a infancia e juventude em foco um historico sobre o estado e as

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A INFÂNCIA E JUVENTUDE EM FOCO: UM HISTÓRICO SOBRE O ESTADO E
AS POLÍTICAS PARA CRIANÇA E O ADOLESCENTE
Jaqueliny Marchi Bortoli 1
Izaque Pereira de Souza 2
Eixo 01: A interface na rede de proteção da criança e do adolescente
RESUMO: O Estado assume diversas configurações no decorrer do processo
histórico com o intuito de atender as necessidades do sistema capitalista e dar
respostas ao enfrentamento “questão social”, contendo assim uma grande parte da
população, buscando manter uma determinada “ordem social”.Behring e Boschetti
(2009) retratam elementos fundamentais do liberalismo que permitem a
compreensão da reduzida intervenção do Estado no que diz respeito às
políticas sociais, quais sejam: predomínio do individualismo, o bem-estar
individual sobrepondo- se ao bem-estar coletivo, predomínio da liberdade e da
competitividade, a naturalização da miséria, o predomínio da lei da necessidade, a
manutenção de um Estado mínimo. No Brasil, consideradas as particularidades de
um capitalismo de desenvolvimento tardio, a formatação das políticas sociais
tiveram o sentido de atender a outros interesses, em detrimento daqueles que
envolvem a grande maioria da população, o que reflete diretamente no acesso e
garantia dos direitos sociais. No presente artigo nos propomos trazer elementos que
tratam dessas questões, voltando nosso olhar para as políticas que tratam, mais
especificamente da criança e do adolescente e das evoluções obtidas nesta esfera.
Palavras-chave: Criança e adolescente. Políticas Sociais. Estatuto da Criança e do
Adolescente.
INTRODUÇÃO
Para que possamos ter uma compreensão real daquilo que vivenciamos hoje
é imprescindível que busquemos entender qual tem sido o papel do Estado no
contexto social no qual estamos inseridos. Somente a partir desta análise é que o
olhar sobre as políticas públicas de enfrentamento as expressões da “questão
social” podem se dar de maneira sistêmica e ampliada.
O presente artigo, parte inicial de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)
se propõe a traçar esse panorama inicial: analisar o Estado sob a perspectiva
1
Academica de Serviço Social pelas Faculdades Itecne/Cascavel.E-mail: jack_7490 @hotmail.com.
Graduado em Direito pela Univel/Cascavel (2003). Especialista em Educação pela Unioeste (2009).
Mestre em Educação e Políticas Sociais pela Unioeste (2012). Professor de Graduação e Pós
Graduação nas Faculdades Itecnes de Cascavel. Membro do Grupo de Pesquisa em Politicas Sociais
(GEPPES) e Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos para Criança e Adolescente (GEPDDICA).
Membro da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS). Lider do
Nucleo de Pesquisas em Diversidade Etnicorracial e de Orientação Sexual NUPEDI/ITECNE). E-mail:
[email protected]. Telefone: (45) 9143 0105.
2
ideológica do modo de produção vigente para que seja possível enxergarmos de que
maneira as políticas públicas são tecidas.
Para tanto, dividimos o presente trabalho em dois títulos. No primeiro deles
buscaremos tratar da maneira como o Estado se organiza para responder às
demandas trazidas pelo modo de produção. No segundo, mais próximos de nosso
objeto de pesquisa, trataremos das políticas voltadas à criança e ao adolescente
neste espaço em que novas demandas vão surgindo e que precisam ser atendidas.
Neste momento nosso propósito é trazer elementos que permitam a reflexão
tanto daqueles que se propuserem à leitura desses escritos quanto nossas, na
continuidade de nossa pesquisa. Entendemos que não há como tratar (e enfrentar)
quesitos ideológicos postos se não compreendermos de onde eles vieram e, por
este motivo, tal resgate se faz de extrema importância.
1 A POLÍTICA SOCIAL COMO RESPOSTA ÀS EXPRESSÕES DA “QUESTÃO
SOCIAL”
O Estado nas suas diversas configurações, enquanto responsável por regular
e manter o sistema capitalista precisa dar respostas as expressões da “questão
social”, e para tanto cria mecanismos que correspondam as necessidades do
capitalismo.
Segundo Behring e Boschetti (2009) para pensarmos o surgimento da política
social nas condições brasileiras é preciso caracterizar a formação do capitalismo
entre nós. Com o intuito de manter a ordem social o Estado utiliza-se de meios
muitas vezes repressivos, para conter os problemas sociais que “ameaçam” os
interesses capitalistas – assumindo assim uma roupagem de defensor do interesse
geral.
