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UNIPAR
UNIVERSIDADE PARANAENSE
MARCELO GOBBO DALLA DEA
A EVOLUÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA CRIMINAL, SOB A ÓTICA DA VÍTIMA E
DE SEU COTIDIANO
UMUARAMA
2008
MARCELO GOBBO DALLA DEA
A EVOLUÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA CRIMINAL, SOB A ÓTICA DA VÍTIMA E
DE SEU COTIDIANO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação da UNIPAR – Universidade
Paranaense, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Direito, sob a orientação do
Professor Dr. Jônatas Luiz Moreira de Paula.
UMUARAMA
2008
TERMO DE APROVAÇÃO
MARCELO GOBBO DALLA DEA
A EVOLUÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA CRIMINAL, SOB A ÓTICA DA VÍTIMA E
DE SEU COTIDIANO
Dissertação de Mestrado, aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Direito da Universidade- UNIPAR, pela seguinte banca examinadora:
__________________________________________
Prof. Dr.
Titulação
_______________________________________
Prof. Dr.
Titulação
_______________________________________
Prof. Dr.
Titulação
_______________________________________
Prof. Dr.
Titulação
Umuarama, ____ de ____________ de 2008.
Aos meus pais, cuja justiça se fez tardia e rouca, mas se fez
história; e a Luciana, o amor esteio da minha vida, a qual
dedico: cada letra, cada palavra, cada frase, cada sonho da
minha vida.
Agradeço a DEUS, senhor de todas as coisas, que guia cada
momenta da minha vida; às infinitas e comprovadas
paciência e sabedoria do Prof. Dr. Jônatas Luiz Moreira de
Paula, ao orientar a presente dissertação; ao Professores
João Gualberto Garcez Ramos e Fábio André Guaragni por
conta dos ensinamentos, e as tremendas boa vontade e
simpatia de Rose e Antônio.
“Ó vós que tendes a inteligência aberta, buscai o verdadeiro
significado destes versos que por vezes estão ocultos.”
(Dante Alighieri)
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................3
2 O ORDENAMENTO JURÍDICO E O ACESSO À JUSTIÇA..........................................7
2.1 O acesso à Justiça nas Causas Criminais..........................................................................9
3 CONCEITO DE ACESSO À JUSTIÇA...........................................................................13
3.1 Jünger Habermas.............................................................................................................15
3.2 Mauro Capelletti...............................................................................................................19
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE VÍTIMA................................................................22
4.1 Conceito de Vítima............................................................................................................24
4.2 Reativação da Vítima no Sistema....................................................................................25
5 O BEM JURÍDICO TUTELADO......................................................................................29
5.1 O bem Jurídico em Francesco Carrara..........................................................................30
5.2 Bem Jurídico Tutelado para Frank Von Liszt...............................................................33
5.3 Bem jurídico em Enrico Ferri..........................................................................................36
5.4 Bem jurídico em Hans Welzel..........................................................................................40
5.5 Bem jurídico na visão de Günther Jakobs......................................................................44
6 DEFINIÇÕES DE DELITO................................................................................................47
6.1 Modelo Analítico de Crime..............................................................................................48
7 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ACESSO FORMAL À JUSTIÇA CRIMINAL ATÉ
O SÉCULO XVI .....................................................................................................................61
7.1 Clãs e Tribos – o Neolítico do Direito..............................................................................62
7.2 Suméria..............................................................................................................................69
7.3 Egito...................................................................................................................................72
7.4 Os Hebreus........................................................................................................................75
7.5 Acesso Formal na Grécia..................................................................................................78
7.6 Roma..................................................................................................................................81
7.6.1 A Roma Arcaica – 750 a.C até 367 a.C. ......................................................................82
7.6.2 A República..................................................................................................................89
7.6.3 O Império.......................................................................................................................91
7.7 A Idade Média...................................................................................................................95
7.7.1 Alta Idade Média............................................................................................................97
7.7.2 A Baixa Idade Média – O Século XIII........................................................................103
7.7.3 A Igreja Católica..........................................................................................................111
7.8 O Modelo Inglês..............................................................................................................115
8 PORTUGAL E SUAS JUSTIÇAS...................................................................................121
8.1 O Condado Portucalense até a crise de 1383 e Aljubarrota.....................................121
8.2 As Ordenações do Reino e sua estrutura Judiciária...................................................124
9. O ACESSO FORMAL À JUSTIÇA CRIMINAL NO BRASIL COLONIAL...........129
9.1 Reino Unido, Regência e Independência.....................................................................136
10. O ACESSO FORMAL NO IMPÉRIO.........................................................................140
11 ACESSO FORMAL NA REPÚBLICA ATÉ 1950.......................................................145
12 MODERNIDADE NO BRASIL E NO OCIDENTE.....................................................148
12.1 O Modelo Brasileiro – Judicialização do Cotidiano..................................................153
13 CONCLUSÃO.................................................................................................................161
14 REFERÊNCIAS...............................................................................................................163
1
RESUMO
O presente trabalho analisa tanto o conceito de crime como o conceito de acesso à justiça da
vítima de um crime, bem como sua evolução histórica. O acesso à justiça é indelevelmente
ligado ao conceito de cidadania, mais especificamente o exercício político daquele conceito.
As possibilidades e meios de acesso ao Poder Judiciário na competência criminal, não têm
nem o desenvolvimento, muito menos a amplitude dos meios de acesso à justiça tanto no que
concerne aos direitos privados, como aos direitos públicos não criminais. A vítima de um
delito sempre quando quis acessar o sistema judicial, submetia-se ao controle político da
sociedade que pertencia, fosse ela um estado nacional, fosse ela um clã. Portanto, o acesso à
justiça criminal, de uma forma ou de outra, estava na maioria dos casos restrita as
possibilidades permissivas que existissem no ordenamento jurídico do grupo, mas sempre
como permissão e não como garantia. De outro lado, o conceito de crime também teve sua
evolução, especialmente após o século XVIII. Tomando-se como ponto de partida a obra de
FEUERBACH, o conceito de delito passou a ser analiticamente descrito, de forma a estruturar
o conceito em componentes, que por si só são passíveis de aferição e desdobramentos, criando
assim uma gama de possíveis variáveis no estabelecer do conceito de crime. Mas estes
conceitos de acesso e de crime, não nasceram prontos e acabados. Ao contrário, foram frutos
de uma complexa e longa evolução histórica, que principia no neolítico, passando pelas
primeiras civilizações, caminhando para as culturas clássicas da antiguidade; modificando-se
e recriando-se na idade média, e por fim gerando os modelos contemporâneos. No que diz
respeito ao Brasil, sua evolução seguiu de perto as demais nações, mas com soluções,
instrumentos e institutos bem característicos, que no decorrer da história do direito pátrio,
foram apenas transformando-se até, de uma forma ou de outra, estão ainda presentes no nosso
cotidiano.
Palavras-chave: Crime – Processo Penal; Vítima – Acesso À Justiça; História Do Direito – História
Do Direito No Brasil
2
ABSTRACT
The current work examines the concept of crime in a way as the concept of access to justice
for the victim of a crime, as well as its historical evolution. Access to justice is certainly
turned on the concept of political citizenship, more specifically by the exercise of that
concept. The possibilities and ways of access to criminal judicial capacity have neither the
development, much less the breadth of the ways of access to justice so the laws regarding
private, not on the criminal public laws. The victim of a criminal as she always wanted to
access the judicial system, under the political control of the company that belonged, was it a
national state, he was a clan. Therefore, the criminal justice access, in one way or another,
was in most cases restricted permissive possibilities that existed in the legislative system of
the group, but as long as permission and not as collateral. From another side concept of crime
also had its evolution, especially after the eighteenth century. Being overtaken as the starting
point performance FEUERBACH, the concept of criminal begun to be described analytically,
so structuralize the concept into components which in itself is possible to calibrate and
unfolding, thus creating a many species of variables possible to establish the concept of the
crime. But these concepts of access and criminal action had not been born ready and had
finished. On the other hand, had been fruit of a long and complex historical evolution, which
begins in the Neolithic period, rising to the first civilizations, going to cultures of the classical
antiquity; modification and create again themselves in the middle ages, and finally generation
of contemporary models. When it says respect to Brazil, its evolution followed by the closure
too nations, but with solutions, tools and remedies characteristic, until which in the course of
history on the right native, it only changed ding same, in one way or the other, gifts are still in
our everyday.
Key-words: Crime - Criminal Proceedings; Victim - Access To Justice; History Of Law History Of The Law In Brazil
3
1 INTRODUÇÃO
Primeiramente, diga-se que, o reclamar por proteção aos bens jurídicos, definir o que é
delito, e puni-los, estão no cerne e na origem do sistema de justiça criminal, que sem tais
possibilidades, não teria razão de existir.
Quando o tema de algum texto é o direito criminal1, tanto em sua forma material como
na sua formulação processual, sempre, de forma inexorável, vem à mente a punição de quem
cometeu um delito. Sempre, inexoravelmente, a punição do delito cometido é a finalidade do
direito criminal, pensa assim a massa crítica da sociedade, aqui como acolá, que a missão do
direito criminal, é sempre ser repressivo aos autores dos fatos que de forma clara cometeram
um delito.
Entretanto, este raciocínio tem uma falha lógica brutal, pois estabelece como destino
final a punição, e a traveste com efeitos – prevenção geral ou prevenção especial – que não
operam no nível da racionalidade, e sim, na cinzenta zona dos desvios comportamentais de
ordem psiconeurológico, ou em ações controladas por emoções ou padrões emocionais, como
medo, remorso, sentimento de culpa, etc.
Tomando como ponto de partida a possibilidade de que, ainda por modelação teórica,
o punir tenha efetividade em evitar o cometimento de delitos, teriam aí, várias soluções
lógicas plausíveis, e sobre várias ontologias, tanto de resultado da punição, como de
motivação por conta da existência da punição, e isto, tanto sob o ponto de vista abstrato, onde
não há fenomenologia; como no ponto de vista da concretude dos fatos, onde há
fenomenologia e nesta são aplicadas às regras de direito, ter-se-iam vários resultados.
Um deles, dentre outros, é de que efetivamente o punir seria eficaz como instrumento
de controle das condutas dos indivíduos, dentro do contexto social. Assim sendo, a punição é
efetiva, para de uma forma juridicamente válida e racional, mantendo os elementos
componentes da teia social, ordenados e com um inter-relacionamento harmônico.
Neste caso, a finalidade do ordenamento jurídico, sob o ponto de vista do direito
criminal, seria a princípio a ordenação da sociedade, a partir de seus elementos constitutivos,
indivíduos com personalidade e vontades próprias, mas capazes na maioria das vezes, de
inibir ou no mínimo reprimir qualquer estímulo de cometer algo contrário ao ordenamento
jurídico.
1
Neste momento o termo Direito Criminal, está sendo usado em seu significado lato, englobando tanto o direito
penal, como o processual penal.
4
Logo, sob este aspecto, o indivíduo mínimo2, que o sistema jurídico criminal espera,
seria aquele que, por conta da pressuposição da punição do fato típico e antijurídico3, não o
cometesse. Mas também, colocaria como válida a mensuração de serem a honestidade e a
covardia valores, senão idênticos, no mínimo muito próximos, pois aquele que não comete
delitos por puro medo de fazê-lo, ante a punição prevista, e o medo; portanto, suplantaria o
desejo.
É claro que o sistema jurídico penal não trabalha com este prisma de forma direta ou
concreta, mas o torna válido, ao menos no campo da lógica, que o punir tem como esteio
prevenir, mas o faz pressupondo que os indivíduos não irão cometer por racionalidades de
valores, e não por sentimentos de culpa ou medo; mas valida aquela assertiva, tornando
covardes e honestos como indivíduos de valores positivos e válidos.
O raciocínio acima, ainda que possa ser classificado como falácia, tem a lógica do
punir como suporte, e para o mais dos irretratáveis dos lógicos, é válido!
Pior ainda é que o reverso do raciocínio se torna válido também, pois se o indivíduo
mínimo é aquele que não comete crime, os heróis4 que desafiaram o sistema jurídico
imperfeito e pretérito, seriam inglórios criminosos, sempre a testar e quebrar as regras
constituídas para em tese o bem dos indivíduos e de toda a teia social.
Tais raciocínios são feitos como meros exercícios lógicos, para demonstrar que os
modelos meramente punitivos e excludentes são, para dizer o mínimo, falhos no que concerne
aos seus objetivos alardeados, pois não previnem e nem controlam a sociedade e seus
indivíduos de forma eficiente.
Aliás, a eficiência dos meios e modos, sempre teve posicionamento secundário dentro
das análises e estudos sobre o direito criminal. O sistema fora montado como sucedâneo, ao
menos no que diz respeito às clássicas definições de legitimação histórica, da vingança
privada, onde aquele titular de um eventual bem jurídico tutelado, não tem o direito de punir a
mão própria, sendo o ente público, o detentor de tal atribuição.
Com relação à sociedade, esta quer, evidentemente que os indivíduos que a compõe,
geram um desejo de que o agente que cometa uma conduta proibida tenha uma resposta
jurídica, posto que se assim não o fosse, desnecessário o proibir.
Mas na ótica da vítima e da própria sociedade, seria o fundamento da persecução penal
apenas a lesão a um direito penalmente tutelado?
2
Ou seja, aquele que o direito tem como o mínimo a ser tolerado pelo sistema jurídico.
Aqui o termo não tem toda a carga axiológica que lhe é dada na definição analítica de crime
4
Como os revolucionários franceses, ou os “father fouddings” norte-americanos, e os nossos inconfidentes.
3
5
Na realidade, o crime, em determinadas circunstâncias, gera direitos individuais, como
por exemplo, o ressarcimento dos danos causados pela conduta delitiva5, mas também outra
classe de direitos, os de cunho procedimental, como o direito de ação estão entre aquelas que
titularizam a vítima a agir, como no caso da representação ou da queixa-crime.
Dito isto, fica claro que a vítima de um delito, se não pode agir “per si”, tem que
dispor de instrumentos jurídicos e protocolos de atuação, colocados à sua disposição, para
tornar as instruções de conduta estabelecida pela norma, e os proibidos das normas criminais,
e por fim a resposta jurídica, e de certo modo política, está previsto para atuar nos casos de
delito.
Além deste raciocínio, é de se ver que a vítima, em si mesma, enquanto conceito
jurídico teve uma evolução que a levou a perder importância perante as instituições; fato este
que minimizou sua influência na concreta aplicação da norma punitiva.
Mas ainda assim, as vias de acesso às instituições judiciais, de forma mais ou menos
clara, continuaram a existir nos termos de que a vítima de um crime tinha, e tem a sua
disposição instituições e meios de acessar a função judicial nos estados ocidentais.
Desde o princípio da civilização existiram meios e modos de reclamar a aplicação do
direito penal, e em especial das normas punitivas que defendiam e defendem determinados
direitos.
Por fim, a própria existência de uma função judicial, pressupõe que de uma forma ou
de outra, a vítima de um delito, até mesmo por conta das estruturas políticas e de distribuição
ou concentração de poder, tinha e na realidade ainda tem, vias de acesso à justiça criminal6.
Na realidade, as possibilidades da vítima em acessar o sistema criminal, ou para
reclamar a defesa de um bem jurídico, ou para retribuir a lesão, ou ainda para recompô-la, é a
base evolucional do conceito de acesso à justiça, tendo a vítima como protagonista da própria
evolução das estruturas judiciárias.
Sob outro foco, na atualidade, o cotidiano e a complexa sociedade de risco, levam a
extensão dos meios e instrumentos de acesso à justiça criminal, tanto no que diz respeito às
possibilidades instrumentais, como na própria conformação das unidades ou agências
judiciárias.
Na esteira desse processo, verifica-se certa ebulição teórica sobre as
perspectivas a serem adotadas pelo aparato penal, sendo no âmbito da política
5
Art. 91 do Código Penal.
Como será visto a função policial no Brasil Imperial, adveio da função jurisdicional, no que diz respeito à
possibilidade de queixa de um crime às autoridades.
6
6
criminal que se identificam os movimentos nomeados vias de adequação do
paradigma penal atual aos problemas novos da sociedade de risco.
É importante ressaltar que as novas condutas geradoras de riscos
que se pretendeu incriminar foram agrupadas sob a denominação, conferida por
Winfried Hassemer, de criminalidade moderna. Isso porque as novas atividades
ilícitas, dadas as suas peculiaridades, devem ser diferenciadas da chamada
criminalidade de massa, que é a criminalidade do dia-a-dia, como assaltos de rua,
furtos, arrombamentos de residências, seqüestros, comércio de drogas, delinqüência
juvenil etc.
De fato, a criminalidade moderna, que pode ser exemplificada pela
criminalidade econômica, pela criminalidade ambiental, pelo crime organizado, pelo
comércio internacional de armas, etc., comporta uma estrutura diferenciada, descrita
por Hassemer a partir das seguintes características: não tem vítimas individuais, ou
melhor, as vítimas individuais só existem de forma mediata; atinge bons jurídicos
supra-individuais e vagos; os danos causados têm pouca visibilidade à primeira
vista; suas formas de concretização são civis, ou seja, não corre sangue; e, por fim,
sua operação caracteriza-se pela internacionalidade, pela profissionalidade e pela
divisão do trabalho. 7
Neste dissertar, será exposto, não só isto, mas a evolução de conceitos penais centrais
como a descrição do conceito analítico de crime, das mais diversas definições de bem jurídico
penalmente tutelado, o conceito de vítima, entre outros.
Com isto, explana-se sobre o delito, e suas ontologias; expõe-se a evolução dos meios
de acesso às instituições da justiça criminal, narrando a construção de tais vias, desde os
momentos mais remotos que foi possível da história humana, até os modelos atuais de justiça
criminal.
No que concerne ao Brasil, serão estabelecidos os marcos históricos das instituições
judiciais, bem como os meios e modos, desde o modelo português até as instituições nascidas
da constituição de 1988.
Portanto, o escopo desta dissertação é expor o que faria e faz uma vítima de um crime,
frente às normas jurídicas pertinentes ao direito penal e ao direito processual penal.
7
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, Sociedade do Risco e Direito Penal – Uma avaliação de novas
tendências político-criminais, São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 97.
7
2 O ORDENAMENTO JURÍDICO E O ACESSO À JUSTIÇA
Este tema está vinculado ao conceito geral de direito e suas múltiplas subdivisões, mas
em especial, nos aspectos formais do ordenamento jurídico, e suas implicações no acesso à
justiça.
O primeiro ponto a se colocar é que o ordenamento jurídico é uma unidade sistêmica,
na medida em que se resolve em uma verdadeira totalidade ordenada8, e em um sistema
dinâmico e evolutivo.
Na linguagem jurídica corrente é comum o uso do termo “sistema”
para indicar o ordenamento jurídico. Nós mesmos, nos capítulos anteriores, usamos
algumas vezes a expressão “sistema normativo” em vez daquela mais freqüente de
“ornamento jurídico”. Mas geralmente não se esclarece qual o exato significado da
palavra “sistema”, no que se refere ao ordenamento jurídico. Consideremos, ao
acaso, dois dos mais conhecidos autores italianos, Giorgio Del Vecchio e Tommaso
Perassi. No ensaio de Del Vecchio, sulla statuatità del diritto, lemos o seguinte
trecho: “As proposições jurídicas singulares, embora possam ser consideradas
também por si mesmas, na sua abstração, tendem naturalmente a construir-se em
sistema. A necessidade da coerência lógica leva a aproximar as que são compatíveis
ou respectivamente complementares, e a eliminar as contraditórias ou incompatíveis.
A vontade, que é uma lógica viva, só pode se desenvolver, também no campo do
direito, unindo a suas afirmações, de modo a reduzi-las a um todo harmônico”.
Segundo Perassi, na sua Introduzione alle scienze giuridiche: “As normas que
passam a constituir um ordenamento não estão isoladas, mas se tornam parte de um
sistema, uma vez que certos princípios agem como conexões pelas quais as normas
são reunidas de modo a constituir um bloco sistemático”. 9
Assim, por ser um sistema, está sujeito às antinomias tópicas dos sistemas, e por conta
desta, revela-se que o ordenamento jurídico tem ontologia própria, mas cognição distinta entre
seus elementos, por mais organizados que sejam10.
Esta característica do ordenamento jurídico leva ao especializar-se do sistema, gerando
múltiplos subsistemas de ordenamentos especializados em características deste ou daquele
objeto ou sujeito de direito.
Por conta desta estrutura, sob o ponto de vista formal, os subsistemas normativos,
levam a uma criação ou recriação dos conceitos que originalmente o compunham até mesmo
como práxis social.
8
BOBBIO, Norberto, Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 217.
BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 222
10
BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 228
9
8
Para além deste nível de interação cotidiana, a auto-referencia se
evidencia na necessidade de motivação, estabelecida normativamente, nas decisões
jurídicas. É necessário que a decisão seja susceptível de ser auferida como
"comando jurídico válido” que é incorporado no contexto do "direito vigente".
Nestes planos da prática jurídica, a idealidade e a realidade do direito, suas regras e
normas positivadas estão necessariamente vinculadas, como referência uns aos
outros. Práxis (legal) de comunicação está sob um horizonte ordenamento simbólico
que, por sua vez, é criado no processo de referências simbólicas, e vice-versa;
Faticamente o direito é gerado como normativa nas invocações dos oradores, cujo
significado específico, são por eles constituídos. Finalmente, em termos de Teoria
do Direito, a definição completa do sistema jurídico em seus diferentes aspectos,
tanto materiais como normativos, conquanto perspectivas conceituais do direito e
enquanto estratégias diversas de legitimação daquele, também se descreve o direito
como uma necessidade.
Assim, os conceitos básicos do sistema jurídico são mostrados
como (re) construção: a primeira noção de direito, refere-se às estruturas funcionais,
, isto é, orientação descritiva das estruturas que são baseadas no conceito de autoregulação e portanto construções, mas também, simultaneamente descrições
heterogêneas de uma práxis social, e nessa medida, reconstruções. 11 12
Na verdade uma construção social da realidade, onde o direito seria uma
complexidade de sistemas jurídico-sociais, um direito como estrutura dialógica, algo entre
sujeito e objeto.
Disso resulta, segundo Calliess, que o jurista deixa de ser visto ou
compreendido por observador e manipulador do Direito, para reconhecer-se, ele
também, parte ou ator, imerso na própria realidade jurídica, feita, acrescentamos
nós aqui, de actio, status e reactio, a fim de evidenciar ainda mais a interação.
Inspirado, pois, na sociologia de Luhmann (a sociologia enquanto
teoria dos sistemas sociais), intenta aquele jurista explicar o Direito como estrutura
dialógica dos sistemas sociais, isto é, como “algo” situado entre as categorias
11
BERND, Müssig, Aspectos Teóricos-Jurídico y Teórico-Sociales in, LUHMAN, Niklas et Al, Teoria de
Sistemas y Derecho Penal. Fundamentos y posibilidad de aplicación. Lima-Peru: ARA Editores, 2007, p. 256
12
Texto no original: “Más Allá de este plano de las interacciones cotidianas, la autorreferencialidad se
evidencia en la necesidad de motivación, establecida normativamente, de las decisiones en Derecho. Es
necesario que la decisión tomada sea susceptible de ser representada como “jurídicamente debida”, es decir,
como imbricada en el contexto del “Derecho vigente”. En estos planos de la praxis jurídica, idealidad y realidad
del Derecho, positividad y normatividad se hallan necesariamente vinculados-; lo uno remite recíprocamente a lo
outro. La praxis (jurídica) de comunicacón se halla bajo un horizonte de ordenación simbólica que a su vez se
crea en el proceso de referencias simbólicas-y a la inversa; El Derecho fácticamente se genera en cuanto orden
normativo en las invocaciones de los intervinientes, cuyo significado específico, a su vez, constituye.
Finalmente, en el plano de la teoria del Derecho, de la, autodescripción compleja del sistema jurídico, se
diferencian ambos aspectos-positividad y normatividad-en cuanto perspectivas del concepto de Derecho y em
cuanto estrategias de legitimación diversas -y con ello también se describe el Derecho como contingente.
De este modo, los conceptos básicos del sistema jurídico se muestran como (re)construcciones: son conceptos
originários del Derecho, estructuras referidas a la función, es decir, estructuras descriptivas orientadas con base
en la concepción de la autodescripción -y, en esa medida, construcciones-, pero simultáneamente también
heterodescripciones de una praxis social, y, em esa medida, re-construcciones”.
9
sujeito e objeto, ou seja, uma espécie de esfera autônoma e conciliatória em relação
a ambas.
A concepção sistêmica do Direito nasce, segundo ele, para atender a
necessidades impostergáveis da sociedade técnico-científica, que repousa, em sua
estrutura, sobre sistemas de planejamento, os quais suscitam problemas de grande
pesquisa e projetos, impossíveis de solucionar mediante o emprego de modelos de
ordenação, apropriados, como na concepção clássica do Direito, a formas já
ultrapassadas de cultura agrária (“bauerlichagrarischen Kultur”), onde a unidade de
produção era a terra.
13
Sob este prisma, pode-se ter um ato fenomenicamente aquilatável, podendo esse ter
desdobramentos múltiplos, onde diversos subsistemas normativos podem incidir, com
resultantes ou axiologias distintas.
A improbidade administrativa, por exemplo, tem como base a previsão de que
determinadas condutas do agente público são proibidas, através de comandos normativos
negativos (não faça). Logo, o ato administrativo, sob controle jurisdicional pode ser dupla ou
triplamente verificado, na medida em que o ato ímprobo pode revelar enriquecimento sem
causa, improbidade administrativa e crime fiscal14, demonstrando que o mesmo ato jurídico,
pode ter dimensões distintas, e soluções também juridicamente distintas.
Daí se defluiu que os subsistemas do ordenamento jurídico geram meios e
instrumentos de acesso à justiça vinculado à natureza ou qualidades do objeto, ainda que o
sujeito possa ser o mesmo. Este fenômeno jurídico é a base do conceito de tutela jurisdicional,
onde o Estado deduz um eventual fato conflitivo, por meio de instrumentalização própria e
formalmente válida.
Tutela jurisdicional é o amparo que, por obra dos juízes, o Estado
ministra a quem tem razão num litígio deduzido em processo. Ela consiste na
melhoria da situação de uma pessoa, pessoas ou grupos de pessoas, em relação ao
bem pretendido ou à situação imaterial desejada ou indesejada. Receber tutela
jurisdicional significa obter sensações felizes e favoráveis, proporcionadas pelo
Estado mediante o exercício da jurisdição. 15
13
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 20. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 125
GARCIA, Emerson e ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2006. p. 247
15
DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. V. I, Malheiros Editores, São
Paulo, 2004, p. 104.
14
10
De outro ponto de vista, tem-se que a jurisdição pode ser civil, onde o acesso pode ser
decorrente de fato não penal16, o que leva aos meios de acessos distintos, com órgãos e
organismos distintos, com competências também organicamente distintas. 17
Por via de conseqüência, a cada conflito, pode ter acesso à justiça, de formas distintas,
por instrumentos, com soluções distintas, por órgãos jurisdicionais distintos.
2.1 O acesso à Justiça nas Causas Criminais.
Dentro do conceito de ordenamento jurídico, existe um subsistema, organizado em
torno das proibições de condutas sob pena de punição. No entanto, este subsistema, conhecido
como direito penal ou criminal não tem no que concerne às regras de proibição, as chamadas
normas penais incriminadoras, auto-aplicação, no sentido de as punições nelas previstas se
imporem por si mesmas.
Daí o motivo do conceito de “due process of law”, pois as regras punitivas, não se
fazem por vontade individual, mas na funcionalidade das agências estatais judiciais.
É o processo, o palco, no qual devem se desenvolver, em estruturação
equilibrada e cooperadora as atividades do Estado (jurisdição) e das partes (autor e
réu). Nenhuma dessas atividades, deve ser o centro, impondo-se sobre outras. O
excessivo realce à predominância da jurisdição sobre as partes é reflexo do
exagerado intervencionismo estatal. Prestigiar a ação é ressaltar a atividade do
autor em detrimento da atuação do Estado e da defesa. Colocar a defesa como a
razão do processo é, também, valorizar uma das partes da relação jurídica
processual em prejuízo da outra. O processo é o ponto de convergência e de
irradiação. É nele e por meio dele que alguém pode pleitear a afirmação concreta de
seu direito. É através do processo que o juiz, com órgão soberano do Estado, exerce
a sua atividade jurisdicional e busca, para o caso, a solução mais justa.
Reflexo desse posicionamento é, na atualidade, o destaque dado ao
exame das garantias do devido processo legal, abrangendo-se nelas as garantias das
partes e da atividade jurisdicional.
16
18
DINAMARCO, Candido Rangel. Op. Cit. 323.
DINAMARCO, Candido Rangel. Op. Cit. 352.
18
FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, p. 31-32.
17
11
Ainda que o conceito romano do “actio trium personarum”, seja um mantra já
ultrapassado, o conceito de que alguém acusa, alguém se defende e alguém julga, continua
tendo sua valia no processo penal.
No entanto, quando se fala em acesso à justiça sob o prisma criminal, as cores se
tornam opacas, pois a regra é que a parte que sofreu o dano não manobra o processo.
Não se olvide, antes de tudo, a diferença em parte do processo e
parte do delito. O conceito de parte, precisamente por que não é próprio apenas do
direito processual; presta excelentes serviços também à ciência do Direito Penal
material para a sistematização da teoria do delito; partes do delito em sentido
substancial são o causador do dano e o sofredor do dano. Mas, precisamente porque
um e outro são partes do delito, não são parte do processo ou, ao menos, podem não
ser partes do processo; se, verdadeiramente, o processo se faz a fim de sabem se
houve um delito e pode conduzir à sua comprovação negativa, pode ocorrer que as
pessoas, as quais estão nele como partes, não sejam partes do delito, não se podendo,
portanto, exigir que partes do processo sejam partes do delito. Partes do processo em
sentido substancial são pessoas das quais se trata de saber se são ou não partes de
um delito; em outras palavras, não pessoas que são, mas que parecem ser partes do
delito.
Dito isto, observe-se que o caráter da parte em sentido substancial é
sua indeterminação; este é o caráter pelo qual a parte substancial se opõe à parte
formal. O conceito do dano, tanto em seu lado ativo de danno dato (dano infligido)
como em seu lado passivo de danno pattito (dano sofrido), é essencialmente
elástico: dilata-se sucessivamente em círculos cada vez mais amplos. Por isso as
partes em sentido substancial; tanto ativas como passivas, são sempre mais de uma,
inclusive são muitas, e mesmo não se consegue nunca saber quantas possam ser. 19
Entretanto, o processo é o instrumento de dedução, de efetivação do direito penal, e o
é não só como meio de defesa, mas como o único meio válido e permitido de atuação da
vítima, e em última análise da própria sociedade através de meios que aquele prover.
É vaga e pouco acrescenta ao conhecimento do processo a usual
afirmação de que ele é um instrumento, enquanto não acompanhado da indicação
dos objetivos, a serem alcançados mediante o seu emprego. Todo instrumento,
como tal, é meio; e todo o meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que se
destina. O raciocínio teleológico há de se incluir então, necessariamente, a fixação
dos escopos do processo, ou seja, dos propósitos norteadores da sua instituição e
das condutas dos agentes estatais que o utilizam. Assim, é que se poderá conferir
um conteúdo substancial a esta usual assertiva da doutrina, mediante a investigação
do escopo, ou escopos em razão dos quais, toda a ordem jurídica incluem um
sistema processual.
19
20
CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o Processo Penal. V. 1, Campinas: Editora Booksellers, 2004, p.
175-176.
20
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,
1990, p. 206.
12
Mas este mister só tem sentido se, e somente se, o processo tenha sentido fora dele
mesmo, sem ser concebido com uma função quase que parnasiana; o processo como um fim
em si mesmo.
O Processo como instrumento de acesso à justiça, se estabelece no plano jurídico, mas
se legitima tanto no plano político como no plano social.
No plano político, o Estado se impõe não só como aplicador da norma, mas como
garantidor de direitos, na medida em que é fundamental para a manutenção do tecido social.
Na visão mais ampla das projeções jurídicas do fator político do
processo, permitida pela afirmação do escopo de assegurar a autoridade do próprio
Estado e do seu ordenamento jurídico-substancial, chega-se a uma série grande de
observações, que se situam no plano da crescente publicização do sistema
processual. Talvez a mais abrangente delas seja de que constitui preconceito
privatista e individualista, a crença e generalizada afirmação do caráter secundário
da jurisdição. Ela é o próprio poder do estado, exercido com vistas aos seus fins
institucionais e à sua manutenção supra infra-estrutura da sociedade. É do interesse
primário do Estado. O que acontece é que, muitas matérias não-penais, tem-se
como correspondente à vida normal dos direitos (sua “fisiologia”) o
desenvolvimento de todo o ciclo vital independentemente da intromissão estatal
autorizativa; só nos casos “patológicos” é que, insatisfeita uma das pessoas, vem
ela a provocar o exercício da jurisdição. Será secundária a atividade jurisdicional,
nestes casos, no sentido de que reservada para as hipóteses “patológicas”. Nos
casos em que nada se espera ou permite aos indivíduos para a realização dos
objetivos, nem neste sentido se pode afirmar o suposto caráter secundário essencial
à jurisdição (ações constitutivas necessárias – pretensão penal punitiva). 21
O Estado, enquanto ente teleológico tem como meta a pacificação social, pois a função
precípua da jurisdição é exatamente estabelecer22 a paz social.
Assim a jurisdição, como expressão do poder político. Saindo da
extrema abstração, consistente em afirmar que ela visa à realização da justiça em
cada caso e, mediante a prática reiterada, à implantação do clima social de justiça,
21
22
DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. p. 242-243.
Termo aqui usado em oposição ao vocábulo impor.
13
chega o momento de com mais precisão indicar os resultados que, mediante o
exercício da jurisdição, o Estado se propõe a traduzir na vida da sociedade.
Sob este aspecto, a função jurisdicional e a legislativa estão ligadas
pela unidade do escopo fundamental de ambas: a Paz social. Mesmo que postule a
distinção funcional muito nítida e marcada entre os dois planos do ordenamento
jurídico (teoria dualista) há de aceitar que direito e processo compõe um só sistema
voltado à pacificação de conflitos. É uma questão de perspectiva: enquanto a visão
jurídica de um e outro em suas relações revela que o processo serve para a atuação
do direito, sem inovações ou criação, o enfoque social de ambos os mostra assim
solidariamente voltados a mesma ordem de benefícios a serem prestados à
sociedade.
23
Sendo assim, o acesso à justiça criminal, só tem legitimidade, na medida em que tenha
função pacificadora e mantenedora do tecido social, posto que, caso não tenha esta finalidade,
seria sempre um instrumento do injusto. Por isto mesmo, os meios de acesso à justiça
criminal, têm de estar fundados em critérios objetivos de tutela de direitos e manutenção de
tecido social.
Dito isto, uma definição possível de acesso à justiça criminal é o buscar da tutela de
bens jurídicos, não apenas como ato jurídico, mas essencialmente como ato político.
23
DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. p. 220-221.
14
3 CONCEITO DE ACESSO À JUSTIÇA
Uma das chaves da vida em comunidade, tanto nos grupos sociais mais simples como
nos mais complexos, é a via de acesso aos meios de decisão judicial sobre um fato
determinado.
Este é um dos esteios da vida social, e da estabilidade da teia social de interesses; e,
fundamento de poder, no que concerne à função estrutural do estado24 e daqueles que exercem
o seu governo.
Desde cedo, e em especial na civilização ocidental, governar é também distribuir a
justiça, seja qual for a forma utilizada para tal.
Na realidade, se for feita uma leitura mais acurada dos principais institutos
normativos, que ao longo da história da civilização ocidental, sempre versavam de uma
maneira ou de outra de um ou vários conceitos de acesso à justiça.
Neste aspecto em especial, pode-se observar que a própria Magna Carta estabelecia
que a justiça fosse universal, e seu acesso irrestrito25; pois esta foi uma das imposições feitas
pelo baronato ao rei.
Entretanto, é de se colocar que faltava nestes textos, uma definição ou demonstração
do que seja acesso à justiça, e quais são suas regras de efetivação, pois se administrar a justiça
é um ato de governo, como expressão política de estado, uma verdadeira afirmação solene dos
atos de império; os governados, os elementos constitutivos do tecido social, em todos os seus
níveis, devem dispor de meios de acessar esta justiça.
A quem procurar? A quem demonstrar? A quem recorrer? Eram estas as respostas que
se buscava, desde o princípio das sociedades organizadas e politizadas26, as formas de como
os indivíduos buscavam solucionar suas pendengas; a determinação e delimitação dos órgãos
de solução; e como efetivar esta solução.
Além disto, é de se considerar que as próprias distensões e lides surgidas têm diversas
naturezas e outras tantas formas para serem solucionadas, na medida em que a natureza da
lesão ou da resistência apresentada teria um ou outro tratamento a ser dado ao caso.
24
Termo usado de forma laica.
“Não venderemos, nem recusaremos, nem dilataremos a quem quer que seja, a administração da justiça” texto
disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/magna.htm>, acesso em 09/03/2008.
26
No sentido de ter uma estrutura de poder regrado.
25
15
Nesta busca de soluções institucionais, ainda que as próprias instituições sejam de
base atávica, quase que instintivas, ainda assim o grupo criava esquemas de decisão e tais
esquemas, decidiam as contendas entre os membros do grupo, ou entre grupos rivais.
Veja-se que, o conteúdo das condutas de uma sociedade é forjado por inúmeros meios
de convívio, que no caso das sociedades primitivas, eram e são muito estreitos.
Neste caso, talvez, a função de ser o dirimente de questionamentos protojurídicos, esta
a cargo de sujeito(s) julgador(es), que de certa forma, são os cargos ou agentes políticos mais
antigos que se tem notícia.
O cargo de juiz é a posição mais antiga da sociedade humana; todavia
deve-se notar que nas sociedades sem Estado não há mecanismos para executar a
decisão do árbitro, como não havia para o Iudex romano. A sua única autoridade é
de um agente da comunidade. Esta última, entretanto, pode ser considerável. Ela
própria, a comunidade, pode agir como força policial. Assim foi o antigo Hue and
Cry inglês. Quando fosse cometido um crime, apelava-se para todos os cidadãos
procurarem pelo seu autor. Conforme visto, os Cheynnes tinham um sistema ainda
mais desenvolvido, onde as sociedades de soldados agiam como força policial para
executar as decisões dos chefes. Mesmo assim, é difícil considerar a ação da
comunidade como igual à do Estado. Aquela é um grupo de pessoas em convivência
e trabalho comum, agindo para o bem-estar da maioria do grupo, sem distinção de
classes. O Estado já mostra maior complexidade. O requisito essencial para a
existência do Estado é a presença de uma força policial profissional para fazer
cumprir as decisões dos juízes ou árbitros. A esta altura não podemos mais
argumentar que estamos tratando de “sociedades simples”, porém, de um Estado em
ação. 27
Logo, acessar o justo, em qualquer caso, é via orgânica dos grupos sociais, não sendo
mero acaso o líder ou líderes terem a função de definir o certo, diferenciando-o do errado, o
possível do impossível.
Entretanto, o nível, ou especialidade do pleito que se faz, poderia e ainda pode
direcionar o meio ou modo de se solicitar, ou mesmo exigir, a solução de uma contenda ou a
declaração de um direito.
Por exemplo, o direito de propriedade pode ser garantido de diversas formas, por
diversos meios28, que vão desde pedir para que o vizinho lhe devolva um martelo, ou até
solicitar a busca e apreensão do martelo, mas no nível mais elevado de proteção, a punição do
supressor do martelo.
27
28
SHIRLEY, Weaver, Robert. Antropologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 53.
Aqui se entendendo formalidades e materialização de formas como elementos distintos do acesso à justiça.
16
Isto demonstra que o acesso a uma garantia ou a um exercício de direito, não é
unívoco, mas sim modal, na medida em que se tenham diversas formas de ação do indivíduo,
sujeito de direito, titular ou não do direito lesado29.
Esta complexa estruturação orgânica de uma sociedade impõe que determinado naco
do poder político deste mesmo grupo seja destinado ao acesso a uma resposta formalmente
justa a uma lesão ao bem jurídico que se tutela de forma tão grave, que não basta à
recomposição de um “status quo ante”, mas, faz-se necessária à intervenção do poder do
grupo para impor a punição e demais efeitos jurídicos que couberem ao autor do dano.
Tanto nos aspectos mais formais das proibições, ou nas condutas proibidas sem danos
fenomênicos, ou até nos resultados materiais claros, é o poder do grupo que se faz presente,
ainda que seja para autorizar ou legitimar a conduta punitiva já efetivada por indivíduos,
como no caso das vinganças privadas.
Portanto, as vias de acesso, ainda que informais, estavam baseadas em institutos, ainda
que, primeiramente, consuetudinários, e posteriormente regrados de forma racional e anterior,
mas sempre institucionais, na medida em que se não define a justa forma da punição, a
legitima.
Há um aceso debate na literatura antropológica legal sobre se as
sociedades simples têm ou não amplas regras formais. Muitos antropólogos
argumentam que a base do “direito primitivo” é processual, isto é, a resolução de
disputas para manter a harmonia da família e da comunidade, de preferência à
aplicação de regras formais. Por outro lado, uma outra grande escola “idealista” de
antropologia legal insiste em que as sociedades pré-Estado realmente têm regras
amplas sobre como devem se comportar as pessoas, sendo esses preceitos bem
conhecidos do povo. Ambos os pontos de vista têm seus argumentos fortes e fracos.
Parece indubitável que quase todas as sociedades têm alguma forma de cultura
jurídica, ou seja, uma opinião sobre o que é uma conduta apropriada e uma idéia de
justiça. É impossível crer que a descrição elaborada das leis dos Ifugaos, de Franklin
Barton, ou as coletas de regulamentos realizadas por Schapera ou Bohannen sejam
simples invenções. Por outro lado, sem dúvida é também verdade, como Barton
esforça-se para mostrar em seu trabalho, que essas regras podem ser manipuladas,
subjugadas e às vezes ignoradas em casos reais. Isto é muito semelhante à sociedade
moderna e um fato importante que levou Llewellyn, um professor de filosofia do
direito, a elaborar um método de estudo dos casos reais para entender o “direito
primitivo”. 30
Por derradeiro, é possível conceituar a natureza jurídica de acesso à justiça, como
sendo a via institucionalmente válida, de se definir os limites das condutas ou exercícios de
direitos, de forma cogente, impessoal, válida e legítima.
29
O escravo poderia perfeitamente reclamar o bem de seu senhor, em nome deste; como hoje o empregado pode
pedir de volta o martelo.
