do Estado, com o ser do sujeito em lugar do estar.
Isto é, deixa de ser uma condição passageira do sujeito social para se constituir numa
condição perene, ou até numa qualidade ou numa racionalidade.
Esta construção social da noção da desigualdade, faz dos iguais os desiguais. Por
exemplo, pessoas humildes que se vestem iguais, que igualmente todos têm aperto no
orçamento, com uma condição social similar, tornam-se diferentes se comparar com uma
pessoa que tem hábitos luxuosos de consumo, que se veste diferentemente, esta pessoa tornase ela sozinha a igual, porque o padrão dela é o utilizado pelo conjunto social como
referencial para se estabelecer parâmetros de definição da condição social, pelo fato de ser
acolhido pela racionalidade burguesa. As demais pessoas, mesmo em maioria, se tornam,
perante ela, os desiguais. Por quê? Porque a igualdade não se estabelece pela maioria, mas a
partir do conceito do padrão, que na nossa sociedade capitalista, é imposta pelas classes
dominantes. O igual assume uma posição de comando, para não dizer de dominador ou no
mínimo de superioridade, perante o diferente.
Em outras palavras, a desigualdade, além de ter origem nas relações da vida real,
estabelece parâmetros de delimitação da condição social envolvendo relações de dominação,
que faz florescer ainda mais a desigualdade. Portanto, existe uma relação de dominação até
mesmo na utilização dos parâmetros para delimitar as condições sociais. Estes parâmetros
partem de critérios valorativos envolvendo habilidades, bens reais, culturais e simbólicos
normalmente em poder de segmentos sociais dominantes.
Trata-se portanto de uma noção de igualdade, desigualdade e diferença assentada
sobre os atributos individuais, físicos, culturais, sociais, similares ao padrão dominante e,
especialmente, que mostrem capacidades individuais de evolução.
Os Desafios da Inclusão
A institucionalização da educação inclusiva representa, sem dúvida, um marco
histórico no sentido da construção da autonomia através da apropriação do saber no âmbito
das singularidades sociais. No entanto, é preciso considerar que o conceito “inclusão” traz
significados nada convenientes no que se refere à meta da educação inclusiva, o da construção
da autonomia na apropriação do saber pelas pessoas com diferenças. O que pode se constituir
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em mais um desafio da educação inclusiva, a superação da sua própria noção original. E esta
inconveniência da noção de Inclusão pode se fazer presente na prática do dia a dia da escola
ao se considerar a educação inclusiva um mero ato mecânico de inserção do Fora para Dentro.
Considera-se que a expressão incluir minimiza a idéia da promoção do acesso aos bens e
saberes socialmente construídos e fortalece a idéia da concessão, jogando as pessoas para o
campo da passividade retirando delas o caráter de sujeito. Para compreender esta armadilha
contida no conceito de inclusão social é preciso começar analisando a palavra-mão, a
exclusão social.
Falar em termos de classes e de desigualdades, segundo Robert Castel (2006), é
referir-se à concepção clássica da sociologia, que prevaleceu até meados da década de 70. De
acordo com esta concepção, o coração da questão social é o conflito que opõe grupos sociais
homogêneos em luta pela repartição dos benefícios do crescimento. A noção da exclusão
social aparece mais tardiamente, com a crise da representação da questão social a partir da
classe e da desigualdade social. Mas o aparecimento da noção da exclusão social não
significou, necessariamente, a substituição da classe social e da desigualdade como
representação da questão social.
Isto é, a noção da exclusão social aparece quando, no contexto social, tornou-se
impossível a formalização do vínculo com a produção pela maioria da população, como
outrora, quando se permitia a existência de grupos sociais homogêneos, como é o caso dos
das classes sociais. Assim, a noção da exclusão social aparece exatamente no momento em
que o sistema econômico quebra esta homogeneidade, impondo um processo de
individualização. Neste caso os “excluídos”, segundo Robert Castel (2006), não constituem, a
bem da verdade, de um grupo homogêneo. São mais precisamente coleções de indivíduos
separados de seus pertencimentos coletivos, entregues a si próprios, e que acumulam a maior
parte das desvantagens sociais: pobreza, falta de trabalho, sociabilidade restrita, condições
precárias de moradia, grande exposição a todos os riscos de existência etc. Portanto, ainda
para o citado autor (2006), falar em exclusão social, refere-se à inquietação geral diante da
degradação das estruturas da sociedade salarial, sublinhando-se a necessidade de se ocupar
das vítimas desta transformação. Portanto, para um bom entendimento, não se trata de
considerar a exclusão social como uma categoria de análise, assim como é a da classe social, e
sim de uma problemática social.