Nogueira (1998) retrata que no final dos anos de 1920 a economia brasileira
começa a demonstrar sinais de esgotamento em seu sistema oligárquico exportador.
Com isso, surge a necessidade de reajustar o sistema econômico centrado no
compromisso de industrializar o país. Na década de 1930 inicia-se o processo da
emergência da industrialização brasileira - que surge como alternativa para a crise
agrária que se instaurava. É nesse contexto que a “questão social” ganha evidência.
[...] a industrialização, acompanhada da urbanização, constitui o processo
desencadeador da questão social [...] a pobreza resultante desse processo
não constitui em si a questão social, como é comumente entendido, e nem
construiria em nenhum outro momento histórico. Ela foi e é a pré condição
estrutural da questão social que, para ser explicada como tal, precisou ser
politicamente problematizada por atores sociais dotados de poder de
pressão e capacidade de ameaçar a coesão do sistema. Sem essa
problematização a pobreza, o desemprego, a exclusão social, mesmo
produzindo efeitos delatérios e devastadores sobre a humanidade, não
constituirão a questão social na sua inteireza (PEREIRA, 2003, p.43).
Começa a surgir uma pequena burguesia industrial – vinculada a burguesia
agrária já existente. É relevante pontuar que a partir do início do século XX a
população operária, composta essencialmente por imigrantes que trazia consigo
experiências dos movimentos socialistas europeus iniciaram o processo de
formação dos primeiros sindicatos de trabalhadores brasileiros que em 1907 foi
reconhecido o direito a organização sindical (BEHRING; BOSCHETTI, 2009).
Estes operários fabris começam a reivindicar seus direitos enquanto
trabalhadores
assalariados
através
de
mobilizações
populares,
greves,
manifestações que resultaram nas primeiras iniciativas de legislação voltadas para o
mundo do trabalho. Em 1919 foi criada a Lei do Acidente de Trabalho que
responsabilizava as indústrias pelos acidentes dos operários. Anos depois em 1923
a Lei Eloy Chaves dava início as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) que
resultaram no início da Previdência Social no Brasil (BEHRING; BOSCHETTI, 2009).
As políticas sociais ora são vistas como mecanismos de manutenção da
força de trabalho, ora como conquistas dos trabalhadores, ora como
arranjos do bloco no poder ou bloco governante, ora como doação das
elites dominantes, ora como instrumento de garantia do aumento da riqueza
ou dos direitos do cidadão (FALEIROS, 2004, p. 8).
Para este autor, o Estado é uma relação social, um campo de batalha, onde
as diferentes frações da burguesia se confrontam e conciliam em certos interesses
da classe dominada. É a partir de 1930 que o Estado brasileiro passa a intervir de
forma mais direta na economia. De acordo com Nogueira (1998), o Estado assumiu
não apenas a função de mantenedor da ordem capitalista, como também de
empreendedor, criando empresas estatais de ferro e de aço e posteriormente de
petróleo.
O Estado assume paulatinamente uma organização corporativa,
canalizando para a sua órbita os interesses divergentes que emergem das
contradições entre as diferentes frações dominantes e as reivindicações
populares, para, em nome da harmonia social e desenvolvimento, da
colaboração entre as classes, repolitizá-las, no sentido de transformar num
poderoso instrumento de expansão e acumulação capitalista (IAMAMOTO,
2000, p.151).
Dessa forma, as resposta do Estado aos problemas sociais desde sempre
buscam favorecer a acumulação capitalista. Para Vieira (1995) o período de 1930 a
1945 foi marcado pela mobilização controlada, por uma política econômica de
caráter nacionalista e por uma política social de natureza trabalhista. Contudo, não
houve neste período qualquer preocupação que chegasse perto de atingir a
essência da política social, uma vez que as decisões eram tomadas de maneira a
conter as questões urgentes.
Vemos no discurso de Vargas chefe do governo também no período de 1950
a 1954, a ideia da colaboração entre patrões e empregados para apresentar suas
políticas sociais. Segundo ele, tais políticas viriam a diminuir as questões, as
disputas e conflitos entre empregadores e empregados pela garantia de uma
“proteção social” em caso de desemprego que visava reduzir os conflitos entre as
classes sociais, agudizados pelas lutas entre as organização de trabalhadores e
patrões (FALEIROS, 2004).
Já no governo de Juscelino Kubitschek nos anos de 1955 a 1960 o foco foi o
desenvolvimento para reforçar a colaboração entre povo e governo, no sentido de
ampliar o entrosamento entre Estado e massas. O discurso não trazia na fala as
classes sociais, mas sim gente pobre e humilde de um lado e prósperos, de outro.