30
SHIRLEY, Weaver Robert. Op. cit., p. 43.
17
3.1 Jünger Habermas
A última metade do século XX foi sem dúvida alguma uma fase de questionamentos
sobre a eficácia do direito e das instituições que deveriam garantir a sua eficácia.
Isto teve uma significativa importância no meio acadêmico alemão do pós-guerra, uma
vez que devessem aqueles mecanismos jurídicos ter evitado a hecatombe nazista; e como não
evitou, e de certo modo até mesmo legitimou31, era aquele momento o de rever conceitos e
refundar o direito e seus instrumentos32.
Como estrela de uma segunda geração, voz tardia da Escola de Frankfurt, onde
Theodor Adorno33 e Max Horkheimer tecem críticas mordazes tanto ao estado ocidental
capitalista, como aos que chamaram de projeto iluminista de sociedade34, Habermas via o
direito como uma via ambígua e ambivalente de integração social através da comunicação
(interação), que por conta da tensão que a obrigatoriedade das regras jurídicas35 tem, gera uma
aceitação destas, ante a suposição de resgate da legitimidade do sistema, que o torna
racionalmente coerente e aceitável.
Esta tensão na dimensão de validade no direito implica a organização
do poder político, empregado para impor legitimamente o direito (e o autoritativo do
direito); poder político ao qual o direito deve a sua positividade. A idéia do Estado
de direito constitui uma resposta ao desiderato da transformação jurídica pressuposta
pelo próprio direito. No Estado de direito a prática da autolegislação dos cidadãos
assume uma figura diferenciada institucionalmente. A idéia do Estado de direito
coloca em movimento uma espiral de auto-aplicação do direito, a qual deve fazer
valer a suposição internamente inevitável da autonomia política contra a facticidade
do poder não domesticado juridicamente, introduzida no direito a partir de fora. O
aperfeiçoamento do Estado de direito pode ser entendido como uma seqüência,
aberta em princípio, de medidas cautelares, conduzidas pela experiência, contra a
subjugação do sistema jurídico através do poder – legítimo – das circunstâncias, o
qual contradiz sua autocompreensão normativa. E aqui se trata de uma relação
externa entre facticidade e validade (percebida na perspectiva do sistema jurídico),
uma tensão entre norma e realidade, que constitui um desafio para uma elaboração
normativa. 36
31
Como as leis de Nuremberg de 1935
O caráter de Habermas fica claro quando se alista, aos 14 anos, como voluntário no corpo médico e não na
infantaria, servindo na frente ocidental. in <http://www.dhm.de/lemo/html/biografien/HabermasJuergen/ >acesso
em 22 de maio de 2008.
33
De quem Habermas foi assistente, in <http://www.dhm.de/lemo/html/biografien/HabermasJuergen/> acesso
em 22 de maio de 2008.
34
In: <http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,1240369,00.html>, acesso em 22 de maio de 2008.
35
Não necessariamente positivadas.
36
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre a facticidade e validade, V. 1, Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 61.
32
18
Habermas coloca que do direito participam todas as comunicações que, de outra sorte,
se orientam por ele, e com isto integram a realização do entendimento das normas de
coexistência dos indivíduos e da própria sociedade.
Em termos da teoria do agir comunicativo, o sistema de ação
“direito”, enquanto ordem legítima que se tornou reflexiva faz parte do componente
social do mundo da vida. Ora, como este só se reproduz junto com a cultura e as
estruturas da personalidade, através da corrente do agir comunicativo, as ações
jurídicas formam o médium através do qual, as instituições do direito se reproduzem
junto com as tradições jurídicas compartilhadas intersubjetivamente e junto com as
capacidades subjetivas da interpretação de regras do direito. Por fazerem parte do
componente da sociedade, estas regras do direito formam ordens legítimas de um
nível superior; ao mesmo tempo, porém, enquanto simbolismo jurídico e enquanto
competências jurídicas socializatórias adquiridas, elas estão representadas nos outros
dois componentes do mundo da vida. Os três componentes participam
originariamente na produção de ações jurídicas. Do direito participam todas as
comunicações que se orientam por ele, sendo que as regras do direito referem-se
reflexivamente à integração social realizada no fenômeno da institucionalização37.
Neste sistema jurídico explicitado por ele, o direito pode transformar-se em moto
evolucional tanto do sistema jurídico como da própria existência mundana e cotidiana38.
Sob estes argumentos, fica estabelecido para ele, que a garantia dos direitos
individuais, e dos coletivos por via reflexa, concretiza-se através de instituições judiciais
independentes com julgamentos imparciais, que enquanto modelo teórico ao menos nasce
dessa teoria comunicativa, na medida quem que os tribunais são organizados de forma
política.
A pretensão a iguais direitos, numa associação espontânea de
membros do direito, pressupõe uma coletividade limitada no espaço e no tempo,
com a qual os membros se identificam e à qual eles podem imputar suas ações como
partes do mesmo contexto de interação. A fim de constituir-se como comunidade de
direito, tal coletividade precisa dispor de uma instância central autorizada a agir em
nome do todo. Isso atinge o aspecto da auto-afirmação sob o qual o Estado instaura
sua capacidade para a organização e auto-organização destinada a manter, tanto para
fora como para dentro, a identidade da convivência juridicamente organizada.
O direito à proteção jurídica individual concretiza-se em direitos
fundamentais, que apóiam pretensões a uma justiça independente e imparcial nos
julgamentos. E estes pressupõem a instalação de um tribunal organizado
politicamente, que reivindica o poder de sanção do Estado, a fim de proteger e
desenvolver o direito nos casos litigiosos, onde se faz mister uma decisão
autoritativa. 39
37
HABERMAS, Jürgen. Op. Cit., p. 112.
Que Habermas chama de mundo da vida.
39
HABERMAS, Jürgen. Op. Cit., p. 170-171.
38
19
Tal política é, ou deve ser, legitimada pela interação dos institutos jurídicos, que são
elementos institucionais do estado de direito, cujos claros e legitimidades são preenchidos e
construídas pelo que Habermas chama de poder comunicativo.
Daí, existir para ele, um direito fundamental de garantia do acesso à justiça, que ele
denomina “caminhas” do direito e princípio da garantia de uma proteção jurídica individual
ampla.
As comunicações políticas dos cidadãos estendem-se a todos os
assuntos de interesse público; porém elas deságuam, no final das contas, nas
decisões de corporações legislativas. A formação política da vontade visa a uma
legislação, porque ela, de um lado, só interpreta e configura o sistema dos direitos
que os cidadãos se reconheceram mutuamente através de leis e porque, de outro
lado, o poder organizado do Estado, que deve agir como uma parte em função do
todo, só pode ser organizado e dirigido através de leis. A competência legislativa,
que fundamentalmente é atribuída aos cidadãos em sua totalidade; é assumida por
corporações parlamentares, que fundamentam leis de acordo com um processo
democrático. Leis formam a base para pretensões jurídicas individuais; estas
resultam da aplicação de leis a casos singulares, seja pelos caminhos da
administração, seja pelo caminho auto-executivo. Tais pretensões podem ser
reclamadas judicialmente; daí resulta a garantia dos caminhos do direito e o
princípio da garantia de uma proteção jurídica individual ampla. 40
O exercício desta garantia leva a uma formação racional de interativos jurídicos, cujo
modelo mais conhecido é a jurisprudência, que de uma forma ou de outra otimiza e explicitam
as regras do mundo como ele é, enfim, realizando a comunicação no tecido social, de um
discurso jurídico.
Ora, a prática de decisão está ligada ao direito e à lei, e a racionalidade
da jurisdição depende da legitimidade do direito vigente. E esta depende, por sua
vez, da racionalidade de um processo de legislação, o qual, sob condições da divisão
de poderes no Estado de direito, não se encontra à disposição dos órgãos da
aplicação do direito. Ora, o discurso político e a prática de legislação constituem,
sob pontos de vista do direito constitucional, um tema importante da dogmática
jurídica; mesmo assim, uma teoria do direito, que leva em conta discursos jurídicos,
só se abre a eles na perspectiva da jurisprudência41.
Por mais complexa que possam parecer tais paradigmas desenvolvidos por Jürgen
Habermas, na verdade, se faz simples o esquema de acesso previsto por ele.
O acesso à justiça, não é um mero meio jurídico de realização da norma ou dos desejos
alicerçados no mundo jurídico, mas sim uma garantia política de proteção e determinação de
direitos e deveres, que surgem não apenas da racionalização de conceitos ideológicos, mas
sim, da interação dos discursos, da comunicação.
40
41
HABERMAS, Jürgen. Op. Cit.. p. 214-215
HABERMAS, Jürgen. Op. Cit., p. 297
20
Acessar os meios de justiça, de outro lado, também é limitar o próprio poder formal de
formulação legislativa, na medida em que os discursos jurídicos forjam racionalidades
coercitivas não normativas (decisões judiciais), que de outro lado, podem determinar ou ao
menos fomentar uma produção normativa, específica ou não.
O acesso à justiça, enfim, é uma espécie de caminho dual, onde se de um lado garante
os direitos, de outro os forja. Deste modo, mais do que um mero direito subjetivo, genérico,
autônomo e abstrato42, buscar o judiciário é uma atitude política, pois impõe que o estado
diga, através de mecanismos e instituições independentes, o racionalmente certo, não só para
o requerente, mas também como decisão entendida, e referenciada como sendo um discurso
jurídico válido para todos.
3.2 Mauro Capelletti
Mauro Capelletti é seguramente, o mais afamado teórico moderno sobre o tema acesso
à justiça; sendo dele, ou por ele explicitadas, várias das idéias que se tornaram fato cotidiano
nos modernos sistemas judiciários.
Primeiro é de se ter que o conceito de acesso à justiça é, antes de tudo, uma resposta a
uma demanda, que para o Capelletti, deve ser a base de análise, ou pelo menos uma delas, do
“welfare state”.
À luz desta nova demanda de Justiça deve-se interpretar a filosofia
política do moderno “Estado social”, ou “promocional”, ou welfare state, e das
“economias mistas” que dele derivam. Esta filosofia traduziu-se, antes de tudo, num
enorme aparato de legislação econômico-social, correspondente às intervenções do
Estado em setores cada vez mais numerosos, no passado, abundantemente deixados
à iniciativa e à autonomia dos particulares: trabalho, produção, intercâmbios, escola,
habitação, higiene, consumo, meio-ambiente, etc... etc... Desta maneira os encargos
do Estado social estenderam-se enormemente. Ao papel tradicional de mera proteção
e repressão das violações dos direitos individuais tradicionais – o Estado como mero
gendarme ou right watchman da filosofia política do laissez faire – agregaram-se as
tarefas de promoção e atuação dos novos “direitos sociais” que, tipicamente,
implicam num compromisso do Estado, no sentido de fazer, operar e intervir. 43
Para este pensador, por conta do surgimento do estado social, houve um aumento
descomunal de demanda, o que impõe a ele a releitura de suas atividades, colocando os meios
de acesso à justiça, não como uma mera função, mas como um meio de efetivação de direitos
sociais. Não é este acesso, apenas um instrumento do estado, mas da sociedade, na medida em
42
Conforme tradicionalíssima definição do direito de ação.
CAPELLETTI, Mauro. Processo, Ideologia e Sociedade. V. 1. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor,
2008, p. 384.
43
21
que funcionam como meios de atuação da sociedade no complexo sócio-econômico do tecido
social.
O problema do acesso apresenta-se, pois, sob dois aspectos
principais: por um lado, como afetividade dos direitos sociais que não têm de ficar
no plano das declarações meramente teóricas, senão, devem, efetivamente, influir na
situação econômico-social dos membros da sociedade, que exige um vasto aparato
governamental de realização; mas, por outra parte, inclusive como busca de formas e
métodos, a miúde, novos e alternativos, perante os tradicionais, pela racionalização e
controle de tal aparato e, por conseguinte, para a proteção contra os abusos, aos
quais o mesmo aparato pode ocasionar, direta ou indiretamente44.
É verdade, no entanto, que Capelletti trabalha muito mais sob a ótica do processo
voltado ao direito privado45 do que o processo voltado ao processo de direito público, e menos
ainda ao de direito penal.
Mas um dos pontos focais deste toscano, formado em Florença, professor da
Universidade de Florença e professor emérito da Stanford University
46
é que o acesso é o
centro do estudo do processo, estudar e formatar modelos teóricos do processo é visualizar as
maneiras de acessar a justiça.
O enfoque sobre o acesso – o modo pelo qual, os direitos se tornam
efetivos – também caracteriza crescentemente o estudo do moderno processo civil.
A discussão teórica, por exemplo, das várias regras do processo civil e de como elas
podem ser manipuladas em várias situações hipotéticas pode ser instrutiva, mas, sob
essas descrições neutras, costuma ocultar-se o modelo freqüentemente irreal de duas
(ou mais) partes em igualdade de condições perante a corte, limitadas apenas pelos
argumentos jurídicos que os experientes advogados possam alinhar. O processo, no
entanto, não deveria ser colocado no vácuo. Os juristas precisam, agora, reconhecer
que as técnicas processuais servem a funções sociais (9); que as cortes não são a
única forma de solução de conflitos a serem consideradas (10) e que qualquer
regulamentação processual, inclusive a criação ou o encorajamento de alternativas
ao sistema judiciário formal tem um efeito importante sobre a forma como opera a
lei substantiva – com que freqüência ela é executada, em benefício de quem e com
que impacto social. Uma tarefa básica dos processualistas modernos é expor o
impacto substantivo dos vários mecanismos de processamento de litígios. Eles
precisam, conseqüentemente, ampliar sua pesquisa para mais além dos tribunais e
utilizar os métodos de análise da sociologia, da política, da psicologia e da
economia, e ademais, aprender através de outras culturas. O “acesso” não é apenas
um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também,
necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe
um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência
jurídica. 47
44
CAPELLETTI, Mauro. Op. Cit., p. 385.
Processo Civil
46
In <http://news-service.stanford.edu/news/2005/january26/cappmeml-012605.html>, acesso em 16/07/2008.
47
CAPELLETTI, Mauro, O Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1988, p. 12-13.
45
22
Na realidade, é de se ter em vista que o acessar a justiça é a instrumentalização
acessível para fazer valer um direito, é a verdadeira efetivação do direito.
O mais interessante deste posicionamento é que algumas das idéias pensadas por
Capelletti, acabaram sendo aplicadas no processo penal, com o surgimento dos Juizados
Especiais, como a conciliação, nos casos dos delitos de ação penal pública condicionada e nas
ações penais privadas. 48
Existem vantagens óbvias tanto para as partes quanto para o sistema
jurídico, se o litígio é resolvido sem necessidade de julgamento. A sobrecarga dos
tribunais e as despesas excessivamente altas com os litígios podem tornar
particularmente benéficas para as partes as soluções rápidas e mediadas, tais como o
juízo arbitral. Ademais, parece que tais decisões são mais facilmente aceitas do que
decretos judiciais unilaterais, uma vez que eles se fundam em acordo já estabelecido
entre as partes. É significativo que um processo dirigido para a conciliação – ao
contrário do processo judicial, que geralmente declara uma parte “vencedora” e a
outra “vencida” – ofereça a possibilidade de que as causas mais profundas de um
litígio sejam examinadas e restaurado um relacionamento complexo e prolongado 49
Sobre a ótica da vítima, a conciliação é um momento em que o titular do bem jurídico
lesado participa ativamente da casa criminal, fato este quase que anatemizado pelo que
chamava o professor italiano de justiça velha50, mas que coloca a resolução da causa sob uma
hipótese não condenatória.
Sob este prisma, a binômia condenação-absolvição, tem uma terceira possibilidade, o
da consensualização da demanda criminal.
Aliás, o próprio CAPELLETTI, que trabalha sobre as hipóteses de processo civil, traz
exemplos interessantíssimos como tribunais comunitários de vizinhança, onde os conflitos de
uma comunidade poderiam ser facilmente solucionados.
Um componente do movimento tendente é implantar ou reformar
tribunais de pequenas causas que têm sido, como já enfatizados, o desejo de instalar
tribunais para as pessoas comuns e suas demandas. Antes de partir para instituições
mais especializadas é interessante examinar outro aspecto desse desejo – a tendência
recente para instalar “tribunais vicinais de mediação”, a fim de tratarem de querelas
do dia-a-dia, principalmente questões de pequenos danos à propriedade ou delitos
leves, que ocorrem entre indivíduos em qualquer agrupamento relativamente estável
de trabalho ou de habitação. 51
Ainda as causas relativas a delitos ambientais que podem ter tratamentos
diferenciados, fora do tratamento oriundo da velhíssima processualística e seus rituais.
48
Artigos 72 e seguintes da Lei 9.099/95.
CAPELLETTI, Mauro. Op. Cit. p. 83-84
50
CAPELLETTI, Mauro, Processo. Ideologia e Sociedade, V. 1. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor,
2008, p. 359-360.
51
CAPELLETTI, Mauro. Op. Cit. , p. 114
49
23
As causas relativas ao meio ambiente têm dimensão tanto coletiva:
“difusa”, quanto individual; e ambas as dimensões têm sido tratadas em termos
gerais no presente estudo. Os remédios aplicáveis aos interesses difusos –
característicos da “segunda onda” das reformas de “acesso à justiça” – têm
relevância particular com relação aos problemas ambientais (312), mas as soluções e
fórmulas aplicáveis às pequenas causas podem ser muito importantes para os
indivíduos prejudicados por poluidores, uma vez que seu prejuízo individual, se
houver, será provavelmente pequeno.
A natureza altamente técnica das causas ambientais pode levar à
maior especialização. No Japão, em particular, novos métodos têm sido criados para
manejar tanto os aspectos difusos quanto individuais dos problemas ambientais. A
lei japonesa para a Solução de Litígio sobre Poluição Ambiental, de 1970, adotou
muitas reformas interessantes, poucas das quais podem ser discutidas aqui. 52
52
CAPELLETTI, Mauro. Op. Cit. 133-134
24
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE VÍTIMA.
Uma das facetas mais interessantes do direito penal e do processo penal é a travessia
histórica da retirada da vítima do contexto jurídico penal, até a quase total indiferença do
sistema com relação a ela.
Efetivamente, observando-se a evolução histórica do sistema penal53 europeu
continental54, principalmente no período da baixa idade média em diante, a vítima viu-se
arrancada do sistema, tanto pelos modelos teóricos como pelas instituições políticas.
Os motivos, ou suportes teóricos, metafísicos ou lógicos, de tal encaminhamento,
sempre estiveram submetidos a um sem número de circunstâncias ou fatos históricos que
levaram a esta ou a aquela evolução.
Apenas para exemplificar estes movimentos de evolução historiográfica, veja-se que o
Exarcado de Ravena, centrado na magnífica catedral de São Vital55, foi a mola propulsora
primária da inserção do sistema românico baseado no “corpus” de Justiniano. Mais tarde tal
foi relido56 nas universidades57, em especial na de Bologna, cuja evolução chega até nós com
o direito privado moderno.
Logo, sem a conquista de Ravena por Belizário, e a fixação ali das instituições de
controle e comando; ou o direito justinianeu só teria influência a partir das cruzadas, ou mais
tarde ainda, com as traduções andaluzas do séc. XIV.
Da mesma forma, no sistema penal, tanto o processo como o direito penal, sofreram
mutações ditadas pela própria historiografia do direito.
O direito canônico e a caridade cristã, tanto nas “Deo Pax”, como no sistema de
penitências proporcionais; o direito58 germânico e o sistema de penas de multa59 são exemplos
bem interessantes de influências com força decisiva, no processo de formação ou mutação do
direito.
A vítima, enquanto personagem do crime efetivava um papel de titular da resposta
jurídica ao autor de um delito; se observado no início do direito continental medieval60, e é
53
Aqui agrupado enquanto sistema, que abrangeria tanto o direito penal como o processo penal.
Do qual derivamos e mesmo assim ainda estamos à deriva.
55
Onde se encontram alguns dos mais preciosos mosaicos da cristandade.
56
Mais que reinventado.
57
Salientando que as universidades medievais estavam vinculadas a uma Diocese ou Arquidiocese.
58
Ou algo parecido com isto.
59
Às vezes ressarcitória, às vezes meramente punitivas.
60
Leiam-se pós 475 d.C., mas antes do séc. XI.
54
25
este papel que o Estado61, ou ao menos quem exercia o poder político mais ou menos
legitimado62, vai começar a negar e tomar para si.
Esta postura tem como base filosófica o fato de que a vingança, além de ser um mal
em si mesmo, não pode ter como natureza jurídica um exercício regular de direito, privado
diga-se, válido. Na realidade, para este posicionamento, o crime, ainda que tenha vítima certa,
deve ser respondido pelo estado, ou seja, o monopólio da persecução pertence ao ente público
e não à pessoa privada.
Tal modelo foi evoluindo junto com a centralização do poder político, que trouxe a
reboque o poder jurídico, primeiro no feudo e nas herdades eclesiásticas, para após o séc. XIV
enfeixar-se em uma figura central que exercia um poder de fato e de direito em uma
determinada circunscrição geográfica63.
Mas uma ocorrência, distante do direito, influenciaria de forma notável este processo.
Com o surgimento dos Cátaros e suas ditas heresias, o Papado cria em Verona a
instituição da Inquisição64, que evoluiu até tornar-se um verdadeiro poder jurídico, que estava
longe de ser paralelo, mas sim ser parte do poder político. 65
Como os crimes eram contra Deus e a cristandade, a figura da vítima perdia o sentido,
e assim, reforçava-se a certeza de que não é em nome de alguém, mas em nome da fé de
todos, que se punia.
Com este estreitamento dos titulares políticos, ocorre também o monopólio quase que
absoluto da jurisdição na figura de um poder central66, político sempre, laico ou eclesiástico.
A vítima agora era arrancada do sistema, para ser apenas um ente neutralizado em
nome de quem se combate o delito, mas sem ingerência daquela no manear das armas.
O controle do crime passa das ações privadas da vítima, socialmente
toleradas, para o órgão estatal. O Estado é o detentor do monopólio de reação
jurídico-penal, somente ele pode impor à força o interesse da vítima. À vítima é
proibido impor uma pena como castigo ao autor pela lesão ao seu interesse. Na
regulação da legítima defesa a vítima agredida de modo ilícito é inserida na série.
Ela pode, de fato, defender-se da agressão e para isso inclusive lesionar o agressor,
no entanto, deve observar em conformidade com a lei os limites da necessidade e
exigibilidade da defesa e somente pode agir até que perdure a agressão. Se ela
ultrapassar estes limites, então infringirá a lei e somente poderá esperar,
excepcionalmente, por uma exculpante, e isso se ela agiu impulsionada por
61
Palavra equivoca na alta idade média.
A Igreja ou a nobreza agrária, por exemplo.
63
Nem sempre o poder político coincidia com uma unidade cultural formal. Veja-se o exemplo do Sacro Império
Romano Germânico.
64
Sob o comando quase que único da ordem dos dominicanos, a quem os franciscanos chamavam de “domini
canis”.
65
A Suprema espanhola bem demonstra isto.
66
É de bom alvitre não se esquecer que o poder espiritual também tinha grande dose de poder jurídico.
62
26
“confusão, medo ou pavor”. A vítima pode também deter o autor
(“provisoriamente”); mas para isso ela precisa atentar, na relação temporal e local
com o ato, para o risco de tornar a si mesma punível, (ela precisa ser “breve”) e
apresentar o detido imediatamente ao juiz. 67
Entretanto, a figura da vítima, embora tenha caído em uma zona de cinzentas
impossibilidades, ela nunca foi ou teve uma inação de caráter absoluto.
É verdade que a importância da vítima até o último quartel do século passado era
diminuta, quase não apresentando uma maior relevância, mas foi exatamente de institutos,
diminuídos e quase sem importância, que ressurge a vítima como ator vital do sistema.
Primeiramente, veja-se que mesmo de forma incipiente, a vontade da vítima tinha
algum tipo de relevo, dentro do sistema criminal, na medida em que de um lado a sua versão
dos fatos imputados ao réu tem sua importância, além de outras medidas como
reconhecimento de pessoas ou coisas, de outro lado, pode representar ou mesmo exercer a
dedução de uma pretensão punitiva.
Com isto, ou tem-se a vítima como ator passivo, na medida em que está à disposição
do sistema, mas não integra a realização do sistema; ou é ator ativo, pois o sistema depende
dele para realizar-se no nível formal.
Por fim, diga-se que a vítima passa também a ser tutelada pelo sistema penal, como
sujeito protegido, como é o caso da proteção às testemunhas ou proteção direcionada, com no
caso da lei nomeada Maria da Penha68.
4.1 Conceito de Vítima.
A vítima é personagem incomum no sistema penal, pois ou diz ao sistema da ação a
ser tomada, ou apenas serve a ele, informando do que sabe.
Mas é preciso, em primeiro lugar, definir-se quem é a vítima, e quando ela surge como
sujeito relevante ao sistema.
Evidentemente, a primeira definição, quase atávica, é que vítima, é a pessoa contra
quem se efetivou o crime69. Esta visão arrasta-se no direito desde a muito, e pode ser vista no
67
HASSEMER, Wilfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal, Tradução da 2ª edição alemã. Porto
Alegre: Sergio Fabris Editor, 2005, p. 114.
68
Lei nº 11.340/06.
69
Mas não necessariamente o dano, posto que este pode sequer existir.
27
próprio Código de Hamurábi,70 e permanece assim, com maiores ou menores restrições71, até
as revoluções burguesas do séc. XVIII.
Com as ditas conquistas da idade da razão, ocorridas no século das luzes, entra em
cena, uma titularidade jurídica de direitos individuais. O direto acaba por erigir os direitos
individuais à categoria de imperativos categóricos do ser, pois os coloca como intangíveis e
tutelados de forma intensiva.
Neste caminho, a vítima deixa de ser aquele contra quem se age, para tornar-se o
titular do direito o qual se lesa, mudando de forma sutil o eixo do sistema penal, das pessoas
“per se”, para os titulares de direitos, sujeitos que dispõe de direitos, que não podem ser
lesados. 72
Esta mudança toma evolução própria e no séc. XX surge uma figura interessante.
A criminologia73, na primeira metade do séc. XX identifica e passa a estudar uma
categoria de crimes cujas características levavam um delito sem vítima especifica; um alguém
certo e induvidoso a reclamar por justiça.
Os “White Collar Crimes”, bem traduzidos como crimes do colarinho branco, são
cometidos por pessoas socializadas, fixadas em estratos elevados da sociedade, que, no mais
das vezes74, agem contra o sistema econômico. Neste ambiente, quem é a vítima? Quem é o
lesado na sonegação de impostos, ou nos crimes contra a ordem econômica, etc?
A partir daí, aparece à vítima incerta, difusa, sem rosto, mas certamente com voz.
Logicamente, a vítima aqui segue o mesmo “script” anterior, pois gerou também direitos
difusos, sem titularidade personalizada, mas espraiada pelo tecido social. Daí o termo difuso,
pois titulares somos todos nós75.
Uma avaliação do desenvolvimento futuro do papel da vítima,
entretanto, deve levar em conta que a mudança social estimula a política criminal
atual claramente à criminalização de lesões sem vítima (opferloser) ou com vítima
difusa (opferverdünnter). Crimes fiscais, crimes econômicos, crimes contra o meio
ambiente, todo o campo da criminalidade de White-collar – portanto a criminalidade
de “pessoas honestas” de colarinho branco – são infrações nas quais a vítima não é
mais visível. O interesse da vítima aí já está generalizado diante da modalidade do
delito.
Uma avaliação do desenvolvimento futuro do papel da vítima,
entretanto, deve levar em conta que a mudança social estimula a política criminal
70
Onde além do tradicionalíssimo talião, temos no seu art. 201 que “Se ele partiu os dentes de um liberto deverá
pagar um terço de mina”, ou seja, uma pena de multa proporcionalizada ao dano na vítima. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/inedex.htm>, acesso em 4/07/2007
71
Como nos crime de lesa pátria ou lesa majestade.
72
Obviamente tal mudança não foi rápida, pelo contrário, mas sem dúvida é no séc. XVIII, em especial no final
do mesmo, que este modelo se torna “standard”.
73
Que está longe de ser ciência auxiliar, mas sim ciência própria e da moda, diga-se.
74
Senão todas às vezes, mas isto pode ser apenas falta de imaginação.
75
Este é um conceito que tem tido um alargamento notável nos últimos tempos.
28
atual claramente à criminalização de lesões sem vítima (opferloser) ou com vítima
difusa (opferverdünnter). Crimes fiscais, crimes econômicos, crimes contra o meio
ambiente, todo o campo da criminalidade de White-collar – portanto a criminalidade
de “pessoas honestas” de colarinho branco – são infrações nas quais a vítima não é
mais visível. O interesse da vítima aí já está generalizado diante da modalidade do
delito. 76
Com estes novos77 conceitos, a importância da vítima toma dois caminhos distintos.
Quando incertas ou difusas as vítimas, a resposta do sistema tende a ser mais agravada, na
medida em que direitos que a todos titulam; sua lesão a todos vitima. 78
Desta estrutura79, deflue que a vítima para ter efetividade no sistema, tanto de forma
ativa como passiva, necessita ser individualizada. Isto porque só a pessoa80 individualizada
em sua existência pode ser sujeito, tanto como informador do sistema, ou ainda como
acionador do sistema penal.
4.2 Reativação da Vítima no Sistema.
Entretanto, desde o final do séc. XX, e em especial no início do séc. XXI, o sistema
penal, quase que se esquecendo de séculos de exclusão, reaviva o papel da vítima, que
começa a ser realçada em sua atividade.
A vítima, o “forgotten man”81, deixa de ser peça de tabuleiro, para ser “player”82 do
intrincado jogo do sistema penal, como pode ser visto mundo a fora:
Em efecto: como facilmente se puede visualizar em lãs opbras y
trabajos que al presente se ocupandel tema, el debate sobre la víctima há venido a
conmover la estrutura jurídico-penal toda. Ello. Desde la distinción clássica entre
reparación y pena hasta el carácter y lãs funciones del próprio derecho penal.83
Na verdade, é de bom alvitre relembrar-se que a vítima, nunca deixou inteiramente de
ter uma importância no sistema penal.
76
HASSEMER, Wilfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal, Tradução da 2ª edição alemã. Porto
Alegre: Sergio Fabris Editor, 2005, p. 117.
77
Com mais de 70 anos.
78
Assim algumas das mais pirotécnicas respostas penais são sempre justificáveis, como a guerra contra o terror.
79
Que não é a única possível.
80
Física ou jurídica.
81
HASSEMER, Wilfried. Op. Cit., 2005, p. 118
82
Vide a teoria dos jogos, e em especial o Dilema do Prisioneiro, no que diz respeito à possibilidade de todos
ganharem. In http://pt.wikipedia.org/wiki/Dilema_do_prisioneiro, acessado em 23 de abril de 2008.
83
BERTONINO, Pedro J. et Al, La Víctima del Delito em El Processo Penal Latinoamericano. Buenos
Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2003, p. 22.
29
Já no conceito de ação penal, tem-se nas públicas condicionadas as ações permissivas
ou requisitórias da vítima para o início da persecução criminal válida; e, nas ações penais
privadas onde a persecução pertence à vítima.
Estas possibilidades são existentes de muito tempo, e rederam criticas interessantes,
como quando HUNGRIA chegava a dizer que o direito penal estava sendo tornado como um
apêndice da teoria das obrigações. 84
Criticáveis ou não, o sistema penal brasileiro, previa e prevê que em situações
específicas, a vítima é quem inicia o jogo, mas quando a ação for pública condicionada, ainda
que inicie85 a persecução, ela própria não atuaria.
Já no caso das ações penais privadas a persecução penal é de titularidade da vítima, ela
maneja as armas.
Mas aí vem à lei 9.099/95 e subverte uma história de séculos e faz da vítima um
“player” altamente qualificado, de quem depende não só a efetivação da norma penal, como
da própria validação do sistema. Tal fato ocorre exatamente nas ações penais que dependem
da vítima para a sua existência e validade jurídica.
Sem entrar nos detalhes procedimentais e de outros personagens novos86, a vítima
acaba tendo um “script” diverso do tradicional.
Primeiro no que concerne à própria necessidade da aplicação do preceito secundário
da norma, ou seja, a pena.
No rito previsto pela modelagem teórica subliminar, há uma fase prévia de
conciliação, onde a vítima e o réu, sob a condução de agente público, mas sem determinação
coercitiva do estado, com o escopo de chegar a um denominador comum, a uma solução. 87
A possibilidade de conciliação não é uma novidade, pois o próprio código de processo
penal em sua redação original datada dos anos quarenta, em seu art. 520, já a previa em certos
casos, e o direito privado e do trabalho em especial já fazem uso dela há décadas.
A novidade é que a fase conciliatória tornou-se não um aforismo, mas sim, uma
condição objetiva de procedibilidade e, por conseqüência de punibilidade, na medida em que
ela precede a qualquer fato ou ato persecutório do Estado.
Nela, vítima e réu, antes de serem apótemas, são verdadeiros atores processuais, onde
as vontades não são necessariamente antagônicas. Neste novo “script”, o fim não é previsível,
84
HUNGRIA, Nelson, Comentários ao Código Penal, V. 1, Tomo II, apêndice. Rio de Janeiro: Forense, 1978.
De forma geral.
86
Como o conciliador.
87
Novamente a teoria dos jogos, pode dar uma contribuição interessante para o entendimento desta fase.
85
30
limitado a duas possibilidades – culpados ou inocentes88 ,mas sim, os resultados são múltiplos
e variáveis, e de regra imprevisíveis.
Veja-se que vontades e desejos antagônicos não são imutáveis, e que se o tecido social
admite a composição de interesses, e estes deixam de ser antagônicos para forjarem uma nova
realidade jurídica válida, e em especial, não conflitiva.
88
Também podem ser de punibilidade extinta, mas aí o personagem central é o Estado.
31
5 O BEM JURÍDICO TUTELADO
Um dos pontos chaves do direito penal, “pós-revoluções burguesas”, foi a elaboração
do conceito de bem jurídico penalmente tutelado. A partir daí, o direito penal tenta dar uma
legitimidade ao punir, na medida em que vincula este à lesão daquele.
Este conceito ôntico, de que existe um bem juridicamente relevante, defendido pela
norma penal incriminadora, tem claramente sua origem no Iluminismo89, e fora expresso de
maneira a dar conteúdo sistêmico ao direto penal por FEUERBACH apud PELARIN, 2002, p.
39, como sendo a “violação de um direito subjetivo do cidadão ou do próprio Estado”.
Esta definição, claramente apoiada em Kant, dando um conteúdo de individualismo ao
bem jurídico, na medida em que o direito defendido é subjetivo, ou seja, de alguém, ainda que
sustentassem os penalistas da época a necessidade de punir para prevenir outros danos e
proteger a sociedade como um todo.
O Iluminismo detonou o processo de construção da noção bem
jurídico-penal, com tal (talvez os mais) importantes limites formais e até mesmo
materiais ao ius puniendi, como a potencialização do clássico principio da
legalidade e seus corolários e a necessidade, para a existência do crime, da lesão a
um direito subjetivo e a danosidade social, a tentar afastar a punição das “condutas
moralmente responsáveis ou contarias à religião, mas que não causassem um dano
diretamente a uma pessoa em concreto ou à própria república”.
Como apresentado por ANDRADE, a primeira tentativa
conseqüente de um conceito material de crime, transcendente e crítico face ao direito
penal escrito, deve ser atribuída a FEUERBACH, para quem o crime era a “violação
de um direito subjetivo do cidadão ou do próprio Estado”. Contribui, assim, o
pensador iluminista para “a instauração de um novo direito penal, assente na
representação precisa da danosidade social a reprimir e prevenir”. Essa postura
significa uma “ruptura” face ao “despotismo mais ou menos esclarecido” do antigo
regime. Ele separa o direito da moral, na medida em que o primeiro “surge como
força coativa (ao serviço da segurança pública)” e aparece como “capacidade
jurídica subjetiva”, a dispensá-lo “de ter de fazer a prova da dignidade moral da
pessoa juridicamente capaz”. A moral, por sua vez, “só pode decidir o que é justo,
não o que é direito”. Quando à pena, ele a encara “como expressão de um direito de
coação do Estado, que apenas existe na medida necessária para assegurar o exercício
dos direitos”. 90
Entretanto, por óbvio, as conceituações de bem jurídico penalmente tutelado, teve uma
evolução norteada para lá ou para cá, dos conteúdos e valores ideológicos das mais diversas
fases políticas do ocidente.
89
PELARIN, Evandro. Bem Jurídico-Penal – Um debate sobre a descriminalização. São Paulo: IBCCRIM,
2002, p. 28
90
PELARIN, Evandro Op. Cit. p. 38- 39-40.
32
É de evidência que os posicionamentos de esquerda ou de direita91, nos seus mais
diversos matizes, as erupções sociais de cunho revolucionário, os conflitos bélicos de
abrangência inigualável ou a própria evolução e surgimento da sociedade tecnológica; ditaram
as definições e seus alcances.
Na realidade, a própria existência do conceito é de viés tortuoso, pois se submete aos
sabores e atores que o manuseiam, na medida em que lhe impregna suas crenças ou
descrenças, ou de outra sorte, subtraem suas condutas e posicionamentos dos conceitos que
formulam para dar substância ao conceito.
Portanto, longe de haver uma conceituação única, ou mesmo conceitos estáveis de
bem jurídico penalmente tutelado, é preciso que se recolham definições representativas dos
momentos e posturas de cada época.
5.1 O bem Jurídico em Francesco Carrara.
É preciso antes de tudo, entender-se que Francesco Carrara, vive e pensa em um
ambiente profundamente influenciado pelo dogma católico-cristão. Ele não é exatamente um
produto do liberalismo pós-napoleônico, ao contrário, é um temente a Deus e sobre tudo um
conservador, não no sentido político do termo, mas no sentido moral e social, e sob esta base
ideológica é que ele estabelece o seu conceito de Bem Jurídico.
Carrara é fecundo, anda nas graças da formação de um direito penal racional,
basicamente voltado ao liberalismo político, fruto para ele não de Von Feuerbach, mas de
Carmignani92 como dispõe já na introdução do programa; entretanto, que tem como esteio a
moral cristã, na mais restrita das éticas católicas.93
Nesta época da história da península94, a unificação da Itália era uma luta sem
quartel95, onde a igreja católica era uma força política bem real, com seus estados papais e
com os púlpitos de cada uma das pequenas igrejas seculares da bota. A própria data do
programa, já o coloca no mesmo ano das Batalhas de Solferino e Mangenta.
Pisa a meio caminho entre o Reino do Piemonte e Sardenha e os Estados papais, não
era o melhor dos locais para rompimentos ou submissões, o que por si só dá à Carrara a
91
Sem entrar no mérito do acerto dos termos ou de suas valias.
Ainda que este cite aquele.
93
CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal – Parte Geral, V. 1, Campinas: Editora
LZN, 2002, p. 10.
94
1859
95
O termo Carbonário nasce neste momento histórico.
92
33
possibilidade de expor suas idéias, sem que haja um tom de subversão da ordem, mas
também, sem grandes retornos ao dogma Papal.
Dito isto, fica fácil entender porque o “Cittatino lucchese e plebeo” 96 estabelece que o
bem jurídico e o Direto penal defendem, são: a moralidade das ações humanas, pois, para ele,
quando o ser humano foi criado no sexto dia à imagem e semelhança de Deus97, o fez dotado
de uma lei moral que surge naturalmente com a criação, chegando a dizer que quem a nega,
renega a Deus.
A lei eterna da ordem impede o homem à sociedade. E o Criador, que
a essa lei o conformou, a ela o guia, graças às tendências, como guia toda criação a
seus fins. Atração: força única, imensa, pela qual se exercita o poder divino sobre
tudo o que foi criado. A tendência física operou a primeira conjunção dos corpos; a
tendência moral protraiu e perpetuou a união recíproca dos pais, a destes para com
os filhos, e isso em todas as gerações que sobrevieram, como em quantas ainda
advirão. Assim, a sociedade estava nos destinos do homem, não só como meio
indispensável à sua conservação física e progresso intelectual, mais ainda como
complemento da lei moral a que o próprio homem devia estar sujeito.
Deus dispôs tudo o que foi criado para uma eterna harmonia. E
quando, no sexto dia, fez o homem à sua semelhança (isto é, dotado de uma alma
espiritual, rica pela inteligência e vontade livre), essa obra, a mais bela da divina
sabedoria, lançou à Terra a semente de uma série de entes dirigíveis e responsáveis
pelas próprias ações. Tais seres não podiam como os menores corpos, submeter-se
apenas às leis físicas; uma lei moral nasceu com eles: a lei natural. Quem nega essa
lei renega a Deus. 98
Como a lei moral, agia para ele apenas no nível da censura moral, ou seja, no
arrependimento ou não das suas atitudes, impôs Deus aos homens que aperfeiçoassem a
concretude do proibido. Assim, o livre-arbítrio só tem sentido na medida em que os homens
cumprem os mandamentos morais por escolha pessoal, e não por impossibilidade99 física.
Para o Mestre oitocentista, os direitos e deveres jurídicos do indivíduo, nascem
exatamente do livre-arbítrio, e por conta disto, Deus, em sua infinita sabedoria, confiou, e
deixou ao homem a tarefa de tutelar os preceitos morais; chegando a dizer que “Assim, pela
lei eterna da ordem, o homem foi destinado a ser, ao mesmo tempo, súdito e mantenedor do
preceito moral”.100
A partir deste raciocínio, e com a definição de que a sociedade civil é uma necessidade
humana, o direito criminal pune exatamente a violação do direito moral, explicitado de forma
clara pelo homem, na medida em que é necessário que se proteja o inocente da força contrária
96
Era filho de um engenheiro com uma dona de casa, deixando claro que sua origem, era não plebéia, mas
burguesa em seu cartão de visitas.
97
Ou seja, segundo ele, dotado de inteligência e livre arbítrio.
98
CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal – Parte Geral, V. 1, Campinas: Editora
LZN, 2002, p. 31.
99
Daí sermos imagem e semelhança de Deus, fazemos o que escolhemos.
100
CARRARA, Francesco. Op. Cit., p.32
34
à lei natural de Deus; daí diria Carrara, que punir é um imperativo do justo, na medida em que
a proteção do bem contra o mal é o fim último do justo, entendido aqui como o homem
instrumentalizado por Deus.
Mas o preceito, a proibição e a retribuição, enquanto se aplicam as
relações do homem com a própria humanidade, separam-se de Deus; e uma parte de
seu exercício é por ELE devolvida, sobre a terra, à autoridade social, porque,
acarretando a violação de tais relações um dano presente ao inocente, é necessário
seja este protegido contra essas transgressões por uma força atual e sensível. 101
Mas Carrara, não ficou apenas nesta definição típica de sua época, porém andou mais
ainda, quando discute o que defende102 o direito penal.