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Esta interpretação atribuída à exclusão social exposta acima é atual e cultuada pela
academia francesa, em especial nas obras de Robert Castel (2006 e 1997) e Serge Paugam
1999). Mas não foi sempre assim, o percurso da noção da exclusão social passou por uma
trajetória histórica tortuosa motivada por vários fatores. Em primeiro lugar, em decorrência da
origem positivista da noção da exclusão social, cujo método da busca da compreensão da
realidade social, privilegia o olhar dual e estático das relações sociais. Assim, excluídas
seriam as pessoas que estivessem fora do social, como os leprosos, os marginais, os doentes
mentais etc. Trata-se de uma visão funcional de caracterizar um contingente populacional que
estaria fora, à margem da sociedade, conforme se expressou René Lenoir, considerado o
criador desta noção, no livro L´Exclus, publicado em 1974. Em segundo lugar, a própria
origem positivista da noção de exclusão criou entraves na utilização desta noção na academia,
em especial na brasileira, pela incompatibilidade do pressuposto de sociedade que esta noção
trazia de sua origem com os estudos realizados pela academia crítica, especialmente a
marxista, utilizando-se o referencial de classe. Em terceiro lugar, a trajetória histórica desta
noção determinou o aparecimento de uma confusão metodológica a partir do entendimento de
que a noção da exclusão social se constituísse de uma categoria de análise, assim como o de
classe social. A partir de tal entendimento, seria incompatível falar ao mesmo tempo de classe
e de exclusão social.
Assim, é possível se falar ainda em exclusão social, sobretudo se considerar a
caminhada já realizada deste conceito na academia adotando a significação dada pelos autores
acima referidos. Neste caso, não significa incompatibilidade associar exclusão social,
enquanto problemática social, e classe social, enquanto categoria de análise.
Mas com a noção de inclusão é diferente, especialmente quando se refere a programas
sociais e educativos de promoção do acesso aos bens e saberes socialmente construídos,
apresentando maiores complicadores. Além de guardar consigo a positivação do significado
original da exclusão, não se pode dizer que esta palavra se constitua de uma noção ou de um
conceito. Trata-se de uma positivação em relação a uma problemática social, a da exclusão,
segundo o entendimento original já considerado. Portanto, é mais um discurso que um
conceito. Alem desta pobre origem, agregou, durante a sua pequena história de vida, antigos
ingredientes da política. O entendimento do social a partir de uma concepção dual do dentro e
do fora já foi utilizada pelos contratualistas, em particular por Hobbes e Rousseau, fornecendo
bases à sociologia política conservadora e ao direito. No seio desta concepção, umas das
20308
noções que nasceu e persiste até nos nossos dias é a noção de cidadania. A noção de cidadania
que persiste nos dias atuais, e que conserva uma proximidade com a noção do ser incluído/a, é
aquela associada aos direitos constitucionais. Em outras palavras, o entendimento do social a
partir de uma concepção do dentro e do fora, pode ter origem, antes de tudo, da noção de
cidadania, ou de cidadão, a pessoa que estivesse “incluída” numa sociedade racional, numa
sociedade de direito, numa sociedade de Estado (sociedade contratual). Com o advento da
sociedade industrial e a complexidade inerente à urbanização, avolumou-se a dependência da
sociedade civil frente às políticas sociais do Estado, quando esta interpretação dual de
sociedade, entre os “incluídos” no contrato social e os “excluídos” dele, se ampliou ainda
mais.