Houve uma extrema valorização da política econômica e um esquecimento da
política social. De acordo com Vieira (2005, p.127), “[...] as metas econômicas do
governo federal não só conviveram com precárias condições da maioria da
população brasileira, como ainda
permitiram
ocultá-las,
através
da febre
desenvolvimentista”.
Faleiros (2004, p.14-15) aponta que “[...] nesse discurso, a sociedade aparece
dividida entre fracos e fortes, pobres e ricos, favorecidos e desfavorecidos pela
sorte, encobrindo-se as divisões mais profundas entre exploradores e explorados,
dominadores e dominados”. As fragilidades humanas são postas como função da
própria natureza e não como oriundas das condições sociais em que os indivíduos
são submetidos.
Não é o fato de ser velho ou criança, acidentado ou doente que implica
proteção, mas a situação de trabalhador, de operário, de camponês. Porém,
no discurso oficial, as políticas aparecem como proteção a determinas as
categorias que seriam mais frágeis individualmente (FALEIROS, 2004,
p.15).
O fato de saber se as políticas sociais implicam direitos e elementos de justiça
ou não, ultrapassa os limites de suas definições. “Abandonada a totalidade do
humano, desvinculados o singular, o particular e o universal, tanto os direitos
quantos os elementos de justiça se equivalem, se tornam relativos” (VIEIRA, 2007,
p.13).
Nos governos de Jânio Quadros e João Goulart também não houve
alterações no campo das políticas sociais. Com os riscos provocados pelos
movimentos populares em relação ao capital internacional aplicado no país, ocorreu
o golpe militar em 1964, como forma de conter tais movimentos.
Para realizar uma rápida acumulação, o regime pôs em prática uma política
econômica voltada para a produção de bens de consumo duráveis,
favoreceu as grandes empresas nacionais e estrangeiras, capitalizou e
privatizou a economia, reduziu salários e estimulou o inchaço do sistema
financeiro (NOGUEIRA, 1998, p.103).
Segundo Faleiros (apud BEHRING; BOSCHETTI, 2009, p.136) “No contexto
de perda das liberdades democráticas, da censura, prisão e tortura para as vozes
dissonantes, o bloco militar-técnicocrático-empresarial buscou adesão e legitimidade
por meio da expansão e modernização de políticas sociais”. Neste período ocorreu a
institucionalização da Previdência Social com a criação do Instituto Nacional de
Previdência Social (INPS); o Banco Nacional de Habitação; a Fundação do Bem
Estar do Menor (FUNABEM); a Legião Brasileira de Assistência (LBA).
Instaurou-se uma política de controle e desmobilização da população mais
pobre, mantida sob a repressão do governo. Para Couto (2008), o período da
ditadura foi perverso no que diz respeito a constituição de uma cultura baseada nos
direitos, com uma política centralizadora e autoritária, com o cerceamento da
participação popular no âmbito do sistema de proteção social.
Na década de 1970 o clima era essencialmente de insatisfação popular e o
debate sobre a questão social tomou força. Os movimentos da sociedade civil
começaram a se reorganizar e lutar pela democratização do país, por direitos sociais
e por políticas sociais. O governo ditatorial se mantinha com medidas de cunho
autoritário e as lutas se estenderam até a década de 1980.
[...] questão social não é senão, as expressões do processo de formação e
desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da
sociedade, exigindo o seu reconhecimento como classe, por parte do
empresariado e do Estado. É a manifestação no cotidiano da vida social, da
contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa exigir outros
tipos de intervenção mais além da caridade e da repressão (IAMAMOTO,
2000, p.77).
As políticas sociais surgem então, como mecanismo do Estado para atender
minimamente as exigências da classe dominada, que passa a exigir ser reconhecida
e atendida pelos direitos sociais. “Esse reconhecimento dá origem a uma ampla
esfera de direitos sociais públicos atinentes ao trabalho consubstanciados em
serviços e políticas sociais, o que, no países centrais expressou-se no Estado
Social” (IAMAMOTO, 2001, p47). A questão social resulta na produção da riqueza
pelos trabalhadores e apropriação pelo capitalista.
Em 1980 o Brasil estava com grandes dificuldades decorrentes da alta
concentração de renda e o consequente agravamento da questão social, havia um
forte movimento da população que lutava pelas eleições diretas para a Presidência
da República que culminou na eleição direta. Ao mesmo tempo, um tempo pródigo
em movimentos sociais e em participação da sociedade civil para a construção da
nova Constituição (COUTO, 2008).