Este autor começa com a definição de que o direito penal, enquanto meio punitivo é
uma reação ao dano causado por um agressor; e que tal ação punitiva é um imperativo de
justiça na medida em que o fim único do direito punitivo é manter a ordem103.
E ainda: do princípio de que a sociedade está armada do direito de
punir para o único fim da mantença da ordem externa, deduz-se que, quando, num
caso determinado, o princípio de justiça exigisse a repressão, e o fato de efetivá-la
redundasse em perturbação maior da ordem que seu não-uso, cessaria na sociedade o
direito de exercitar a justiça, então externamente danosa.
A partir deste ponto, tece uma seqüência de raciocínios104 para chegar à conclusão de
que o indivíduo teria um patrimônio natural e outro político; sendo que o natural é formado
pelos bens que lhe pertence enquanto indivíduo; e o político, estaria concentrado no tocante
ao homem enquanto cidadão, como membro da sociedade (civil diria ele).
Chama-se patrimônio político o que toca ao homem como membro de
uma sociedade civil, que se constitui visando unicamente a dar àquele os bens da
segurança e da opinião da segurança.
A segurança e o sentimento de segurança, como direitos, são dados ao
homem pela natureza. A esse respeito não transijo. Mas o homem que vive
associado com a proteção de um governo tem uma segurança precária, porque
apenas confiada às suas próprias forças, e, assim, também a opinião da segurança é
nele tênue e, freqüentemente, falha. A única necessidade da autoridade social
encontra-se nisto: criar a proteção do direito. É por ela que a segurança e a opinião
da segurança se tornam realidades de fato. O homem isolado tem direito à vida:
direito natural, patrimônio natural, porque a sociedade civil não lhe acrescenta um
átomo sequer. O homem isolado tem também o direito de assegurar o seu direito à
vida. O jus defensionis é um direito natural inerente a todos os direitos, tanto
originários como adquiridos. É, rigorosamente falando, um conteúdo necessário dos
direitos. Mas o jus defensionis, embora perfeito em sua essência ideal, nem sempre é
suficientemente usufruído pelo homem isolado. Ainda que não seja fraco, pode ele
ser subjugado por outro mais forte, ou ser vencido por doença ou por traição.
101
CARRARA, Francesco. Op. Cit. p. 34
Ele não usa o termo tutela, mas defesa na concepção mais estrita do termo.
103
CARRARA, Francesco. Op. Cit. p.106
104
E nos termos metodológicos da época, e levando-se em conta que a obra diz respeito a uma obra de cunho
pedagógico, os raciocínios são estabelecidos em parágrafos.
102
35
Também o direito de sentir-se seguro (opinião da segurança) pertence ao homem
isolado; mas aquele vago sentimento de sua impotência minora-lhe o seu gozo. A
sociedade cria a tutela, e essa é a sua missão pela lei natural, sendo sua única missão
absoluta. Eis porque se atribui o mérito desse patrimônio, que se chama político, não
porque seja dado pela cidade, mas porque a cidade o torna uma verdade de fato,
realmente usufruída pelo homem. 105
Por conta disto, o direito de defender-se – “jus defensionis” – é um conteúdo
necessário de todo o direito, posto que não haja sistema jurídico se o indivíduo não tem na
sociedade o instrumental de defesa dos direitos dos quais é titular. 106
Daí surge na sociedade organizada a “autoridade diretiva da ordem externa” que tem
poder e legitimação para proibir violações; punindo-as, se necessário for. Tal é feito para que
se dê guarida aos direitos, até mesmo porque para Carrara, a segurança107, é também um
direito a ser preservado.
O homem, enquanto vive em uma sociedade civil, além dos direitos
que teria como indivíduo e que formam o seu patrimônio natural, tem o direito de
ver respeitada aquela forma de organização concreta em que encontra a sua
segurança. O direito à nossa segurança nos é dado pela natureza, mas a sociedade,
auxiliar da lei natural no proteger tal direito, atua a segurança mediante a lei civil, e
gera nos cidadãos a opinião racional da segurança. Assim constituída a forma de
proteção da sociedade, esta se torna o objetivo de um ulterior direito; e daí nasce,
para os cidadãos, o direito de exigir que seja respeitada tal forma de proteção. Nesse
sentido, a segurança e a opinião da própria segurança; constituem para o cidadão o
patrimônio que se denomina político. E um fato que, sem lesar a qualquer indivíduo,
ofenda ao corpo social, atinge então a todos os consociados, não no patrimônio
natural, mas no político, porque, atacando a autoridade guardiã dos direitos de cada
um, põe em risco a segurança de todos. 108
Portanto, para Carrara, embasado no raciocínio de que a sociedade é responsável pela
defesa de direitos através do direito. Entretanto, ele não dá elementos de diferenciação de que
direitos seriam estes e que a própria defesa é baseada na resposta ao dano causado pela ação
do delinqüente, a ponto de dizer de que o delito se caracteriza pelo dano imediato privado ou
coletivo.
Logo, embora não defina com clareza metodológica o que seja bem jurídico tutelado,
já impõe na dogmática jurídico-penal a necessidade de que o delito atinja a um direito, e que
tal direito, seja tutelado pelo ordenamento jurídico que surge da organização da sociedade.
5.2 Bem Jurídico Tutelado para Frank Von Liszt
105
CARRARA, Francesco. Op. Cit. 107
CARRARA, Francesco. Op. Cit. 108
107
Ou a sensação de segurança
108
CARRARA, Francesco. Op. Cit. p. 111
106
36
Para entender-se o posicionamento de Liszt, nascido em Viena no ano de 1851109, mas
professor na Alemanha imperial faz-se necessário verificar-se o momento histórico e seu
suporte filosófico; no Império Alemão, recém unificado, foi decisivo na estrutura teórica
montada por ele e, para o bem ou para o mal, seguido por boa parte do direito penal
continental até o fim da segunda guerra mundial.
A Europa da segunda metade do séc. XIX é produto muito mais das disputas que na
realidade nascem no fim do período revolucionário francês, do que do ideário liberaldemocrático tão ao gosto das elites do pensamento jurídico da época.
E na Alemanha e Áustria pós Congresso de Viena, tal qual o panorama da Europa,
existia uma séria e desgastante disputa entre as camadas economicamente ativas das
sociedades que surgiram com o final das guerras napoleônicas, pois a restauração também
levou ao contra-ponto das revoluções e movimentos hoje ditos de esquerda, como as ocorridas
em 1830 e 1848110.
Quando Von Liszt escreve o Tratado de Direito Penal, o ano era de 1881, o Império
Alemão unificado existia há apenas onze anos, o Código Penal Imperial Alemão tinha dez
anos. Áreas das ditas ciências sociais eram no mínimo contemporâneas, e é esta a visão e
verificação que dão as cores e realismos para a definição de bem jurídico na obra citada.
Quando LISZT define o bem jurídico tutelado pelo direito de forma singela – “Bem
jurídico é, pois, o interesse juridicamente protegido. Todos os bens jurídicos são interesses
humanos, ou do indivíduo ou da coletividade.” No entanto, ele mesmo, em nota de rodapé, já
dá a extensão do conceito que norteia seu pensamento, que é efetivamente mais ampla. 111
Assim o fez exatamente por ser seu pensamento um produto de seu tempo, onde as
ciências se fazem empíricas, com suas demonstrações, seus fatos demonstrados e verificados,
como base do conhecimento e da vida; e não mais a fé no plano geral, infinito e incognoscível
de Deus.
A vida, os bens e as inteligências não são mais dádivas divinas, mas sim conquistas e
domínios da indústria humana. Era a ciência, o astro iluminante de Nietzsche 112, que disporia
e reporia os valores e direitos dentro da sociedade.
109
Von LISZT, Franz, Tratado de Direito Penal. Tomo I. Campinas: Editora Russell, 2003, p. 23.
Para uma visão mais aprofundada sobre o período, ver A Era das Revoluções 1789-1848, de Eric Hobsbawn.
111
Von LISZT, Franz, Tratado de Direito Penal, Tomo I. Campinas: Editora Russell, 2003, p. 139.
112
NIETZSCHE, Frederic. Utilidade e Desvantagem da História para a Vida; in Os Pensadores, Nova
Cultura, São Paulo, 1996, p.277 e seguintes.
110
37
Neste aspecto, ainda que contemporâneo do penalista, Nietzsche, com sua postura
atéia e desconstrutiva de mitologias, exerce certa influência sobre o direito da época, em
especial na obra Assim Falava Zaratustra113.
Logo, para Liszt, o direito não era uma mera dedução metafísica, mas sim, um
fenômeno que deve ser demonstrado, e com isto, um fato concreto e não um ente.
É a partir disto que esse tratadista trabalha com os interesses que nasciam nas e das
relações existentes entres os cidadãos da segunda metade do século XIX e não com eles
próprios e individualizados. Os direitos, diz ele, são na realidade interesses, muitos além da
subjetividade dos indivíduos e suas axiologias restritas, mas sim a avaliação e valoração dos
interesses gerais, suplantando a mera pessoalidade.
A vontade geral, que paira acima da vontade individual, toma a si esta
missão, e a desempenha estabelecendo a ordem jurídica, isto é, discriminando os
interesses legítimos e autorizados dos que não o são.
O direito extrema os círculos da eficiência de cada um; determina até
onde a vontade pode manifestar-se livremente e, sobretudo, até onde, exigindo uma
ação ou inação alheia, pode penetrar na esfera da atividade de outras pessoas;
garante a liberdade, o poder autorizado de querer, e proíbe o arbítrio; converte as
relações da vida em relações jurídicas, os interesses em bens jurídicos; ligando
direitos e deveres a determinados pressupostos, faz do comércio da vida um
comércio segundo o direito. Assim, ordenando e proibindo, prescrevendo uma
determinada ação ou inação sob certas condições, as normas vêm a ser o anteparo
dos bens jurídicos. A proteção, que a ordem jurídica dispensa aos interesses, é
proteção segundo normas (Normenschutz). O bem jurídico e a norma são, pois, as
duas idéias fundamentais do direito. 114
Mas para o vienense, o bem jurídico era tutelado na medida da norma, ou seja, para
ele, bem e norma são componentes insubstituíveis do direito, e é neles que o direito penal se
legitima, pois defende o que a sociedade determina como o estado através de suas normas.
Daí dizer que a norma penal é o limite da política criminal, posto que a norma, ao
defender os interesses da sociedade, traduzindo estes interesses em conceitos115 insusceptíveis
de lesão, dando assim os limites de atividade punitiva do estado116.
Na realidade, talvez, no que concerne ao estudo do bem jurídico feito por Von Liszt,
este seja um dos melhores momentos, pois ele define o direito, mais do que limite, como
113
In <ftp://ibiblio.org/pub/docs/books/gutenberg/etext99/spzar10.txt>, acesso em 20 de janeiro de 2008, com o
texto completo em inglês.
114
Von LISZT, Franz. Tratado de Direito Penal. Tomo I. Campinas: Editora Russell, 2003, p. 141.
115
Concretos, ou seja, fáticos.
116
E neste aspecto até mesmo topografia da obra de Von Liszt é interessante, pois as definições de bem ou
interesse jurídico tutelado, está encartado exatamente no capítulo sobre política criminal.
38
sendo a própria legitimação do estado117, sem o qual o estado nada mais é que um grupo de
indivíduos albergados em um mesmo território, e daí a legitimação da pena.
Deste limite imposto pela postura do professor austríaco, tem-se que o agir do estado
em defender o bem jurídico da vítima, é o limite do possível estabelecido pelo direito através
da norma, que ele define como a vontade coletiva declarada pela sociedade citando o texto
constitucional alemão da época.
Lei é a vontade da coletividade declarada pelo concurso dos fatores
legislativos e publicada nos termos da Constituição (Constituição Imperial, art. 2º, 5,
17).
Lei é a vontade declarada nem a declaração que não foi consentida.
A declaração opera-se pela resolução que tomam o Reichstag e o Bundesrat e pela
promulgação acompanhada da ordem de publicação por parte do imperador. 118
Daí porque vítima só o é se houver um ataque a interesse pelo direito tutelado, através
do direito traduzido em norma jurídica válida, vontade declarada da sociedade.
5.3 Bem jurídico em Enrico Ferri
Quando Ferri chama a escola de Carrara de clássica, encerra dois nódulos de
discordância. Primeiro são os penalistas apótemas ideológicos; um clerical, outro marxista.
Depois, são opostos metodológicos; um metafísico outro materialista histórico.
Enrico Ferri, lombardo nascido em 1856, formado em direito por Bologna, antes de
criminólogo, de professor ou mesmo de advogado, foi um político marxista militante,
deputado socialista radical eleito aos trinta anos e editor do “Avanti”, jornal de divulgação do
marxismo na Itália recém unificada119.
É preciso reconhecer de pronto, que os estudiosos do direito têm uma aversão toda
especial a localizar e colocar os juristas nos seus termos ideológicos, políticos e históricos,
quase como se fossem ascetas, infensos a qualquer influência do mundo que o cerca;
produzindo suas obras de forma virginal, como vestais do saber jurídico. Logo trabalhar a
obra de Ferri sempre foi um exercício de aforismos; ante a necessidade parnasiana de
escamotear os impulsos ideológicos delas.
117
“Rechtsstad”, Estado segundo o direito. Op. Cit., p. 157.
Von LISZT, Franz. Op. Cit, p. 170
119
Para maiores dados, tanto biográficos como obras: <http://www.marxists.org/glossary/people/f/e.htm#ferrienrico>; acessado em 4 de fevereiro de 2008.
118
39
Por conta disto, o entendimento de Ferri de direito penal, de norma penal, de vítima e
de bem jurídico penal é sempre permeado pelos conceitos marxistas como luta de classes,
mais-valia e em especial o conceito de indivíduo no mundo marxista.
Enrico Ferri trabalha com o conceito de espoliação burguesa da massa proletária,
como principal motivo de existência do delito, onde as condições econômicas determinam
massificação do crime entre aqueles trabalhadores.120
Uma breve análise de obras como Sociologia Criminal de 1899121 já demonstra a
imensa influência marxista no pensamento e literatura deste Lombardo. Além disto, nele os
conceitos de antropologia criminal e psiquiatria forense, ainda que de forma imatura por conta
da novidade, faz forte presença no pensamento desse penalista, amigo primeiro de Lombroso.
Para se ter uma base do substrato ideológico na obra de Ferri, veja-se este texto122:
A segunda conseqüência da saturação de leis penais, de grande
importância teórica, é que as punições até agora consideradas, salvo para alguns
platônicos; como a melhor solução para a criminalidade, são menos eficientes do
que se supõe. Os crimes e delitos aumentam ou diminuem, por causa da combinação
de outras causas, que estão longe de terem identidade com os castigos levianamente
estabelecidos por legisladores e aplicados por juízes123.
Ferri, entretanto, efetivamente trabalha o conceito de bem jurídico, como sendo o
objeto jurídico do delito; e o faz de maneira desconstrutiva, na medida em que tenta
demonstrar a pequenez do princípio dentro de toda a complexidade da sociedade.
Mas depois, esgotado o filão das grandes idéias e das teorias
fundamentais – que os criminalistas clássicos magnificamente esculpiram – de
Beccaria, Romagnosi, Carmignari e Rossi a Carrara e Pessina, de Feuerbach a
Mittermaier e Berner, de Chanveau e Hélie a Ortolan e Tissot – os juristas
micrólogos, não querendo ou não sabendo trilhar os novos grandes caminhos abertos
pela escola positiva no estudo da criminalidade e da defesa social, dedicaram-se a
raspar e a limiar as formosas e artísticas estátuas dos clássicos com os critérios do
direito privado. Então, houve quem descobrisse que nem sempre o direito é lesão ou
ofensa de um direito de outrem, por ex., no caso de crime tentando, e outros
discerniram que alguns crimes não consistem na lesão de um direito pessoal do
singular sujeito passivo, mas sim de um direito coletivo ou social, por ex., nos
crimes contra a segurança do Estado, contra a incolumidade pública, contra a fé
pública, etc. Mas depois, outros ainda descortinaram que às vezes o crime não lesa
120
La Scuola Criminale Positiva, in <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/lb000333.pdf>; acesso
em 5 de fevereiro de 2008.
121
Texto completo em inglês disponível em: <http://www.marxists.org/archive/ferri/criminalsociology/index.htm> acesso em 5 de fevereiro de 2008.
122
No Original em inglês: “The second consequence of the law of criminal saturation, one of great theoretical
importance, is that the penalties hitherto regarded, save for a few platonic declarations, as the best remedies for
crime, are less effectual than they are supposed to be. For crimes and offences increase and diminish by a
combination of other causes, which are far from being identical with the punishments lightly written out by
legislators and awarded by judges”; in <http://www.marxists.org/archive/ferri/criminal-sociology/ch02.htm>;
acesso em 5 de fevereiro de 2008
123
Tradução livre
40
um verdadeiro e próprio “direito subjetivo, mas sim, um “bem” que se torna “bem
jurídico” quando é “num interesse juridicamente tutelado” (Liszt) pela lei penal. E
em seguida, pondo-se a cortar o nevoeiro às fatias, lobrigaram outros que, em última
análise, o crime não ofende nenhum direito ou bem particular, mas tão somente a
norma penal e, portanto, o direito do Estado à “obediência” por parte dos cidadãos
(Binding).
Não contesto que estas observações sejam às vezes exatas e
constituam um progresso de detalhes, por ex., ao precisar que o crime é a lesão de
um direito ou de um bem jurídico (que, como tal, porém, na prática mal se pode
separar do direito subjetivo), mas é ao mesmo tempo, e sempre, e antes de tudo, se
quiser, a transgressão da norma penal, posta pelo Estado por necessidade da vida
social. Mas contesto, no fundo, que uma só destas observações de detalhe represente
toda a realidade, com exclusão das outras, ao passo que a noção substancial do
objeto jurídico do crime compreende o conjunto dessas constatações unilaterais.
E nego, formalmente, que o exame e o resume destas observações
micrológicas exija uma excessiva prolixidade de indagações, enquanto pode
otimamente apanhar-se-lhe a seiva, utilizável pela justiça penal, em poucas linhas.
Dissemos, portanto, que cada crime tem um objeto jurídico genérico e
um objeto jurídico específico.
O genérico é a norma penal, imposta pelo Estado e violada pelo
delinqüente.
O específico é o direito subjetivo (que, na maior parte dos casos,
existe e é regulado e protegido também por outras normas de direito civil, público,
etc.) ou realmente ofendido ou posto em perigo – e, na sua falta, o bem ou beminteresse juridicamente protegido pela norma penal e respeitante ou a um indivíduo,
ou a uma coletividade, ou à sociedade inteira, juridicamente organizada no Estado
ou ainda à sociedade dos Estados.
Tudo isto, entenda-se, como resulta da organização jurídico-positiva
de cada povo.
E, como pondera Carrara (Programa, § 42), assim como “a lei
protetora e o direito protegido se compenetram”, é evidente que em cada crime o
objeto jurídico é inseparável do objeto específico.
Afirmar que o crime seja apenas a lesão “de um bem-interesse
público” e que os bens jurídicos individuais sejam tutelados pela norma penal
“enquanto são interesses de todos” é atender somente à razão abstrata, em virtude da
qual a norma foi imposta; mas é que esta protege – e não só “por via reflexa,
mediata”, mas, por modo concreto e direto – os direitos bens pessoais, enquanto são
atributos e condições necessárias à vida social de cada indivíduo. 124
Primeiro tece uma série de críticas a autores que o antecederam no direito penal, não
necessariamente de forma cronológica, mas sim, de forma ideológica, pois critica Von Liszt e
Binding125 que lhe eram contemporâneos. Neste momento da obra, procura demonstrar que o
conceito de bem jurídico ou interesse tutelado, apesar de acertado para definir que um crime é
uma lesão a um bem juridicamente tutelado, não algo a ser discorrido à exaustão, pois encerra
apenas um dos elementos do crime e não a identidade do crime.
Afirma que existem dois objetos, ou direitos ofendidos pelo crime. Um genérico que
se resume na violação da norma imposta pelo estado. Outro específico, qual seja o direito126
efetivamente atingido pela conduta delitiva.
124
FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal. Campinas: Bookseller Editora, 1996, p.379-380-381.
Curiosamente a critica que faz a Binding, é a mesma que se faz hoje aos posicionamentos de Jakobs.
126
Subjetivo o diria, in, Op. Cit. p.380
125
41
Bem ao seu estilo de boçalidade soberana, a partir daí, a afirmar que o direito penal
precisava libertar-se deste conceito único, mera abstração lógico-jurídica das incrustações da
micrologia dos juristas, enfim da visão simplista que tal conceito levava.
É preciso libertar a ciência do direito penal destas abstrações de
“lógica jurídica” e das incrustações da micrologia jurista, pois que, neste estudo
jurídico do crime, a doutrina satisfaz melhor as exigências práticas da justiça penal
ficando nas linhas simples, fundamentais e límpidas do direito penal romano e da
doutrina clássica. Nas páginas de Carrara, de Mittermaier ou de Ortolan, sente-se
palpitar a vida: as dos juristas técnicos são fastidiosamente áridas, especialmente
para nós latinos, a miúdo grotescamente formulísticas e sempre inutilizáveis –
mesmo para além dos Alpes – não só na vida quotidiana dos tribunais, mas na
formação das leis. 127
Daí a formulação a posterior em toda a sua obra, afirmando que a mera verificação de
tutelas de bens jurídicos, é acética demais e imprecisa, devendo o jurista debruçar-se também
sobre os aspectos externos ao direito, que para ele, não pode ser mera readaptação metafísica
de conteúdos normativos, mas sim conexidades meta disciplinares128.
Para este expoente do direito penal, a razão de ser do direito penal não é a proteção do
bem jurídico a se tutelar, mas sim os indivíduos e coletividades, estes sim dignos de serem
mais que sujeitos, mas sim atores do direito. Como dizia Karl Marx, quando comentava
Feuerbach129 “o indivíduo é o conjunto de suas relações sociais e não uma mera representação
metafísica, isolada e anti-histórica; e é este ser múltiplo e ativo que centra o modelo teórico
formulado por Enrico Ferri”.
Em oposição às representações metafísicas e anti-históricas de
Feuerbach sobre o ser humano como indivíduo isolado abstrato Marx formula uma
das teses essenciais do materialismo histórico: o homem, na sua realidade, é “o
conjunto das relações sociais”. O homem existe na sociedade, é um produto da
sociedade, mas não da sociedade em geral, mas sempre de uma determinada forma
de sociedade.
Foi a partir de um ateísmo conseqüente, proletário, que Marx
resolveu o problema das condições da superação da religião. Os materialistas
anteriores, particularmente Feuerbach, tinham reduzido a religião à sua “base
mundana” e submeteram-na a uma profunda crítica. Foi esse o seu mérito histórico.
Mas só Marx provou que a religião brota das contradições dessa “base mundana”,
dos antagonismos sociais, de modo que para eliminá-la é necessário revolucionar a
sociedade existente. Esta idéia será posteriormente desenvolvida, recebendo a sua
formulação clássica no I volume de O Capital.
O materialismo pré-marxista era essencialmente contemplativo e
metafísico. Marx opõe à contemplação a prática revolucionária e ao velho
materialismo um novo materialismo, dialético, base filosófica do comunismo. O
princípio da nova concepção do mundo encontrou a sua expressão clássica na tese
127
FERRI, Enrico. Op. Cit. p. 381 e 382
Tão em voga neste princípio de século.
129
“Teses sobre Feuerbach” escrito em 1845, e é tido como a primeira obra verdadeiramente marxista, e referiase a Anselm Fuerbach, filósofo, filho do penalista alemão. Texto em inglês in
http://www.marxists.org/archive/marx/works/1845/theses/index.htm; acesso em 5 de fevereiro de 2008
128
42
final: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, a
questão é transformá-lo”.
A nova concepção do mundo, que Marx expõe de uma forma tão
concisa e tão clara nas suas teses sobre Feuerbach, foi elaborada em conjunto com
Engels em A Ideologia Alemã. 130
130
FEDOSSEIEV, P. N. et al , Karl Marx – Biografia. Lisboa – Portugal: Editora Avante, 1983, p. 97
43
5.4 Bem jurídico em Hans Welzel131
Já na introdução do clássico Direito Penal Alemão sentencia WELZEL: “Misíon del
Derecho Penal es proteger los valores elementales de la vida em comunidad132”.
Mas para entender o alcance e visão de Welzel, é absolutamente necessário que se
entenda o ocidente europeu no entre - guerras; posto que, o direito e em especial o direito
repressivo, foi fortemente influenciado por conteúdos ideológicos, que definiram de certa
sorte o que seria “valores elementares da vida em comunidade”.
As ideologias, ou os suportes metafísicos das políticas nacionais da primeira metade
do século XX tiveram suas estruturações enquanto modelos teóricos no século anterior, com
personagens como Karl Marx, Nietzsche, Freud, Comte, e tantos outros, mas133 foi no fim dos
grandes impérios europeus continentais, advindos com a 1ª Guerra Mundial, que tais
modelagens acabaram sendo implementadas de uma forma formalmente democrática134, ou
pela tomada revolucionária do Estado135.
É com a derrocada da Alemanha na grande guerra, sem que houvesse a real derrota
militar, mas sim, uma série de distúrbios tanto no front como nas cidades e em especial no
porto de Kiel, onde armada se rebelara e a abdicação do kaiser e sua fuga para a Holanda; que
surge o mito da punhalada pelas costas, onde a Alemanha não perdeu a guerra, foi na verdade
traída136.
Neste ambiente, é que surge a chamada República de Weimar e sua constituição que
foi um monumento às liberdades públicas, mas, na medida em que surge pouco depois de
combates de rua em Berlin, entre Spartakistas137 e os “Freikorps”138 e em meio a uma
131
Texto base Direcho Penal Aleman, 4. ed. Santiago- Chile: Castellana Editorial Jurídica de Chile, 1997,
passim.
132
WEZEL, Hans. Direcho Penal Aleman. 4. ed. Santiago-Chile: Castellana, Editorial Jurídica de Chile, 1997,
p. 1.
133
A que pese a Comuna de Paris, que embora tenha aplicado os preceitos marxistas, foi muito efêmera para
produzir resultados mais concretos, a não ser, no que diz respeito a alguns discursos de Lênin.
134
Alemanha Nazista e Itália Fascista
135
Revolução Russa, e mais tarde a China Comunista.
136
“Das Krigsmarine”, conforme <http://www.grandesguerras.com.br/relatos/text01.php?art_id=80>, acesso em
26 de janeiro de 2008.
137
Comunistas
e
socialistas
como
Rosa
de
Luxembrugo
disponível
em:
<http://www.engels.org/cuader/3_alemania/aleman1.htm>; acesso em 26 de janeiro de 2008.
138
Corpos paramilitares formados por ex-militares nacionalistas, de orientação fascista que daria origem às SS
Waffen Nazistas; conforme http://en.wikipedia.org/wiki/Freikorps; acessado em 26 de janeiro de 2008.
44
histórica crise econômica, com uma inflação que fazia a moeda alemã “derreter” a pontos
inimagináveis139, fadada a ter em seu cerne o germe de sua inaplicação e fatal destruição.
Neste ambiente, de golpes e contra golpes140 é que Hans Welzel forma-se e começa a
ministrar aulas de Direito Penal. Este é o mundo onde nasce a teoria finalista da ação.
Welzel, de forma muito natural, até porque não era muito plausível ser diferente no
mundo acadêmico da Alemanha do entre guerras141, endossa, ainda que fosse um teórico sem
a expressão, normas como a Lei de Defesa da Pureza do Povo Alemão142, que retirou a
cidadania de alemães de origem judaica, proibindo e anulando casamentos entre alemães e
judeus, negando inclusive a possibilidade de registro de filhos havidos desta união, mesmo
que a união tivesse ocorrido anteriormente à lei ou fora do território do Reich143.
Foi a forma de Welzel144 manter-se na Alemanha como alemão e em universidades
alemãs, sem que fosse perseguido ou mesmo ter de combater em frontes de alta mortalidade
como na Rússia ou na África do Norte.
Quando termina a guerra, a Alemanha está completamente destruída. Cidades como
Hamburgo e Colônia145, ou Dresden146 simplesmente deixaram de existir. Os meios mínimos
139
Um
pão
chegou
a
valer
milhões
de
Marcos
Alemães,
conforme
<http://www.eco.unicamp.br/publicacoes/economia_sociedade/download/revista_31/02_Couto2.pdf>. acesso em
26 de janeiro de 2008.
140
Hitler foi condenado por uma tentativa de golpe de estado conhecido como “Putsch de Munique”, em 1923, e
cumpriu pena no presídio de Landsberg, onde escreveu “Mein Kanpf’ (Minha Luta) a bíblia do nazismo,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Adolf_Hitler#O_putsch_da_Cervejaria>; acesso em 26 de janeiro de 2008.
141
É preciso que se recorde que pessoas do quilate de Einstein e Freud, foram obrigadas a emigrar para os
Estados Unidos da América e Reino Unido, respectivamente, e Hans Kelsen no mundo acadêmico do Direito,
também se viu na necessidade de fugir para os Estados Unidos da América.
142
Conforme <http://de.wikipedia.org/wiki/Hans_Welzel>, acessado em 26 de janeiro de 2008.
143
Texto abaixo do site http://www.eb23-diogo-cao.rcts.pt/Trabalhos/nonio/xx/lnuremb.htm, acessado em 26 de
janeiro de 2008:
“Lei para a Proteção do Sangue e da Honra Alemães de 15 de setembro de 1935”.
Firmemente persuadido de que a pureza do sangue alemão é a condição primordial da duração futura do Povo
Alemão, e animado da vontade inabalável de garantir a existência da Nação Alemã nos séculos seguintes, o
Reichstag aprovou por unanimidade a seguinte lei, agora promulgada:
Art. 1º - São proibidos os casamentos entre judeus e cidadãos de sangue alemão ou aparentado. Os casamentos
celebrados apesar dessa proibição são nulos e de nenhum efeito, mesmo que tenham sido contraídos no
estrangeiro para iludir a aplicação desta lei.
Só o procurador pode propor a declaração de nulidade.
Art. 2º - As relações extramatrimoniais entre Judeus e cidadãos de sangue alemão ou aparentado são proibidas.
Art. 3º - Os Judeus são proibidos de terem como criados em sua casa cidadãos de sangue alemão ou aparentado
com menos de 45 anos.
Art. 4º - Os Judeus ficam proibidos de içar a bandeira nacional do Reich e de envergarem as cores do Reich. Mas
são autorizados a engalanarem-se com as cores judaicas. O exercício dessa autorização é protegido pelo Estado.
Art. 5º - Quem infringir o artigo 1º será condenado a trabalhos forçados. Quem infringir os arts. 3º e 4º será
condenado á prisão que poderá ir até um ano e multa, ou a uma ou outra destas duas penas.
Art. 6º - O Ministro do Interior do Reich, com o assentimento do representante do Führer e do Ministro da
Justiça, publicarão as disposições jurídicas e administrativas necessárias à aplicação desta lei.
144
Sem a necessidade de ter-se Hans Welzel como um membro do nazismo ou mesmo simpatizante do mesmo.
145
Que foram bombardeadas de forma incessante nos anos de 1941 e 1943; conforme KILLEN, John; A Historia
da Luftwaffe, Rio de Janeiro: Record, 1967, p. 209 e seguintes.
45
de suporte de uma sociedade estavam estilhaçados nas ruas, onde pessoas recolhiam tijolos
das ruas para tentar construir abrigos, ou mesmo viviam nas ruas; onde água ou comida eram
mercadorias quase que inacessíveis aos alemães, que viviam basicamente de rações militares
distribuídas147.
Neste pós-guerra, as revanches eram inevitáveis, mas os aliados ocidentais148
perceberam de pronto que novo inimigo surgia, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas,
que na mentalidade dos líderes ocidentais, e em especial Churchill149, deveria ser detida nas
posições onde estava.
Para tanto, a Alemanha ocupada pelos ocidentais nos termos da conferência de
Yalta150
151
, era peça fundamental no esquema de defesa das democracias ocidentais, e era
preciso refazer-se com velocidade as lideranças locais, em especial as não nazistas, ou ainda
os amorfos, ou sejam, aqueles que não fizeram parte do nazismo, mas também não o
combateram.
Neste planejamento surge o chamado Plano Marshall152, e com o soerguimento da
então Alemanha Ocidental, as universidades começam a se reestruturar, e em 1952, Hans
Welzel é admitido na Universidade de Bonn, como professor de Direito Penal.
Foi este ambiente que gerou o penalista, que teve inegável influência no direito penal
do pós-guerra, e que lhe deu um sentido de que a dogmática penal bastava ao direito penal.
O bom penalista para o direito penal arquitetado por Welzel era aquele que entendia de
forma aprofundada de dogmática jurídico-penal, tratando-a como objeto de estudo e não como
modelagem teórica de ciência.
Logo, a idéia de bem jurídico para ele, era antes de tudo o conceito de algo vital, ou
seja, integrante indispensável da sociedade ou do indivíduo no mundo jurídico, do que um
interesse pessoal ou coletivo a ser defendido pelo sistema.
146
Bombardeada pelos aliados em 1945, e cuja destruição foi de tal ponto, que até hoje se encontra em
reconstrução. Informações rápidas em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Bombardeamento_de_Dresden>; acesso em
26 de janeiro de 2008.
147
E não poucas vezes vendidas ou trocadas por sexo, por soldados aliados.
148
Na realidade os Estados Unidos da América, Reino Unido e França.
149
Ainda que já não fosse Primeiro Ministro, em discurso na cidade nos Estados Unidos da América, cunhou o
termo cortina de ferro, ainda em 1946, conforme <http://pt.wikipedia.org/wiki/Cortina_de_ferro>; acesso em 26
de janeiro de 2008.
150
Texto do resultado da Conferência, em inglês: <http://www.taiwandocuments.org/yalta.htm>; acessado em 26
de janeiro de 2008.
151
Além dos outros paises ocidentais destruídos pela guerra como a Holanda e a Itália.
152
Secretário de Estado Americano que cria um plano de maciços investimentos e doações na e para a Europa
destruída pela guerra. Maiores informações em <http://www.dw-world.de/dw/article/0,1564,568633,00.html>,
acesso em 26 de janeiro de 2008.
46
Daí se forem analisar a definição estampada por ele e qual seria o bem jurídico a ser
defendido pelo direito penal, justapondo a defesa que fez das leis de Nuremberg, poder-se-iam
chegar facilmente a conclusão de que o sectarismo racial era para Welzel em na década de
1930, um bem juridicamente tutelado por ser indispensável à sociedade e ao indivíduo (sic).
Por óbvio, a que pese os puristas poderem taxar a afirmação acima de sofisma, tal
posicionamento só ocorreu153 por motivos de autodefesa política, mas que dá um dos pontos
problemáticos do posicionamento de Welzel. A sua falta de definição de que valores são os
defensáveis.
Na realidade Welzel reafirma de certa forma o dito por Von Liszt, em que o bem
jurídico é o bem vital para a comunidade e o indivíduo, mas o faz sem delimitar a natureza de
tal interesse, não lhe dando qualquer valor positivo, apenas tecendo-o como necessário e
ponto.
Bem jurídico é um bem vital da comunidade ou do indivíduo, que por
seu significado social é protegido juridicamente. De acordo com sua natureza pode
materializar-se nas mais diversas formas: como objeto psicofísico ou ideaoespiritual (por exemplo, tradição, a vida, a honra), o como estado real (p. ex, a
tranqüilidade do lar), o como relação vital (p. ex., o matrimonio ou o parentesco), o
como relação jurídica (p. ex. a propriedade, o direito de caça), ou uma conduta de
um terceiro(p. ex. descer de fidelidade do funcionário público, bem jurídico
protegido contra a corrupção). Logo, bem jurídico é todo o estado que a sociedade
deseje que o direito resguarde de lesões. O apanhado dos bens jurídicos não constitui
um agregado atomizado, mas sim a própria ordem social, e, por isso, o significado
de um bem jurídico não deve ser analisado isoladamente em relação a ele mesmo,
sem conexão com toda a sociedade ordenada.
Deve-se diferenciar o bem jurídico do objeto do bem jurídico.
Normalmente ambos coincidem: nos §§ 211 e ss. A vida é tanto bem jurídico como
objeto material; entretanto, no § 267 o bem jurídico é a segurança dos negócios
jurídicos, e na realidade seu objeto é o documento.
Evidentemente o Direito Penal não oferece aos bens jurídicos proteção
absoluta no que tange a possíveis lesões, pois cada bem jurídico tem que participar
ativamente da vida da sociedade e com isto, até certo ponto, coloca-se em perigo
(lembrando-se apenas da quantidade de condutas que colocam em perigo a vida, e
que são proibidas no trânsito moderno). O Direito Penal outorga proteção aos bens
jurídicos, apenas agressões que se realizam de determinadas maneiras. 154
153
Espera-se.
“Bien jurídico es un bien vital de la comunidad o del individuo, que por su significación social es protegido
jurídicamente. De acuerdo al substrato puede aparecer en las más diferentes formas: como objeto psicofísico o
espiritual-ideal (por ejemplo, aquél, la vida-éste, el honor), o como estado real (p. ej., la tranquilidad del
hogar), o como relación vital (p. ej., el matrimonio o el parentesco), o como relación jurídica (p. ej., la
propriedad, el derecho de caza), o aun como conducta de un tercero (p. ej., deber de fedelidad del empleado
público, bien jurídico protegido contra el soborno). Luego, bien jurídico es todo estado social deseable que el
Derecho quiere resguardar de lesiones. La suma de los bienes jurídicos no constituye un montón atomizado,
sino el orden social, y, por eso, la significación de un bien jurídico no há de apreciarse aisladamente en
relación a El mismo, sino solo en conexión con todo el orden social.
Hay que distinguir entre bien jurídico y objeto material. A menudo ambos coinciden: em los §§ 211 y ss. la vida
es tanto bien jurídico como objeto material; pero en el § 267 el bien jurídico es la seguridad del tráfico jurídico;
en cambio el objeto material es el documento.
154
47
É de se ver que na realidade, Welzel sequer detêm-se no tema mais que poucas linhas,
pois, intimamente, como demonstrou a vida toda, o conteúdo axiológico do interesse a ser
tutelado era nele de cunho político-ideológico.
Aliás, esta é a sobra que paira na história do direito penal alemão, pois, as
condenações havidas nos tribunais do III Reich, o foram de forma constitucionalmente válidas
e alicerçadas em normas vigentes; com sustentáculo na dogmática penal teorizada pela escola
de Welzel.
Obviamente que após os julgamentos de Nuremberg, e a necessidade de ter-se uma
massa crítica alemã, de preferência anticomunista155, tais filigranas éticas, e o silêncio
obsequioso dos juristas alemães durante o regime nazista, foram relegados a meros detalhes
sem importância.
5.5 Bem jurídico na visão de Günther Jakobs
Um dos mais instigantes e polêmicos posicionamentos teóricos no que diz respeito ao
bem jurídico penal tutelado é a de Günther Jakobs.
Günther Jakobs, professor da Universidade de Bonn, aliás, sucessor de Hans Welzel,
traça um modelo teórico, embasando-se diz ele na realidade, sustentando a teoria
funcionalista, em que inexiste um bem jurídico individualizado em cada delito, mas sim, uma
funcionalidade do direito penal em proteger o próprio sistema jurídico como um todo, através
da vigência da norma. 156
O professor germânico, em um primeiro momento estabelece que um crime enquanto
conduta é um ato contra a norma, e sendo assim a pena é uma resposta a esta agressão157; e
partindo daí, coloca que, a proteção de um bem jurídico é um equivoco e que na realidade, o
Evidentemente el Derecho Penal no ofrece a los bienes jurídicos protección absoluta respecto de posibles
lesiones, pues cada bien jurídico tiene que participar activamente en la vida social, y con esto, hasta cierto
grado, se le pone en peligro (recuérdese solamente la gran cantidad de hechos de peligro contra la vida que no
son prohibidos en el tránsito moderno). El Derecho Penal otorga protección a los bienes jurídicos solo contra
agresiones configuradas de determinada manera”.
WEZEL, Hans. Direcho Penal Aleman. 4. ed. Santiago-Chile: Castellana, Editorial Jurídica de Chile, 1997, p.
5.
155
E é de bom alvitre não se esquecer que o Nazismo agiu sempre como uma força brutalmente anticomunista.
156
A base para este tópico é o texto: JAKOBS, Günther, Como protege el Derecho penal y qué es lo que
protege? Contradicion y prevención; proteccion de bienes jurídicos y protección de la vigência de la norma.”;
in “Los Desafíos del “Derecho Penal en el Siglo XXI. Lima - Peru: Editora ARA, , 2005, páginas 137 e ss.
157
Na realidade Jakobs usa o termo rebelião, ou seja, um ato volitivo e racional.
48
direito é uma relação interpessoal e é através desta relação que o direito protege
eventualmente a algum bem.
Conceitualmente a tutela penal seria para este, exercida para resguardar uma relação
cognitiva da norma, não apenas um direito isolado e ensimesmado, ou como diz Jakobs,
“flutuando no ar”. Eles, os direitos, só existem na medida em que haja um titular, um sujeito
de direito, pois os direitos, sejam eles quais forem, só o são relevantes na medida em que
sejam utilizados ou efetivados por sujeitos, sejam aqueles direitos individualizados158 ou
coletivos159, certos160 ou difusos161.
Logo, os bens jurídicos, não existem como categoria ôntica sem que haja um sujeito,
que lhe dê sentido e efetividade; quase como se os direitos fossem instrumentais de sujeitos,
sem sentido ou valor se não existir alguém que lhes dê movimento e utilidade.
Portanto, ao seguir-se esse raciocínio, o que importa não são exatamente os bens
jurídicos, mas sim os titulares destes; na medida em que são os personagens e não os
instrumentos que realmente importam para o direito penal; pois é ao sujeito que serve o
direito. Daí talvez o termo bem jurídico tenha um sentido material de instrumento a ser
utilizado162, dando utilidade aos meios jurídicos de tutela.
Assim sendo, Jakobs sentencia, sem meias palavras, que o direto penal não tutela
diretamente bens, mas sim sujeitos, na medida em que protege a possibilidade163 ou a
capacidade164 de exercerem os direitos que tem ao seu dispor. Qualquer tutela a bens é
indireta e reflexa.