Nesta perspectiva a pessoa “incluída” seria a pessoa juridicamente cidadã, isto é, com
direitos e deveres frente ao contrato social, com direitos e deveres de votar e ser votado e
usufruir dos direitos sociais básicos. Pode-se dizer que esta concepção de cidadania restringe
o indivíduo a uma posição passiva na sociedade, isto porque garante-se a participação do
indivíduo por vias formais, na medida em que este indivíduo é “incluído” formalmente,
juridicamente, como cidadão que vota, que tem opinião, que produz. Mas este entendimento
de cidadania não atribui qualificativo de cidadania a uma pessoa que não vota, que não tem
trabalho, que não opina. Utilizando-se um entendimento do social como um todo, necessário
se faz considerar cidadã também a pessoa pedinte de rua, aquela que não vota, que não
trabalha e não opina formalmente. É preciso considerar que este tipo de população tem
participação sim na sociedade, porque consome e a sua simples presença se constitui de
participação política. A participação política destas pessoas se faz, exatamente pela
exteriorização dos conflitos e problemas sociais.
Este conceito dual e jurídico de cidadania não apenas subsidiou o aparecimento do
conceito de “inclusão” como estando dentro, mas também se constitui de objetivos do
discurso da “educação inclusiva”. Isto é, a partir de uma concepção conservadora de
cidadania, atribui-se o “resgate à cidadania” a um procedimento burocrático de matrícula, por
exemplo.
Em síntese, o conceito de inclusão carrega consigo dois pesos desfavoráveis: O
primeiro deles diz respeito à sua herança teórica e metodológica utilizada para a sua
formulação, o da dicotomização do dentro e do fora, coisa que a sua palavra-mãe, a exclusão,
já superou ou, no mínimo, está em processo conforme visto em páginas anteriores neste
20309
trabalho. O segundo diz respeito à agregação de ingredientes conservadores da sociologia
política, associando a inclusão à cidadania, enquanto condição de estar incluída no “contrato”
social e assim, usufruir de direitos. Ambas as situações fazem com que a palavra inclusão
assuma uma significação da existência de um único projeto político de sociedade, o da classe
dominante, reservando-se a esta classe o monopólio do controle do acesso aos serviços
públicos, aos bens sociais, aos saberes, aos conhecimentos tecnológicos, à cultura etc.
Considerações Finais
A educação inclusiva se apresenta nos dias atuais um marco histórico das políticas
educacionais, proporcionando uma nova ação educativa, a da construção da igualdade na
diferença através da ação educativa, avançado do mero cuidado à autonomia, promovendo a
democratização do acesso e produçao do saber independentemente da condição física,
intelectual, social e cultural. Alguns desafios se apresentam resultantes do próprio processo.
Um dos desafios é fazer com que a implementação desta política educacional avance
para além de uma mera concessão. Isto é, concede-se o direito de pessoas com diferenças
serem recebidas no espaço escolar, regular, mas sem ainda grandes alterações da prática do
dia a dia da escola na perspectiva da construção da autonomia e de um processo educativo
construído conjuntamente independentemente da condição intelectual, física, social ou
cultural.
Outro desafio se encotra na necessidade de se rediscutir o próprio arcabouço
institucional da escola, suas regras, normas e valores acentados razão moderna, ou seja, na
racionalidade técnica. Isto faz com que o ato educativo não tenha necessariamente a
finalidade da construção do Sujeito com autonomia, mas preza-se pela funcionaliade, pela
progressão. O desafio da educação inclusiva de romper com este preceito é ainda maior nos
dias de hoje no contexto da dinâmica da globalização da cultura e das relações econômicas,
quando traços ideológicos que atendem a uma racionalidade técnica e instrumental, se impõe
no contexto social vedando assim a possibilidade da ação educativa se constituir de um
elemneto de construção do Sujeito autônomo. A ciência se desenvolve de forma conjugada à
expansão das atividades econômicas, e neste caso o progresso técnico assume um caráter
ideológico de racionalidade. O caráter ideológico do progresso técnico é perfeitamente
perceptível ao se associar o conceito de racionalidade à forma capitalista de atividade
econômica. Isto leva ao pressuposto de que o conhecimento construído na escola deva se
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constituir de um elemento funcional de fazer, mais que o pensar. Este preceito deve ser
superado para na perspectia de se construir uma verdadeira Educação Inclusiva.
REFERÊNCIAS
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