A Constituição de 1988 foi o marco legal das mudanças na política social
brasileira, se caracterizou pelo caráter de proteção aos que se encontravam fora do
mercado de trabalho. “[...] ainda que também sejam lembrados como período de
conquistas democráticas em função das lutas sociais e da Constituição de 1988”
(BEHRING; BOSCHETTI, 2009, p.138).
Com o advento da década de 1990 e após o impechmant de Collor, o Brasil
no governo de Fernando Henrique Cardoso sob a orientação do Banco Mundial e do
Fundo Monetário Internacional passa por reformadas ancoradas na necessidade de
limitação do Estado, na qual o interesse público não pode ser confundido com o
interesse do próprio Estado. O projeto de reforma colocou em prática a lógica do
capital ao privatizar bens públicos e transferi-lo para a iniciativa privada com todas
as concessões possíveis, passando a assumir apenas o papel de regulamentador,
fiscalizador e fomentador das políticas públicas e não o responsável por sua
execução (BATISTA, 1999).
Na década de 1990 as lutas sociais tinham por objetivo a efetivação dos
direitos consagrados na CF 88. Foi um tempo de viver o paradoxo de implementar
políticas sociais de caráter universalizante em um contexto de ajuste econômico
restrito. Neste período houve uma espécie de reformatação do Estado brasileiro
para adaptação passiva à lógica do capital (BEHRING; BOSCHETTI, 2009).
Em 2002 chega à presidência do país um líder operário e sindical,
representante do Partido dos Trabalhadores (PT). O governo Lula no campo social,
enfatizou a erradicação da fome com a implementação do Programa Fome Zero que
buscou articulação com as demais políticas sociais. Outra ação que ganhou
destaque foi a unificação dos programas de transferência de renda no Programa
Bolsa Família que acarretou em uma abrangência de quase 100% dos municípios
brasileiros (MARQUES; MENDES 2007).
“[...] as estratégias – combate a fome e à miséria e os programas de
transferência de renda – têm constituído o componente central do modelo
de política social brasileiro no século XXI e que podem contribuir para o
fortalecimento do sistema de proteção social no Brasil” (SILVA; YAZBEK; DI
GIOVANI, 2004, p.217).
Contudo, não aconteceu a desapropriação do modelo neoliberal conforme foi
prometido por este governo na campanha política eleitoral – o que gerou
descontentamento em grande parte da população. No Brasil consideradas as
particularidades de um capitalismo de desenvolvimento tardio, a formatação das
políticas sociais tiveram o intuito de dar respostas as diversas expressões da
“questão social” – pauperismo, violência, desigualdades sociais, fome, entre outras –
no sentido de atender aos interesses do capitalismo em detrimento daqueles que
envolvem a grande maioria da população.
A ênfase é dada quando “[..] as formas de luta dos pobres podem ser
violentas e expressar-se por assaltos” (FALEIROS, 2004, p.71). Acontece que o que
antes é invisível ganhe rapidamente visibilidade porque “fere” a tal prezada ordem
social, fazendo com que o governo não se descuide da manutenção imediata dos
pobres, principalmente nos momentos de grande tensão e crises – com o aumento
dos desempregados é preciso por vezes, acionar a repressão policial para conter as
insatisfações da classe explorada, evento que acaba se reproduzindo da mesma
forma na esfera das políticas voltadas para a criança e o adolescente.
2 AS POLÍTICAS PARA INFÂNCIA E JUVENTUDE: UM RESGATE HISTÓRICO
Para alcançarmos uma compreensão de como se estabeleceu as políticas
voltadas para as crianças e os adolescentes é preciso resgatar historicamente as
medidas que foram sendo tomadas e as legislações estabelecidas no intuito de
garantir os direitos deste público. Para tanto, será necessário contextualizar os
avanços políticos que tornaram possível a superação de práticas meramente
repressivas, imbuídas de ações desumanas que foram aos poucos evoluindo e
alcançando o entendimento de que as crianças são sujeitos detentores de direitos.
O período colonial foi marcado pelas tentativas de catequização dos índios,
com vistas a domestificação deste povo para que pudessem servir de mão de obra
escrava para os europeus. Segundo Rizzini e Pilotti (2011), as crianças
catequizadas exerciam forte influência na conversão dos adultos às condições que
eram impostas pela coroa portuguesa. No entanto, os indígenas não eram
facilmente subordinados ao trabalho sistemático o que gerava constantes confrontos
armados com os colonizadores, trazendo mortes para ambos os lados.
Mediante as lutas travadas pelas terras, a dizimação indígena, a escravidão
negra, o abandono de crianças se tornou uma prática frequente no Brasil, os
menores desassistidos eram lançados nas ruas à mercê da própria sorte. Outros
fatores que ocasionavam o abandono de crianças eram a pobreza e os filhos
nascidos de relações extraconjugais, os quais eram deixados em locais públicos
como Igrejas e portas das casas.