Por outro lado, a idéia do Direto Penal como protetor de bens jurídicos
só pode ter o significado de se proteger a uma pessoa ou a qualquer pessoa, em um
coletivo imaginado de todas as pessoas, em suas relações com outra pessoa, contra a
lesão dos direitos havidos dobre seus bens. 165
158
Vida, honra, liberdade.
Patrimônio empresarial, vida partidária, família.
160
Contas bancárias, integridade física, liberdade sexual.
161
Relações de consumo, Ordem econômica, Meio-ambiente.
162
Exercido diriam os clássicos
163
Tem de se estar vivo para exercer o direito à vida
164
Tem de se estar são para viver-se à plenitude.
165
“Por lo tanto, la idea del Derecho penal como protección de bienes jurídicos solo pode significar que se
protege a uma persona o a la generalidad, em cuanto colectivo imaginado de todas las personas, em su relacón
com outra persona, contra la lesión de los derechos sobre sus bienes”.
JAKOBS, Günther, Como protege el Derecho penal y qué es lo que protege? Contradicion y prevención;
proteccion de bienes jurídicos y protección de la vigência de la norma.”; in “Los Desafíos del “Derecho Penal
en el Siglo XXI”, Peru – Lima: Editora ARA, 2005, p.148
159
49
Mas se assim o é, as relações intersubjetivas, em um mundo juridicamente formatado e
organizado, são efetivadas, garantidas ou limitadas através de regras166; e são elas que
proíbem lesões, não protegendo diretamente bens jurídicos em si mesmos, mas garantindo o
exercício de direitos titularizados por alguém, ainda que este sujeito seja difuso167.
Nesta esteira de pensar, elabora-se também a conclusão de que os indivíduos,
elementos constitutivos do tecido social, são simultaneamente sujeitos de direitos e de
deveres, na medida em que o regramento da interação dos atores sociais é voltado de forma
genérica, universal e impessoal a eles próprios, pois sua cognição é geral, formal e por todo e
qualquer um a que seja destinado.
Assim, diz o teuto, que o importante é a proteção da norma, das regras que garantem o
exercício de titularidade dos bens jurídicos sob a ótica dos sujeitos; pois a teoria da defesa das
normas, além de ser mais ampla e exata, não renega o bem como objeto, mas coloca o sujeito
como o fator principal, na medida em que o garante perante o todo.
Portanto, não é o bem ou o direito enquanto objeto que o direito penal tutela, mas sim
a norma, e com isto a relação jurídica entre os sujeitos que a norma penal incriminadora visa a
proteger.
Conseqüentemente, as incidências não se ordenam em bases de bens,
mas sim através de regras, ou seja, por conta de relações entre pessoas (ainda estas,
desde logo, setorialmente possam aparecer também como titulares de bens),
dizendo-se de outra maneira, através de determinadas expectativas normativas, ou
seja, através de normas que, por sua vez, não são bens de pessoas individualizadas.
Uma ordem social só pode ser representada como uma ordem de bens em âmbitos
muito restritos, e a contrário senso, com caráter geral – e incluindo aqueles âmbitos
– se trata de uma ordem entre pessoas, na qual os bens em parte, ou seja, nos deveres
positivos, são de uma relevância secundária. O Direito Penal protege a eficácia das
normas, e só de modo mediato e parcial, protege os bens jurídicos. 168
Partindo-se desta premissa, a pena imposta pela norma penal, nada mais é que a
resposta ao infligir das regras, que garantem a estabilidade e sanidade dos atores sociais.
166
O tradutor espanhol foi nada mais nada menos que Manuel Cancio Meliá, e uso a palavra “role” por significar
regras e não norma ou leis.
167
Como no caso dos crimes ambientais de mera conduta
168
“En consecuencia, las competencias no se ordenan sobre la base de bienes, sino a través de roles, es decir, a
traés de relaciones entre personas (aunque éstas, desde luego, sectorialmente puedan aparecer también como
titulares de bienes), o, dicho en otras palabras, a través de determinadas expectativas normativas, es decir, a
través de normas que no son, a su vez, bienes de personas individuales. Un orden social solo puede
representarse como orden de bienes en ámbitos muy restringidos, por el contrario, con carácter general – e
incluyendo aquellos ámbitos -, se trata de un orden entre personas, en el que el bien, en parte, es decir, en los
deberes positivos, es de una relevancia en todo caso secundaria. El Derecho penal protege la vigencia de la
norma, y solo de modo mediato y parcial también bienes”.
JAKOBS, Günther. Como protege el Derecho penal y qué es lo que protege? Contradicion y prevención;
proteccion de bienes jurídicos y protección de la vigência de la norma; in YACOBUCCI, Guillermo J. et. al Los
Desafíos del “Derecho Penal en el Siglo XXI”, Lima-Peru: Editora ARA, 2005, p. 152.
50
Veja-se para finalizar que todo o modelo de Jakobs é baseado na cognição das normas
e dos reflexos de uma lesão causada a elas, a ponto do modelo proposto por ele diferenciar os
termos lesar e lesionar169, onde a primeira figura o ato irrelevante, e na segunda o fato é
volitivo e proibido. Para ele a resposta ao fato lesivo é a pena, na medida em que pune170 para
garantir a estabilidade e credibilidade do sistema jurídico; enfim, como ele mesmo diz uma
interação simbólica entre ator, direito, regra e pena171.
169
JAKOBS, Günther. Op. Cit. p. 150
Intrinsecamente um sofrimento pessoal para ele.
171
JAKOBS, Günther. Op. Cit. ,p. 150.
170
51
6 DEFINIÇÕES DE DELITO
As sociedades, todas elas, desde os seus primórdios criaram limites de conduta interna,
na medida em que determinadas ações geravam danos ou riscos que, de forma quase que, para
manter-se a estrutura social, se fazia necessária esta determinação geral do proibido.
Com esta fundamentação, a maioria dos penalistas considera o delito além de uma
característica social, mas também como uma definição de juízo de valor, na medida em que o
conceito de justo ou injusto é um juízo de valor, que se faz através de um processo
interpretativo da realidade. Assim, a avaliação do injusto, pode prescindir de relações sociais
reais, na medida em que o legislador pode prever o proibido, independentemente de que o fato
real ocorra.
Aplicável à teoria do injusto, a idéia racional implica que a
contrariedade ao direito, por derivar de procedimento gnosiológico de princípios a
priori e não unicamente legais, se assenta como uma questão de suprapositividade.
Isto quer dizer que o poder de punir não se legitima tão-só com a ruptura formal dos
deveres legalmente impostos ou com a violação da proibição positivada, senão pelo
atendimento do processo racional de sua criação. Rigoroso adepto do idealismo
kantiano, assim se manifesta NAUCKE: “Em relação à questão da legitimação das
normas jurídico-penais, a suprapositividade não concorre com a constituição
verdadeira é um conceito suprapositivo. A legitimação das normas jurídico-penais
deriva, portanto, dos argumentos suprapositivos ou de uma suprapositividade
constitucionalmente instituída”. Em face de um simples acontecimento irregular do
trânsito de veículos, no qual, apesar de não haver ocorrido qualquer dano, se
constatou a violação de uma norma de circulação – um motorista cruza uma rua em
meio ao sinal amarelo de advertência, mas não se produz acidente porque o outro
motorista aciona os freios de seu carro a tempo de evitá-lo -, entende NAUCKE que
a decisão acerca de sua antijuridicidade continua constituindo uma questão de
suprapositividade, porque não se trata de simples subsunção do fato à norma, senão
de se determinarem os limites da esfera de liberdade daqueles que se dedicam a
participar do trânsito. O injusto assenta seu fundamento na decisão racional,
suprapositiva, e não se identifica, por isso, com a infração à norma, resultante da
experiência. Essa decisão racional suprapositiva se expressa na relação metafísica
que a própria norma apresenta em face dos princípios que regem o entendimento, e
dos imperativos categóricos. 172
O delito é um desvalor de conduta, mas o é na medida em que proíbe lesões a bens
jurídicos, ou, a riscos intoleráveis de lesões, proibição que é a verdadeira alma da norma
penal, seu verdadeiro pressuposto, que descreve, tipifica o delito, o proibido, o injusto, o
intolerado pelo corpo social.
As concepções jurídicas desempenham também um papel decisivo na
determinação do alcance do ilícito penal e de um modo particular as concepções
acerca das relações entre o Direito penal e a Ética social. Seguindo o critério
inspirador do nosso Código penal de 1848, não é função do direito penal a tutela da
totalidade da ordem ético-social, mas sim apenas na medida em que seja necessário
172
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 13
52
para a conservação da sociedade. O Direto penal limita-se a tutelar as normas
fundamentais da Ética social.173
Portanto, uma das definições possíveis para o conceito de delito, é que ele é um
proibido, e o é por conta da imposição de valores havidos pela sociedade, valores,
notadamente de ordem ético-sociais, mas sempre tendentes a proteção de bens jurídicos de
lesões ou perigos intolerados.
Este proibido, o crime, é definido por lei formal, que estabelece a descrição de
condutas proibidas, posto que estas gerem resultados, que são intoleráveis.
Entretanto, tais proibições só têm sentido na medida em que o não respeito à proibição
pelo sujeito tenha uma conseqüência jurídica. Tal conseqüência, a pena, carrega consigo a
profunda discussão sobre seus fins, além de quais sejam os seus fundamentos, mas
evidentemente sua natureza mais clara e juridicamente válida, é ser a resposta à conduta
criminosa.
Por fim, o delito pode, e na verdade tem várias definições, conforme o ângulo que se
tenha avaliada a conduta proibida.
Pode ser materialmente um fato, axiologicamente um desvalor de conduta, ou
analiticamente um conjunto, uma conduta típica, antijurídica e culpável.
Esta última definição de crime é a mais complexa delas, e a mais científica, pois
desdobra o proibido, colocando às claras os seus componentes, sua estrutura mais íntima, o
agir do delito, a descrição do proibido e suas vontades e a necessidade de agir de forma não
proibida desde que se saiba e se possa saber o que é proibido.
É sobre esta última definição, a analítica que o delito será estudado.
6.1 Modelo Analítico de Crime
A definição analítica de crime tornou-se quase que um mantra, tanto que se repete a
postura de que o crime é uma conduta comissiva ou omissiva, típica, antijurídica e culpável.
A evolução de tal modelo foi lenta, na medida em que foi construída passo a passo,
desde Anselm von Feuerbach, que no seu “Lehrbuch” de 1801 estabelece a primeira definição
analítica do delito, dando início ao chamado por Welzel de moderno direito penal.
173
“Las concepciones jurídicas desempeñan también un papel decisivo en la determinación del ámbito de lo
ilícito penal y de un modo particular las concepciones acerca de la relación entre el Derecho penal y la Ética
social. Según el criterio que inspiraba ya nuestro Código penal de 1848, no es función de Derecho penal la
tutela de la totalidad del orden ético-social sino solo en la medida en que sea necesario para la conservación de
la sociedad. El Derecho penal ha de limitarse a tutelar las normas fundamentales de la Ética social.”
MIR, José Cerezo, Derecho Penal Parte General. São Paulo e Lima: RT e ARA, p. 30.
53
A ciência exerceu uma influência decisiva na configuração do Direto
Penal do século XIX. Conforme Anselm von Feurbach,, um partidário do criticismo
de Kant, inaugura a ciência jurídico-penal moderna, caracterizada por uma
conceitualização precisa e clara sistemática em relação ao seu objeto (Lehrbuch,
1801). Seu trabalho legislativo, que marcou época, foi o Código bávaro de 1813, que
chegou a ser o modelo da legislação alemã do século XIX por sua sistemática estrita,
precisão conceitual, dosimetria da pena sem prejuízo da discricionariedade do juiz,
graduação das penas, e, por último, por conta de sua concisão. Entre as inúmeras leis
penais, particularmente nos meados desse século, destaca-se como a obra mais
vigorosa o Código Penal prussiano de 1851, no qual havia influído, junto ao
esplendoroso florescimento da ciência alemã, o Code Penal de Napoleon de 1810.
Com algumas melhoras, converteu-se n nosso Código Pénal imperial de 1871.174
Modernamente se tem que o crime é uma conduta, ou seja, uma atividade externa ao
sujeito que realiza um ato proibido, com ou sem resultado material aquilatável175.
A conduta pode ser tanto comissiva, ou seja, uma atividade concreta, ou omissiva,
uma inação em si mesmo proibida176, mas ainda assim, podem existir circunstanciais em que
embora exista a conduta esta não se imputa proibida ao sujeito, posto que ao direito penal,
importa apenas as condutas voluntárias. Assim, condutas havidas sob égide de coação física
absoluta, movimentos reflexos e estados de inconsciência, lhes são indiferentes.
A conduta humana, base de toda a reação jurídico-penal manifestase no mundo exterior tanto em atos positivos quanto em omissões. Ambas as formas
de comportamento são relevantes para o Direito Penal, daí porque a distinção que o
art. 1º do Código Penal espanhol faz entre ações e omissões. Sobre ambas as
realidades ontológicas constroem-se o conceito de delito, com a adição dos
elementos fundamentais que o caracterizam. Por isso, antes de estudar estes
elementos, convém analisar previamente o conceito de ação ou omissão, cada um de
por si. A ação e a omissão cumprem, portanto, a função de elementos básicos da
teoria do delito.
Algumas vezes, emprega-se o termo “ação”, incluindo aí também a
“omissão” (ação criminal, ação punível), mas esta não é mais do que forma
imprecisa de linguagem, sem maior transcendência científica.
Empregam-se
também
termos
como
“fato”,
“ato”,
“comportamento”, etc., que incluem tanto a ação em sentido estrito quanto a
omissão, sem que com isso se equiparem estes conceitos, os quais continuam sendo
realidades distintas e com distinto significado. A ação positiva ou ação em sentido
estrito é a forma de comportamento humano mais importante do Direito Penal,
174
“La ciencia ejerció una influencia decisiva en la configuración del Derecho Penal del siglo XIX. Con Anselm
v. Feurbach, un partidario del criticismo de Kant, comienza la ciencia jurídico-penal en sentido moderno,
caracterizada por una conceptualización precisa y una clara sistemática en relación con el objeto (Lehrbuch,
1801). Su trabajo legislativo, que marcó rumbos, fue el Código bávaro de 1813, que Ilegó a ser el modelo de la
legislación alemana del siglo XIX por su sistemática estricta, precisión conceptual, determinabilidada de las
penas sin perjuicio de la libertad discrecional del juez, graduación de las penas, y, por último, no menos por su
concisión. Entre las innumerables leyes penales particulares de mediados de siglo se destacó como la obra más
vigorosa el Código Penal prusiano de 1851, en la cual había influido, junto al esplendoroso florecimiento de la
ciencia alemana, el Code Pénal de Napoleón de 1810. Con algunas mejoras se convirtió en nuestro Código
Penal imperial de 1871.”
WELZEL, Hans. Derecho Penal Aleman, 4. ed., Santiago de Chile: Editorial Jurídica de Chile, 1997, p 13
175
MUÑOZ CONDE, Francisco, Teoria Geral do Delito, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre-RS, 1988,
p. 10.
176
WELZEL, Hans. Op. Cit. p. 11
54
servindo, ao mesmo tempo, de referência à omissão. Por isso, começamos por ela.
177
Entretanto, as condutas, ativas ou não, para serem delitos, devem ser proibidas através
de mecanismos juridicamente válidos.
Ernst Von Beling, em 1906, trabalhou sobre este conceito, descrevendo um sistema
anterior ao século XVIII, em que a conduta poderia ser antijurídica e culpável, e que o Juiz
poderia aplicar uma pena a qualquer conduta que lhe desagradasse, posto seria sempre
antijurídica.
A prática jurídico-penal comum havia estendido de tal modo o poder
judicial, que o juiz podia punir toda ilicitude culpável. Toda ação antijurídica e
culpável era por si só uma ação punível. Contra isso o liberalismo nascente do
século XVIII dirigiu seus ataques, afirmando a insegurança jurídica que tal sistema
implicava: na falta de uma firme delimitação das ações que pudessem ser
consideradas puníveis, o juiz podia submeter à pena toda ação que lhe desagradasse,
reputando-o a antijurídica, e podia impor arbitrariamente uma pena grave ou leve
para toda ação considerada punível. 178
Para este pensador alemão, o código penal, ou qualquer lei penal era um catálogo de
delitos, na medida em que limita a possibilidade de punição à conduta estabelecida pela
norma.
Desse modo, o atual Direito Penal é reduzido a um catálogo de tipos
delitivos. A antijuridicidade e a culpabilidade subsistem como notas conceituais da
ação punível, mas concorre com elas, como característica externa, a tipicidade
(adequação ao catálogo) de modo que, dentro do ilícito culpável, está delimitado o
espaço no interior do qual elas são puníveis (assim como, em uma lei aduaneira, o
conceito de objetos taxados é obtido a partir da relação da lei genérica com a
tarifação alfandegária). Ação punível é apenas a ação tipicamente antijurídica e
culpável. 179
Estes paradigmas de proibição, descritos de forma objetiva pela norma penal
incriminadora, recebeu do pensador alemão o nome de “tatbestand”, que correspondia não a
um fato, mas sim ao conceito de corpo de delito.
Deve-se a Beling a elaboração do conceito de tipo, Tatbestand, que
anteriormente correspondia à noção de corpus delicti. Tinha, portanto, um
significado processual. Alguns autores alemães posteriormente consideraram como
Tatbestand o conjunto dos elementos objetivos e subjetivos necessários à imposição
da sanção penal.
Para Beling, o tipo é a descrição objetiva do crime, realizada pela
norma penal.
177
WELZEL, Hans. Op. Cit., p. 17
VON BELING, Ernst. A Ação Punível e a Pena. São Paulo: Ed. Rideel, 2006, p. 27
179
VON BELING, Ernst. Op. Cit. p. 28
178
55
A tipicidade diferencia e especifica as condutas criminais em seu
aspecto objetivo. O tipo constitui apenas e tão-somente a descrição objetiva, não
encerrando elementos subjetivos, nem possuindo conteúdo valorativo 180
Este conceito, evidentemente evoluiu durante o século XX, e em especial, com a
chamada teoria finalista da ação, cuja evolução data da década de trinta, onde o próprio tipo
se subdivide em uma duplicidade congruente, onde a descrição do injusto deve ajustar-se ao
querer do agente.
Para o finalismo, a conduta do agente deve ser direcionada ao um fim, onde a
valoração também está vinculada ao ato, e não somente ao resultado181, de forma que o ato
desvalorado, impõe que este seja volitivo e direcionado.
Com este posicionamento, o conceito de tipo estruturou-se em dois aspectos, o seu
modelo normativo objetivo (a descrição da conduta proibida) e seu modelamento subjetivo (a
vontade de fazer, ou a falta de cautela no que se fez – dolo e culpa).
Assim, o conteúdo do tipo, admitia pela primeira vez de um componente subjetivo que
levou os elementos dolo e culpa a migrarem da culpabilidade para a tipicidade, formando seu
eixo subjetivo.
Assim, o dolo é a consciência e vontade da conduta típica, onde a consciência é o
conhecimento de que o fato é um proibido e se tem a vontade direcionada a sua realização.
Ao contrário do que ocorre em outras legislações mais recentes, nosso
CP define o que se deve entender por dolo, ao estabelecer que o crime é doloso
“quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”(art. 18, I).
Dolo é a consciência e a vontade na realização da conduta típica.
Compreende um elemento cognitivo (conhecimento do fato que constitui a ação
típica) e um elemento volitivo (vontade de realizá-la).
A consciência da ilicitude (ou da antijuridicidade) da ação, que,
segundo a doutrina causal, é elementar ao dolo, em realidade não o integra,
pertencendo à culpabilidade, como elemento essencial ao juízo de reprovação (cf. nº
191, infra). 182
Já a culpa, é a falta de uma cautela em relação à conduta do agente, ou seja, a
inobservância de um dever objetivo de cuidado, que produz um resultado que embora não
querido era objetivamente previsível.
Culpa é a inobservância do dever objetivo de cuidado manifestada
numa conduta produtora de um resultado não querido, objetivamente previsível.
A estrutura do tipo de injusto culposo é diferente da do tipo de
injusto doloso: neste, é punida a conduta dirigida a um fim ilícito, enquanto no
injusto culposo pune-se a conduta mal dirigida, normalmente destinada a um fim
penalmente irrelevante, quase sempre lícito. O núcleo do tipo de injusto nos delitos
culposos consiste na divergência entre a ação efetivamente praticada e a que devia
180
REALE Jr, Miguel. Teoria do Delito. 2. ed. São Paulo: RT, 2000, p. 40
WELZEL, Hans. Derecho Penal Aleman. 4. ed., Editorial Jurídica de Chile, Santiago de Chile, 1997, p 1
182
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal – Parte Geral. 16. ed., Rio de Forense, 2003, p. 209
181
56
realmente ter sido realizada, em virtude da observância do dever objetivo de
cuidado. 183
Durante a estipulação do conteúdo tanto do dolo como da culpa, subtipos destes
elementos acabaram sendo definidos, como dolo eventual e culpa consciente; mas sempre se
estipulando como características especializadas destes elementos do crime.
No tipo subjetivo, agrega-se o conceito de culpa, qual seja a realização do proibido,
por conduta não dolosa, mas penalmente relevante, ou seja, um tipo penal aberto, preenchido
ou completado por uma valoração judicial.
Os tipos de imprudência, devido à variabilidade das condições ou
circunstâncias de sua realização, são tipos abertos que devem ser preenchidos ou
completados por uma valoração judicial e, por isso, não apresentam o mesmo rigor
de definição legal dos tipos dolosos. Entretanto, como o tipo objetivo dos crimes de
imprudência é idêntico ao tipo objetivo dos crimes dolosos correspondentes, e os
critérios de definição da imprudência se enraízam em normas jurídicas, regras
profissionais e dados da experiência, não parece haver lesão ao princípio
constitucional da legalidade. Afinal, como observam JESCHECK/WEIGEND, o
leigo é capaz de compreender melhor o comportamento imprudente do que alguns
conceitos jurídicos como dolo eventual, legítima defesa, etc.
A definição de imprudência se fundamenta em critérios objetivos e
pressupõe uma relação de correspondência com a capacidade individual do ser
humano, em geral; não obstante, a capacidade individual do cidadão pode,
concretamente, ser inferior (um motorista com visão fraca, por exemplo) ou superior
(o motorista é um piloto de corridas) à medida pressuposta na definição. A variação
da capacidade individual concreta em relação à medida abstrata de definição da
imprudência está na origem da controvérsia sobre o momento sistemático de
avaliação dessas diferenças pessoais: se as diferenças de capacidade individual
devem ser consideradas somente na culpabilidade, segundo o critério da
generalização, ou se devem ser consideradas já no tipo de injusto, conforme o
critério da individualização. 184
A que esse o código penal brasileiro enumerar as causas de culpa, talvez por herança
do causalismo penal, ou ainda pelo velho ranço dos tipos de culpa aquiliana, tal se faz à
contrariedade metodológica da orientação finalista deste diploma legal.
A lei penal brasileira define o chamado crime culposo como resultado
causado por imprudência, negligência ou imperícia (art. 18, II, CP) – na verdade,
uma enumeração de hipóteses de comportamentos culposos herdada do modelo
causal, em contradição com os fundamentos metodológicos do modelo final,
paradigma teórico da reforma da parte do Código Penal.
A literatura jurídico-penal contemporânea trabalha, também, com
dois critérios principais para definir imprudência: a) o critério fundado no conceito
de dever de cuidado, próprio da posição dominante desde WELZEL até
JESCHECK/WEIGEND, que define imprudência como lesão do dever de cuidado
objetivo; b) o critério fundado no conceito de risco permitido, relacionado à teoria
da elevação do risco desenvolvida por ROXIN, que define imprudência como
criação ou realização de risco não permitido. As abordagens do fenômeno da
imprudência promovidas por esses critérios são complementares e, por isso, a
183
BITENCOURT, César Roberto. Tratado de Direito Penal. V. 1, 8. ed. São Paulo: Saraiva,2003, p. 224
SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. 3. ed., Curitiba: Editora Fórum, 2004, p.
97.
184
57
divergência é mais aparente do que real: o conceito de dever de cuidado define
imprudência do ponto de vista do autor individual e indica a atitude exigida para
situar a conduta nos limites do risco permitido; o conceito de risco permitido define
imprudência do ponto de vista do ordenamento jurídico e indica os limites objetivos
que condicionam o dever de cuidado do autor individual. Assim, pode-se dizer que o
risco permitido, definido pelo ordenamento jurídico, constitui a moldura típica
primária de adequação do dever de cuidado, de modo que a lesão do dever de
cuidado sempre aparecer sob a forma de criação ou de realização de risco não
permitido. Como se vê, esses critérios não se excluem, mas se integram em uma
unidade superior, e sua utilização combinada parece contribuir para melhor
compreensão de conceito de imprudência.
Sob qualquer desses critérios, o tipo de crime de imprudência é
formado por dois elementos correlacionado: em primeiro lugar, a lesão do dever de
cuidado objetivo, como criação de risco não permitido, que define o desvalor da
ação; em segundo lugar, o resultado de lesão do bem jurídico, como produto da
violação do dever de cuidado objetivo ou realização de risco não permitido, que
define o desvalor de resultado. 185
Na realidade, modernamente os modos e critérios de aferição da culpa estão
vinculados ao dever de cautela, para não se atingir um risco não permitido. Neste aspecto o
que ocorre é o dever objetivamente considerado de cautela, esperado de todos.
Este paradigma de cautela tem sua vinculação ao que se denomina sociedade de risco,
no sentido de que o cuidado existe na medida em que o risco surge da própria sociedade
moderna.
O crime culposo não é uma criação antiga, remontada ao mesmo caminhar na história
do delito doloso. Ele é produto da evolução da sociedade tecnológica, que a partir do século
XIX, gerou riscos de eventos lesivos, e trouxe a inevitável reformulação dos conceitos de
injusto, para abarcar este àquele conceito. 186
Esta sociedade que emerge dos oitocentos para vigorar nos séculos XX e XXI, é
embalada em riscos, posto que esteja intimamente ligada à tecnologia que cria. Um exemplo
clássico são os automóveis, que de curiosidade e diversão de membros abastados do tecido
social, passam a ser o principal meio de transporte de pessoas e mercadorias.
Neste caso, o sistema jurídico se adaptou com o tempo, às necessidades que surgiam
de se impor uma cautela objetiva para que as condutas na condução ou trato de automóveis
não criassem um risco intolerável.
Um exemplo claro deste tipo de comportamento adaptativo evolucional do sistema
jurídico, é o Código de Trânsito Brasileiro, que estabelece, não só as condutas delitivas; mas
também deveres juridicamente aquilatados de conduta dos motoristas. 187
185
SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. Cit. p.100.
TAVARES, Juarez, Direito Penal da Negligência, 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2003, p. 05.
187
TAVARES, Juarez. Op. Cit., p. 318.
186
58
Ainda neste conteúdo, mais um elemento do tipo, se estabelece em determinadas
condutas delitivas. Estes elementos são os chamados especiais fins de agir (que na teoria
causal eram chamados de dolo específico). São especificações da finalidade da ação e não
exatamente da conduta em si, como, como no caso do crime de falsidade ideológica.
Identificamos diversas espécies de elementos subjetivos do tipo (de
ilícito):
(a) Há elemento subjetivo do tipo nos crimes que exigem especial fim
de agir (o chamando dolo específico). É o caso das infrações penais em que a
conduta típica deve ser realizada para alcançar um fim que transcende o momento
consumativo do fato punível, como no crime de prevaricação, que já mencionamos
(art. 319, CP). Outros exemplos bem sugestivos são os do rapto (art. 219, CP) em
que o crime se consuma com a subtração ou retenção da vítima (e o dolo se esgota
na vontade dirigida à subtração ou retenção), mas exige que a ação seja praticada
para fim libidinoso; bem como o da extorsão mediante seqüestro: consuma-se o
delito com o seqüestro da vítima, mas o crime exige o fim de obter vantagem como
preço ou condição do resgate ( art. 159, CP).
Nesta primeira categoria entra também o caso dos chamados delitos
com resultado cortado (Binding), nos quais o efeito natural da ação não é exigido
pela lei para a consumação do delito, mas deve constituir o fim de agir. Ex.: perigo
de contágio grave (art. 131, CP), crime no qual a ação é praticada com o fim de
transmitir a outrem a moléstia.
Por igual, entram nesta primeira categoria os chamados crimes
atrofiados de dois atos, nos quais a ação que corresponde ao tipo e que consuma o
crime é praticada com a intenção de realizar o agente uma ação posterior. Ex.:
formar cédulas com fragmentos de notas verdadeiras, para o fim de restituí-las à
circulação (art. 290, CP).
Uma última espécie de infrações penais aqui também deve ser
considerada: a dos crimes contra a honra, nos quais se exige sempre o propósito de
ofender. Este especial fim de agir é elementar ao conteúdo de fato de ação, pois dele
depende a própria existência da ofensa, como ensinava Carrara (Injuria ex affectu
faciendis consistit).
(B) Uma segunda categoria de elementos subjetivos do ilícito é a
constituída por certas tendências subjetivas da ação que aparecem nos crimes que
envolvem atos libidinosos. Tais crimes exigem necessariamente o fim de satisfazer a
própria concupiscência.
(C) São também elementos subjetivos do ilícito certas características
particulares do ânimo com que o agente atua, tais como certos motivos (motivo fútil,
motivo torpe) ou certas formas de ação (crueldade ou perversidade). Nestes casos, o
que realmente existe são elementos que fundamentam ou reforçam o juízo de
desvalor social do fato (Welzel), de tal modo que estamos realmente diante de
elementos (subjetivos) da ilicitude. 188
Por fim, é de se anotar que a conduta típica, tem de ser também relevante, pois o
sistema penal, não age sobre toda e qualquer lesão, mas sim em lesões que sejam relevantes,
ou seja, significativas, e por isso mesmo são proibidas e punidas.
É a partir desta função político-criminal que deve ser levada a cabo
a sistematização da antijuridicidade. Sabe-se que a maioria das tentativas até agora
feitas não passaram de abstrações excessivamente formais ou classificações
aleatórias. Se analisarmos os meios através dos quais o legislador enfrenta o
188
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal – Parte Geral, 16. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003,
p. 214
59
problema da solução social de conflitos, veremos que existe um número limitado de
princípios ordenadores materiais, que determina, nas mais diversas variações, o
conteúdo das causas de justificação. É o seu interagir no caso concreto que fixa o
juízo sobre a utilidade ou lesividade, a licitude ou ilicitude de um comportamento.
Na legítima defesa, por ex., são os princípios da autodefesa e da
proteção à ordem jurídica que fundamentam a regulamentação legal. Isso significa:
todos têm o direito de se defender contra agressões proibidas de forma que não
sofram dano. Mas também quando houver a possibilidade de escapar da agressão,
pode-se exercer a legítima defesa. O princípio da proteção da ordem jurídica (isto é,
a idéia de que o direito não precisa ceder diante do injusto) incide além das
necessidades de autoproteção reprime o princípio da ponderação de bens, que tantas
vezes tem importância fundamental nas causas de justificação. Autodefesa e
proteção da ordem jurídica encontram a sua limitação conjunta somente no princípio
da proporcionalidade, que, atravessando a ordem jurídica como um todo, faz com
que se negue a legítima defesa quando houver total desproporção entre os bens
jurídicos em conflito (isto é, nos conhecidos casos, em que a repulsa de um dano
insignificante causa lesões corporais graves etc.). São, portanto, três os princípios
sócio-reguladores, cujo entrecruzamento orientará a dogmática da legítima defesa; e
ainda se vão demonstrar as conseqüências disso para a interpretação. 189
Por isso, as lesões insignificantes, são atípicas, posto que o tipo descreve condutas
significativamente lesivas, e por via de conseqüência, proibidas.
No entanto, o tipo penal, tem funções bem claras como a fragmentária, ou a
garantidora. Mas uma delas é uma espécie de sinalizadora de contrariedade ao direito daquela
conduta, pois se fosse esta juridicamente acertada, não seria tipificada. Logo, o tipo é
indiciário da antijuridicidade.
Uma vez subsumido (tipificado) o caso de realidade à hipótese de fato
de uma norma penal, o passo seguinte, na averiguação de se esse caso pode
engendrar responsabilidade penal, é a determinação da antijuridicidade, isto é, a
constatação de que o fato produzido é contrário ao direito, injusto ou ilícito.
O termo antijuridicidade expressa a contradição entre a ação
realizada e as exigências do ordenamento jurídico. Diversamente do que ocorre com
outras categorias da teoria do delito, a antijuridicidade não é um conceito específico
do Direito Penal, mas um conceito unitário, válido para todos os ordenamentos
jurídicos, embora tenha conseqüências distintas em cada ramo do direito. 190
O sistema jurídico, antes de linear, é uma unidade jurídica onde o que ocorre é a
existência de setores, tal como galhos de uma árvore. No que concerne ao direito penal, a
conduta, para ser delitiva, deve ser contrária ao direito, o que demonstra que a conduta
criminosa é um ato desvalorado.
Apesar da afirmação da unidade da ordem jurídica como princípio
fundamental para uma coerente e eficaz orientação e ordenação da interação social,
assiste-se a uma fragmentação do ordenamento jurídico em diferentes sectores,
transformados mais em compartimentos estanques do que em verdadeiros e
interdependentes ramos da mesma árvore. Ora a verdade é que este fenômeno de
189
ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 52-54.
MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p.
85.
190
60
isolamento e alheamento recíprocos, para além de não se poder pretender justificar
com as reais e virtuosas especificidades de cada sector do direito, é fonte de
inequívocas conseqüências negativas jurídico-práticas, como, nomeadamente, no
caso da legítima defesa. 191
Tal desvalor da conduta, não é apenas baseado em um critério formal, mas também em
critérios matériais, envolvendo critérios culturais, de utilidade e valoração de bens.
M. E. Mayer, como assevera Everardo Cunha Luna, estabeleceu a
importância do relacionamento entre as normas de cultura e a ciência do direito,
sofrendo a influência das idéias de Binding, de Garofalo e dos pensadores da escola
de Baden.
Em contraposição ao positivismo, cujos limites de indagação proibiam
preocupações acerca dos fundamentos do direito, Mayer, em 1903, lança seu livro
Normas de direito e normas de cultura, procurando analisar o direito no
desenvolvimento da sociedade.
Sociedade, diz Mayer, é uma comunidade de interesses, e para que se
garantam os interesses comuns é necessário que haja uma organização especial, o
Estado. A sociedade organizada como Estado constitui um pressuposto do direito. A
sociedade cria a cultura e esta contribui para formar a sociedade em uma relação
complementar, o que sucede também entre Estado e Direito.
A cultura, continua ele, “é o cultivo do interesse comum e a situação
resultante, matizada por um caráter de valor”. É a cultura uma unidade de realidade
e valor, “uma realidade transformada em realidade valiosa”.
A sociedade, como criadora da cultura, e a cultura, como cultivo dos
interesses comuns, exigem dos indivíduos condutas adequadas a esses interesses,
distinguindo-se a conduta social da anti-social.
A cultura e a sociedade, que o plasma, determinam suas exigências
para a proteção de seus interesses, através das normas de cultura, que podem ser
normas de religião, de moral, de costumes e de direito. 192
Portando, para que se tenha uma conduta delitiva, é necessário que tal seja tanto
formalmente desvalorada, como materialmente desvalorada, o que leva a existência de causas
que retire este desvalor, colocando a conduta em uma posição positiva, sob o prisma
axiológico; ou no mínimo neutra (não proibida).
Por conta disto, a conduta típica, seria juridicamente justificada, se repelisse uma
injusta agressão, atual ou eminente, com os meios e modos necessários (legítima defesa); ou a
quando a lesão ao bem jurídico que a conduta prevê, era necessário para proteger outro bem
jurídico, cuja lesão não era justificável nem admissível (estado de necessidade).
Ainda a dogmática penal elenca o exercício regular de direito e o estrito cumprimento
do dever legal como excludentes da antijuridicidade, ou melhor, definindo, como justificantes
de condutas típicas.
O último elemento da descrição analítica do crime é, também, o mais tormentoso dos
elementos, a culpabilidade.
191
192
CARVALHO, Américo A. Taipa de. A Legítima Defesa. Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 1995, p. 48.
REALE Jr, Miguel. Teoria do Delito, São Paulo: RT, São Paulo, 2000, p. 102-103.
61
A capacidade de entender o injusto da conduta e a possibilidade de comportamento em
conformidade com o direito, talvez, fora desde sempre uma das preocupações mais debatidas
na dogmática jurídico-penal.
Este estudo propõe-se alcançar o esclarecimento do problema da
consciência da ilicitude em direito penal e o critério da sua correta e válida solução.
O problema só ganha sentido, porém, à luz do pensamento da culpa jurídico-penal,
cujo conteúdo constitui o horizonte de toda a sua compreensão e tem por isso de
entrar também na nossa análise. A forma de alcançar semelhante escopo, as
investigações por ele supostas ou exigidas e o caminho que a ele conduz impõem, no
entanto, algumas considerações à maneira de introdução193.
O tema era emblemático desde o período clássico do direito romano, quando no
digesto, o excerto de Paulo, dizia que “Regula est iuris quidem ignorantiam cuique nocere,
facti vero ignorantiam non nocere”194, ou seja, o desconhecimento da lei é irrelevante, no
sentido de que o mesmo é inesculpável, e portanto, inoponível.
Tal era tão certo, que os livros textos do século XIX, ficavam páginas e páginas
demonstrando o que todos deveriam saber sobre o direito e comportar como nele se previa195.
Modernamente, tem-se que a culpabilidade é a capacidade tanto concreta como
abstrata (imputabilidade) de conhecer do injusto e comportar-se conforme o direito. Esta
definição já demonstra que este elemento analítico do crime é composto por três elementos.
Conceito de culpabilidade como juízo de valor negativo ou
reprovação do autor pela realização não-justificada de um crime, fundado na
imputabilidade como capacidade penal geral do autor, na consciência da
antijuridicidade como conhecimento real ou possível do injusto concreto do fato, e
na exigibilidade de conduta diversa determinada pela normalidade das circunstâncias
do fato, parece constituir a expressão contemporânea dominante do conceito
normativo de culpabilidade: um juízo de reprovação sobre o sujeito (quem é
reprovado), que tem por objeto a realização do tipo de injusto (o que reprovado) e
por fundamento (a) a capacidade geral de saber o que faz (b) o conhecimento
concreto que permite ao sujeito saber realmente o que faz e (c) a normalidade das
circunstâncias do fato que confere ao sujeito o poder de não fazer o que faz (porque
é reprovado). 196
O primeiro deles é a definição da possibilidade concreta de conhecer do injusto, ter
capacidade de culpa, ou seja, capacidade mínima de entender do ilícito197. Aqui o que se tem é
a definição dos limites, tanto de imputabilidade como limite cronológico de desenvolvimento
193
DIAS, Jorge de Figueiredo. O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 5. ed., Coimbra
Portugal: Coimbra Editora, 2000, p.01
194
In http://web.upmf-grenoble.fr/Haiti/Cours/Ak/, acesso em 5/07/2008.
195
SOUZA, Braz Florentino Henriques de. Lições de Direito Criminal. 2. ed. Recife, 1872, in
<http://bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/9969/6/Licoes_de_direito_criminal.pdf> acesso em 05/07/2008
196
SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. 3. ed., Curitiba: Editora Fórum, 2004, p.
200
197
SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. Cit. p. 213.
62
humano198, via determinação normativa; como a definição daquela capacidade levando-se em
consideração o estado neuropsiquiátrico do agente, determinando a imputabilidade à contrário
senso, no sentido de que a norma especifica a inimputabilidade199.
Ainda na culpabilidade, existe a definição da chamada semi-imputabilidade200, onde o
agente não tem a capacidade completa de entender o ilícito, uma verdadeira graduabilidade do
poder entender do ilícito201, no sentido de que perturbações da saúde mental, podem diminuir
a condição cognitiva do ilícito, e o tratamento penal, deve ser diferenciado em tais casos.
Sobre este tema, existe também a estipulação de certas circunstâncias como as paixões
e a embriaguês que não afastam, de regra, a capacidade de conhecer o ilícito202.
Os denominados estados emotivos ou passionais, perturbações da
consciência, podem ser assim conceituados: 1. Emoção – sentimento intenso a
passageiro que altera o estado psicológico do indivíduo, provocando ressonância
fisiológica (ex. angústia, medo, vingança, tristeza); 2. Paixão – chamada emoçãosentimento – é a idéia permanente ou crônica por algo (ex. cupidez, amor, ódio,
ciúme).
Esses estados psicológicos fazem parte, em geral, da vida cotidiana
e não há motivo para que recebam tratamento diferenciado da lei penal. Daí que a
emoção e a paixão; salvo quando patológicas (art. 26, CP), não têm o condão de
elidir a imputabilidade penal. Entretanto, podem, em certas circunstâncias, aparecer
como atenuantes (art. 65, III, c, CP) ou causadas de diminuição de pena (art. 121, §
1.º, CP – homicídio privilegiado).
A embriaguez consiste em um distúrbio físico-mental resultante de
intoxicação pelo álcool ou substâncias de efeitos análogos, afetando o sistema
nervoso central, como depressivo/narcótico. 203
Mas, é possível o agente atuar em erro, quando erra sobre elemento do tipo204, sobre o
tipo permissivo205 e o chamado erro de proibição206.
Portanto, tais definições estabelecem normativamente o marco das incapacidades de
conhecer do injusto, um verdadeiro delimitador da relevância da autodeterminação o que
remete ao conceito de comportamento juridicamente não proibido; ou de conformidade com o
direito, como a dogmática trata a matéria.
M. E. Mayer, como assevera Everardo Cunha Luna, estabeleceu a
importância do relacionamento entre as normas de cultura e a ciência do direito,
sofrendo a influência das idéias de Binding, de Garofalo e dos pensadores da escola
de Baden.
198
No caso do Brasil é de 18 anos (art. 27 do Código Penal), mas em outros países, tal limite é variado.
Art. 26 “caput” do Código Penal.
200
Art. 26, parágrafo único do Código Penal.
201
SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. Cit. p. 216.
202
Art. 28 do Código Penal.
203
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal, v. 1, 8. ed., São Paulo: RT, 2008, p. 378
204
Art. 20 “caput” do Código Penal.
205
Art. 20, § 1º do Código Penal.
206
Art. 21 do Código Penal.
199
63
Em contraposição ao positivismo, cujos limites de indagação
proibiam preocupações acerca dos fundamentos do direito, Mayer, em 1903, lança
seu livro Normas de direito e normas de cultura, procurando analisar o direito no
desenvolvimento da sociedade.