Faleiros (2005) retrata que a criança escrava não era objeto de proteção por
parte da sociedade. A reprodução escrava negra era considerada desfavorável a
economia, uma vez que o escravo adulto com um ano de trabalho pagava ao dono o
seu custo e a mãe escrava logo após o parto era obrigada a continuar trabalhando,
não podendo cuidar do seu filho. Com o crescimento das metrópoles portuárias da
época, Salvador e Rio de Janeiro passou-se a observar um grande número de
bebês que eram abandonados ao relento e a grande maioria não sobrevivia.
Em 1726 foi criada a primeira Roda dos expostos, implantada pela Santa
Casa de Misericórdia – um cilindro giratório que permitia que a criança fosse
colocada da rua para dentro da instituição, sem identificar a pessoa que havia
abandonado. Estas eram mantidas através de esmolas e pela nobreza, sendo um
sistema que perdurou por dois séculos devido a incapacidade governamental de
cumprir com suas obrigações e repassar, em troca de alguns benefícios, esta função
a assistência religiosa (RIZZINI;PILOTTI, 2011).
Com o inicio do século XIX, logo após a Proclamação da Independência
ocorreram algumas alterações no cenário assistencial brasileiro com a diversificação
das instituições de atendimento e a promulgação do Código penal de 1830 que
estabelecia:
Artigo 10. Também não se julgarão criminosos: § 1º Os menores de
quatorze anos.[...] Artigo 13. Se provar que os menores de quatorze anos,
que tiverem cometido crimes obraram com discernimento, deverão ser
recolhidos às casas de correção, pelo tempo que ao juiz parecer, com tanto
que o recolhimento não exceda a idade de dezessete anos. (SOARES,
2008, s.p).
Passou a vigorar o princípio do discernimento para se imputar ou não a
conduta criminosa ao menor de 14 anos de idade. Essa questão era decidida pelo
juiz do caso. Estas crianças eram recolhidas e encaminhadas a realizarem trabalhos
precoces e explorados para ressarcirem os gastos do Estado com a sua criação.
No decorrer do século XIX os médicos brasileiros demonstraram uma nítida
preocupação com a infância, devido ao alto índice de mortalidade infantil nos asilos.
Institui-se a Puericultura, uma especialidade destinada a cuidar da infância,
atentando para as condições higiênicas das instituições – este período ficou
conhecido como filantrópico-higienista (RIZZINI, 1997).
A filantropia distingue-se da caridade, pelos seus métodos, considerados
científicos, por esperar resultados concretos e imediatos, como o bom
encaminhamento dos desviantes à vida social, tornando-os cidadãos úteis e
independentes da caridade alheia (RIZZINI; PILOTTI, 2011, p.22).
Mesmo com o Código Penal de 1830 que previa a separação das crianças
menores de 14 anos dos adultos essa prática ainda não havia sido abolida. As
crianças órfãs eram presas juntamente com os adultos, essa separação só se deu
após a mobilização da opinião pública, quando alguns nobres senhores visitaram a
Casa de Detenção da Capital e ficaram espantados com a situação que viram.
(RIZZINI, 1995).
Crescia cada vez mais o número de crianças nas ruas e nos asilos, as
condições de extrema pobreza começaram a refletir na ordem social, o termo
“menor” surge referindo-se a criança em risco social e normalmente acompanhada
de outro adjetivo como: delinquente, desvalido, vicioso, etc. Torna-se, portanto,
necessária a intervenção do Estado que se posicionava no intuito de educar e
corrigir, a fim de que se tornassem cidadãos úteis e produtivos, tudo em nome da
paz social.
A mentalidade repressora começa a ceder espaço para a concepção de
reeducação, de tratamento na assistência ao menor. Verifica-se o
surgimento de um novo modelo de assistência à infância, fundada não mais
somente nas palavras de fé, mas também na ciência, basicamente na
médica, jurídica e pedagógica (PEREIRA apud RIZZINI, 2008, p.99 – 100).
Com o advento do século XX ficou urgente a aprovação de uma legislação
voltada especificamente para o menor de idade. E que o Estado assumisse a
responsabilidade na proteção e defesa dos menores desamparados. Foi publicado
um artigo denominado a Nova Justiça onde era feita apologia acerca da criação de
um código especialmente voltado para o atendimento da infância, com uma visão
que pretendia torna-la mais humanizada – fruto de uma ótica higienista cuja missão
saneadora e civilizadora tinha como lema “[...] salvar as crianças é salvar a nação”
(RIZZINI, 1997).
Acreditava-se então, que o internamento era a medida mais acertada,
defendiam a ideia de que era preciso classificar, recolher e internar as crianças.
Surgem alguns projetos de lei que primava uma abordagem dicotomizadora:
abandonada e deliquente, que posteriormente iriam se desdobrar em inúmeras leis e
decretos. Em 1912 se defende a inimputabilidade penal até os 16 anos de idade, a
criação de creches com a pretensão da educação para o trabalho, os reformatórios
eram dotados de uma seção agrícola e outra industrial (RIZZINI, 1997).
Em 1923 foi criado no Rio de Janeiro o primeiro Juízo de Menores,
considerado uma nova era da assistência. E em outubro de 1927 constitui-se o
Código de Mello Matos que consolidava as leis de assistência e proteção aos
menores. Pereira (2008) aponta que representou uma importante conquista
histórica, colocando o Brasil na frente dos países latino-americanos no que diz
respeito ao enfrentamento das mazelas sociais envoltas a esta problemática.
“Assim, o país começa a implantar um sistema público de atenção às crianças e aos
jovens, sob a égide de proteção e tutela do Estado.” (ROSA, 2001, p. 190).
O Código consolidou uma modalidade de prática de prevenção e sedimentou,
em termos legais, a ideia de correção, a qual deveria ser submetida ao menor. Eram
considerados menores somente aqueles que se encontrassem em “situação
irregular”, isto é: qualificados como abandonados e/ou delinquentes. “Bastariam
eventuais desconfianças ou suspeitas de alguma autoridade para que o menor fosse
privado de sua liberdade” (RIZZINI, 1995, p. 131). Inerente ao Código estava o
objetivo de regulamentar formas de assistência e de proteção à infância, mas a partir
de um viés discriminatório, pois
[...] construiu-se uma visão estigmatizada da infância pobre que,
classificada como “situação irregular”, subsidiava a tese (elitista) da
“indissociável e natural” relação entre pobreza e criminalidade. Logo, a
perspectiva dos direitos humanos não se fez registrar nesse primeiro
documento que confirmava a ratificação do Brasil para com a Convenção de
Genebra. (BIDARRA; OLIVEIRA, 2007, p. 169).
Nos anos de 1930 a pobreza começa a ser apontada como a principal causa
das condutas de criminalidade infantil, “o jurista Roberto Lyra demonstrou uma
compreensão mais abrangente do problema e pediu que fosse dado um sentido de
humanidade e justiça social a esta situação” (RIZZINI, 1995, p.136).
No discurso desta época ficou explícito que o problema social da infância era
consequência da pobreza generalizada da população e algumas ações passariam a
ser realizadas pelo Conselho Nacional de Serviço Social fundado em 1938; no ano
de 1941 foi criado o Serviço Nacional de Assistência aos Menores (SAM) com a
finalidade de assistir os desvalidos e delinquentes; e em 1942 a Legião Brasileira de
Assistência (LBA) cujo estatuto previa o amparo aos vários aspectos da
miserabilidade social (FALEIROS, 2011).
Desse modo, a “questão social” passou a ser tratada como “caso de polícia”,
mas por um curto período de tempo (de 1930 a 1937), ressaltando que nesse
período foram criadas várias instituições de assistência social e a primeira escola de
Serviço Social no Brasil, em 1936. Nesse período, os menores “apreendidos” nas
ruas eram levados para abrigos de triagem do Serviço Social de Menores, onde
eram separados unicamente pela faixa etária, sendo que os abandonados recebiam
o mesmo tratamento dos considerados infratores.
O novo Código Penal de 1940 estendeu a maioridade penal para 18 anos de
idade. Conforme Soares (2008, s.p), estes ficaram sujeitos apenas à pedagogia
corretiva da legislação especial que, por sua vez, mantinha os delinquentes e os
abandonados como objeto de uma atuação supostamente “igualitária”. Os menores,
nesta época eram submetidos à internação - único recurso disponível – sendo que, a
apreensão de menores nas ruas era prática corrente.
O SAM tornou-se um sintetizador das distorções nas formas de atendimento
ao problema do menor, funcionava em condições precárias de higiene, em
instalações com péssimas condições, o ensino ofertado era deficiente e sem
nenhuma orientação pedagógica, faltava comida para os internos e muitos castigos
físicos eram imputados aos menores, chegou a ser considerado como escola do
crime.
No SAM as crianças desapareciam no meio de um verdadeiro presídio (com
muros para metralhadoras e holofotes). Eram violentadas e permaneciam
como ainda aconteceu uma década depois, inadaptadas. Havia aliciamento
de menores para corrupção, desmazelo e falta de vigilância. As
perseguições, os espancamentos e a fome, como armas de castigo,
aconteciam diariamente. (LUPPI, 1987, p. 53).