Sociedade, diz Mayer, é uma comunidade de interesses, e para que
se garantam os interesses comuns é necessário que haja uma organização especial, o
Estado. A sociedade organizada como Estado constitui um pressuposto do direito. A
sociedade cria a cultura e esta contribui para formar a sociedade em uma relação
complementar, o que sucede também entre Estado e Direito.
A cultura, continua ele, “é o cultivo do interesse comum e a
situação resultante, matizada por um caráter de valor”. É a cultura uma unidade de
realidade e valor, “uma realidade transformada em realidade valiosa”.
A sociedade, como criadora da cultura, e a cultura, como cultivo
dos interesses comuns, exigem dos indivíduos condutas adequadas a esses
interesses, distinguindo-se a conduta social da anti-social.
A cultura e a sociedade, que a plasma, determinam suas exigências
para a proteção de seus interesses, através das normas de cultura, que podem ser
normas de religião, de moral, de costumes e de direito. 207
A efetividade deste componente se traduz na exigência jurídica de que a conduta
humana seja efetivada em conformidade com o direito. Esta exigência se faz como verdadeiro
cerne do sistema jurídico num todo, pois, inexistiria o próprio direito se este não esperasse
que o tecido social fosse por ele regrado, tanto na permissividade, ainda que por pura
defensa208, como nas proibições, nos seus mais diversos níveis de acesso e de
responsabilidades209.
Entretanto, certas circunstâncias ou condições de fato, podem exculpar, ou seja, retirar
a culpabilidade da conduta do agente. Aliás, talvez esta seja a grande descoberta científica do
direito penal no século XX, pois diferenciou as justificantes das exculpantes, com graves e
importantes conseqüências. 210
Veja-se que o direito não espera, e de regra não exige que o indivíduo tenha uma
condita heróica, a ponto de em condições extremas, exigir que se sublime direitos, para
garantir o direito alheio. 211
Um dos exemplos mais candentes de tal situação é a tábua de carneades212, ou ainda, o
naufrágio da medusa213, circunstâncias extremas onde não há como se exigir conduta diversa
da tomada.
207
JESCHECK, Hans-Heindrich et al. Tratado de Derecho Penal. 5. ed., Granada, Espanha: Comares Editora,
2002 , p. 465
208
Art. 5º, inciso II da Constituição Federal.
209
Como por exemplo, infrações de trânsito que podem gerar responsabilizações tanto na ordem administrativas,
como cíveis ou penais.
210
MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p.
125.
211
MUÑOZ CONDE, Francisco. Op. Cit., p. 162
212
Uma tábua para dois náufragos, onde um deverá perecer para que o outro sobreviva.
213
Matar um dos náufragos, para alimentar-se de sua carne e sobreviver.
64
O estado de necessidade exculpante. O estado de necessidade é, antes
de tudo, uma causa de justificação que se encontra informada primeiramente pelo
princípio da ponderação de bens, isto é, pelo princípio de que é lícito sacrificar um
bem jurídico para salvar outro de maior valor (invasão de domicílio para salvar a
vida, aborto terapêutico, etc.).
Existe, todavia, um estado de necessidade em que os bens jurídicos
em colisão são de igual valor: o náufrago que mata o outro para comer sua carne; e
poder sobreviver (naufrágio da Medusa); o náufrago que impede que outro náufrago
se agarre à tábua que afundaria com o peso dos dois (tábua de Carneades). Nesses
casos, a ação realizada para salvar a vida não pode estar justificada pelo princípio de
ponderação de bens, porque o direito protege igualmente a vida de todas as pessoas.
Não obstante, parece excessivo impor uma pena àquele que, nessas circunstâncias,
atua para salvar sua vida, ainda que seja à custa da vida alheia. A idéia da não
exigibilidade de outra conduta aconselha isentar de sanção quem aja nestas
circunstâncias, por mais que o fato seja antijurídico e o autor atue com capacidade
de culpabilidade e com conhecimento da antijuridicidade. 214
Com isto, termina-se o contorno, ainda que ligeiro do crime em sua visão analítica,
onde os componentes do delito colocam desnuda a conduta delitiva. Com isto, o crime será
necessariamente uma conduta típica, antijurídica e culpável.
214
MUÑOZ CONDE, Francisco. Op. Cit. p. 163.
65
7 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ACESSO FORMAL À JUSTIÇA CRIMINAL ATÉ
O SÉCULO XVI
Uma das condições básicas ao exercício da cidadania seja ela quando ou onde for que
exista um grupo social com unidade cultural e submissão a uma regra soberana. Não há como
manter uma sociedade submetida a regras de conduta, sem que haja a possibilidade de
acessarem-se órgãos ou membros desta sociedade, para dirimir conflito e punir danos
intoleráveis.
No entanto, qual é a ótica deste acesso, já que nos casos criminais, o que se tem
dedicado estudos aprofundados é a figura do réu, quem é ele, porque ele é assim, o que fazer e
o que ele pode fazer quando processado e julgado; sem que haja o mesmo aprofundamento do
outro pólo do delito.
Quando o personagem do crime é a vítima, os estudos escasseiam a ponto de se ter
dúvida de sequer ela poderia acessar o sistema judiciário, e se eventualmente o faz, o é de
forma superficial, e em especial no que diz respeito da sua função dentro do órgão judicante.
Daí porque a necessidade de se verificar quais os instrumentos que ela pode manusear,
quais as instituições que ela poderia de forma direta acessar, e quais os resultados que pode
esperar delas.
De outro lado, costuma-se dizer que a grande vítima dos delitos é a sociedade, e tal é
uma realidade, mas é interessante também se verificar que a sociedade vive através de seu
cotidiano, sendo nele que os delitos ocorrem, pois, apenas como exemplo, dos crimes que se
tipificam, os de menor potencial ofensivo, é na realidade, a expressão do próprio cotidiano,
mas que se resolvem dentro das agências judiciárias, ainda que possam, eventualmente, serem
em condições especiais se solucionarem fora do ambiente judicial.
Nestes termos, veja-se o seguinte texto:
AND here it will not be improper to obferve, that although, […] by
the act of the parties mentioned in a former chapter, the law allows an extrajudicial
remedy, yet that does not exclude the ordinary courfe of juftice: but it is only an
additional weapon put into the hands of certain perfons in particular inftances,
where natural equity or the peculiar circumftances of their fituation required a more
66
expeditious remedy, than the formal procefs of any court of judicature can
furnifh.215 216
Logo, o próprio acessar assume uma função chave do cotidiano dos indivíduos dentro
da sociedade, e em especial para a realização da proteção aos bens jurídicos penalmente
tutelados, e a sua estruturação é a chave para esta realização.
Mas para se chegar a isto, é imprescindível que se vejam evoluir destes acessos, e em
especial, na linha de desenvolvimento, que desemboca nos atuais instrumentos, instituições e
resultados do acessar da vítima e do cotidiano à justiça dos casos criminais no Brasil.
7.1 Clãs e Tribos – o Neolítico do Direito.
O início da civilização sob o ponto de vista cultural, por motivos óbvios, não é
coincidente com o surgimento da sociedade humana, posto que esta antecede aquela.
Parte-se desta afirmação por conta de que os humanos, e mesmo os hominídeos
estabeleceram grupos sociais bem antes de terem uma cultura nos termos desenvolvidos que
caracterizam o conceito de humanidade.
Portanto, é para se ter um termo inicial no tempo para discorrê-lo dos meios de
acesso da vítima aos meios de coerção e verificação jurídica de um crime, e tal delimitação
deve ter como base critérios determinados e balizados na própria evolução dos agrupamentos
sociais.217
Com o fim do último período glacial, que ocorreu há mais ou menos 10.000
anos, os grupos humanos sobreviventes218, começaram a formar grupos mais homogêneos,
vinculados sempre em relações de parentesco ou laços cooperativos imemoriais.
215
BLACKSTONE, Willian, in <http://www.yale.edu/lawweb/avalon/blackstone/bk3ch3.htm>, acesso em 02 de agosto de
2008.
Tradução livre: E aqui não será impróprio observar-se, que, embora, [...], a lei permita um
procedimento extrajudicial, ainda que não exclua a corte ordinária de justiça: mas é apenas
mais uma arma colocada nas mãos de algumas pessoas em condições especiais, onde a
equidade natural, na peculiaridade de suas (próprias) circunstâncias, exige um procedimento
mais expedito, do que o previsto no processo formal que qualquer tribunal ou juiz pudesse
oferecer.
216
217
KLEIN, Richard C.; EDGAR, Blake. O Despertar da Cultura, Trad. Ana Lúcia Vieira de Andrade, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2004, p. 100
218
Pois é de se ter que outras espécies humanas como os Neandertais e o Erectus não sobreviveram, e mesmo os
Sapiens, tiveram uma população muito reduzida.
67
Nesta fase o ser humano era eminentemente nômade, no sentido de que não tinha
uma vinculação geográfica, muito embora mantivessem redutos de caça e coletas219, na
verdade eram exímios caçadores e coletores, com divisões bem nítidas de trabalho.220
Neste ponto, é de ter que, muito embora aja na história do direito penal, o
posicionamento em que em um primeiro momento o que existia era uma estrutura de vingança
privada, na realidade, tal não tem o caráter absoluto que nos é colocado a aceitar.
As comunidades do neolítico, caçador-coletoras, tinham evidentemente um
comando político, ou como xamã ou líder religioso, membros aceitos como líderes de forma
mais ou menos pacífica.
Os caçadores têm líderes. Eles podem ser xamãs, indivíduos com
autoridade religiosa, ou simplesmente pessoas que são aceitas como líderes por
serem mais habilidosas. Porém o poder político (Macht = força) é muito difícil de se
aplicar a um povo caçador. Se as pessoas não quiserem obedecer, podem
simplesmente sair do bando ou, aramadas como são, eliminar um chefe indesejado.
É por isso que os Estados modernos têm grande dificuldade em “civilizar” povos
caçadores. Eles não se sujeitam às ordens burocráticas que não compreendem, e
tendem a lutar, se for forçada a obediência. Nos Estados Unidos, quase todas as
sociedades de caçadores nativos tiveram de ser conquistadas em guerras; os
caçadores foram forçados a se tornar agricultores nas reservas. Um alto grau de
mobilidade e habilidade militar é, comumente, característico também das sociedades
pastorais, que são um problema para qualquer Estado, antigos ou modernos. 221
Se assim o era, a liderança, até por conta de ser o poder de decidir elemento
intrínseco daquela, deveria ter o poder de resolver disputas internas do grupo, até mesmo
porque como eram em número reduzido, a simples vingança não poderia ser uma prática
desregrada, sob pena de perderem-se elementos que contribuíam para a sobrevivência do
grupo, até porque a submissão a uma regra divina se faz por indução social, de forma a criar
regras consuetudinárias. 222
Com o aumento da freqüência em determinados lugares, em especial aqueles em
que se concentravam as caças223, começaram a surgir pontos fixos de abastecimento, e com o
passar das gerações, aparentemente, determinados grupos começaram a domesticar
animais224, fazendo-os seguir o grupo humano nas peregrinações entre as estações de caça.
Daí para observar que determinadas plantas, se manejadas, poderiam reproduzirse de forma estável, não demorou muito, e as estações de caça e coleta, acabaram por
219
Como as cavernas de Lascaux parecem determinar.
ARSUAGA, Juan Luis, O Colar do Neandertal, trad. André de Oliveira Lima, São Paulo,Globo, 2005, p.
317
221
SIRLEY, Robert Weaver, Antropologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 26.
222
WOLKMER, Antonio Carlos et al, Fundamentos de História do Direito, 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey,
2006, p. 04
223
Via de regra vales férteis de rios ou lagos.
224
Como a ovelha, possivelmente o primeiro deles.
220
68
perenizar determinadas populações, e assim, surgiu o sedentarismo e a chamada Revolução
Agrícola.
A maior estabilidade da população no espaço possibilitava, pela
primeira vez, às pessoas acumularem bens, diferentemente do que ocorre com os
nômades. Um povo migrante ou caçador não pode realmente reter em seu poder
mais do que pode carregar consigo. Por outro lado, a agricultura fixa o homem à
terra, viabilizando a aquisição de bens materiais, o desenvolvimento da arquitetura,
dos objetos de arte etc. (Isto não sugere que um povo caçador não possa ter formas
de arte. Os esquimós, por exemplo, fazem pequenas esculturas (portáteis), em pedrasabão, e que, segundo dizem, acalmam a quem as acaricia.) Em geral, incremento da
produtividade agrícola implica um maior desenvolvimento cultural e material.
A agricultura propiciou ao homem produzir normalmente muito mais
do que necessitava para o seu próprio consumo, o que gerou um excedente na
produção de alimentos. No México calculou-se, por exemplo, que uma família de
agricultores composta de cinco pessoas usando técnicas tradicionais poderá
produzir, num ano normal, alimento para onze pessoas. Isto significa possibilidade
de sustento para um grande número de indivíduos que não se dedicam à agricultura
como “profissão”: sacerdotes de tempo integral, artistas, arquitetos, filósofos, e
também políticos e soldados profissionais etc. A “apreensão” desse excesso é a
dinâmica essencial do Estado agrário, que precisa então montar um sistema de
impostos. 225
Pois deste momento em diante que será analisado o acesso da vítima ao sistema
jurídico.
Ainda que pareça aleatória, a escolha do aparecimento do sedentarismo havido
com o domínio das técnicas agropastoris, como termo inicial do estudo das vias de acesso da
vítima ao sistema jurídico, tal eleição é natural, pois é a partir deste momento é que começa a
aglutinação dos elementos sociais, o que traz o aumento da complexidade dos papéis sociais
exercidos pelos indivíduos.
Os grupos sociais formados nestes tempos são pequenos, e normalmente giravam
em torno de elementos familiares, parentescos próximos ou místicos, que geravam a
identificação de certa unidade vinculativa entre os membros do grupo, e por via reflexa a
legitimação do comando do grupo226.
Este corpo social é chamado de clã, e tem uma longa existência a ponto de
alguns ainda determinarem a incidência de comando jurídico e a legitimação deste
comando227; e é nele que fixamos os primeiros pontos de acesso ä justiça criminal.
Por óbvio, até mesmo por se falar de fatos ocorridos a mais de 9.000 anos, os
conteúdos explanados são muito mais deduções antropológicas, do que uma estrutura jurídica
observada e catalogada.
225
SIRLEY, Robert Weaver. Antropologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 29.
Ë de se ter em mente que tal vinculação de parentesco pode ter uma origem mítica, como descendência de um
deus, por exemplo.
227
As tribos e clãs do atual Afeganistão são exemplos disto.
226
69
Os humanos sedentários ou semi-sedentários estabeleciam-se em torno de
recursos naturais, como vale férteis de rios que lhes forneciam água e sedimentos, em aldeias,
pequenas aglomerações clânicas, auto-sustentáveis, e por conta disto com uma
regulamentação interna, pois o sedentarismo impõe a necessidade de coexistência dos
elementos sociais e um pequeno espaço geográfico, onde a distribuição de recursos tem de ser
regulados de uma forma ou de outra.
Como o clã estabelecia-se em torno de relações de parentesco, o controle deste
estava vinculado ao patriarca ou matriarca228, ou seja, aquele que era o legitimado pelo corpo
social a exercer o poder político.
Tendo-se isto em mente, a primeira dedução e a de que, as regras “interna
corporis” da aldeia ou clã eram a princípio aplicadas pelo líder do grupo; pois o comando
encampava as decisões de caráter punitivo.
Talvez uma das mais conhecidas mistificações destes tempos, a narrativa de
Abraão de Ur229, patriarca das grandes religiões monoteístas, tem em seu bojo exatamente este
tipo de relação de clã onde o líder enfeixa os poderes de decisão inclusive de caráter judicial.
Além deste modelo, místico é verdade, têm-se ainda as sociedades marcadas pela
tribalização das relações político-jurídicas, como no oriente médio, onde mais vale a tribo ou
clã a que pertence do que as normas gerais que eventualmente existam no espaço geográfico
ocupado230.
Neste mundo neolítico, qualquer acesso ao justo por conta de uma lesão sofrida
se fazia não necessariamente pelo apelo ao chefe, mas certamente pelas regras impostas por
este.
Na realidade, a decantada vingança privada, não era tão privada assim, pois
ainda que houvesse a possibilidade de vingança, esta era regrada na sua possibilidade pelo
chefe do clã, e é COULANGES que coloca serem as normas familiares e por via de
conseqüência clanicas, anteriores à própria cidade, e que davam poderes de juiz ao líder do
clã.
A família não recebeu da cidade as suas leis. Se a cidade tivesse
estabelecido o direito privado, é provável que, instituem-se normas inteiramente
diferentes daquelas aqui estudas por nós. Teria regulamentado segundo outros
princípios o direito da propriedade e da sucessão; com efeito, para a cidade, não
havia interesse na inalienabilidade da terra nem na indivisibilidade do patrimônio. A
228
Existe uma discussão interminável sobre qual o modelo era o predominante no neolítico.
Ver gênesis, escrito aproximadamente no século XV antes de Cristo.
230
Como os berberes que se regem por normas próprias não importando para eles as normas gerais do estado que
eventualmente estejam.
229
70
lei que permite ao pai vender e a te mesmo matar o seu filho (lei que encontramos
vigente tanto na Grécia como em Roma) não foi criado pela cidade. A cidade teria
antes dito ao pai: “a vida de tua mulher e a de teu filho não te pertence, assim como
não te diz respeito sua liberdade; eu os projetei mesmo contra ti; não serás tu quem o
julgarás, quem os matarás; se faltarem aos seus deveres; só eu serei juiz”. Se a
cidade não fala deste modo, é evidentemente porque não pode fazê-lo. O direito
privado existiu antes da cidade. Quando a cidade principiou a escrever suas leis,
achou esse direito já estabelecido, vivendo, enraizado nos costumes, fortalecido pelo
unânime consenso dos povos. Aceitou, não podendo proceder doutro modo e não
ousando modificá-lo senão muito tempo mais tarde. O antigo direito não é obra do
legislador; o direito, pelo contrário, impôs-se ao legislador. Teve sua origem na
família. Nasceu ali espontânea e inteiramente elaborado nos antigos princípios que a
constituíram. Originou-se das crenças religiosas universalmente admitidas na idade
primitiva destes povos que exerciam domínio sobre as inteligências e sobre as
vontades. 231
Com isto, na realidade, mais do que centrar o controle do grupo, estabelece ainda
as regras de resposta possível à eventual lesão de direito.
Aliás, a figura do “Paeter família” do direito romano, na sua formulação mais
arcaica, nada mais é do que reflexo da ordem jurídica existente na sociedade estabelecida em
clãs da qual se originara.
O Patriarca Abraão, o “Paeter Familia” romano, e tantos outros exemplos, nada
mais são que instituições político-jurídicas da primeira forma de agrupamento
geograficamente estável que o gênero humano experimentou, onde a organização ainda que
primitiva e de pequena extensão, já vinculava um órgão por assim dizer por onde, de uma
forma ou de outra passaria a via institucional de reclamos à cerca de lesões de direito e suas
conseqüências.
No entanto, como as áreas de agrupamento não modificavam muito em termos
de distâncias e de terreno ocupado, além de que a população começa a aumentar
vegetativamente, pois aumentando alimentos, e em especial a relativa certeza da existência de
alimentos e abrigo, faz com que a mortalidade seja proporcionalmente menor que os índices
de natalidade, o levam ao aumento da população dos clãs.
Afora isto, mas pelos mesmos motivos, as populações dos clãs próximos
acabavam inexoravelmente misturando-se e gerando outros núcleos populacionais
relativamente autônomos, o que por sua vez geravam com o tempo novos clãs, que como os
que sucedem, cria instituições similares.
Entretanto, tal aumento populacional e de unidades autônomas de natureza
clânica, fazem com que as unidades menores e com vínculos ancestrais comuns, se agrupem
231
COULANGE, Fustel, A Cidade Antiga, 2. ed., São Paulo: Editora Ensino Superior, 1987, p. 88 - 89
71
em unidades maiores e mais complexas, onde os órgãos institucionais232 personificados, ao
invés de fundirem-se, agrupam-se em colegiados, onde as uniões dos clãs dão origem a o que
tradicionalmente chamamos de tribos.
Novamente um texto que nos remonta a esta época são os textos hebraicos
místicos, aos quais conhecemos como antigo testamento233. Estes escritos, mitológicos ou
não, evidentemente sob o ponto de vista sociológico e jurídico, refletem um ambiente real e
vivenciado no período logo anterior à invenção da escrita e posterior ao estabelecimento das
atividades agropastoris. Período onde os agrupamentos humanos, cresceram a ponto de não
mais bastar à estrutura de um clã para que a sobrevivência e proteção mútua proporcionada
pelo grupo fossem eficientes.
Neste modelo mais complexo de corpo social, o equilíbrio de poder, por conta do
agrupamento de líderes de clãs, era uma regra instável e delicada, pois, as vias de acesso ao
poder não eram institucionalmente previstas, por motivos mais do que óbvios, tendo em vista
que não eram os grupos sociais formados por interesses mútuos, mas sim por necessidades
individuais prementes que com o grupo eram viáveis, ainda que a contra gosto dos demais
membros da tribo.
COULANGES estabelece que uma das vias de agrupamento estava no partilhar
de cultos domésticos, quando possível, sem que houvesse um sacrilégio aos deuses
domésticos de cada clã. Para ele as aglutinações religiosas dos clãs levaram ao surgimento das
tribos, e com isto, uma unidade jurídica na medida em que as instituições eram uma unidade
de devoções e por via de conseqüência, respeitadas de forma estável.
A religião doméstica proibia duas famílias misturarem-se e
confundirem-se. Mas era possível que muitas famílias, sem sacrificarem coisa
alguma da sua religião particular, se unissem, pelo menos para a celebração de outro
culto que lhe fosse comum. E foi isto que se deu. Certo número de famílias formou
um grupo, ao qual a língua grega deu o nome de fratria e a latina o de cúria.
Existiria entre essas famílias de um mesmo grupo algum vínculo de nascimento?
Não podemos afirmá-lo. O certo é que esta nova associação não se realizou sem
algum alargamento da idéia religiosa. Ao mesmo tempo em que essas famílias se
uniram, logo conceberam sua divindade superior aos seus deuses domésticos que,
comum a todos, velava por todo o grupo. Erigiram-lhes altar acenderam o fogo
sagrado e instituíram-lhe o culto.
Não havia cúria ou fratria sem o seu altar e o seu deus protetor. Ali o
ato religioso era da mesma natureza do realizado em família. Consistia
essencialmente na refeição em comum; o alimento, tendo sido preparado sobre o
próprio altar, era, por conseqüência, sagrado, e comia-se recitando algumas orações;
a divindade estava presente e recebia a sua parte de alimentos e de bebida.
[...]
232
233
Se é que tal terminologia seja apropriada.
Ver história de José.
72
Cada fratria ou cúria tinha seu chefe, curião ou fratriarca, cuja
principal função era a de presidir os sacrifícios. Talvez, originariamente, suas
atribuições tivessem sido mais amplas. A fratria tinha suas assembléias, as suas
deliberações, e podia promulgar decretos. Na fratria como na família, havia um
deus, um culto, um sacerdócio, uma justiça e um governo. Era como uma pequena
sociedade modelada exatamente sobre a família.
A associação continuou naturalmente a alargar-se, e segundo o mesmo
sistema. Muitas cúrias, ou fratrias, se agruparam, formando assim a tribo,
Esta nova assembléia teve ainda a sua religião; em cada tribo houve
um altar e divindade protetora.
O deus da tribo era ordinariamente da mesma natureza do da fratria,
ou do da família. Era um homem divinizado, um herói, Deste herói derivava o nome
da tribo: por isso os gregos lhe chamaram herói epônimo0. Tinha seu dia de festra
anual. A parte principal da cerimônia religiosa consistia em refeição , em que toda a
tribo tomava parte.
A tribo, como a fratria, tinha assembléias e promulgavam decreto, a
que todos os seus membros deviam submeter-se. Tinham um chefe, tribunus,
phulodariléus. Pelo que conhecemos das instituições da tribo, vemos esta ter sido
constituída, originariamente, como sociedade independente, como se não existisse
acima dela poder social algum. 234
Na mesma esteira, pode-se também, recorrer-se à lingüística, pois, como os
núcleos primários do grupo social eram originários na mesma linhagem235, os meios de
comunicação entre os elementos do tecido social, os mantinham unidos na medida em que
seus interesses, necessidades e cotidianos eram facilmente compreendidos pelos demais
membros. Neste particular, é de se colocar ainda, que a paleolinguística é ciência ainda nova,
mas com desdobramentos instigantes.
Nas tribos, as vias de acesso ao justo, ou ao menos a via institucional de dedução
de alguma pretensão punitiva ou restaurativa, eram plurais na medida em que, se o fato
estivesse circunscrito ao clã, a ele caberia a decisão, mas se o extrapolava as decisões eram
mais elaboradas, pois, nelas também estavam em jogo o equilíbrio de poder interno da tribo,
como será visto mais adiante.
Logo, as normas consuetudinárias ou não, as vias institucionais e as decisões
finais sobre a solução das lesões jurídicas, passavam sempre pelo sistema integrado de
decisão da tribo. Não era uma decisão pessoal ou familiar, ainda que eventualmente o grupo
tribal tenha regra autorizadora neste sentido, sempre existiria uma solução do grupo, em nome
da tribo, como resposta ao indivíduo.
Um exemplo interessante é encontrado no mito de José Bíblico, onde a tentativa
de seus irmãos em matá-lo, era um problema do clã, mas a entrada do clã no império egípcio
foi uma decisão da tribo.
234
235
COULANGES, Fustel, A Cidade Antiga. 2. ed., São Paulo: Editora Ensino Superior, 1987, p. 123, 124-125.
Real ou mitológica.
73
Tanto o modelo bíblico que retrata de forma sintética, os costumes das tribos do
oriente médio, ou o modelo apresentado por COULANGES que traça as protoculturas
mediterrânicas236, demonstram o que as sociedades do neolítico, em especial no período entre
a Revolução Agrícola e o aparecimento da escrita, efetivaram um movimento de
conglomeração de clãs e partilhamento de decisões, criando vias institucionais para soluções
de lesões jurídicas.
Muito embora os períodos expostos tenham ocorrido há milhares de anos, e
ainda prolongaram por outros milhares, se faz interessante a observação de que os modelos
abordados, de uma maneira ou de outra, retratam o período neolítico pós-glaciar de forma
bem consistente, e, foram repetidos pela maioria das populações que passaram, ainda que
parcialmente da fase caçador-coletor, para a agropastoril, e ainda hoje se pode verificar ecos
disto nas sociedades berberes, mongóis ou afeganes, onde os traços e laços com clãs ou
lealdades tribais se impõem, sobrepujando os esquemas normativos estatais. 237
Sintetizando, portanto, nesta longa fase de mais de 5.000 anos, os meios de
reclamação institucional de uma lesão de direito de natureza criminal, passava
necessariamente pelo clã, onde o líder desta célula social decidia a resposta. Logo, o clã era
uma unidade com autonomia jurídica, e nela seus sujeitos eram julgados238.
Com a aglutinação de clãs, ou por proximidade geográfica, ou por descendência
comum, ou por unidade lingüística, surgem no panorama social do neolítico, as tribos,
unidades sociais mais complexas e com menor homogeneidade, o que levou como regra geral,
ao esquema dual de acesso à justiça pela vítima. Primeiro, se os fatos estivessem circunscritos
ao clã, nele seria solucionado, mas se o extrapolava, a decisão cabia não a um grupo, mas à
tribo, através das instituições, nem sempre estáveis, de decisão integrada.
7.2 Suméria
Após o surgimento dos primeiros aglomerados urbanos, forçosamente surge a
vinculação dos indivíduos de forma politizada à urbe, na medida em que se deixava de se ter
um mero conluio de clãs, para se ter uma individualidade, ou mais ainda, uma identidade
vinculativa, na forma e nos deuses da cidade.
236
E Veda, ou seja, no subcontinente Hindu.
Daí o motivo de Sir Cecil Rhodes ter dito que tais sociedades eram tribos com bandeiras.
238
Expressão lato sensu.
237
74
As culturas surgidas no crescente fértil estavam vinculadas ao urbano nascente, tanto
nas suas crenças como nos centros comerciais que surgem junto aos templos, centros do poder
político e religioso, e por via de conseqüência, jurídico daqueles centros.
Aparentemente, os templos tiveram papel central no surgimento das cidades, pois os
aglomerados habitacionais se faziam entorno deles, e, tal perece ter sido a marca principal das
cidades mesopotâmicas. 239
Outra característica das cidades sumerianas era a existência dos excedentes agropastoris, ou seja, produziam mais do que consumiam, e como tal, a armazenagem e posterior
uso, tanto para consumo interno como para troca, tornaram-se aspectos centrais do cotidiano
do templo e por óbvio da própria cidade.
Esta condição levou a algumas necessidades, pois o depósito e a troca, geram deveres
e direitos, na medida que se guarda algo para alguém240, e este alguém deve custear tal
depósito241. Logo, era quase natural e esperado, o surgimento de meios de referência de bens e
sujeitos, e as relações entre eles. Assim nasce a escrita, não como meio de criação, mas como
forma de registro contábil e de obrigações recíprocas.
Estes registros, primeiro em forma de sinetes e depois em forma de placas de
argila, criaram duas circunstâncias que deram início a duas características interessantemente
presentes nas vias de acesso às instituições jurídicas: Os locais fixos para reclamos e a
formalização de tais reclamos.
Logo, acessar a dita justiça, a partir de determinado momento, era ir a algum lugar
específico, não sendo mais necessário encontrar-se alguém. Da mesma forma, a reclamação
era formalizada, no sentido de que reclamar era oficializar uma lesão de direto. 242
Nestes aspectos, entretanto, cumpre-se em dizer que os modelos de local e de registro
e forma, não são, e nem deveriam ser, do mesmo escopo daquelas que a partir da
racionalização moderna do direito, acabou por surgir.
A civilização suméria243 não surge do nada e não surge de pronto. É na realidade,
produto da evolução de centros populacionais mais ou menos estáveis, mas que guardaram
entre si uma unidade cultural de solidez, que talvez só perdesse em coesão para a civilização
helênica.
239
LEICK, Gwendolyn. Mesopotâmia – A Invenção da cidade. São Paulo: Editora Imago, 2003, p. 180
Ainda que místico
241
Ainda que mediante milagres e proteções, ou pelo gerenciamento destes.
242
LEICK, Gwendolyn. Mesopotâmia – A Invenção da cidade, São Paulo: Editora Imago. 2003, p. 181-182
243
Aqui também cabe que se optou por usar um termo genérico para diversas unidades civilizatórias.
240
75
Tal evolução se deu, em linhas gerais, em torno de núcleos baseados em templos
dedicados a deuses diversos ao transcorrer dos tempos244, mas que em certo momento acabou
por estabilizar em algumas figuras específicas como Ishtar ou Abzu; e tais, templos e deuses,
eram destinatários de todo o poder, já que dos deuses vieram os mortais e nos templos se
conectam os imortais. Portanto, como aparentemente se fez regra ainda na idade do bronze, a
vinculação entre o justo e o divino, que ditou o local a ser procurado para a denúncia de lesão
jurídica245, ou a reparação de tal lesão.
Mas, quando o poder local, é diverso do poder sacerdotal, surge o palácio, ou centro
de poder político diverso do poder divino, ainda que quase sempre naquele poder atemporal e
místico apoiado. É neste contexto que se insere Hamurabi, que antes de legislador, foi um
grande reformador.
Os reis da Babilônia empenharam-se muito para promover Sippar até
fazer dela um importante centro religioso em paralelo com Nipur no sul. A cidade
floresceu sob o seu patrocínio, e o templo e o claustro, em especial, tornaram-se
prósperos. O auge do crescimento em Sippar foi atingido durante o reinado de
Hamurábi (1792-1750), e a maioria das plaquetas de Sippar durante o Babilônio
Antigo datam do seu tempo. O longo período de Hámurábi no trono permitiu-lhe
implementar numerosas e importantes reformas administrativas. Mostrou grande
interesse em assegurar o bem-estar de Sippar e intitulou-se “o renovador de Ebabar
para Chamash”, uma referência à sua obra de restauração no templo do deus-sol.
Também reparou e reforçou as muralhas da cidade, uma precaução necessária
contra as irrequietas tribos que ameaçam seu reino. Sua política benevolente foi
mantida por seus sucessores dinásticos, mas, pouco a pouco, a situação política
deteriorou-se e a autoridade dos reis babilônios enfraqueceu quando perderam o
controle das cidades do sul e se envolveram em conflitos com os pequenos reinos
circunvizinhos. 246
Neste contexto, entra em cena um personagem, que pré-existia e era ainda marcante,
mas que, acirra a disputa dos poderes da cidade, o chefe político, o rei se assim fique mais
claro, de certa forma herdeiro do chefe do clã do período neolítico. Entretanto nos primeiros
244
É preciso que se tenha em mente que está se falando de núcleos civilizacionais que surgiram a mais de 5.000
anos, cujo resgate histórico ainda está em curso, e encontra-se no meio de uma zona de conflito (Iraque).
245
Que às vezes também eram mais místicas do que real, como acusações de feitiçaria, ocorrência que se
mantêm até o fim do século XVIII da nossa era, conforme as próprias Ordenações Filipinas demonstram. In:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1151.htm>, acesso em 30 de julho de 2008.
246
LEICK, Gwendolyn, Mesopotâmia – A Invenção da cidade. São Paulo: Editora Imago, 2003, p. 194-195.
76
sítios urbanos247 muitas vezes, líder religioso e político se confundiam na mesma pessoa, e
nesta situação era ele o último recurso248, último acesso possível ao justo.
Como a suméria, para todos os efeitos, foi a primeira civilização histórica249; foi nela
que tal binômio sacerdote-rei ficou registrado em plaquetas de cerâmica, em textos místicos
ou decretos, e por fim nos zingurates espalhados pelo crescente fértil, cujo exemplo
interessante é o mito da Torre de Babel250.
Escrita, templos, sacerdotes, palácios e reis, foram às contribuições sumerianas, para o
acesso da vítima de delitos.
Na realidade, as normatizações251 que surgem nesta civilização, ao que tudo indica não
só para satisfazer o poder do rei e demonstrar o seu poder frente a tudo e a todos, mas também
para estabelecer as relações de causa e efeito252, e as vias e respostas às violações de direitos,
nos termos punitivos, e o fazem como relação de crimes e suas penas, tal qual faziam-se há
séculos com os registros contábeis e de estoques de seus depósitos.
Ainda diga-se que os depósitos eram templos ou estavam claramente vinculados a
eles, e os palácios surgiram, não como complemento, mas sim como contraposição do poder
dos sacerdotes, e por via de conseqüência uma nova alternativa de poder na terra, e, portanto
um via nova de justiça.
Procurar justiça nas cidades da Mesopotâmia era ir ao templo ou ir ao palácio,
dependendo do momento histórico e da causa a se deduzir, e, de certa forma, se faz assim até
hoje no ocidente.
7.3 Egito
A civilização egípcia não foi a primeira das civilizações, mas inegavelmente foi a mais
impressionante das civilizações antigas não clássicas. Seus templos, cidades, técnicas de
engenharia, ritos religiosos, esquemas e estruturas político-militares, causam admiração e
controvérsias até os dias atuais.
Na realidade, talvez a maior contribuição da civilização egípcia, seja a sua pluralidade
e longevidade. Plural por não ser uma civilização de evolução linear ininterrupta, pois
247
Como Jericó na palestina ou Çatalhuyuk na Turquia. In <http://www.catalhoyuk.com/>, acesso em 30 de
julho de 2008.
248
Como foi séculos depois o caso do imperador romano, também sumo pontífice, ou no papa contemporâneo.
249
No sentido clássico do termo civilização.
250
LEICK, Gwendolyn. Op. Cit. 2003, p. 265.
251
O Código de Hamurabi é o exemplo máximo das legislações da época. Texto com o Código de Hamurabi in:
http://paginas.terra.com.br/arte/hammurabi/leis.html, acesso em 30 de julho de 2008.
252
Uma espécie de protonexo-causal.
77
existiam pelo menos três períodos com longas interrupções, inclusive com submissões às
potências estrangeiras. Longeva, posto que apesar de tudo, ela estendeu-se por
aproximadamente mais de trinta séculos, tempo existencial cujo exemplo mais próximo seria
a China, com dez séculos a menos.
Com isto, inegavelmente a contribuição desta civilização deveria ser enorme no campo
do direito, da mesma forma que foi colossal no âmbito das instituições políticas253, mas isto
na realidade não ocorreu, a não ser de forma superficial, quase rarefeita, e apenas no que diz
respeito aos meios de acesso.
A civilização egípcia nasceu, ou ao menos tem seu registro mais ou menos
determinado, na reunião de duas regiões autônomas conhecidas como alto e baixo Egito.
Manu ou Menes seja lá como era chamado, o primeiro faraó, mítico na realidade254,
representa exatamente esta unificação, entre duas unidades com o mesmo perfil cultural
(religião, língua, etc.), mas que tinham uma governabilidade autônoma, ainda não descrita
pela arqueologia com precisão, mas que lutavam entre si pela hegemonia da região do vale do
Nilo.
Talvez, apenas como especulação, por ter o vale do Nilo como galvanizador e
elemento de sedentarização em virtude de suas cheias – a ponto de HERODOTO chamar o
Egito de dádiva do Nilo255 – para manter o controle sobre todo o rio, ou pelo menos a região
de alagamento e irrigação das margens, vinculou a necessidade de controle de todo o curso do
rio Nilo, para garantir-se com isto o domínio da fonte primordial de riquezas de ambas as
unidades territoriais pré-dinásticas.
Com o estabelecimento do Egito unificado, começa o período dinástico, e a própria
história desta civilização.
No entanto, como pode ser observada, a civilização Egípcia não estava centrada na
urbanidade, mas sim na sacralidade. Para os egípcios, as cidades eram mais centros religiosos
ou burocráticos do que locais de concentração populacional. A estrutura geopolítica do estado
egípcio, ao menos no antigo e médio império, nascera de uma unidade regional desvinculada
de núcleos urbanos, estabelecida na realidade em agrupamentos de propriedades256 de
pequeno e médio porte.
253
Até hoje o termo faraó é sinônimo de potentado absoluto, um verdadeiro semideus.
McNEILL, John R. et. al., A Era dos Reis Divinos. Rio de Janeiro: Cidade Cultural, 1990 p. 56
255
HERODOTO. História. Brasília: Ed. UnB, Brasília, 1985, p. 90.
256
Se é que o termo se aplica, pois tudo no Egito era do Faraó.
254
78
Mas ainda que fosse assim; com cidades não muradas, elas existiam e nelas, na quarta
dinastia, encontra-se o primeiro Juiz, chamado de grão-vizir, próximo ao da atualidade, pois
representava o poder e o direito do estado, personificado no Faraó.
Em verdade, a princípio não se encontra no vale no Nilo a cidade
arquetípica da história, a cidade murada, solidamente delimitada e protegida por
baluartes, construída para a permanência. Tudo, no Egito, parece ter encontrado uma
forma durável, exceto a cidade. Os templos de Luxor e Carnaque têm mostrado seus
portentosos contornos em todos os tempos históricos: as grandes e pequenas
pirâmides são ainda visíveis, embora a moda das pirâmides tenha florescido e
morrido quase tão rapidamente quanto a moda das complicadas fortificações em
forma de estrela do fim do Renascimento. Não faltam estruturas independentes que
testificam a magnificação universal do poder, ao ter início a civilização: obeliscos,
majestosas vias processionais, colunatas, esculturas de granito e diorito, de
dimensões enormes, tudo isso testemunha espécie de vida que esperamos encontrar
na cidade. Esta, porém, é transitória. Cada faraó constrói sua própria capital, sem o
menor desejo de continuar a obra de seus antecessores ou de engrandecer sua cidade.
Seu lar urbano é tão exclusivo quanto sua sepultura, talvez pela mesma razão
egoística. Até onde o mesmo sítio geral é respeitado, como em Tebas, o crescimento
se faz por uma espécie de frouxo adicionamento suburbano.
Todavia, certamente, se não me engano em pensar que a arte
monumental é uma das marcas mais seguras da existência da cidade clássica, a
cidade “existe” de maneira inescapável. Podemos inspecionar de igual forma todas
as instituições acessórias especializadas da cidade, nos pequenos modelos de
madeira tirados dos túmulos: o açougue, o barco, o estabelecimento do
embalsamador, a padaria; e de certo, há templos e palácios em escala muito maior,
muito antes de 1500 a.C. Também devem ter existido certos visíveis de controle,
pois a função do Grão-Vizir começou existir já na Quarta Dinastia; era ele que
servia como primeiro juiz, chefe dos arquivos e do tesouro, prefeito do palácio, isto
é, governador militar da cidadela. Tudo isso são funções cívicas locais. 257.
Neste período, o império contava com uma divisão administrativa chamada “nome”,
uma unidade territorial circunscrita em um perímetro geográfico próprio. Neste existia no
mínimo uma cidade, onde se encontrava além do governador, o “Nomarca,”258 e do coletor de
impostos, residia ali o juiz, com sua jurisdição vinculada a este território.
Portanto, desde um ponto remoto na história, era possível verificar-se a existência de
via institucional para os mais diversos reclamos jurídicos, inclusive aqueles que diziam
respeito a delitos cometidos.
Entretanto, não existia, nos termos que se entende hoje, um regime jurídico racional e
lógico, mas sim, estabelecia-se uma espécie de culto ao equilíbrio. O Ma’at, uma espécie de
espírito de ordem e de paz do universo, que governava as relações humanas dos egípcios, a
ponto de ser este, tal, o mais interessante aspecto sociológico daquela civilização.
O Ma’at funcionava como uma base, um imperativo primário de explicação do que
seria a verdade, como conceito. Para os egípcios, a verdade era um meio de equilibrar as
257
258
MUMFORD, Lewis. A Cidade na História. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 94.
McNEILL, John R. et. al. A Era dos Reis Divinos. Rio de Janeiro: Ed. Cidade Cultural, p. 64.
79
relações dos componentes não só da sociedade, mas sim de todo o universo. Portanto, para
esta sociedade a verdade era uma questão de equilíbrio entre os elementos componentes da
vida. 259
Aliás, a morte do faraó, que era em última instância o responsável pelo Ma’at, levava
inexoravelmente ao julgamento do morto por Anúbis, que só assim entraria no reino dos
deuses.260
Deste conceito de verdade e equilíbrio, surgia uma definição, um objetivo a ser
alcançado que era a harmonia, quase que um bem jurídico supremo para aquela sociedade.