Novamente instaurou-se a necessidade de reformular a legislação brasileira
voltada a infância, influenciados por diversos debates de âmbito internacional como
a Declaração Universal dos Direitos da Criança. Em 20 de novembro de 1959 a
ONU proclamou esta Declaração, na qual “[...] as crianças deixaram de ser meros
recipientes
passivos,
internacional,
para
capazes
de
serem
gozar
reconhecidas
de
como
determinados
sujeitos
direitos
e
do
direito
liberdades.”
(DOLINGER, 2003, p. 83).
Segundo Rosa (2001), foram criadas leis para uma abordagem específica da
área da criança e do adolescente, estabeleceu-se a Política Nacional de Bem-Estar
do Menor (PNBEM), a qual representava os ideais dos militares e estabelecia uma
gestão centralizadora e vertical. O órgão nacional gestor da Política passou a ser
denominado de Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e seus
órgãos executores estaduais eram as Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor
(FEBEMs), consideradas ainda como mecanismo de repressão, correção e controle
sem condições adequadas para a recuperação dos menores, pautadas na
perspectiva política e ideológica que lidava com uma “situação irregular”.
De acordo com Souza (2012, p.40) as propostas da fundação de prevenir a
marginalização não produziram muito efeito, ao contrário os prejuízos resultantes da
marginalização aumentaram. Em 1979 a UNICEF proclamou o Ano Internacional da
Criança, neste mesmo ano ocorreu a revisão do Código de Menores, porém, o
Código de 1979 não representava os interesses das crianças e dos adolescentes
brasileiros, os quais permaneciam confinados nas instituições e submetidos ao
poder discricionário do juiz de Menores.
No âmbito internacional, em 1979, a Comissão de Direitos Humanos da
ONU ficou encarregada de preparar a Convenção e após dez anos de
trabalho foi aprovada a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança de 1989, cuja adesão foi a mais ampla já vista na história da
Organização, com 191 Estados-partes. (PIOVESAN; PIROTTA, 2003, p.
278 apud BIDARRA; OLIVEIRA, 2007, p. 172).
A visibilidade crescente dos meninos de rua na década de 1980 também
impulsionou a articulação de vários grupos em defesa dos direitos dos menores,
resultando assim, no Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR),
em 1985.
[...] ele se deu a partir de uma rede composta por pessoas e instituições
engajadas em programas alternativos de atendimento a meninos e meninas
de rua. Considerando como o primeiro interlocutor de âmbito nacional sobre
a problemática, o MNMMR surgiu com um propósito muito claro: lutar por
direitos de cidadania para crianças e adolescentes. Este movimento
começou a denunciar a violência provocada pela estrutura social
caracterizada na omissão completa por parte do Estado em relação às
políticas sociais básicas. (GOHN, 1995, p. 119).
Na década de 1980 paralelo aos movimentos internacionais, o Brasil viveu
profundas transformações sociais e políticas que desencadearam importantes
conquistas pelos direitos das crianças, as mobilizações possibilitaram descobertas
como o fato de que metade da população infantil brasileira encontrava-se em
“situação irregular” de acordo com a legislação vigente (FALEIROS, 2011).
As crianças e adolescentes chamados de forma preconceituosa de
“menores” eram punidos por estarem em “situação irregular”, pela qual não
tinham responsabilidade, pois era ocasionada pela pobreza de suas famílias
e pela ausência de suportes e políticas públicas. Estas crianças e
adolescentes apreendidos por suspeitas de ato infracional, os quais eram
submetidos à privação de liberdade sem que a materialidade dessa prática
fosse comprovada e eles tivessem direitos para sua devida defesa, isto é,
inexistia o devido processo legal (SILVA, 2005, p.33).
E com o avanço democrático brasileiro em 1988 é promulgada a Constituição
Federal que contempla no Artigo 227 os direitos fundamentais da Criança e do
Adolescente.
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, a cultura, a
dignidade, ao respeito, a liberdade e a convivência familiar e comunitária,
além de coloca-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 2002, p.141).
Sendo que o Estatuto da Criança e do Adolescente se torna um dos
desdobramentos mais importantes da CF de 1988, uma conquista derivada de
inúmeras discussões em fóruns, movimentos populares, envolvendo vários
segmentos da sociedade brasileira. O ECA pauta-se na Doutrina de Proteção
Integral que está contextualizada num processo histórico de construção de uma
nova institucionalidade emergente na sociedade brasileira, em ruptura com as
dimensões inerentes a um padrão de relações autoritário, centralizado, repressivo,
clientelista e de políticas fragmentadas (ROSA, 2001).