Logo, quando se buscava a solução de qualquer litígio, de ordem intersubjetiva ou não,
o que o egípcio quer é retornar ou estabelecer a harmonia vista no Ma’at. Ser justo, procurar a
justiça nesta sociedade era procurar a harmonia, o equilíbrio, o determinado pelos deuses, o
Ma’at.
Deste modo, o membro da sociedade egípcia, que sentisse lesado, buscava um
membro da estrutura burocrática do estado, em uma capital provincial, e lá buscaria que o
Ma’at fosse estabelecido, e a justiça se fizesse, de forma a restabelecer a harmonia.
Por fim, um fato a ser trazida, era a função do escriba dentro do esquema do estado
egípcio.
A escrita tinha uma importância crucial dentro da civilização egípcia. É nela que se
estabelecem as vontades e haveres e deveres do faraó, e de forma reversa, as necessidades do
estado e seus tesouros.
Heródoto estabelece, por exemplo, que no momento da cerimônia fúnebre do faraó,
lhe era recitado o nome de todos os faraós que lhe antecederam261, logo, existia o registro
escrito dos antecessores daquele, o que coloca a burocracia escrituraria como chave da
administração estatal.
Estes escribas relataram os julgamentos efetivados, naquele período, e é de se colocar
que o Livro dos Mortos, relato místico, e inventário de feitiços e sortilégios, estabelecem o
julgamento dos mortos, e de certa forma remete-o ao julgamento dos vivos, na medida em que
o ser humano para os egípcios, eram compostos por oito partes, e tal impunha um julgamento
da própria alma262.
259
HOOKER,
Richard,
Ma’at
Goddess
of
Truth
Truth and Order, Washington State University, 1999, in <http://www.wsu.edu/~dee/EGYPT/MAAT.HTM>,
acesso em 8 de junho de 2008.
260
McNEILL, John R. et. al. A Era dos Reis Divinos. Rio de Janeiro: Ed. Cidade Cultural, p. 71.
261
McNEILL, John R. et. al. Op. Cit., p 118
262
<http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=673>, acesso em 8 de junho de 2008.
80
Sem os escribas, inexistiriam os relatos de julgamentos, e por via de conseqüência, a
existência dos textos hieróglifos, faz-se imaginar que a função de escriturário judicial, era
uma das categorias da estrutura administrativa do estado egípcio.
7.4 Os Hebreus
Talvez, depois do direito romano, a moral judaica tenha sido a mais poderosa das
influências recebidas pelo direito ocidental, ante a herança que as igrejas cristãs trouxeram
junto com seus dogmas. Tal se deveu, em especial pelos ditames comportamentais insertos
nos textos bíblicos, das quais se deflui, a princípio, que o direito hebraico não é um direito
racionalizado, efetivado pelo saber; mas oriundo de revelações divinas.
O direto hebraico é um direito religioso. Religião monoteísta, muito
diferente dos politeísmos que a rodeava na antiguidade. Religião quer, através do
cristianismo que dela deriva, exerceu uma profunda influência no Ocidente.
O direito é “dado” por Deus ao seu povo. Assim se estabelece uma
“aliança” entre Deus e o povo que ele escolheu; o Decálogo ditado a Moisés é a
Aliança do Sinai, o Código da Aliança de Jeová; só Deus o pode modificar, idéia
que reencontraremos no direito canônico e no direito muçulmano. Os intérpretes,
mais especialmente os rabinos, podem interpretá-lo para o adaptar à evolução
social; no entanto nunca podem modificar.
Assim, numerosas instituições hebraicas sobreviveram no direito
medieval e mesmo no moderno, sobretudo pelo canal do direito canônico; porque o
direito canônico tem a mesma fonte que o direito hebraico, a Bíblia, pelo menos os
livros que os cristãos designam pelo nome de “Antigo Testamento” 263.
De outro lado, no entanto, as partes específicas dos textos religiosos judaicos, como o
talmude e a “thora”, trazem em seu bojo nítidos componentes de outras legislações
contemporâneas às sociedades hebraicas antigas, de diversas épocas, aliás, limítrofes no
oriente médio, como os hicsos, hititas, egípcios e mesopotâmia. Estas civilizações, várias
delas citadas nos textos bíblicos, influenciaram as normas de conduta dos hebreus, ainda que
de forma fragmentária.
- o Decálogo que, segundo a tradição, teria sido ditado a Moises no
Monte Sinai por Jeová; é conhecido por duas versões, uma no Êxodo (XX, 2-17),
outra no Deuteronômio (V, 6-18); contém prescrições de caráter moral, religioso e
263
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2. ed., , Lisboa-Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian
Editora, 1995 p. 66
81
jurídico muito gerais, redigidas sob forma de máximas imperativas muito curtas;
[...]
- o Código da Aliança, conservado no Êxodo (XX, 22, a XXIII, 33);
pela sua forma e pelo seu fundo, o texto assemelha-se às codificações
mesopotâmicas e hititas, nomeadamente ao Código de Hammurabi, o que permite
supor que uma primeira formulação (talvez oral) poderia remontar a época anterior
à estadia no Egipto. Na sua forma final, o texto dataria da época dita “dos Juízes”,
isto é, do início da fixação em Canaã, nos séculos XII ou XI antes de cristo. O
Código da Aliança contém prescrições religiosas, regras relativas ao direito penal, à
reparação de danos, etc. Repletem costumes da época da sedentarização.
- o Deuteronômio (do grego [...], a segunda lei, a repetição ou a cópia
da lei) constitui uma nova versão do Código da Aliança; na verdade, é uma
codificação de antigos costumes, tendo sobretudo à manutenção da pureza do
monoteísmo, mas compreendendo também disposições que interessam ao direito
público e ao direito familiar. [...]
- o Código Sacerdotal (ou Lei das Santidade), contido no Levítico
(cap. XVII as XXVI), datando provavelmente do século V (cerca de 445264),
contém um ritual dos sacrifícios e da sagração dos padres, mas encontram-s
também ai disposições importantes sobre o casamento e o direito penal.
265
Logo, o ponto crucial é a influência que a moral, no sentido de limite de conduta ante
os costumes de uma sociedade, nas vias de acesso e na própria formatação dos tribunais,
partindo-se da premissa que o sistema ocidental teve parte de sua origem exatamente nos
conceitos de moral cristã, principalmente por ter até mesmo nos textos sagrados, como no
Deuteronômio, estabelecido regras de procedimento judiciais. 266
Neste sistema então, o cotidiano do povo hebreu, no que concerne ao acesso aos meios
decisórios judiciais, confundia-se com o sistema religioso, o que mostra que as heranças
clânicas e tribais como forte componente da sociedade israelita e seus sistemas de justiça,
conforme o texto abaixo escrito no século I d.C.:
Deve-se escolher para magistrados, em cada cidade, sete homens de
virtude experimentada e hábeis no que concerne à justiça; a eles acrescentarem-se
dois levitas e fazer, que todos lhes prestarem tanta honra que ninguém se atreva a
dizer uma única palavra inconveniente em sua presença, a fim de que esse respeito,
que se acostumarão a prestar aos homens, os leve a reverenciar a Deus. Os
julgamentos que esses magistrados pronunciarem serão executados, se não forem
264
Embora no original não conste, é óbvio que o levítico foi escrito no século V antes de cristo.
GILISSEN, John. Op. Cit. p. 68.
266
GILISSEN, John. Op. Cit. p. 72.
265
82
subornados por presentes ou pareça visivelmente, que julgaram mal: pois, sendo a
justiça preferível a todas as coisas, é preciso ministrá-la, sem interesse e sem favor,
do contrário, Deus seria tratado com desprezo e pareceria mais fraco homens, se o
temor de desgostar pessoas ricas e elevadas em autoridade fosse mais poderosos
sobre o espírito dos juízes do que o medo de violar a justiça é a força de Deus. E se
os juízes encontram dificuldade em decidir certos assuntos, como muitas vezes
pode acontecer, devem, sem nada pronunciar, levá-los inteiros à cidade santa, ao
Grão- Sacrificador, ao Profeta e ao Senado, que os julgarão segundo o que em
consciência devem fazer267.
7.5 Acesso Formal na Grécia
A história da Grécia é a evolução da própria civilização, do modelo de estado
centralizado para o estado participativo, ao menos em sua face formal, embora outro fosse seu
conteúdo. Mesmo sob a ótica meramente evolucional da civilização grega, por si só, já é uma
história de amalgamento de civilizações que se misturam e formam novas ordens políticojurídicas.
Não há propriamente que falar de direito grego, mas de uma multidão
de direitos gregos, porque, com exceção do curto período de Alexandre o Grande,
não houve nunca unidade política e jurídica na Grécia Antiga. Cada cidade tinha o
seu próprio direito, tanto público como privado, tendo caracteres específicos e
evolução própria. Nunca houve leis aplicáveis a todos os Gregos; no máximo, alguns
costumes comuns. Na realidade, conhece-se mal a evolução do direito da maior
parte das cidades; apenas Atenas deixou traços suficientes para permitir conhecer os
estádios sucessivos da evolução do seu direito. 268
Com isto, a melhor matriz que se preserva, é a ateniense e neste caso, foi esta que
reverberou para o futuro, inclusive influenciando, mais tarde o direito romano.
Um dos pontos mais interessantes é que a evolução do direito punitivo grego, passa
necessariamente pela crescente açambarcamento por parte do Estado das funções punitiva,
que saem do âmbito privado, para migrar para um direito público.
Drácon assinala um passo importantíssimo nas concepções jurídicas,
quando estabelece que o elemento material da infração não era suficiente para
caracterizar a figura delituosa. Impunha-se levar em consideração a intenção do
autor. O legislador distinguia diferentes casos de homicídio: voluntário, involuntário
e legítimo.
Não é à família do morto, mas aos tribunais do Estado que compete
procurar não somente quem matou, mas como e por que o assassino matou.
267
JOSEFUS, Flavius. História dos Hebreus. V. 2. São Paulo: Editora das Américas, 1956, p. 15 e 16.
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2. ed., Lisboa-Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian
Editora, 1995. p. 73.
268
83
Pouco a pouco, chega-se à idéia de que o crime não é uma ofensa
privada, mas um atentado à ordem política, uma infração à lei cuja reparação pode
ser pedida por qualquer bom cidadão. .269
Um ponto a ser entendido, é que o heleno, sempre considerou uma atitude mais
política, como uma expressão de sua liberdade, do que jurídica, uma expressão de seus
direitos, a possibilidade de acesso aos meios de decisão, e isto fica claro, pela própria não
distinção muito clara do direito privado (civil e intersubjetivo) do direto público
(plurissubjetivo e estatal).
Embora os gregos não estabelecessem diferença explícita entre direito
privado e público, civil e penal, é no direito processual que se encontra uma
diferenciação quanto à forma de mover uma ação: a ação pública (graphé) e a ação
privada (diké). A ação pública podia ser iniciada por qualquer cidadão que se
considerasse prejudicado pelo Estado, por exemplo, por ação corrupta de
funcionário público. A ação privada era um debate judiciário entre dois ou mais
litigantes, reivindicando um direito ou contestando uma ação, e somente as partes
envolvidas podiam dar início à ação.
Exemplos de ações privadas (diké) são: assassinato (diké phonou);
perjúrio (diké pseudomartyrion); propriedade (diké blabes); assalto (diké aikias);
ação envolvendo violência sexual (diké biaion); ilegalidade (diké paranomon);
roubo (diké klopes).
Exemplos de ações públicas (graphé): contra oficial que se recusa a
prestar contas (graphé alogiou); por impiedade (graphé asebeias); contra oficial por
aceitar suborno (graphé doron); contra estrangeiro pretendendo ser cidadão (graphé
xênias); contra o que propôs um decreto ilegal (graphé paronomon); por registrar
falsamente alguém como devedor do Estado (graphé pseudengraphes). 270
A organização judiciária ateniense previa vários órgãos, judiciais, políticos ou mistos,
o que também reflete as características políticas do conceito de acesso ao judiciário, por parte
da vítima de uma lesão a um bem jurídico.
Nestes têm-se primeiro o Areópago:
Pela escolha de seus membros (antigos arcontes sorteados de uma lista
de quinhentos candidatos pertencentes às duas primeiras classes, a dos
pentacosiomedimnos e a dos cavaleiros) o Areópago revestia-se de um caráter
altamente aristocrático.
Inamovíveis, irresponsáveis, com uma autoridade considerada de
origem divina, os areopagistas agiam como vigias da república e guardiões das leis,
julgando sobre todos os delitos. A velha instituição concentrava os três poderes –
executivos (porque vigiava os atos dos funcionários); judiciário (porque prolatava
sentenças sem apelação); legislativo (de certa forma, porque se arrogava o direito de
interpretar as leis).271
269
GIORDANI, Mario Curtis. História da Grécia – Antiguidade Clássica I. 5. ed., Petrópolis: Vozes, 1992, p.
200.
270
WOLKMER, Antonio Carlos; et al. Fundamentos de História do Direito. 3. ed., Belo Horizonte: DelRey,
Belo Horizonte, 2006, p. 53.
271
GIORDANI, Mario Curtis. Op. Cit., p. 201
84
Perdendo o Areópago seu poder jurisdicional a partir de 461 a.C., é o Tribunal dos
Heliastas:
O Tribunal dos Heliastas .- O Tribunal dos Heliastas era o tribunal
por excelência, o mais democrático e mais poderoso, um dos principais elementos da
vida ateniense. Anualmente os arcontes sorteavam (nas escavações da Ágora foram
encontrados fragmentos de máquinas de tirar a sorte) seis mil jurados entre cidadãos
de, pelo menos, trinta anos; cinco mil dos escolhidos, depois de prestarem juramento
na colina de Ardettos, eram repartidos em dez secções de quinhentos membros (ou
quinhentos e um para evitar a divisão igual de votos) permanecendo os mil restantes
como suplentes. Cada secção era designada por uma das dez primeiras letras do
alfabeto.
De acordo com a importância do caso a ser julgado, as secções
podiam subdividir-se em dicastérios de duzentos e um membros.
Cada heliasta recebia uma lamínula de bronze contendo o seu nome
e a letra da respectiva secção.
Quais as atribuições dos heliastas?
Segundo Croiset, a competência dos heliastas foi, desde a origem,
muito considerável, porquanto compreendia uma grande parte do direito privado e
todo direito público. Tornou-se, porém, ainda mais extensa, de diversas maneiras:
primeiramente, pelo direito de apelo, que permitia submeter aos heliastas muitas
questões julgadas em primeira instância pelos arcontes, pelo Conselho dos
Quinhentos ou por juízes; em seguida, pelo direito de submeter-lhes diretamente
questões que outrora dependiam de outros tribunais; enfim, e, sobretudo, talvez pela
importância sempre crescente dos interesses de toda a espécie, particulares e
públicos, nacionais e internacionais, que se debatiam nas causas submetidas aos
heliastas.272
Este tribunal específico tido como antecessor histórico do júri, como já dito era o
tribunal por excelência, e a por via de conseqüência, o acesso certo, local de exercício de
cidadania. Apenas para ilustrar como funcionava e qual era a função de exercício de
cidadania, no sentido de defesa de direitos, veja-se esta narrativa envolvendo o filósofo
Demóstenes:
Certo dia, em 346 a.C., Demóstenes, cidadão da cidade-Estado de
Atenas, caminhou até a praça pública da cidade e entrou no gabinete de um
magistrado judicial. Lá, ele apresentou queixa contra um cidadão, seu inimigo há
anos, chamado Meidias. O magistrado aceitou o caso de Demóstenes contra
Meidias no calendário judicial. No dia designado, 500 membros do júri foram
selecionados aleatoriamente dentre os cidadãos com mais de 30 anos de idade.
Demóstenes e Meidias tinham algumas horas para fazer seu discurso a um júri
imenso. Depois da defesa e da acusação, o júri decidiria em votação secreta. Os
riscos eram grandes: a punição podia ser uma multa, exílio ou até mesmo a morte.
Mas qual fora o crime de Meidias e qual a importância desse
julgamento para significado da democracia ateniense? De acordo com o discurso de
Demóstenes ao júri (o discurso de defesa se perdeu), Meidias havia esmurrado
272
GIORDANI, Mario Curtis. Op. Cit., p. 201-202
85
Demóstenes no Teatro de Dionísio. O soco não era apenas um ataque físico; era
uma ofensa deliberada, inaceitável e pública – um ato de soberba. Além disso, a
violência de Meidias era um insulto não só ao indivíduo, mas a toda sociedade: na
época do incidente, Demóstenes era o produtor oficial do coro no festival anual de
Dionísio que acontecia no teatro. Com o fim do festival, uma reunião especial da
Assembléia de Cidadãos foi organizada, para resolver quaisquer irregularidades que
tivessem ocorrido durante o evento. Demóstenes levantou-se nessa reunião e
acusou Meidias de agressão. Os milhares de cidadãos reunidos na Assembléia,
impressionados por sua história, votaram pela condenação do comportamento
insubordinado de Meidias. Mas a votação era apenas uma censura moral. Se
Demóstenes desejava punir seu atacante, teria de levar seu caso ao tribunal do júri.
A julgar pelas aparências, o ato de Meidias era apenas um caso sem
importância: um homem agride o outro, e a vitima, que faz mais o estilo homem da
lei do que pugilista, leva o assunto ao tribunal. Mas o magistrado ateniense decidiu
que a questão era grave o bastante para ser levada ao Tribunal Popular. A decisão
do magistrado e o discurso de Demóstenes nos permite sondar a Atenas
democrática e ter uma percepção do quadro de poder, honra, humilhação e
retaliação que se apresentava. O incidente simples nos permite analisar como a
primeira democracia do mundo realmente funcionava o que ela significava, em
termos práticos, para os cidadãos atenienses.
A palavra grega “demokratia” significa “o poder da demos”. No
século 4 a.C. “o poder da demos”significava que a política era feita abertamente;
decisões importantes eram debatidas em público e votadas pelos cidadãos como um
todo. Mas inúmeros atenienses ricos e influentes queriam controlar as coisas e
tomar as decisões a seu favor. Os atenienses da elite conservavam uma forte noção
de honra pessoal e superioridade. A massa de cidadãos atenienses estava
comprometida com a igualdade entre os cidadãos. Esses sistemas de dois valores
estavam em constante conflito e, mesmo assim, a democracia ateniense durou quase
200 anos com relativamente poucos incidentes de conflito civil evidente entre
massa e elite. A história política relativamente estável de Atenas (pelos padrões da
Grécia antiga) sugere que, de certa forma, ricos e pobres encontravam uma forma
de se entender. Os discursos dos debates no Tribunal Popular fornecem um
importante indício de como isso era possível. O julgamento pelo júri eleito formado
por cidadãos atenienses decidia qual dos dois disputantes seria destruído e qual
seria enaltecido. Tanto o acusado quanto o acusador esperavam conquistar a
simpatia do júri alegando ser o melhor cidadão. Portanto, cada discurso feito por
um litigante da elite a um júri da massa ateniense fazia parte de uma conversa
86
contínua quanto ao que representava um comportamento aceitável na polis
democrática.273
Por fim, existiam outros tribunais como o dos Efetas (julgavam homicídios) e o
curiosíssimo Tribunal da Pritania, que julgava seres irresponsáveis e até mesmo inanimados
(como pedras, árvores, etc.). 274
Mas talvez a característica mais interessante nos meios de acesso por parte de uma
vítima, ou alguém que assim se se intitula, era a previsão da chamada Grafe, ou ação
pública275.
Esta ação, talvez o primeiro instrumento processual claramente geral e abstrato, pois
todo o cidadão poderia intentá-la, se afasta do conceito de Dike, ou de ação privada, pois,
enquanto esta requer um direito pessoal, a Grafe prevê um delito, ou ao menos um proibido
jurídico.
Na ação pública (grifei) a acusação tem por fim reparar em prejuízo
causado pelo Estado. Assim é que todo o cidadão que o desejar pode tomar a
iniciativa de propor uma ação pública.
Entretanto, para evitar que proliferassem as falsas e levianas
acusações, o acusador deveria assumir um grave risco: em caso de desistência ou de
não obtenção da quinta parte dos sufrágios, deveria pagar uma multa e perdia o
direito de, futuramente, intentar outra grave. A quantia paga era recolhida ao tesouro
estatal. Com o leitor terá observado, não existia em Atenas o que chamamos hoje
Ministério Público.
Como exemplos de delitos considerados lesivos à coletividade e que,
portanto, podiam ser objeto de uma grafe, podemos citar: a corrupção, a ilegalidade,
a deserção. Note-se que o mesmo delito, por exemplo, o furto poderia dar lugar a
uma ação pública ou uma ação privada, dependendo da maneira de ser encerado
quer como violação da lei, quer como dano causado a um particular. 276
Logo, agir, atuar em juízo para um ateniense, era uma atitude política, uma atitude de
independência pessoal e de cidadania participativa, sem os raciocínios de ter ou manter que
mais tarde dominaria o conceito de agir.
Em Atenas, contudo, a administração da justiça foi mantida tanto
quanto possível, nas mãos de amadores, com o efeito (e talvez também o objetivo)
de permanecer barata e rápida. Todos os julgamentos eram aparentemente
completados em um dia, e os casos privados muito mais rápidos do que isto. Não era
permitido advogado profissional; e embora a arte dos logografos tendesse, na
prática, a burlar essa regra, Nenhum litigante corria o risco de admitir que seu
discurso era na realidade um discurso “fantasma” feito por um orador profissional.
273
KYRTATAS D. Direitos, deveres e desonra. História Viva. São Paulo, ano V, n. 58, p.32-37, 2008.
KYRTATAS D. Op. Cit., p. 202.
275
KYRTATAS D. Op. Cit., p. 203
276
KYRTATAS D. Op. Cit., p. 203
274
87
O presidente da corte não era um profissional altamente remunerado, mas um oficial
designado por sorteio.277
Veja-se, o conceito de jurisdição sem aparato burocratizado, não é nem de perto um
produto da inteligência do século XIX.
7.6 Roma
A história do direito romano é a história do que seria o ocidente nos próximos vinte e
sete séculos, senão mais.
Ela foi o início concreto e definitivo do modo de ser das instituições políticas,
exércitos, direitos, estéticas do poder, enfim, a forma e alcance do que poderemos chamar de
estrutura básica de uma civilização.
Uma visão ainda que perfunctória, facilmente se vê a impressionante influência dos
romanos até mesmo em locais aonde sequer perto chegaram278, ou ainda manterem-se
definições de limites territoriais mesmo vinte séculos após terem sido fixados279; ou ainda o
elevado número de idiomas originados no Latim; nos mitos e costumes imemoriais280; e
mesmo na nossa concepção de nação e estado.
Mas é no direito, sob qualquer aspecto que se observe, sob qualquer ideologia que se
tempere, sob qualquer estado ocidental que se tenha como exemplo, o direito romano lhe foi à
fonte, às vezes com traços quase que divinizados, donde surgiu e estabeleceu-se o direito dito
moderno.
Com a evolução do sistema jurídico romano, o direito penal e as instituições públicas
ou privadas de acesso à justiça criminal, também se modificam e vão dando traços e
contornos às instituições ainda existentes, e a sistemas gerais de aplicação e determinação do
justo que de uma forma ou de outra, perpetuaram-se no ocidente.
Será neste evoluir que o conceito de direito romano ao acesso à justiça criminal que se
fixará o presente tópico; que será como de regra tem se usado, desenvolvido através das fases
da história romana, classicamente divididas.
277
TODD, S. C. apud WOLKMER; Antonio Carlos et. al., Fundamentos de História do Direito, 3. ed., Belo
Horizonte: Editora Del Rey, 2006, p. 54.
278
Como por exemplo, a Rússia, onde o termo Czar nada mais é que a tradução de César para o russo.
279
O limite entre a Inglaterra e a Escócia, em sua grande parte, coincide com a muralha de Adriano, ou ainda a
divisa entre França e Alemanha fixada historicamente no Reno.
280
Como o bolo de noiva, legado direto do casamento romano; ou o conceito de sorte e azar (fasto e nefasto) tão
cotidiano quanto a própria essência das crenças ocidentais.
88
Faz-se isto para deixar mais evidente o caminho percorrido pelas instituições e os
motivos e conseqüências de tais mutações.
7.6.1 A Roma Arcaica – 750 a.C até 367 a.C
O surgimento de Roma está, como, aliás, todas as civilizações da antiguidade, envolta
em um misto de lendas, mitos e fatos; nem sempre de fácil diferenciação.281
Ao que tudo indica Roma surgiu de uma confederação de tribos, que estavam
estabelecidas no vale do rio Tibre desde o neolítico282, e que com o passar do tempo, como
todas as sociedades neolíticas, acabaram por amalgamar-se em uma só entidade políticocultural, mais ou menos homogênea.
Entretanto, evidentemente, os antigos, por mais antigos que fossem, estavam inseridos
em um complexo e mais largo regime de sociedades vizinhas, que via de regra eram hostis
umas às outras.
Talvez a mais decisiva destas sociedades ao seu entorno, a que mais influenciou, a
ponto de sob certos aspectos tê-la moldado, foi a sociedade etrusca. Tanto na língua como na
própria estrutura social, ainda que a sociedade etrusca seja em grande parte, uma verdadeira
incógnita.
Mas, mesmo sob os conceitos semimitológicos do início da civilização romana, é de se
ter que a própria névoa das lendas cunha um naco de verdades.
Veja-se que LIVIO, ao discorrer sobre o início de Roma283, fala textualmente que ao
fundar a cidade, Rômulo entendeu que só poderia fundá-la se houvesse uma base jurídica que
lhe desse forma, e que as primeiras leis e instituições teriam sido emprestados dos Etruscos.
Tal consideração, feita por um historiador que vivera setecentos anos após os fatos, dá
conta de conquanto estivesse indelevelmente calcada a história romana nos seus princípios, ao
mundo etrusco.
Deste mundo tacado pelo romano citado, um dos pontos mais interessantes para o
tema proposto é a existência dos “lictoris, verdadeiros agentes policiais a serviço do
magistrado, que são citados como advindo dos etruscos, e que eram em número de doze284,
281
MOREY, Willian C., Outlines of Roman History, ed. 1901, American Book Co., Ciccinati, USA; disponível
em < http://www.forumromanum.org/history/morey02.html>; acesso em 17.02.2008.
282
GIORDANI, Mário Curtis; História de Roma. 12. ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 16.
283
No título original “Ab Urbe Coditia Libri”
284
Este número era variável no tempo e no espaço
89
pois doze eram as tribos votantes para eleger o rei e os “apparitores”, gênero de servidores
públicos eleitos, ao que tudo indica com aquele, classe onde estavam aninhados os “lictoris” .
Depois de ter realizado as cerimônias religiosas de acordo com o
rito, Rômulo reuniu em assembléia aquele povo que só poderia vir a ser uma nação
por liames jurídicos, e lhe deu leis. Compreendendo que, para torná-las sagradas
perante aqueles homens rudes, ele próprio deveria inspirar-lhes respeito pelas
insígnias de sua autoridade, entre outros distintivos fez-se acompanhar por doze
lictores. Alguns pensam que ele adotou esse número por causa dos pássaros que lhe
pressagiaram a realeza. Não tenho dúvidas em aceitar a opinião dos que julgam que
os apparitores e entre eles os lictores, bem como a cadeira curul e a toga pretexta,
foram tomados aos etruscos, nossos vizinhos. Estes haviam fixado seu número em
doze, porque doze eram os povos que elegiam o rei em comum, e cada povo lhe
fornecia um lictor.
Entrementes, a cidade crescia conquistando novas áreas.
Fortificava-se mais pela expectativa de multidões futuras do que tendo em vista a
população já existente. Em seguida, para não deixar vazia a cidade imensa e para
atrair uma população numerosa, Rômulo adotou o velho método dos fundadores de
cidades, que reuniam em torno de si grande número de gente obscura e de baixa
condição e afirmavam que uma raça brotara da terra para eles. E na descida entre os
dois bosques sagrados, no local onde hoje existe uma cerca, criou um lugar de asilo
onde veio refugiar-se toda turba dos povos vizinhos, mistura indistinta de homens
livres e escravos, todos a procura de uma vida nova. Tais foram os primeiros
reforços à nascente grandeza da cidade.
Não tenho mais problema em relação a forças, Rômulo se
preocupou em organizá-las sob a direção de um conselho. Escolheu cem senadores,
ou porque este número fosse suficiente, ou porque não havia mais de cem cidadãos
capazes de se tornarem senadores. Em todo caso, a honra lhes valeu o nome de
patres e a seus descendentes o de patrícios. 285.
Logo, o acesso das vítimas, em um primeiro momento, antes da instituição dos delitos
privados, havidos por “actio” própria, ao julgamento, ou a permissão de aplicação de punição
pela via privada286, passava pelos “lictoris” ainda que fossem os magistrados, e em especial
algum tempo depois, o senado, que definissem o alcance e a possibilidade da pena.
Daí se ter que o princípio do direito penal romano, não fora essencialmente privado,
mas ao contrário, essencialmente público287, ainda que de origem aparentemente religiosa288
289
.
Também é de se pensar que a estrutura social dos romanos já era de pronto formada
por castas, duas basicamente, a dos patrícios e a dos plebeus, e além destas, as bases sociais
ainda tinham fortes marcas de um período clânico anterior, notadamente nos conceitos de
família, gens, cúrias e tribos. Estas diferenciações foram no primeiro momento, fundamentais
285
LIVIO, Tito. História de Roma – ab Urbe Contitia Libri. V. 1. São Paulo: Editora Paumape, 1989, p. 30-31
Nesta época a vingança privada ainda era a base do sistema punitivo dentro das gens, mas não no todo da
cidade, cf. Von LISZT, Franz, Tratado de Direito Penal, tomo I, Campinas: Editora Russell, 2003, p. 78.
287
ASUA, Luis Jemenes de. Tratado de Direito Penal. V. I, Tomo I, Editorial Losada, Buenos Aires, 1950, p.
243
288
JAKOBS, Günther. Op. Cit. p. 243
289
Ë interessante ler as obras de List e Asua, pois as anotações são as mesmas, sendo que a do espanhol, é quase
meio século posterior ao germânico.
286
90
para a categorização das possibilidades de acesso da vítima de um crime às instituições
públicas ou privadas, e estas últimas, na maior parte das vezes de cunho protojudiciais.
A menor e mais importante dos núcleos sociais romanos, é a família, agnatícia e não
necessariamente consangüínea.
O primitivo núcleo é a família, a cujo chefe (paterfamilias) se
submetem pessoas e coisas. O vínculo que liga os indivíduos ao chefe não é
consangüíneo, mas agnatício: pertencem à mesma família os indivíduos sujeitos à
autoridade do paterfamilias. Um agrupamento de famílias constitui uma unidade
mais ampla: gens, cujos membros estão politicamente unidos sobre autoridade do
pater gentis. Motivos militares (expansão e segurança), econômicos (melhor
distribuição e produção agrícola e pastorícia) e religiosos (submissão aos mesmos
deuses) são referidos para explicar a formação de várias gentes.
Da agregação de várias gentes nasceu Roma, a civitas. Não
desapareceram, porém, os grupos políticos menores, mas gens extingue-se
paulatinamente, enquanto a família conserva os rasgos que caracterizam a sua velha
estrutura. 290.
Sob ela estabelecem-se as mais básicas instituições jurídicas, e sobre ela, assenta-se a
própria razão de ser do direito e da sociedade romana291.
A família estava encerrada dentro do conceito de lar, que para os romanos não era um
local, mas sim um espírito, o centro sagrado de seus antepassados, o local de estabelecer a
família e o ponto de partida do poder do “paterfamilia”292. Na realidade, o paterfamilia293 era
uma instituição e não alguém especificamente considerado com pai de várias pessoas, uma
magistratura dentro da família, mais do que líder era o supremo juiz dos seus.
Além disto, a própria estrutura, personagens e conteúdos da família romana,
extrapolam em muito, o conceito atual de unidade familiar. Para os romanos, o conceito era
mais amplo, fazendo parte dele a materfamilia ou uxor294, os filhos ainda que casados, seus
filhos e as gerações seguintes, os “mancipium”295, os escravos e os clientes296
Portanto, neste período arcaico do direito e sociedade romana, querer reclamar um
dano causado por alguém que pertença à família, deveria ser efetivada perante o
paterfamilia297, e por ele de forma soberana julgada.
290
JUSTO, A. Santos, Direito Romano Privado – I, Coimbra, 2000, Coimbra/Portugal, p. 57
Morey, ob. Cit.,, disponível em <http://www.forumromanum.org/history/morey03.html>, acesso em
17.02.2008.
292
COULANGE, Fustel. A Cidade Antiga. 2. ed., São Paulo: Editora Ensino Superior, 1987, p. 45.
293
Cujo o termo diz respeito ao comando ou chefia de uma família, e não ser genitor de alguém, cf. GIORDANI,
Mário Curtis; História de Roma, 12. ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 160.
294
Esposa
295
Assemelhados a escravos, cf. CRETELLA Jr., José, Curso,.... p.78.
296
MOREY,site citado; que os definem como sendo pessoas que vinculam-se ao paterfamilia, e a ele estão
submetidos juridicamente, mas sem serem escravos dele (guardando alguma semelhança os servos medievais).
297
JUSTO, A. Santos. Direito Romano Privado – I, Portugal: Coimbra Editora, 2000, p. 57
291
91
Logo, ainda que durante este período, os delitos fossem públicos, ao que parece,
quando a lesão fosse causada por intermédio de membro da família, e não se atinge bem
jurídico298 externo ou sacro, a decisão é do chefe da família.
Lesões corporais, furtos, e outros delitos299 de natureza então privada, eram claramente
decididos no âmbito da família.
Já os demais delitos, e em especial o homicídio, eram considerados crimes contra o
Estado, contra a cidade e seus deuses, e nesta circunstância eram julgados ou pelo rei ou pelos
magistrados.
Um exemplo interessantíssimo é o julgamento de um dos Horácios, Publio, que
assassinara sua própria irmã, noiva de um dos Curiacios. O rei Tulo Hostilio, manda que seja
julgado pelos magistrados escolhidos para tal, pois considera o delito um crime contra o
Estado300, e não um delito dentro da família. Lendário obviamente, mas muito instrutivo sobre
as regras de procedimento criminal e competência judicante, levando-se em consideração o
bem jurídico tutelado.
À frente de suas tropas, marchava Horácio exibindo seus tríplices
despojos. Sua irmã, donzela noiva de um dos Curiácios, saiu-lhe ao encontro diante
da porta Capena. Ao reconhecer em seus ombros a túnica de guerra que ela mesma
fizera para o noivo, soltando os cabelos e debulhando-se em lágrimas, clamou pelo
nome de seu noivo morto. As lamentações da irmã em meio a sua vitória e ao
regozijo da multidão provocaram a cólera do jovem guerreiro. Sacando da espada
trespassou a moça dirigindo-lhe estas ásperas palavras: “Vai-te com teu amor
insano, vai unir-te ao teu noivo, tu que esquece teus irmãos, os mortos e o vivo, tu
que esquece tua pátria! Assim morra toda a romana que chorar um inimigo”.
Esse crime horrorizou a patrícios e plebeus, mas o recente triunfo
do assassino contrabalançava-o. Contudo, o jovem foi levado em julgamento perante
o rei.
Não querendo assumir sozinho a responsabilidade de um
julgamento tão penoso e anti-popular e do suplício que decorreria da sentença, o rei
reuniu a assembléia do povo e disse: “De acordo com as leis, nomeio duúnviros para
julgar Horácio por crime contra o Estado”.
O texto da lei era terrível: “Os crimes de Estado serão julgados por
duúnviros. Se o culpado apelar da sentença dos duúnviros, o apelo ocasionará um
debate. Se a sentença dos duúnviros for confirmada, cobrir-se-á a cabeça do
condenado, que será enforcado numa árvore sob chicotadas, dentro ou fora do
pomério”. 301
Também as gens, claríssima herança do período dos clãs, pois se consideravam
descendentes de um ancestral comum, na maior parte das , mitológico, embora tenha sua
importância no processo de escolha e definição política da vida da cidade, não tinha maiores
importâncias no que diz respeito ao acesso judicial.
298
Se é que é possível usar este termo nesta época.
E é de se ter que não existiam tipos penais, mas sim proibidos consuetudinários e de formulação oral.
300
“Perduellio”
301
; LIVIO, Tito. História de Roma – ab Urbe Contitia Libri. V. 1, São Paulo: Editora Paumape, 1989, p. 55.
299
92
O mesmo diga-se das tribos e das cúrias.
Mas a sociedade era dividida entre patrícios e plebeus, ou seja, cidadãos de primeira e
de segunda classe, e o acesso judicial, e o processo penal, eram pontos chaves neste ambiente.
LIVIO, ao estabelecer que Rômulo quando criara as magistraturas, também cita que
este escolheu cem cidadãos, dentre aqueles que se estabeleceram na cidade, cujo nome era
patres e seus descendentes foram chamados de patrícios; para com ele formar um conselho de
governo, o Senado302. A sua sigla SPQR303, posteriormente junto com a águia imperial,
simbolizaria o próprio espírito e a grandeza de Roma.
Obviamente que a criação do senado estabelecida por LIVIO, de teor mítico, nos
reporta que das tribos originárias do lácio, suas elites governantes não deixaram o poder
político concentrado em alguém, mas sim diluído em um órgão de conselho e decisão, de
onde seus representantes controlariam a cidade.
Dentre os poderes do senado, estava poder julgar segundo os costumes, e estes no
sentido de comando impositivo de conduta, que só os patrícios conheciam.
Veja-se que tal posição do senado estava vinculada ao fato do costume ser fonte de
direito, e tal era agregado com conhecimento prévio de uma das classes sociais.
Neste aspecto, nos primeiros três séculos de Roma, o “consuetudo” era a expressão de
uma regra impositiva de origem jurídico-religiosa, onde os eleitos, tanto do colégio sacerdotal
como no senado, tinham o poder de revelar (“interpretare” em latim).
Durante os primeiros três séculos, o Direito Romano (sobretudo
privado) é constituído por costumes (mores). POMPONIUS não os refere
expressamente, mas diz-nos que, no início da civitas, o povo regia-se sine lege certa,
sine iure certo.
No quadro das fontes da época clássica, GAIUS não apresenta os
mores nem a consuetudo, mas refere inicialmente todos os povos legibus ET
moribus reguntur. Daqui se deduz que, na falta de leges (aliás, escassas), os mores
constituíam a principal fonte de direito.
Os mores eram regras jurídico-religiosas que insensivelmente
engrossavam o patrimônio de valores e de crenças da antiga sociedade romana que a
tradição conserva. Constituíam o ius incertum de que nos fala POMPONIUS e a
tarefa de os revelar (interpretare) estava confiada aos porta-vozes oficiais da
vontade dos deuses: aos colégios sacerdotais.
Poder-se-á, portanto, definir os mores maiorum como tradição
duma comprovada moralidade que a interpretatio jurisprudencial desenvolveu e
adaptou às novas exigências da vida. 304
302
LIVIO, Tito. Op. Cit p. 31.
“Senatus Populusque Romanus”
304
JUSTO, A. Santos. Direito Romano Privado – I, Coimbra, 2000, Coimbra/Portugal, p. 76.
303
93
Como o senado tinha função jurisdicional e era composto pelo patriciado, que como
classe dominante, utilizava-se desta função institucional para manter a plebe em seu estado de
submissão.
Logo, um dos problemas interessantes das vias de acesso daquele período era
exatamente saber-se quando e como era possível a vítima pretender de formalmente reclamar
um dano que lhe fora causado. Ainda que nos casos mais gritantes tal possibilidade de uma
maneira ou de outra era clara, nos casos mais amiúde nem mesmo se sabia se ou quem era ou
não vítima!
Durante todo o período da realeza e a parte inicial da república, as tensões entre
patrícios e plebeus eram avultadas tanto por circunstâncias políticas, como por problemas de
ordem jurisdicional.
LIVIO nos traz um quadro bem interessante dos contornos societários da Roma
arcaica, quando traça a o primeiro censo, no qual foram os habitantes divididos em centúrias
conforme as posses que tivessem.
305
Com os cidadãos que possuíam cem mil asses ou mais, organizou
oitenta centúrias, quarenta de homens idosos e quarenta de jovens, chamadas de
primeira classe. Os anciãos eram encarregados da defesa da cidade e os jovens das
guerras no exterior. Como armas defensivas possuíam o capacete, o escudo redondo,
as perneiras e a couraça, tudo em bronze. Como armas ofensivas usavam a lança e a
espada. Acrescentou a essa classe duas centúrias de soldados de engenharia, que não
usavam armas e cujo encargo era preparar as máquinas de guerra.
A segunda classe compreendia as fortunas que iam de cem a setenta
e cinco mil asses e formava vinte centúrias, incluindo homens de idade e jovens.
Suas armas eram o escudo oblongo, ao invés do redondo, e à exceção da couraça
todas as demais armas eram as mesmas da primeira classe.
Para a terceira classe fixou a fortuna em cinqüenta mil asses. Era
formada de igual número de centúrias, divididas igualmente conforme a idade.
Usavam as mesmas armas, com exceção de perneiras.
Na quarta classe a fortuna era de vinte e cinco mil asses. Havia o
mesmo número de centúrias, porém as armas não eram as mesmas. Usavam apenas a
lança e o dardo.
A quinta classe, mais numerosa, formava trinta centúrias. Era
armada de fundas e projéteis de pedra. Compreendia também os corneteiros e os
trombeteiros, divididos em duas centúrias. A fortuna exigida era de onze mil asses.
Os demais cidadãos que o censo indicara possuir menores haveres
formavam uma única centúria, isenta do serviço militar.
Depois de armada e organizada a infantaria, Túlio formou com os
nobres da cidade doze centúrias de cavaleiros. Das três instituídas por Rômulo
formou seis, conservando os mesmos nomes que lhes haviam sido dados quando da
sua criação. Deu-lhes dez mil asses por ano retirados do tesouro público para a
compra de cavalos, e para alimentá-los taxou as viúvas com um imposto de dois mil
asses por ano.
Todos esses ônus não incidiram sobre os pobres e sim sobre os
ricos, que, entretanto receberam honrarias compensadoras. Contrariamente ao
costume estabelecido por Rômulo e mantido pelos outros reis, Túlio não atribuiu
indistintamente igual peso e igual valor aos votos de todos os cidadãos. Estabeleceu
305
Suposto e possivelmente lendário, e atribuído ao Rei Sérvio Túlio.
94
uma hierarquia que, sem parecer excluir qualquer cidadão do direito de voto,
colocava todo o poder nas mãos das classes mais elevadas. Os cavaleiros eram
chamados a votar em primeiro lugar e depois as vinte e quatro centúrias de primeira
classe. Se houvesse desacordo entre eles, o que raramente acontecia, chamava-se a
segunda classe. Quase nunca se descia até as classes baixas.