O ECA trás significativas mudanças como a superação da compreensão de
infância e adolescência, “contém a tentativa de superar a classificação de “menor
infrator” que estava relacionada com a concepção do menorismo, que reduzia à
criança e o adolescente a um simples objeto de aplicação da Lei” (VERONESE;
RODRIGUES, 2001, p. 35).
Surge então, a terminologia adotada pelo Estatuto em relação aos
adolescentes que cometem atos infracionais - não são mais vistos como
delinquentes, mas como adolescentes em conflito com a lei que mesmo antes de
cometerem algum tipo de infração tiveram alguns direitos já negados.
Há duas formas de denominar a situação do adolescente autor de ato
infracional. A primeira se refere àquela que o considera vítima de um
sistema social ou produto do meio. A prática de delito é encarada como uma
estratégia de sobrevivência ou uma resposta mecânica do adolescente a
uma sociedade violenta e infratora com os seus direitos mais elementares.
A segunda é aquela que exclui qualquer responsabilidade do meio social,
atribuindo ao adolescente que comete ato infracional responsabilidade
exclusiva e definitiva (VOLPI 2006, p. 19).
É preciso superar a herança preconceituosa e enxergar esse adolescente em
conflito com a lei como produto da sociedade em que vive, pois recebe influências
do meio em que está inserido (cultura, etnia, condições de trabalho), ao mesmo
tempo em que sofre várias privações em seus direitos fundamentais.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
No presente trabalho buscamos inicialmente retratar como o Estado no decorrer do
processo histórico assume diversas configurações com o intuito de atender as necessidades
do sistema capitalista e dar respostas ao enfrentamento “questão social”, contendo assim
uma grande parte da população, buscando manter uma determinada “ordem social. Behring
e Boschetti (2009) retratam elementos fundamentais do liberalismo que permitem a
compreensão da reduzida intervenção do Estado no que diz respeito às políticas
sociais.
Não obstante procurou-se situar historicamente a superação de um passado de
violência, arbitrariedades e discriminação das antigas legislações no trato de crianças e
adolescentes que, a partir da elaboração do ECA, trouxe profundas e significativas
alterações. No entanto, apesar desse novo instrumento legal ter completado 18 anos de
promulgação, sabe-se que sua implementação ainda depende de muitas ações para que
seus objetivos sejam alcançados plenamente, principalmente quando se trata de
adolescentes em conflito com a lei.
De acordo com o Estatuto, os adolescentes que cometeram ato infracional devem
ser responsabilizados, mas com normas e regras coerentes ao seu período de
desenvolvimento e formação. E mesmo quando é necessário apreendê-los, através de
medidas socioeducativas, deve respeitar a doutrina da proteção integral aos direitos
fundamentais, sua convivência social e comunitária baseada no respeito, na liberdade, na
dignidade e na igualdade.
O ECA é uma prova concreta de que houve mudanças, mas sua operacionalização
não é uma tarefa fácil e envolve interesses políticos, investimentos financeiros mediante
políticas públicas, co-responsabilização entre Estado e sociedade, e ainda uma articulação
com as demais políticas sociais.
Na sua íntegra, o ECA procura garantir ao adolescente seus direitos fundamentais,
mas na sociedade brasileira ele é colocado em pauta quando comete algum ato infracional,
pois alguns desses atos provocam comoção social, sem a percepção de que, na realidade,
esses adolescentes são muito mais vítimas das violências cotidianas do que agressores.
Para aprimorar a execução dos processos socioeducativos, a construção do SINASE
em 2006 veio para traçar diretrizes gerais para as medidas socioeducativas, sustentadas
nos princípios de direitos humanos e estabelecendo parâmetros que vão desde a
necessidade de um projeto pedagógico até um projeto arquitetônico, um programa da
capacitação de profissionais, entre outros aspectos.
Contudo, para que os objetivos socioeducativos sejam atingidos é preciso que a rede
de atendimento funcione adequadamente para promover políticas públicas preventivas e
protetivas aos adolescentes que cumprem medida. Além disso, é necessário que existam
políticas que dêem suporte e condições às suas famílias, pois ao retornar ao convívio
familiar o adolescente encontra as mesmas condições e ausências de direitos fundamentais
que o levaram a cometer o ato infracional pela primeira vez. Sabe-se ainda, que em geral é
uma tarefa desafiadora (re)inserir o adolescente em sua comunidade, possibilitando-o a
construção de um projeto de vida que vise a superação do ato infracional, dissolvendo os
preconceitos e as resistências que acompanham a situação.
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