Não nos devemos admirar de que nossa organização atual, em que o
número de tribos elevou-se a trinta e cinco e duplicou-se o número de suas centúrias
de jovens e de anciões, não corresponda mais ao total estabelecido por Sérvio Túlio.
Ele havia dividido a cidade em quatro partes formadas pelos quarteirões e colinas
então habitadas e dera-lhes o nome de tribos tirado, penso eu, do tributo que tinham
de pagar, pois o imposto proporcional à fortuna foi também uma de suas
instituições. Essas tribos não tinham, aliás, nenhuma relação com a distribuição e o
número de centúrias. 306
Assim, os mais abonados formavam oitenta centúrias307, as mais bem armadas, digase; enquanto as categorias menos abastadas formavam trinta centúrias, armadas de pedras e
fundas. Havia ainda os que sequer atingiam a quantia censitária308, formavam uma única
centúria, e eram isentos de serviço militar; mas, também tinham apenas um voto.
O próprio LIVIO, afirma de forma categórica que tal sistema, alijava do poder a
grande massa dos romanos, pois dificilmente as categorias mais baixas votavam, pois a
primeira e segunda classe votavam em bloco, e como tinham maior número de centúrias,
sempre impunham sua vontade.
Terminado o censo, cuja conclusão fora apressada por uma lei que
ameaçava com a prisão e mesmo com a morte os que não se inscrevessem, Túlio
decretou que todos os cidadãos romanos, cavaleiros e infantes, se reunissem com
suas centúrias no Campo de Marte aos primeiros albores da madrugada. Quando as
tropas já se achavam organizadas em fileiras, ele as purificou com uma
suovetaurília. Essa cerimônia foi chamada de “encerramento do censo” porque
indicava realmente o fim do recenseamento. Dizem que oitenta mil cidadãos foram
inscritos no primeiro censo. O mais antigo de nossos historiadores, Fábio Pictor,
acrescenta que correspondiam ao número dos que podiam pegar em armas. 309
Logo a fricção entre dominantes e a plebe era cotidiana, e por diversas vezes levavam
a revoltas.
Na realidade, o acesso a qualquer tipo de justiça criminal, por parte das vítimas, era
sempre complexo, pois não existia uma via prevista de forma clara e isonômica, e é preciso
que se relembre sempre que a ação penal, em especial nos crimes privados, era de alçada
privada310, na medida em que era proposta pela vítima.
306
JUSTO, A. Santos. Op. Cit., p.79 - 80
Subunidade militar romana, que tinha caráter tanto bélico como político, pois eram as centúrias que votavam.
308
Onze mil asses de posses, e para se ter uma idéia disto, na época de Tito Livio, o valor do trabalho de um
operário especializado era de 10 asses por dia; e 1 asse comprava meio quilo de pão, e os asses era a menor
unidade monetária da época. Fonte: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Moeda_romana>; acesso em 24 .02.08.
309
JUSTO, A. Santos. Op. Cit. p. 81.
310
BRANDÃO,Cláudio,
Ontologia
da
Ação
Penal,
in:
<http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_140/r140-24.pdf>, acesso em 24.02.08.
307
95
Nos casos de crimes públicos, os magistrados311, podiam e deviam investigar, não no
sentido técnico que tem hoje, mas no sentido de trazer ao caso, as provas necessárias, e que
estão sob o controle de Roma, posto que como já dito os crimes públicos atinja a cidade.
7.6.2 A República
Na realidade a República não foi uma passagem repentina da Realeza para outro
regime, mas sim uma evolução que teoricamente teria começado em 510 a.C., com a derrota
do Rex, que na realidade continua a chefiar os aspectos religiosos da vida da cidade.
No ano 510 a.C., uma revolução, em que provavelmente participou
o exercitus centuriatus patrício-plebeu criado por Sérvio Túlio, depôs o último rex.
Os plebeus que, por não pertencerem às gentes, estavam excluídos
das curiae e dos comitia curiata engrossam o exercitus centuriatus. E a civitas
conhece uma nova ordenação: o seu território é dividido em quatro tribus ou
regiones (espécie de distritos político-administrativos); a população é distribuída por
cinco classes que, por sua vez, constituem 193 centúrias que formam a base do
exército e determinam uma nova assembléia: os comitia centuriata que, dado o seu
carácter militar, se reúnem fora da civitas, no campo de Marte.
A instauração da República não traduz uma ruptura com a
Monarquia. Durante muito tempo, o rex ainda chefia os assuntos religiosos (rex
sacrorum) e só em meados do século IV a.C. a organização republicana adquire
contornos claros. 312
Ao que tudo indica, o fim da realeza está ligada ao menos no que diz respeito a
estrutura da cidade, ao fim da influência direta etrusca na vida romana.313 Com isto, o mero
fato de ter modificado o mando político, não poderia ter levado a profundas mudanças de
pronto na vida jurídica da cidade.
Mesmo com o fim da vitaliciedade do exercício do poder concentrado, de certa forma
a concentração em si mesma continuou, pois a queda do regime monárquico, foi um
movimento de elites, ainda que a plebe tenha combatido, mas sempre sob ordens do
patriciado.
Portanto, as instituições que notabilizaram a República levaram várias décadas para
estabilizarem-se, ou mesmo surgirem, algumas delas de forma tímida.
Daí porque, a própria evolução das instituições judiciárias ou judiciariforme da Roma
republicana, não foi pacífica, e nem mesmo meritória. As principais instituições de acesso
judicial, tanto no cível como no crime, foram neste momento da história romana, reativas, e
311
PAULA de, Jônatas L. M. História do Direito Processual Brasileiro: das origens lusas à escola crítica do
processo. Barueri: Manole, 2002; p. 88
312
JUSTO, A. Santos. Direito Romano Privado – I, Coimbra/Portugal: Coimbra, 2000, p. 60.
313
GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma, 12. ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p.32
96
tal eram tão claramente uma reação, que a maioria dos historiadores romanos, coloca seus
inícios ou na rebelião contra as dívidas314 ou na grande rebelião da plebe do monte sacro.
De uma maneira ou de outra, a mais contundente das demonstrações da necessidade de
acessos à justiça estava na criação ou estabelecimento da magistratura do tribuno da plebe,
após a cedição do monte sacro315.
Neste aspecto, veja-se o que expõe SURGIK, 1985:
Segundo o relato tradicional, a primeira grande luta social travou-se
em 494 antes da nossa era, envolvendo patrícios e plebeus. A situação dos plebeus
havia chegado a uma situação simplesmente insuportável pelas dívidas excessivas
que sobre eles recaíam, o que fez com que se sublevassem, exatamente na ocasião
em que a situação militar era muito tensa, por causa das guerras com os volscos, os
équos e os sabinos. Os patrícios, para acalmar os plebeus e manter a capacidade
combativa do exército, prometeram melhorar a situação dos devedores, porém, uma
vez vitoriosos, logo as promessas foram esquecidas. Então, os soldados plebeus
retiraram-se ao Monte Sacro (secessio plebis in montem sacrum), a cinco
quilômetros, mais ou menos, de Roma, onde acamparam, permanecendo
tranquilamente na expectativa por alguns dias. Em Roma, faltava considerável parte
das forças armadas, e o pânico difundiu-se ante o temor de que os plebeus quisessem
constituir uma comunidade independente. Iniciaram-se as negociações, e os patrícios
tiveram que submeter-se a certas condições, entre as quais a de permitir que os
plebeus elegessem seus representantes na pessoa dos tribunos da plebe, escolhidos
entre os próprios plebeus.
O compromisso solene dos plebeus (coniuratio), no sentido de vingar
severamente qualquer agressão ao tribuno da plebe outorgava a este a
inviolabilidade (sacrosanctitas) durante toda sua magistratura, e sua missão sempre
foi a de prestar ajuda (auxilii latio) ao cidadão particular, protegendo-o contra as
opressões e as injustiças, prestando auxílio particularmente a todo plebeu ameaçado
por um patrício. Dispunha ademais de um poder disciplinar e do direito de reunir e
presidir às assembléias dos plebeus (jus agendi cum plebe), que se estendeu
posteriormente ao de convocar e presidir o senado (ius senatus habendi). O
tribunado permaneceu sempre como um apanágio exclusivo dos plebeus, mesmo
depois que os plebeus conquistaram o acesso às magistraturas patrícias, Sabe-se,
aliás, que no final da República, o patrício Clodius resolveu tornar-se plebeu
(translatio ad plebem) para ocupar o tribunado316.
Veja-se que este se colocava acima de todas as magistraturas, exceto sobre o ditador,
e, além disto, levava aos plebeus o acesso às magistraturas e, portanto, ao senado; ao efetivo
governo de Roma.
Mas além deste momento da criação institucional, talvez, sob o estrito aspecto do
acesso à justiça criminal, a mais importante e significativa evolução foi à fixação escrita das
normas, tanto de permissão de conduta, como de proibição de condutas.
314
GIORDANI, Mário Curtis. Op. Cit. p.34
“secessio plebis. in montem sacrum”
316
SURGIK,
Aluísio,
Do
Tribuno
da
Plebe
e
o
Conceito
de
Justiça,
<http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/viewFile/8913/6222>, acesso em 28 de julho de 2008.
315
In:
97
Parece óbvio que ao conseguir adentrar nas magistraturas e a quebra do monopólio
patrício do conhecimento das normas, em especial os costumes, foram ao longo do tempo as
principais conquistas da cidadania romana no que concerne ao acesso à justiça.
Não que as leis escritas tenham sido uma criação romana317, mas para uma cultura
jurídica que se detalhava pelas instituições, legislar de forma clara e perene, e com normas
cujo conhecimento e interpretação eram acessíveis a todos, foi de uma importância tal, que a
civilização ocidental ainda mantém como absolutamente necessária a publicidade das normas.
Não que em outros momentos e culturas não existissem magistraturas protetivas ou
garantidoras de direitos, mas dificilmente com a amplitude de poder e capacidade de ação dos
tribunos da plebe.
A estrutura institucional judiciária da Roma republicana, como já dito antes, foi o que
estabeleceu durante séculos, as vias de acesso institucional ao justo, em especial os Pretores,
os Aediles Curules e os Questores, principalmente nos delitos privados. Mas com o tribuno da
plebe, mais e mais o conceito de acesso à justiça por parte das vítimas, e em especial nos
delitos ditos públicos, é que o conceito que HABERMAS defende de ser o acesso à justiça,
uma atitude política.
7.6.3 O Império
A Roma imperial, a rigor, não surgiu de forma rápida, na realidade construiu-se por
um período relativamente longo, posto que desde as guerras civis, o princípio de concentração
de poder político em um único personagem, foi sendo elaborado, começando por um conceito
pré-existente de ditador, passando pelo princípio até chegar ao imperador.
A passagem da República ao império fez-se progressivamente. O
progresso econômico, as dificuldades sociais e as vastas conquistas provocaram
durante o século I a.C., uma crise política, que desencadeou a centralização de
todos os poderes em Octávio, o qual manteve as instituições da República, e tendo
recebido do Senado o título de Augusto. Este criou a instituição do impérium
proconsular e o poder do tribunato vitalício; foi proclamado general vitorioso
(imperator) e não estava vinculado nem limitado pela lei (legibus solutio). Era o
primeiro dos cidadãos (princps) e concentrava todos os poderes do novo regime
317
Que a bem da verdade não criaram muito, mas evoluíram ao máximo tudo.
98
político, sendo que , em Roma, respeitava as instituições políticas, mas, nas
províncias imperiais, agia como monarca absoluto.318
Portanto, não ocorreu uma ruptura nas instituições, mas com o tempo, estas foram
mutando-se, pois a formatação do poder político, concentrado e pessoal, tende a modificar as
instituições. Isto ocorreu, por exemplo, no surgimento da cognitio extra ordinem que a
princípio conviveu com a actio per formula, indo paulatinamente suplantando esta última.
Mas o ponto focal de tal modificação estava intimamente ligado aos meios de acesso á justiça.
Ao lado da forma tradicional de justiça, consistente na bipartição de
tarefas pretor/juiz, surge esta forma concentrada. Para julgar no lugar do príncipe
são criados delegados seus, assim como na administração das províncias e no
cuidado de seu tesouro já se aviam instalado “funcionários” ou agentes imperiais.
Quando além do julgamento de casos que ele resolve avocar, o imperador também
passa a ouvir queixas contra sentenças proferidas por outros, ouvindo apelo
(suplicatio) ou recursos, a tarefa não é exercida por ele pessoalmente as por algum
membro do seu conselho, que se transforma em cúria e tribunal central do império.
E nestas funções estarão presentes os juristas. O príncipe torna-s aos pouco juiz
supremo, tanto em matéria cível como em matéria penal, intervém a convite ded um
magistrado, funcionário ou de um particular. Como sempre na história de Roma, a
mudança justifica-se pela restauração da república, mas de fato é substancialmente
algo novo.
Assim, a cognitio extra ordinem, difere substancialmente do processo
formular porque centraliza o juízo (abolindo a diferença pretor/juiz) e introduz a
possibilidade de apelação. Se a função de julgar estava repartida entre dois órgãos
de natureza diversa (pretor/juiz), um não poderia rever a decisão do outro. Quando
o julgamento se concentra e se concentra um delegado (inferior) do imperador, este
pode reanalisar e corrigir que foi feito pelo seu agente. O julgamento do príncipe é
um decreto (decretum) para o caso concreto.319
Logo, no período imperial, o acesso à justiça, tanto no aspecto formal como no aspecto
institucional, significava recorrer ao próprio poder imperial, solicitando sua vontade e pedindo
pela imposição de seu poder como evento dogmaticamente justo.
318
VERAS NETO, Franscisco Quintanilha. Direito Romano Clássico: Seus Institutos e seu Legado. In:
WOLKMER, Antônio Carlos et al, Fundamentos de História do Direito. 3. ed.,Belo Horizonte: DelRey, Belo
Horizonte-MG, 2006, p. 93
319
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História – Noções Introdutórias. 2. ed., São Paulo: Max
Limonad, 2002, p. 53.
99
Aqui, pode-se verificar que a justiça caminhava para ser uma dádiva imperial, mas
além disto, pelo menos no período clássico, e sob imperadores equilibrados320, as decisões
imperiais eram assistidas por profissionais do direito, e se for observado mais de perto, uma
plêiade de juristas do direito romano clássico, como Gaio, entre outros, eram vinculados a
estas funções, ou por concessão ou por nomeação.
Durante o Principado a harmonia entre juristas e imperador aconteceu.
Augusto criou o costume de conceder a alguns juristas o ius respondendi (ex
autoritate principis). O jurista assim “patenteado” poderia falar em nome do
imperador. Somavam-se duas autoridade: a do jurista e a do príncipe. Nenhum dos
dois, isoladamente e no início pelo menos, produzia a “lei”. Com o tempo, já no
segundo século, Gaio poderá alinhar a apinião dos prudentes entre as fontes do
direito, caso ea fosse concorde.
Durante o Dominato os juristas mudaram de perfil. Da mesma
maneira que o pretor e juiz desapareceram porque o processo passou a ser
concentrado em um só órgão, o jurista independente perdeu seu lugar O centralismo
do Dominato faz com que os jurispreudentes sejam funcionários encarregados de
aplicar precedentes já solidificados e capazes de garantir a uniformidade e a
submissão de todos ao poder central. Podem também, como dito, ajudar na feitura
da legislação imperial. Desenvolvendo agora dentro da burocracia, é possível criar
escolas de direito despersonalizadas, que preparam para a carreira burocrática:
algumas serão notáveis como Constantinopla e Berito (Beirute), cuja influência no
oriente dura muitos séculos, o lado de Roma e Alexandria . No Dominato o papel
da legislação imperial é crescente e o dos juristas de ser somente o de dar conselhos
aos pretores, aos juizes e às partes para ser especialmente assessorar o príncipe ou
imperador.321
Com isto, os sistemas de acesso à justiça durante o período imperial, em muito se
assemelha aos que surgiram em sociedades mais antigas, notadamente as sumerianas, onde o
direito e a justiça estavam fortemente centralizados em torno de um núcleo de poder.
Neste mesmo talante, uma análise mais aprofundada, coloca o cotidiano das
populações romanas, sob absoluta dependência do estado, e de seus agentes, e isto
aparentemente era mais verdadeiro nas províncias, pois o império, tratava de forma distintas
as províncias ocidentais (onde impunha sua estrutura social e política) e as orientais, onde de
forma variada, admitia poderes locais, que se submetiam a Roma, como por exemplo o Rei
Herodes da Judéia, que reinou durante a ocupação romana.
320
321
Ou seja, excluindo-se Nero e Calígula.
Ob. Cit. 55-56
100
Mas o fundamental era que o governador provincial, antes de representante da
autoridade imperial, um juiz, definidor do certo e do errado, e, portanto, senhor do bem e do
mal.
A palavra “província” designava, primitivamente, o domínio ser o
qual um magistrado superior exercia seu imperium. Assim, por exemplo, em Tito
Livio, província Etruriae significa “comando da campanha da Etrúria”. No século
III, a expressão adquire outro sentido: comando de um magistrado fora da Itália ou
ainda, possessão do povo romano fora da Itália, A organização de uma província
era feita pela Lex provincialis que cnsiderava o território conquistado como
propriedade do povo romano (praedium populi romani) e fixava a condição das
cidades em face a política romana. A lex provincialis era redigida pelo general
vitorioso e aprovada pelo senado que enviava uma comissão de dez senadores com
a finalidade de por em funcionamento o governo provincial. As províncias havia as
cidades submetidas (civitates stipendiariae), que deviam pagar impostos, e as
cidades livres (liberae ou immnes), isentas de impostos e com direito a cunhagem
de moeda.
O governador da província era um magistrado em exexncício (praetor)
ou um magistrado que já saira do cargo (propraetores e proconsules). Anualmente o
senado designava duas províncias consulares (que deveriam ser governadas pelo
cônsules, cujo o mandado expirara) e nomeava os governadores das demais
províncias (senatus consultum de provinciis ordinandis). O governador da província
possuía amplos poderes em virtude do imperium de que estava revestido. Sua
missão era múltipla: providenciar as requisições de homens e de dinheiro exigidos
por Roma, zelar pela segurança das fronteiras e administrar a justiça.
“É sobretudo sob este aspecto de juiz que se nos apresenta o
governador romano. Assim, como no território dos cidadãos romanos, o pretor é o
juiz supremo em matéria civil, também na província , o pretor ou promagistrado
tem por primeira tarefa a obrigação de afixar as regras de direito segundo as quais
ele julgara os processos civis. Quanto aos processo criminais, ou o governador os
deixa aos cuidados das autoridades locais ou os avoca a si, em virtude do seu
imperium”.322
Durante o império, tanto na Roma, como nas províncias, o acesso aos meios judiciais
de julgamento de delitos323, eram ultra concentrados em sujeitos específicos324, sob regras
muitas das vezes por eles ditadas, e em estruturas burocráticas vinculadas a este centralismo.
322
GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 12. ed., Petrópolis: Editora Vozes, 1997, p. 107
E neste particular, é de se lembrar que existem, ainda que de modo residual, os delitos privados, que eram
julgados como ações cíveis.
323
101
Portanto, o meio institucionalmente válido de acesso à justiça penal era sempre o
recorrer ao poder central ou provincial. Mas o fazia através de estruturas prévias, que, na
maioria das vezes, de forma técnica instruíam as decisões.
No entanto, ao menos nas províncias, o governador poderia deixar às comunidades
locais a decisão das causas criminais, e isto, aparentemente se impõe no caso dos delitos de
menor potencial ofensivo, ou que dissesse respeito a bens jurídicos privados ou disputas
eminentemente intersubjetivas.
Por fim, e apenas para trazer um exemplo bem conhecido, ainda que não
necessariamente uma verdade histórica, mas certamente de direito romano, o lavar das mãos
de Pôncio Pilatus – Governador da Província da Judéia – nada mais foi do que deixar uma
questão criminal à decisão dos locais. 325
Quando o império cai, estas instituições, em especial o costume de deixar aos locais as
causas criminais locais, vão se refletir nas legislações que criaram o costume de julgar
Romanos pela lei romana e os germânicos pelas leis germânicas.
7.7 A Idade Média
O período histórico que se convencionou chamar de Idade Média, na realidade não foi
um período que adveio de um turno só, em agosto de 475.
Antes fora um processo gradual e fragmentado, cujo início é incerto, mas cujo fim
pode ter-se dado apenas em 1453.
Portanto, a influência de Roma, manteve-se clara e ativa por séculos; como nos
demonstram as línguas, as igrejas, os fóruns, as artes, a cultura e em especial o desejo de
reviver o esplendor de Roma.
A franja da Idade Média, se optar os momentos definidos pela historiografia clássica,
encontrar-se-á o ocidente romano habitado – ou colonizado – por dezenas de tribos
germânicas distintas, além dos povos celtas da periferia noroeste, e dos povos migrados do
oriente próximo.
Por motivos de ordem econômica e militar, os romanos aceitaram a
imigração e o estabelecimento de bárbaros dentro das fronteiras do Império. Sob o
reinado de Marco Aurélio (séc. II) foram instalados no Império milhares de
bárbaros, que substituiriam a falta de mão de obra rural. Os sobreviventes dos
bandos de Godos que entre 268-270 haviam assolado os Bálcãs e foram instalados,
na qualidade de colonos, nas regiões devastadas das províncias danubianas. Em 291,
324
325
Fato este que vai marcar profundamente a única instituição imperial que ainda sobrevive: A Igreja Católica.
Base de argumentação para a perseguição milenar aos Judeus.
102
Maximiniano cedeu a Francos, imigrados, regiões devastadas para ai se localizarem.
Em 296, Francos e Frisões foram instalados, por ordem do Imperador Constâncio
Cloro, nas regiões da atual Picardia e da Champagne.
Povos inteiros vinculados a Roma por um Contrato (federados),
conservando seus costumes e sua organização social e política, foram, assim,
acomodados em território do Império. O panegirista de Constâncio Cloro parece
refletir o contentamento dos romanos com essa solução para a “questão bárbara”. “
Assim o chamavo trabalha para nós; ele, que por tanto tempo nos arruinou com suas
pilhagens, ocupa-se em enriquecermos; ei-lo vestido de camponês extenuando-se no
trabalho, freqüentando nossos mercados e levando ai seus animais para vendê-los.
Grandes espaços incultos nos territórios de Amiens, de Beauvais, de Troyes, de
Langres, reverdecem agora graças aos bárbaros.” 326
Para se ter uma idéia da profunda influência destes inúmeros povos, a que pese Aécio
ter sido o grande campeão romano do cristianismo católico, aclamado como o último dos
romanos, ele próprio não era de origem romana, mas sim, bárbara.327
A Europa ocidental era um caleidoscópio de povos e províncias, que iam da
romaníssima Gália Transalpina, até a Bretanha onde o latim desaparece em poucas gerações, e
foi este caleidoscópio que albergou os germânicos que invadem de forma gradual, mais como
uma maré do que uma horda, vão ou substituindo os habitantes em fuga, ou expulsando-os, ou
apenas assentando-se em espaços vazios, ou lado a lado com outras comunidades, em um
processo que durará séculos, até ao menos o século IX.
Neste processo, como ficará claro mais adiante, instituições firmemente fixadas como
o fórum, conviveram com tradições imemoriais como o whergeld germânico, a ponto de
criarem-se normas fixando o direito romano para os romanos e o germânico ou os direitos
locais para os não romanos, até que se forjaram em direitos, primeiro locais, depois nacionais.
No mesmo espaço geográfico, no mesmo tempo, mas em espaços jurídico-político
distintos, ainda que intercambiáveis, persistia a igreja, ocupando os espaços administrativos
deixados pelo império, e que rapidamente tornou-se a referência administrativa dos reinos
bárbaros nascentes, em especial nas regiões mais romanizadas.
Neste aspecto em especial, veja-se a semelhança entre as divisões administrativas do
final do Império, com as funções administrativas e de governo da Igreja Católica e suas
Ordens:
Cada prefeitura é governada por um funcionário civil (praefectus).
Subdivide-se em Dioceses e esta em Provícias. Uma diocesis é dirigida por um
vícarius, e cada provícia (agora de extensão umito mais reduzida), por um
governador (proconsular, consular, praeses e corrector) que dependem do
imperador e desempenha funções administrativas e jurisdicionais. 328
326
GIORDANI, Mario Curtis, História dos Reinos Bárbaros, v. 1, 4. ed., Petrópolis: Vozes, 1993, p. 32-33
<http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/FlaviAec.html>, acesso em 12/08/2008
328
JUSTO, A. Santos, Direito Romano Privado – I. Coimbra: Coimbra/Portugal, 2000, p. 73.
327
103
Como a fé cristã foi abraçada de forma diversa pelos povos germânicos, onde uns
eram católicos, mas outros eram arianos, o que levou para um inevitável confronto, onde a fé
católica acabou por prevalecer, em especial no reino franco, onde Clóvis, ao ser batizado
impõe a igreja católica como à fé oficial.
Ao estudarmos a estrutura político-social do Reino Merovingio
devemos ter em vista dois importantes fatores que emprestaram características
próprias a esse reino. O primeiro é o fato da conversão de Clóvis ao catolicismo.
Essa conversão iria ter reflexos profundos tanto na vida política (facilitando a
colaboração do episcopado católico que não encontrou a oposição rival do clero
ariano) como na vida social (levaria fatalmente, mais cedo ou mais tarde, a uma
fusão entre vencidos e vencedores).329
Logo, é neste cenário que os sistemas de acesso à justiça criminal se formaram, ou
como meio geral como a justiça das cortes senhoriais, ou na busca da justiça do rei para casos
específicos; restando ainda os bispados como fonte de justiça, pois se imiscuía no cotidiano
dos crentes.
Enfim, a Idade Média foi a forja das idéias de justiça e direito modernos, na medida
em que foi dela, e não nela, que surgiram os estudos sistêmicos e metodológicos do direito, e
desta gesta, as próprias universidades. Mas, é no cotidiano medieval que as proto-estruturas
judiciárias começam a tomar forma, ainda incipiente e vinculada aos poderes locais, mas de
uma forma ou de outra voltada ao local, ao comum dos homens, do feudo ao burgo.
7.7.1 Alta Idade Média
Com este descair do império romano do ocidente, de forma mais lenta do que se
pregou, criou um amalgamento entre as instituições imperiais e as tradições germânicas
levadas aos territórios soberanos330 criados pelos ditos bárbaros.
O panorama que surge na Europa ocidental no transcorrer dos séculos V e VI é o de
uma Europa territorialmente fragmentada, mas alinhavada em seu âmago pela igreja católica,
em especial na estrutura administrativa do território em que estabelecia o império.
Quando as tribos germânicas331 começaram os processos de fixação de forma estável
em territórios mais ou menos definidos; surgiu um vigoroso problema administrativo; pois, a
população romana ou romanizada, era bem maior do que a germânica, chegando-se a falar
329
GIORDANI, Mario Curtis; A Historia dos Reinos Bárbaros, v. 2, Petrópolis: Vozes, 1976, p. 45.
No sentido político do termo
331
Cujas feições eram claramente clanicas, com lideranças frouxas a princípio.
330
104
que a população visigótica inteira era de no máximo 250.000 pessoas332, além de os ditos
romanos, terem visões distintas do invasor333
334
. Hora foram tidos como destruidores e em
outros como libertadores, mas, de modo geral indiferente aos sentimentos tidos e havidos, as
estruturas da igreja mantiveram-se razoavelmente intactas, e como a administração local era
em grande parte calcada na burocracia episcopal, era natural que os reinos bárbaros
mantivessem estas estruturas funcionando335.
Mas ao manter estas estruturas, os germânicos estabeleceram uma dicotomia que
permaneceu de uma forma ou de outra por séculos336, que foi o tratamento diverso dos
diversos grupos étnicos formadores daqueles proto-estados.
Logo, ao estabelecer a lei germânica para os germânicos e a lei romana para os
romanos, os reinos337 europeus acabaram por estabelecer dois tipos de acesso à justiça
criminal por parte da vítima.
No caso de ser romano o réu, a via adequada era a aplicação de normas romanas onde
as penas eram corpóreas e em alguns casos de redução ao estado de escravo; se germânico o
acusado, julgava-se através do costume pelos conselhos tribais formados por homens que
conheciam aqueles costumes, onde os conceitos de pagamento pela liberdade e pelo sangue
derramado (faida)338, bem como os banimentos jurídicos eram aplicados de forma ampla,
muito embora o simples olho por olho fosse possivelmente a via mais utilizada, mas isto fora
da via institucional, ainda que possa ser eventualmente uma via legalmente válida.
Isto, no entanto, não significava a possibilidade de escolha, pelo contrário, a fixação
de competências era estrita e eram; na maior parte dos casos, vinculadas a origem do réu,
ainda que a resposta em si, vinculava-se à qualidade da vítima339.
Como o whergeld não era exatamente uma punição, mas sim um sucedâneo a ela, na
em medida que era pago para não ser punido – ou com a morte ou com o banimento, que era
na realidade a perda total de proteção jurídica340, podendo ser morto por qualquer um, e em
332
DA SILVA, Nuno J Espinosa Gomes. História do Direito Português. V. 1, Lisboa – Portugal: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1985, p. 40
333
Que aliás, algumas das vezes apenas fixaram em locais aonde foram trazidos como federados
334
Apenas para ilustrar o último grande general romano, Aécio, era visigodo, e passou boa parte de sua
juventude entre os Hunos, sendo amigo pessoal de Átila.
335
Diocese e paróquia eram divisões administrativas imperiais.
336
Um exemplo que permanece até hoje no âmbito do direito civil é o “Jus Sanguinis”
337
Em especial no reino visigótico e no reino franco.
338
DA SILVA, Nuno J Espinosa Gomes. Op. Cit., p. 178
339
Se nobre, liberta, servo ou clérigo.
340
Ou seja, deixava de ser sujeito de qualquer direito, e por conta disto, sem defesa alguma ou possibilidade de
ser defendido, e segundo LISZT, seus sucessores seriam tratados como órfãos e viúvas.
105
especial por aqueles que estavam no entorno da vítima – os valores estavam fixados em
termos de quem era a vítima. 341
Com isto, as estruturas institucionais eram voltadas para as vítimas, na medida de
quem eram elas, e nelas eram vinculadas às respostas jurídicas às lesões causadas. Neste
especial, no que concerne ao whergeld342 existia no século VI nos reinos saxões nas ilhas
britânicas estabelecia uma tabela de preços, e em geral a própria lei sálica não passava disto.
Cabe aqui se comentar que por vezes o whergeld, baseava-se no objeto do direito
lesado e não no seu titular. Um exemplo interessante está em que para a lei sálica, um furto de
um porco deveria ser punido com o pagamento de três soldos343.
Estes valores eram estipulados como verdadeira tabela de preços, onde o valor da pena
era proporcional à natureza do dano e a qualidade da vítima.
É interessante a compilação dos valores, conforme CHURCHILL os estabeleceu:
“Uma complicada tarifa estabelecia em xelins o ‘wergild’, o valor
exato de cada homem. Um ‘atheling’, ou príncipe, valia 1.500 xelins, sendo um
xelim o valor de uma vaca344 em Kent, ou de um carneiro345 em outras partes; um
‘eorl’, ou nobre, 300 xelins. Um ‘coerl’, agora reduzido à palavra ‘plebeu’ que era
um pequeno fazendeiro, valia 100 xelins, um ‘laet’ ou servo agrícola de 40 a 80
xelins, e um escravo nada valia. Todas as leis eram lógicas e matematicamente
levadas a extremos. Se um ‘coerl’ matasse um ‘eorl’ se teria de pagar como
indenização três vezes mais do que pagaria um ‘eorl’ se fosse assassinado. E essas
leis eram aplicadas às famílias de todos. A vida de um bom assassino poderia ser
compensada em dinheiro. Com dinheiro tudo era possível; sem ele, somente a
retribuição ou a perda da liberdade. Entretanto, o ‘atheling’, avaliado em 1.500,
xelins, sofria em certos aspectos. A pena para difamação era o arrancamento da
língua. Se um ‘atheling’ fosse culpado desse crime sua língua custaria cinco vezes
mais do que a de um ‘eorl’ e quinze mais que um ‘laet’ comum; e somente nessas
bases ele poderia resgatá-la. Assim as difamações de uma língua humilde eram
baratas. O ‘wirgild’ pelo menos, como disse Alfredo muito mais tarde, era melhor
346
que a luta de sangue”.
Mas quem julgava; quem processava; a quem se pedia?
341
Von Liszt chega a fazer um paralelo entre o banido e a lenda medieval dos homens lobo.
Usa-se o termo com “h” embora haja transcrições como sendo wergeld.
343
GILISSEN, John, Introdução Histórica ao Direito. 2. ed., Lisboa – Portugal: Fundação Calouste
Gulbenkian Editora, 1995 p. 178
344
O preço de uma vaca (em reposição), pode ir de R$ 850,00, conforme o site
<http://www.pecuaria.com.br/cotacoes.php>, acesso em 06/07/2008; até R$ 1.500,00 no site
<http://www.vacadeleite.com/Page10.htm>, acesso em 06/07/2008.
345
O
preço
de
uma
ovelha
pode
ir
de
R$
200,00,
conforme
o
site
<http://sementes.mfrural.com.br/detalhes.aspx?cdp=2654&mnop=OVELHAS>, acesso em 06/07/2008, até R$
1.500,00 conforme o site <http://www.mfrural.com.br/detalhe.aspx?cdp=20340&nmoca=Ovelhas-filhas-doFenomeno-Playboy--Grande-Campeao-Nacional-2006>, acesso em 06/07/2008
346
CHURCHILL,Winston Spencer. História dos Povos de Língua Inglesa. V. 1, São Paulo: IBRASA, 2005, p.
79.
342
106
Ao que tudo indica; as linhas de acesso a uma decisão eram as mesmas para a solução
de qualquer conflito, ou seja, o conjunto de decisores da comunidade, até mesmo por ser este
direito germânico eminentemente consuetudinário não escrito.
Como o costume era a regra entre os germânicos, inexistiam normas escritas, sendo as
mesmas depositadas na memória e sabedoria daqueles que lideram o grupo, não no sentido
político-militar, mas sim no sentido ético-moral347, em geral anciões ou lideres de clã.
Um esquema básico de como funcionavam os meios de decisão no universo germânico
vinculava o líder local, o Comes ou Grafio348, nos seus respectivos condado, no que diz
respeito à sua jurisdição territorial, que nem sempre correspondia a extensão de seus
domínios349, organizava um manus, ou um tribunal onde os Rachimburgii francos ou os
Urteilfinder saxão, expunham uma decisão que era aceita ou não pela assembléia.
Para compreender o papel, aliás, limitado, do povo, é preciso recordar
como funcionavam os tribunais ordinários na monarquia franca: em cada pagus
(condado) havia um tribunal (pelo menos um, com freqüência vários) chamado
malum compostos por homens livres e presidido pelo comes ou grafio (conde) ou
pelo seu substituto (tbunginus, centenarius); este era assistido por assessores que
eram chamados “a dizer o direito” (legem dicerem), isto é, a encontrar a solução do
litígio baseando-se no costume. A seguir, os homens livres aprovavam ou
desaprovavam a solução proposta.
O papel dos “dizedores do direito” (em alemão: urteilfinder, o que
encontra a decisão judiciária) era capital. Chamavam-lhe entre os francos
rachimburgii e, mais ou menos depois de 780, scabini (escabinos); entre os frisões,
asega.
Eram os “anciões” do pagus, reputados por sua experiência e pelo seu
conhecimento aprofundado do costume. Por isso, devem ter desempenhado um
papel importante na redação das leges. Dois asega, de nome Wlemarus e
Saxmundus, teriam “ditado” uma parte da Lei dos frisões. É provável que tenha
acontecido o mesmo com outros povos, como aliás, ainda sucedeu no século XII e
XIII entre os Escandinavos (cf supra p. 164: lagbman na Suécia, o lögmadr na
Noruega). 350
Mas tem-se que ser lembrado, que as cidades, que naquele momento haviam definhado
de forma razoavelmente rápida, a ponto de cidades como Roma, decaírem em até 70% de sua
população, chegando a ter menos de vinte mil habitantes em 650 d.C.351, e que as cidades
menores basicamente desaparecerem, sobrando apenas as dioceses como referencias. Tais
referências foram de uma forma quase que unânime os pontos de fixação das populações
347
Às vezes as pessoas se confundiam
Daí os nomes Conde em língua latina e Graf em língua germânica.
349
Cujo nome era Pagus, que tem significação de lugar, tanto no espanhol, como na linguagem regional do sul
do país.
350
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2. ed., Lisboa- Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian
Editora, 1995 p. 172.
351
< http://wapedia.mobi/pt/Roma?t=7>, acesso em 12/08/2008.
348
107
bárbaras, em especial no que diz respeitos aos Francos, Visigodos, Lombardos, e na África os
Vândalos.
Das velhas cidades imperiais no ocidente, como já foi dito, sobraram as dioceses e
paróquias e, portanto, a cultura romana através do clero, em especial nos mosteiros nascentes,
onde ocorreu não exatamente um resgate, mas um viveiro da cultura romana, ainda que forma
imperfeita, mas o suficiente para manter-se o credo, a língua e o direito.
Por conta disto é que os colonizadores germânicos viram-se na contingência de gerar a
duplicidade de direitos, a ponto das chamadas leis germânicas352, expressamente colocar que
as populações germânicas seriam julgadas pelas leis de onde vieram, ainda que fossem
julgados por tribunais germânicos, ou no mínimo por cortes que claramente tinham muito
pouco do velho fórum romano.
1. LEI DOS BURGÚNDIOS – personalidade do direito
“Inter Romanus vero ... Romanis legibus praecipimus iudicari”
Tradução
Entre Romanos, ordenamos que ele seja julgado segundo as leis
romanas. (L. R. Von Salis, Le Burgundionum, Hanôver, 1892, p. 32) 353
2. LEI RIPUÁRIA – mesma matéria
“Hoc Autem constituimus, ut infra pago Ripuario, tam Franci,
Burgondiones, Alamanni seu de quacumque natione commoratus fuerir, in iudicio
enterpellatus sicut lex loci contenit, ubi natus fuerir, sib respondeat”
Tradução
Decidimos que, no país ripuário, Francos, Borgúndios, Alamanos ou
qualquer que seja a nacionalidade daquele que seja chamado a julgamento, ele
responderá segundo as prescrições da lei do lugar onde nasceu. (F. BEYERLE e R.
BUCHNER, Lex Ripuaria, xxxi, 3, Hanôver 1954, p. 87)354
3. CAPITULAR DE PEPINO, O BRAVE de 768 – mesma matéria
“Ut omnes homines eorum legis habeant, tam Romani quam et Salici,
et si de alia província advenerit, secundum legum ipsus patriae vivar.”
Tradução
Que todos os homens, tanto Romanos como Sálios, tenham as suas
leis próprias; aquele que vem doutra região, viverá segundo a lei de sua pátria.
(BORETIUS e KRAUSE, Capitularia regum Francorum, 1883, t. I, p. 43)355
Mas, como se tem dado relevo, a igreja estava lá, sem grandes ruídos, mas, com o
domínio da escrita356, ou seja, com o domínio dos meios de comunicação entre as populações
que chegaram e as que permaneceram.
352
Como o Breviário de Alarico ou a Lex Sálica
GILISSEN, John, Introdução Histórica ao Direito, 2. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian Editora,
1995, p. 182
354
GILISSEN, John. Op. Cit. p. 182
355
GILISSEN, John. Op. Cit., p. 182
353
108
Não é a toa que as leis germânicas acabaram por serem escritas, e o foram em latim357,
e por clérigos que rapidamente aproximaram-se das novas lideranças358, até porque não
sobreviriam sem elas, e acabaram por servirem de consultores qualificados das lideranças
germânicas.
Com isto, fecha-se um círculo que começa com a entrada no território imperial dos
germânicos e se finda com as instituições imperiais remanescentes dando forma e conteúdo
aos estados bárbaros que gestavam no ocidente europeu.
Nesta característica, a formulação inicial da Europa nos séculos que se seguiram, é
preciso que se diga que o ápice desse processo foi o período carolíngio.359
É desnecessária a descrição pormenorizada da evolução política que levou a formação
do império carolíngio, mas é preciso que se diga que este foi o principal resultado da união
entre o poder político e o poder espiritual.
Mas foi nele, ou por conta dele, que algumas das instituições de acesso à justiça
criminal se estabilizaram, na medida em que o modelo feudal também foi se estabelecendo de
forma clara.
Foi com e após o modelo de estado carolíngio se estabelecer que o território europeu
ocidental360 foi fragmentado em uma estrutura vertical de entrelaçamento de poder.
Neste novo modelo, o que ocorria era a vinculação de um personagem titular de poder
a outro, que teoricamente361 lhe tinha superioridade de meios e de abrangência territorial.
Senhor e vassalo era a diarquia que se estabelecia no panorama institucional do ocidente
europeu.
Com o surgimento das relações de vassalagem, também surge, ou ressurge, a
minimalização das relações jurídico-institucionais, pois as instâncias de poder, ao se
estratificarem verticalmente, estabelecem um poder, por menor que fosse; mais próximo ao
cotidiano das populações, e por via de conseqüência, as vias de resolução de conflitos
estavam ao um nível institucional mais primário, estava na aldeia ou no castelo, mas não mais
no estado362, no público em alta estirpe, mas sim no mais elementar dos agrupamentos sóciopolítico, na base do sistema feudal.
356
Os germânicos eram via de regra, ignorantes em matéria de escrita.
Já modificado e evoluindo em novas línguas
358
A ponto da Lex Visigothorum datar de poucos anos à fixação dos mesmo no território romano.
359
Alguns falam em império, mas a influência e penetração dos fatos e instituições autorizam que se fale em
todo um período, e não no império em si.
360
Em especial a França o oeste da Alemanha, e em menor grau as penínsulas ibéricas e itálicas.
361
Na França, a que pese todos os senhores serem vassalos do rei, inegavelmente; o rei tinha pouquíssimo poder
de enfrentamento de senhores como o Duque da Normandia ou o Conde D’Anjou.
362
Termo usado de forma laica
357
109
Através do século IX percebe-se o enfraquecimento continuo da
autoridade do monarca a partir principalmente da morte de Carlos Magno. [...]
Calmette assim caracteriza o fortalecimento do poder comunal à custa da autoridade
central: “Em todos os condes do século IX notamos uma resistência crescente ao
deslocamento. Sob Carlos, o Calvo vemos condes que, de preferência a deixarem
seu condado, resistem com armas nas mãos. Não é somente o interesse pessoal que
atua: as vassalidades tendem a fixar o conde em seu condado. Disso resulta uma
política de família que atinge o auge no meio do século IX. Todo conde preocupa-se
não somente em conservar o seu condado enquanto vive, mas ainda em garanti-lo
futuramente para seu filho.
Ao mesmo tempo o conde, se está em boas relações com a corte, não
mais se contenta com um só condado: acumula-os. Essa acumulação é um dos fatos
diretores da decadência carolíngia e começa a delinear vastos conjuntos que fazem
já figura de principados”.
Nas raízes do crescente poder condal, figura certamente a fusão que se
vai processar entre o cargo público (honor) e o benefício. Encontramos aqui também
a e4xplicação da hereditariedade do cargo e das funções condais.
Ganshof assim explica esta fusão: “Os condes – ou ainda os
marqueses e os duques, que agrupavam diferentes condes sob a sua autoridade –
recebiam muitas vezes do rei, benefícios situados na sua circunscrição, ou noutros
lugares. Mas tiveram sempre o usufruto de domínios que constituíam a dotação para
essas funções. Eram as res de comitatu, ‘os bens ligados ao cargo condal’;
designavam-se também, por vezes, pelo termo que indicava o próprio cargo:
comitatus, quer dizer ‘cargo condal’, ou ainda ministeriu, ‘função pública’, tal como
no diploma de 817 pelo qual Luis, o Piedoso, dava à catedral de Tournai uma parte
do ‘fisco’, que dizer do domínio real, que competia à dotação do conde. Estes fisci
ou essas villae constituíam também benefícios sem dúvida, desde o tempo de Carlos
Magno. Vassalos do rei, recebendo dele um benefício cujos rendimentos deviam
representar o principal atrativo do seu cargo, os condes e outros agentes superiores
da autoridade pública devem ter sido levados a considerar que recebiam em
benefício o próprio cargo, honor, para empregar a designação técnica; e este ponto
de vista foi aceito pelo próprio soberano. Pode admitir-se que o rei dava aos seus
agentes; posse das duas funções pela entrega de um objeto simbolizado a sua
autoridade, processo que o rei também usava como sabemos, para por o seu vassalo
na posse de um benefício. Este fato era de natureza a familiarizar os espíritos com a
idéia de que a noção do benefício não se ligava só às res de comitatu, aos domínios,
mas ao honor, à própria função de que estes domínios eram menos acessórios”.363
Na realidade, ao fechar o ciclo, indo das tribos ao rei e retornando ao nobre e a aldeia,
os meios de acesso a uma decisão judicial, foram também movidas das decisões
consuetudinárias às decisões racionais até retornar novamente a aqueles modelos locais e
iletrados364.
Da mesma forma, é preciso que se recorde que o ocidente europeu naquela época365,
foi assolado pelas invasões nórdicas, que causaram sérias e indeléveis modificações no
panorama daqueles tempos.
Por fim, como o direito era local, e o poder era estratificado, os institutos normativos
escritos, perderam sua utilidade, além de perderem-se eles próprios, pois na medida em que o
poder central enfraquecia, suas normas, perdiam alcance.
363
GIORDANI, Mario Curtis, História do Mundo Feudal, v. 1, Tomo II, Petrópolis: Vozes, 1987, p. 25-26.
Mas não necessariamente injustos.
365
Séculos IX e X
364
110
Por fim, dos séculos X à XII, simplesmente o sistema normativo ruiu, restando apenas
os costumes das aldeias, vilas, cidades, etc.
7.7.2 A Baixa Idade Média – O Século XIII
Quando termina o século XII, o ocidente está passando por transformações de grande
porte, em especial na economia, e por conta disto, as localidades começam a aglutinarem-se
em torno de eixos comerciais366, fato que implementa o crescimento da importância de uma
categoria economicamente ativa, que tinha definhado a ponto de quase se extinguir, quais
sejam: os negociantes367.
De outro lado, a única instituição que manteve sua integridade e até mesmo aumentou
consideravelmente sua influência foi a igreja católica, e em especial o papado368 através de
seu clero regular, e neste, com a notável liderança dos beneditinos.
Os territórios eram governados por senhores locais, em uma intrincada rede de
obrigações e sujeições militares, sempre prontas a serem violadas, com poderes sedizentes
centrais quase que caricatos e sem expressão política, com a notável exceção da Inglaterra,
onde os poderes dos nobres não eram tão amplos e o rei mantinha enfeixados em si poderes
nada desprezíveis 369.
Por fim, o direito era um caleidoscópio de costumes locais, atrelados a um poder
senhorial restrito e retrógrado, onde os fatos eram provados por um sistema de todo ilógico e
irracional conhecido como ordálias.
É neste cenário de improbabilidades que surgem instituições e institutos que iram dar
o impulso inicial, primeiramente na Europa, e depois em todo o ocidente, para o
estabelecimento e estabilização da atual modernidade.
A igreja católica apostólica romana, santa, amada e armada, era neste ponto, a única
instituição incontestavelmente estável e claramente internacional, tanto no que concerne ao
aspecto canônico-espiritual, conquanto com a sua impressionante unidade jurídica, impunha
sua vontade e ditava o próprio formato dos estados laicos370.
Muito embora não fosse por vontade dela, nem mesmo de forma remota, a igreja
detinha os pontos nevrálgicos, como o domínio de corações e mentes do homem medieval, o
366
As feiras e cidades nascentes ou com crescimento retomado.
Aqui se arrolando desde artesãos altamente especializados e navegadores de longo curso, até vendedores de
frutas e verduras em pequenas tendas.
368
Que não é por óbvio sinônimo de cristandade
369
GIORDANI, Mario Curtis. História do Mundo Feudal. V. 1. Tomo I. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 222.
370
Exemplo clássico disto foi o Sacro Império Romano-germânico.
367
111
monopólio do saber371 e dos instrumentos do saber e o espargimento pelo território
europeu372; para dar os meios e modos para as vias de mudanças, que já se anunciavam ao
final do século XII.
E com este cabedal, era de forma até esperada que núcleos de elaboração e transmissão
de conhecimento acabassem surgindo na Europa, através da tradição de seus monastérios e
das escolas vinculadas a eles.
Estas unidades de ensino, antes de serem as instituições vetustas que se conhece, eram
antes agrupamentos de professores e alunos, em torno de um local mais amplo que as escolas
monásticas373.
As matérias curriculares básicas, como retórica, artes, gramática e teologia,
continuaram sendo ministradas, junto com lógica e direito canônico; mas com o afluxo de
mais e mais alunos, a maior parte deles oriundos da burguesia nascente, os locais acabaram se
fixando em cidades de maior vulto, como Bologna e Paris.
Tomando estas; como objeto de observação, é de se ter que tanto a igreja374, como o
poder temporal, naquele momento de formação, acabaram por tutelá-las, Bologna por
Frederico I com a Authentica Habita em 1158; e o Papa Gregório IX com a Bula Parens
Scientiarum Universitas, de 1231, até por conta do projeto de poder que tinham em mente.375
Neste ambiente começou-se a formar uma nova elite intelectual, que mais cedo ou
mais tarde iriam fornecer os quadros administrativos tanto para a igreja como para os estado
nacionais que começavam a se formarem.
Mas, além disto, as universidades re-estudaram o direito romano, não o refazendo, mas
aplicando as suas modelagens teóricas às realidades do tempo presente a eles.
A história das etapas de fundação da universidade de Salamanca é
esclarecedora. Fundada como estabelecimento real pelo Rei Afonso IX de Leão, em
1218-1219, ela tornou-se estabelecimento superior pela carta magna de Afonso X, o
sábio rei de Castela em 1254, e o Papa Alexandre III lhe conferiu a licentia ubique
doscendi em 1255. O historiador dessa universidade, Antonio Garcia y Garcia,
descreveu muito bem os privilégios exemplares concedido por Afonso X à
Salamanca em 1254: “Pela carta magna foram criados uma cátedra de direito civil,
três de direito canônico (um de decreto e duas de decretais), duas de lógica, duas de
gramática, duas de física (medicina), um posto de bibliotecário para fornecer os
371
Em especial no que diz respeito aos mosteiros e seus monges copistas
Aliás, Europa era a certo ponto sinônimo de cristandade.
373
Daí o termo campus
374
Aliás, as universidades eram parte de arquidioceses ou dioceses e funcionavam como órgãos da igreja CF
Introdução em direito canônico
375
OLIVEIRA, Terezinha. Origin and memory of medieval universities the preservation of an educational
institution. Varia hist. ,
Belo Horizonte,
v. 23,
n. 37, 2007 .
Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752007000100007&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 04 Jan 2008. do: 10.1590/S0104-87752007000100007
372
112
livros necessários aos mestres e aos estudantes, um de mestre de órgão e um de
boticário. O número de cátedras aumenta com o tempo. O salário dos professores
provinha essencialmente de um terço dos dízimos da Diocese de Salamanca. Além
disto, professores e estudantes tiravam bastante proveito de benefícios
eclesiásticos”.376
É desta época que surge o termo “Corpus Iuri Civilis”377, coletânea de estudos e
normas que vai do período clássico do direito romano até o período de Justiniano.
Não se trata duma codificação no sentido moderno, mas de uma
imponente compilação que, embora se apresente como um mosaico de fragmentos
extraídos de fontes de épocas diferentes, não deixa de ter um caráter orgânico e
unitário transmitido pela voluntas de Justiniano, que lhe atribuiu eficácia jurídica.
Compreende as seguintes partes:
1. Institutiones: é um manual elementar de Direito Romano destinado
aos estudantes que iniciam o estudo do Direito. Tem por base ás Intituitione de
GAIUS, as Res Cottidianae, as Institutiones de FLORENTINO, ULPIANUS e
MARCIANUS, às Regulare de ULPIANUS, fragmentos de constitutiones imperiais
e alguns textos acolhidos no Digesto. A sua elaboração foi confiada a Tribuniano,
Teófilo e Doroteo, e publicada em 21 de novembro de 533, pela constituição
Imperatoriam Maiestatem, alcançando força de lei em 30 de dezembro de 533 por
efeito da constituição Tanta. O seu plano, se inspirou nas institutione de GAIUS,
distribui as matérias em três grupos: pessoas, coisas e acções. Compreende quatro
livros que se dividem em títulos e estes em parágrafos.
2. Digesta ou Pandectae: é uma compilação de fragmentos extraídos
de obras dos principais jurisconsultos clássicos. Segundo a recomendação de
Justiniano, os compiladores deviam recorrer somente a jurisconsultos contemplados
com o ius respondendi, mas esta determinação não foi observada. Predomina
fragmentos de ULPIANUS (uma terça parte), de PAULUS, de PAPINIANUS e de
IULIANUS. Constituída por 16 elementos, a comissão compiladora foi presidida por
Triboniano, a quem foi autorizado suprimir palavras ou frases (que considerasse
supérfluas), modificar e retocar o que entende-se digno de reforma. O Digesto
compreende 50 livros divididos em títulos (excepto os livros 30 à 32 que se ocupam
de legados e fideicomissos), estes fragmentos e (desde a Idade Média) em parágrafos
(o primeiro dos quais denomina-se principium). A obra foi publicada e obteve força
de lei pela constituição Tanta de 16 de dezembro de 533. O manuscrito mais antigo
denomina-se pisano ou florentino (littera Pisana ou Florentibna) por ter sido
guardado em Pisa até 1406, ano em que foi levado para Florença. Uma cópia que
IRNÉRIO foi dividida em três partes: digestum vetus (até ao livro 24,3,1); digestum
infortiatum (até o fim do livro 38); e digestum novum (a partir do livro 39).
3. Codex: é uma compilação de legis desde Adriano até Justiniano.
Trata-se do Codex repetitae praelectiones (que substituiu o Codex que vigorou
desde 16 de abril de 529). É composto por 12 livros, que se dividem em títulos e
estes em leis ordenadas cronologicamente. Foi publicado pela constituição Cordiem
16 de novembro de 534 e obteve força de lei em 29 de dezembro do mesmo ano.
4. Novellae: são as constituições imperiais promulgadas depois do
Codex. Justiniano não pode cumprir a sua promessa de fazer uma nova compilação;
por isso, não dispomos de uma compilação oficial. Temos, no entanto, três
colectâneas privadas:
a) Epítome Iuliani Novellarum: contêm 122 constituitiones dispostas
por ordem cronológicas. É atribuída a Juliano, provavelmente Professor de
Constantinopla, que a terá elaborado em 555 ou 556. Só oferecem extratctus das
caonstitutiones em versão latina; daqui o nome Epítome. Ter-se-á destinado à Itália,
onde as novellae foram mandadas aplicar em 554 por uma pragmatica sanctio.
376
377
LE GOFF, Jacques, As Raízes Medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 176.
Mas não o termo Codex.
113
b) Authenticum: contém 134 novelas dede os anos 535 à 556,
transcritas em grego e traduzidas em latim e ordenadas cronologicamente até ao
número 127. Quando esta colectânea foi descoberta IRNÉRIO considerou falsa as
constitutiones compiladas; mais tarde rectificou a sua opinião e considerou que a
compiolação paresenta uma reelaboração oficial de constitutione que Justiniano
mandou fazer para a Itália; por isso admitiu-a como verdadeira e
perfeitameten”athentica”. A crítica contesta a opinião de IRNÉRIO, havendo quem
entenda que se trata duma colectânea feita em Itália, por ventura no século XI.
c) Colectânea grega: é a mais importante de todas as colectâneas de
Novelas, contendo 168, quase todas (147) redigidas em grego. Pertencem a
Justiniano (158), a Justiniano II (4), a Tibério II (3) e ao Prefrectus Praetorio (3). A
maioria esta disposta por ordem cronológica. Esta colectânea foi elaborada por um
autor desconhecido no reinado de Tibério II, talvez em 580. Exerceu grande
influência no Direito Romano Bisantino, sobre tudo na Grécia, onde vigorou até
1940. 378
Ao glosar e pós-glosar, os comentários de juristas como Acursio379 e Bartolo380 fixam
teorias e adaptam o direito antigo aos fatos de seu tempo, e inflamam o estudo do direito laico
romano.
Ainda que em um primeiro momento isto não tenha tido uma influência maior nos
meios de acesso ao judiciário medieval, em um período relativamente curto, as agências de
decisão jurídica381, começam a ter como agentes de decisão técnicos altamente especializados
em direito romano382, e a qualidade das decisões foram rapidamente modificando-se.
No que diz respeito às agências judiciárias penais, a principal modificação não foi
naquele momento histórico nos meios de acesso, mas sim nos meios de prova.
Até ali, as principais provas, ou melhor, dizendo, as provas esperadas, eram aquelas
que demonstrariam sempre a infalibilidade de Deus, em proteger os inocentes. 383 As ordálias
eram antes de tudo, exemplos claros destas provas, que por serem absolutamente irracionais,
levavam ao julgamento absolutamente aleatório dos fatos, o que de fato não deve ter sido um
estímulo á procura do judiciário.
Sob a modalidade da prova caldária – e essa água quente escorreria
para o direito foraleiro – a ordália se recomenda para os casos criminais menores,
inferiores a trezentos soldos (patamar no qual parece ter-se fixado a antiga alçada
autorizativa da tortura, de quinhentos soldos); de certa forma, é uma auternativa
procedimental à tortura, que não prevaleceria se o crime fosse manifesto, com a
vantagem de que, seu resultado da prova favorecesse a inocência, o acusador estaria
isento das conseqüências da denunciação caluniosa; a lei ainda lançava, em seu
último período, desconfianças contra aprova testemunhal. Outra lei, de
378
JUSTO, A. Santos; Direito Privado Romano – I; Studia Jurídica 50. Coimbra- Portugal: Coimbra Editora,
2000, p. 93/95
379
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian Editora,
1995 p. 344.
380
GILISSEN, John. Op. Cit. p. 346.
381
Para usar um termo de Zaffaroni.
382
“GILISSEN, John, Introdução Histórica ao Direito. Op. Cit., p. 353
383
GILISSEN, John. Op. Cit., p. 715
114
autenjticidade duvidosa atribuía Egica, dispõe também sobre prova caldária, na qual
o examinando deveria retirar três pedras da água com a mão direita. 384
Mas foi exatamente por Gregório IX, que a prática foi, ao menos formalmente, aboliu
os julgamentos divinos em 1215 no IV Concilio de Latrão, dentro das características
ideológicas que este papa direcionava para a igreja católica.
385
A partir daí as provas racionais acabaram impondo-se perante as estruturas de
julgamento, e para entendê-las e aplicá-las ao caso concreto, a técnica jurídica era necessária.
O nascimento das universidades também tem ligação com o crescimento dos centros
urbanos, e estes com o re-estabelecimento das vias comercias e o incremento econômico faz
crescer o extrato social médio, nem servo nem senhor, normalmente habitante de burgos, ou
seja, aglomerados urbanos de diversos tamanhos e normalmente vinculados a uma prelazia ou
a um senhor, que lhe davam cartas de privilégios, que se não a tornavam formalmente
independentes dos feudos, davam-lhes autonomia econômica e jurídica internamente.
O que caracteriza a cidade medieval e que será encontrado na Europa
moderna é, sobretudo, a constituição de um tipo de sociedade e de governo que, ao
mesmo tempo em que se acomodam às estruturas feudais, manifestas notáveis
diferenças e sofre uma evolução específica. O ponto de partida dessa evolução situase no século XI e levou ao fim, ou pelo menos ao limite considerável, a dominação
da cidade pelos bispos, que tinham açambarcado funções civis, e pelos condes, que
tinham sido mais ou monos estabelecidos pelos imperadores. 386
Alguns destes centros urbanos foram cidades antigas, normalmente herdeiras das
cidades romanas ou bárbaras387, mas outras nasceram exatamente deste clima econômico, em
especial do ressurgimento do comércio de longo curso, nas feiras da Champagne388 ou da foz
do Reno389. LE GOFF (2007) traz uma interessante visão da época:
Segundo Jacques Rosseau, “a cidade medieval é, em primeiro lugar,
uma sociedade abundante, concentrada no pequeno espaço no meio de vastas
extensões fracamente povoadas”. Em seguida é um lugar de produção e de trocas,
onde se mistura o artesanato e o comércio alimentado por uma economia monetária.
É também o centro de um sistema de valores particular de onde emerge a prática
laboriosa e criadora do trabalho, o gosto pelo negócio e pelo dinheiro, o pendor o
luxo, o sentido da beleza. É ainda um sistema de organização de um espaço fechado
entre muralhas onde se penetra por portas e se caminha por ruas e praças que está
eriçado de torres. Mas é também organismo social e político, baseado na vizinhança,
onde os mais ricos não se constituem em hierarquia, mas formam um grupo de
iguais – sentados lado a lado – governando uma massa unânime e solidária.
[...]
384
BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I, 2. ed., Rio de Janeiro:Editora Revan,
2002, p. 113-114
385
BATISTA, Nilo. Op. Cit. p. 714
386
LE GOFF, Jacques. As Raízes Medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 153.
387
Como Paris, Londres, Florença e Toledo.
388
Strasburg
389
Hamburgo
115
No final do século XII e no século XIII, o grande acontecimento
comercial que manifestou os progressos da revolução mercantil e o caráter europeu
desta revolução foi o desenvolvimento das feiras de Champagne.
[...]
Os mercadores e os habitantes das cidades de feiras gozavam de
privilégios importantes, e o sucesso dessas feiras está intimamente ligado ao
crescimento do poder dos Condes da Champagne e ao liberalismo de sua política.
Salvo-condutos, isenção de taxas, impostos, banalidades, instituição de uma polícia
de feiras que controlava a legalidade e a honestidade das transações, garantindo as
operações comerciais e financeiras. 390
Cidades, cidadãos e comerciantes geram uma nova força política, que, como já foi
dito tem sua formação nas universidades e, em especial, estão dispostos a subir na escala de
poder, e o faz em acordo com o único personagem que pode, ao menos teoricamente, rivalizar
e confrontar os senhores feudais e potentados eclesiásticos: O Rei.
Quando, porém a emancipação urbana significa uma oposição aos
grandes senhores, o rei interfere como protetor com o fim de enfraquecer as
senhorias. Assim o procedeu, por exemplo, Filipe Augusto constituindo-se então
uma verdadeira aliança entre a burguesia e a monarquia, fato este que se torna um
elemento importante no desenvolvimento urbano391.
Talvez a historia mais interessante da ascensão burguesa ao centro do poder, está na
corte de Felipe o Belo, e seu nome é Guillaume de Nogaret392. Filho de um burguês de
Toulouse, que fora condenado por heresia, professor de direito de Montpellier que exercia o
cargo de assemelhado ao de ministro da justiça e da fazenda393, mas era na realidade a
principal espada de Felipe.
Quando a coroa francesa resolveu taxar a remessa de ouro da igreja para o Papado, o
Papa Bonifácio VIII após tentar negociar com o rei, o excomungou394.
Ao invés de repetir o gesto de Frederico II, que se ajoelho pedindo perdão ao Papa
Gregório, em meio a uma nevasca em Castel Gandolfo, Felipe IV determinou395 que Nogaret
fosse até a Itália e lá incentivou uma verdadeira rebelião contra o Papa, que de forma
dramática, esperou seus algozes, após retirar-se para Roma, onde morre dias depois. 396
Após este episódio, foi nomeado um papa francês que “reinava” em Avignon na
Provence, ao sul da França.397
390
LE GOFF, Jacques. Op. Cit., p. 163
GIORDANI, Mario Curtis. História do Mundo Feudal. V. 2. Tomo I. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 62.
392
<http://en.wikipedia.org/wiki/Guillaume_de_Nogaret> acessado em 04 de janeiro de 2008.
393
Garde des Sceaux – Guardião dos selos
394
Retirou-lhe o caráter de cristão, algo semelhante ao banimento dos germânicos.
395
ou foi aconselhado por
396
GIORDANI, Mario Curtis, História do Mundo Feudal, V. 2, Tomo II, Vozes, Petrópolis-RJ, 1993, p. 246
397
GIORDANI, Mario Curtis, Op. Cit., p. 277.
391
116
Deste episódio, bem como o virtual extermínio da Ordem dos Templários pelo mesmo
rei e pelo mesmo assessor, extrai-se a nova ordem que se encaminhava. Os detentores dos
meios financeiros dominariam doravante os melhores acessos ao poder político, e levavam as
herdades, que ainda eram as principais fontes de poder, a um lento, gradual, mas irreversível
declínio.
Neste ponto, é preciso que se coloque a exceção inglesa, que em momento próprio irá
ser detalhada, tanto em sua evolução, como no funcionamento do sistema de acesso à justiça
criminal anglo-saxão, mas em suas primeiras bases; remonta a disputa entre senhores saxões e
a nobreza importada da Normandia.
John Lackland, irmão de Ricardo I, o Coração de Leão, não era exatamente um inglês,
era na realidade um normando, de língua francesa e que falava francês e não conhecia muito
bem o inglês arcaico que se falava nas ilhas britânicas398.
Governou a Inglaterra na ausência de Ricardo e após a morte dele, e realmente
confrontou-o a ponto de aliar-se com o rei da França, tudo para depois ser obrigado a pagar o
resgate de Ricardo399.
Isto levou ao aumento de impostos que era cobrado não exatamente da população
como um todo, mas da nobreza400, e esta, como não poderia deixar de ser, cobrava de seus
servos.
Desta disputa, nobres versus regente, resultou a Magna Carta, os Estatutos de Oxford,
e o protoconstitucionalismo inglês. Mas neste ambiente, também surgiu à via de acesso á
justiça criminal por qualquer um do reino inglês – ou seja, sem vinculação à justiça senhorial.
401
Pois bem, este é o século XIII, cidades crescendo através da burguesia nascente,
treinando-a nas universidades, e vinculando-os ao poder real, fortalecendo-se e
profissionalizando o poder.
Os soberanos buscavam estender seu poder sobre corporações que
traziam riqueza e prestígio a seu reino, formavam um viveiro no qual se
apropriavam dos oficiais delas transformando-os em seus funcionários. Àqueles
habitantes de seus estados que eram os universitários das cidades de seu reino,
queriam impor uma autoridade que, com o progresso da centralização monárquica
no século XIII, seus súditos sentiam cada vez mais. 402
398
<http://www.wsu.edu/~dee/MA/ENGLAND.HTM>, acesso em 13/08/2008.
Que na realidade era um excelente milita, mas um péssimo político.
400
Em grande parte saxã de origem, ainda que os maiores proprietários fossem normandos.
401
Itens 21 e seguintes da Magna carta CF: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/magna.htm>, acesso em 04
de janeiro de 2008.
402
LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: Vozes, 2003, p. 96
399
117
As agências judiciais deixam pouco a pouco de serem acessos ao poder local, com
decisões locais, segundo costumes e crenças, para tornarem-se agencias vinculadas a um
poder central, julgando de forma profissional e racional, segundo normas gerais.
403
Esse governo dos cidadãos por eles mesmos deixou, entre outros, dois
traços profundos de longa duração nas cidades européias. O primeiro traço é o
recurso a juristas, a homens da lei, sendo que a maioria deles não tem uma cultura
jurídica importante, que só será adquirida mais tarde, nas universidades, mas
recebeu uma formação ao mesmo tempo teórica e prática nas escolas urbanas muito
próximas dos problemas cotidiano dos habitantes da cidade. Certamente, esse
movimento criará uma Europa da querela e da burocracia. Mas fará passar para os
costumes as aplicações do grande movimento jurídico que subverteu o direito na
cristandade nos séculos XII e XIII por uma combinação de renovação do direito
romano, de elaboração do direito canônico (reservando para si importantes domínios
da usura e do matrimônio) e de pôr por escrito, costumes feudais orais.
O século XIII foi realmente o “no turn point” para as instituições e meios de justiça
criminal, na medida em que não houve retorno ao ponto anterior, nem mesmo quando a peste
negra assolou a Europa, matando quase que 60 % da sua população.
404
Ainda que a
inquisição também date desta época405, as provas tornaram-se racionais e as agências foram
vinculadas a regras gerais e não a vontades locais e instáveis.
No entanto, verdade também é que a disputa entre poderes locais e poder central,
tomou forma nesta época e de certa forma406 prorroga-se até hoje.
E foi nesta disputa que surgiu a rigor as primeiras discussões entorno das liberdades
públicas e das possibilidades de autogestão das populações
Por fim, é nesse século XIII que, embora não com a desenvoltura e possibilidades da
atualidade, bem ou mal as populações podiam acessar a justiça criminal, sem depender de
instituições intermediárias, ou qualidades próprias para acessá-la.
7.7.3 A Igreja Católica
Com já foi exaustivamente dito, a igreja foi o sustentáculo administrativo do ocidente
na alta idade média, e nela e por ela caminharam as administrações das unidades políticas
403
LE GOFF, Jacques. As Raízes Medievais da Europa. Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 152.
BASCHET, Jèrôme . A Civilização Feudal – do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo,
2006, p. 248.
405
E a tortura tenha virado um meio clássico de aquisição de provas.
406
A discussão sobre as atribuições dos estados federados e do poder central nas federações, na atualidade, tem
sua gênesis remota nesta época.
404
118
autônomas407 forjadas na junção dos germânicos e suas mais variadas tribos e a estrutura
romana já bem debilitada.
Entretanto, a igreja católica, era uma instituição com duas características
fundamentais.
A primeira delas era a sua autonomia perante o poder político temporal que se instalou
nas áreas de atuação “pastoral” das dioceses romanas. O Segundo aspecto era que a igreja
tinha408 um caráter transnacional, no sentido de que, talvez com a exceção da igreja da
Irlanda, o comportamento409, as liturgias, e em especial o dogma, eram os mesmos, em
qualquer lugar da dita cristandade410.
Isso gera um ambiente que propiciou a unidade (ainda que mais declarada do que
materialmente estabelecida) tanto de propósitos como de bases e definições estruturais, tanto
da fé, como especialmente no governo das coisas da igreja; e a existência de um governo
episcopal, significava a necessidade de regras tanto de administração, como de admoestação,
e como era preciso admoestar os pecadores, era preciso um rito e um tribunal.
Foi em grande parte a herança judaica411, que deu ao cristianismo o caráter de justiça
revelada e não racionalizada, ao rigor de seus valores e crenças; não havendo contestação
sobre as verdades preexistentes e divinas, que lavam o nome de dogma.
Neste aspecto SANTO, 2006 chega a afirmar que “De forma condensada, poder-se-ia
dizer que dois foram os institutos máximos legados pela Igreja Católica para a constituição do
direito ocidental moderno: a dogmática e o inquérito.” 412
Com estes modelos bem firmes na cristandade, e com a igreja bem situada primeiro
nas bases da sociedade romana413, e que após o Edito de Milão414, foi apenas questão de
tempo para torna-se a religião oficial do império, e por via de conseqüência, e para as regras
do direito romano, começarem a fazer-se valer no seio da igreja.
Mas com o evoluir da idade média e dos seus reinos, fica claro que a Igreja e o Estado
não se confundiriam, no máximo se apoiariam, e com o tempo, se antagonizariam.
407
Apenas para evitar a palavra “Estado”, que na realidade não eram.
e de certa forma ainda tem
409
costumeiro ou regrado
410
E tal ficou mais restrito ainda após o concilio de Nicéia, conclamado e comandado por Constantino em 313
d.C.
411
Herança que deu as bases tanto da cristandade, como em grande parte ao islã.
412
SANTOS, Rogério Dutra, A Institucionalização da Dogmática Jurídico-Canônica Medieval. In:
WOLKMER, Antônio Carlos; et al, Fundamentos de História do Direito, 3. ed., Belo Horizonte: Editora Del
Rey, 2006, p. 169
413
È interessante ver-se que Constantino era filho de uma cristã. Conforme JOHNSON, Paul, História do
Cristianismo, Imago Editora, Rio de Janeiro, 2001, p. 83.
414
Apesar de Juliano o Apostata, que reinou após Constantino.
408
119
Daí porque, desde o começo os apologistas da Igreja reafirmaram, desde os
evangelhos, que o que era de César era de César, o que era de Deus era de Deus415.
No outro ponto, a igreja estendeu-se como um manto branco pela Europa, norte da
áfrica, oriente próximo e médio, o que fazia com que suas igrejas e mosteiros, se estendessem
por dezenas de principados, reinos, ducados e localidades perdidas e por vezes absolutamente
hostis aos seus pregadores.
Portanto, a unidade de propósitos versus a universalidade das ações impôs desde cedo
que a igreja estabelecesse regras de conduta para os seus membros e dos crentes em Jesus.
[...] O caráter ecumênico da Igreja: desde os primórdios, o
cristianismo coloca-se como a única religião verdadeira para a universalidade dos
homens; a Igreja pretende impor a sua concepção ao mundo inteiro. Não conseguirá
realizar esta ambição, como sabemos, mas na Europa Ocidental, pelo menos entre
os séculos VIII e XV, a religião cristã impôs-se por toda a parte. Esta tendência
universalista deu ao direito da Igreja a um caráter unitário. Ainda que – e só em
França – se encontrem mais de 600 costumes laicos mais ou menos diferentes
durante a Idade Média, não existiu senão um direito canônico, único e comum a
todos os paises d Europa Ocidental. A unidade e a uniformidade do direito
canônico em toda a Igreja foram proclamadas pelo Papa no tempo de Gregório VII;
ele não podia ser interpretado senão pelo próprio Papa416.
As manifestações mais remotas, após os evangelhos e as demais partes do novo
testamento, eram mais apologistas, no sentido de fixarem de forma apoteótica a certeza do
Deus único e na Salvação em Cristo, por exemplo, o neoplatônico Orígenes de Alexandria417.
Mas foi em especial com Santo Agostinho, Bispo de Hipona na África do Norte, que o
dogma cristão vem estabelecido como uma racionalização com bases eminentemente calcadas
em Platão.
E é neste racionalizar que de forma mais incisiva as regras do direito canônico
começam a brotar não como criações ou revelações divinas, mas como normas418 de condutas
intersubjetivas e de aplicação aos cristãos, e isto independentemente da origem étnica,
nacional, tribal, etc. Para professar a fé, era preciso seguir as regras, pois não há cristãos, há
bons cristãos.
415
Evangelho de Mateus,
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian Editora,
1995 P. 134
417
ERHMAN, Bart D., Evangelhos Perdidos. São Paulo: Record, 2008, p. 231.
418
Originadas aparentemente no conceito da nomói grega
416
120
Para efetivar este caminho racionalizante da fé, enquanto normas de conduta, os
primeiros pensadores do cristianismo, apoiaram-se na filosofia grega, e em especial na dupla:
Sócrates e Platão, e neste prisma, é de todo interessante citar o que se diz de Orígenes.
Orígenes aceitava uma distinção absoluta entre clero e laicidade.
Atribua-lhe um sabor jurídico. Retratava a Igreja, como parte de sua teoria do
conhecimento universal, como uma entidade sociológica sagrada. A analogia era
com o estado político. Claro que a Igreja tinha de possuir seus próprios príncipes e
reis, É evidente que estes governariam suas congregações muito melhor que os
funcionários estatais correspondentes. Suas funções eram mais alta e sagrada, já
que administravam coisas espirituais, mas seus status era análogo aos de juízes e
governantes seculares e, assim sendo, a laicidade devia-lhe reverencia e obediência,
ainda que fossem homens inadequados ou ruins.419
Este texto, referindo-se a um apologista do século III, já dava o tom de como o sistema
jurídico nascido na igreja, empunharia a certeza do certo e do errado, definindo-os, e punindo
o que não era certo. Daí o surgimento dos conceitos de ortodoxia e heresia, como: a fé certa,
correta e digna; em contraposição ao errado, equívoco e inaceitável420.
Este posicionamento coloca que em não sendo ortodoxa a fé, será herética e, portanto
inválida. Neste caminho, se tornaria claro o surgimento de procedimentos jurídicos de
verificação e aquilatação de condutas não aceitáveis, procedimentos formais e estritos no
sentido de regramento e submissão das suas decisões.
Em 1208, começa a chamada cruzada albiginense, uma cruzada interna, para dentro da
cristandade, combatendo a heresia cátara.421 Neste movimento de repressão, codificou-se uma
legislação contra as heresias, mas o ponto fundamental foi a criação de um tribunal, com seu
rito e julgamentos.
A codificação da legislação contra heresia ocorreu em meio século,
aproximadamente entre 1180 e 1230, quando culminou na criação de um tribunal
permanente, municiado de frades dominicanos, que trabalhavam a partir de uma
base fixa, em conjunto com o episcopado, e dispunham de generosa dose de
autoridade. O sistema permanente foi denominado de reforma; na verdade,
incorporou todos os abusos das práticas anteriores e acrescentou mais alguns novos.
Possuía certa lógica perversa. Como se negava ao herege enterro em solo
consagrado, os cadáveres dos que eram sentenciados, postumamente (ocorrência
419
JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2001, p. 76.
ERHMAN, Bart D., Evangelhos Perdidos. São Paulo: Record, 2008, p. 226.
421
JOHNSON, Paul, Historia do Cristianismo, Imago Editora, Rio de Janeiro, 2001, p. 304.
420
121
bastante comum) tinham de ser desenterrados, arrastados pelas ruas e queimados no
buraco do lixo. As casas em que viviam tinham de ser postas abaixo e convertidas
em esgotos ou depósitos de lixo. Sendo difícil garantir as acusações de crimes em
pensamento, a Inquisição lançava mão de procedimentos banidos outros tribunais,
transgredindo, assim, os decretos municipais, as leis escritas e consuetudinárias e
praticamente todos os aspectos da jurisprudência estabelecida. Retinham-se os
nomes das testemunhas hostis, usavam-se informantes anônimos, aceitavam-se
acusações por parte de inimigos pessoais, negava-se aos acusados os direitos de
defesa ou a um defensor e não havia apelação. O objetivo, simplesmente, era gerar
condenações a todo o custo; só assim, pensava-se, a heresia poderia ser extinta. Daí
os depositantes não serem identificados; tudo o que um suspeito podia fazer era
elaborar uma lista de seus inimigos e teria permissão de apresentar testemunhas
para atestar a existência de tais inimigos, mas para nenhum outro fim. Por outro
lado, a promotoria pública podia recorrer às provas de criminosos, hereges, crianças
e cúmplices, em geral, proibidos em outras cortes.422
Com isto em uma das estruturas judiciais da igreja, o acesso à justiça eclesiástica, era
mais uma catarse de mesquinharias, do que uma procura de um justo.
Entretanto, antes mesmo da existência dos tribunais da inquisição, o direito canônico
estabelecia tribunais eclesiásticos, cuja estrutura, se assemelhavam aos tribunais e juízos
atuais, prevendo-se juízo monocrático e órgão de acusação, personagem já citado, chamava-se
promotor423, e uma de suas competências era dar prestação jurisdicional aos Personagens que
GILISSEN (1995) nominava “as miserabiles personae (viúvas e órfãos) quando pedem a
proteção da igreja.”424
Como as infrações julgadas pela igreja, além das heresias, também abarcavam delitos
como adultério e usura,425 era possível por exemplo, pobres e desvalidos buscarem a proteção
jurisdicional da igreja, como vítimas de delitos que iam contra os princípios da fé.
Portanto, a crença de que as jurisdições eclesiásticas sempre foram desumanas, é uma
meia verdade, na medida em que previam proteções ao menos formais aos menos favorecidos.
Por fim, é de se colocar que durante o século XVIII, a própria inquisição muda seus
ritos e traz para o bojo de seus procedimentos, e um exemplo interessante é o regimento
pombalino de 1774, que prescrevia:
422
JOHNSON, Paul. Op. Cit. p. 305-306
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian Editora,
1995, p. 384
424
JOHNSON, Paul. Op. Cit. p. 140.
425
JOHNSON, Paul. Op. Cit. p. 140.
423
122
O regimento reflete, portanto, a nova situação política, manifestando
uma grande sensibilidade à imagem exterior da Inquisição e às principais críticas
feitas ao funcionamento do tribunal (críticas formuladas já um ou dois séculos antes
e que só naquela conjuntura começavam a serem incorporadas às novas concepções
jurídicas sobre o processo e as penas). Assim, o regimento introduz quatro grandes
alterações: a) o segredo do processo é suprimido, isto é, as denúncias deveriam ser
apresentadas integralmente aos presos, com os nomes das testemunhas, bem como
as circunstâncias espaciais e temporais; b) é proibida a possibilidade de condenação
à pena capital com uma só testemunha; c) é criticada e condenada a tortura, como
uma prática perversa, que estimula as falsas confissões, mantendo-se em aberto,
contudo, sua utilização no caso dos heresiarcas dogmáticos; d) é suprimida a
inabilitação dos condenados e de seus descentes.426
Com isto, mostra-se que embora iniciada em um contexto universalista, tornada
em juízo dogmático foi a jurisdição eclesiástica a primeira a trazer elementos típicos na
jurisdição e dos direitos processuais garantidores para dentro de seus ritos, ao menos em
Portugal.
7.8 O Modelo Inglês
O sistema da “Common Law” como não poderia deixar de ser, foi e é o produto de
uma evolução de quase mil anos, e tem como ponto de partida o fim da dominação romana
nas ilhas. 427
Na realidade, o sistema nasce de circunstâncias tipicamente processuais, na medida em
que os órgãos judiciais eram tribunais vinculados aos condados, e sob neste esquema, a justiça
do rei, ou seja, a justiça comum só começou a ser acessada na medida em que o próprio corpo
de juizes começou a aceitar os pedidos de particulares.
A comune ley ou common law é, por oposição aos costumes locais o
direito comum a toda a Inglaterra. Este direito em 1060, não existe. A assembléia
dos homens livres, chamada de County Court ou Hundred Court, aplica o costume
local, isto é, limita-se, de acordo com este costume, a decidir qual das partes deverá
provar a verdade de suas declarações, submetendo-se a um meio de prova que ao
tem nenhuma pretensão de ser racional. Continuando, em princípio, a ter
426
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições – Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV –XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 48.
427
DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. 4. ed., São Paulo: Martins Fontes, São
Paulo, 2002, p. 356.
123
competência depois da conquista, as Hundred Court ou County Court, serão pouco
a pouco substituídas por jurisdições senhoriais de um novo tipo (Courts Baron,
Court Leet, Manorial Courts); mas estas estatuirão igualmente com base na
aplicação do direito costumeiro eminentemente local. As jurisdições eclesiásticas
instituídas depois da conquista428 aplicam o direito canônico comum a toda a
cristandade. A elaboração da comune ley, direito inglês e comum em toda a
Inglaterra, será obra exclusiva dos Tribunais Reais de Justiça, vulgarmente
conhecidos pelo nome do lugar onde vão estabelecer-se a partir do século XIII,
Tribunais de Westminster.429
Com a configuração dos Tribunais Reais, o que fica configurado é a estrutura da
jurisdição real, ou seja, a decisão do soberano sobre os feitos que afetem o reino. Nos
primeiros tempos estes tribunais não estavam configurados para administrar a justiça
cotidiana, mas sua estrutura, multiforme leva ao nascimento, ainda que como meio político,
de instituições como o próprio parlamento430.
Embora sem a aptidão inicial para decidir às causas diárias, os tribunais reais, nascidos
do tribunal do rei, a “Cúria Regis”, foi fragmentando-se e gera três tribunais, o Exchequer
(tribunal vinculado à fazenda real), o “Common Pleas” (tribunal dos pedidos ou pleitos
comuns, vinculado a questões de direitos reais fundiários) e o King’s Bench (causas criminais
cuja importância ou repercussão atinjam todo o reino)431.
A partir disto, a competência dos tribunais reais começaram a paulatinamente se
alargar, abrangendo as causas que tradicionalmente eram julgados pelos tribunais senhoriais, e
que começaram a serem aceitas perante os tribunais reais, com isto, o conceito de “Common
Law”, que nascera com a natureza de direito público, passa a ter com o tempo um cunho de
direito geral.
As Cortes Reais desejavam ampliar sua competência, por isso
acolheram de bom grado as solicitações que lhes eram feitas e vieram, assim, a
abranger todos os litígios, recorrendo a uma ficção que lhes permitia, em todos os
casos, pretender que o litígio a elas submetidas concernia à Coroa. Nestas
condições, a common law deixou de ser o direito público que fora; ela se tornou um
428
Refere-se à Batalha de Hastings, em 14 de Outubro de 1066, travada entre o Duque da Normandia, William
The Conqueror e o Rei Saxão Harold, onde os normandos saíram vencedores e conquistadores da Inglaterra,
transportando para as ilhas britânicas os costumes e normas vigentes na Normandia, norte da França. In
<http://www.battle-of-hastings-1066.org.uk/>, acesso em 4 de agosto de 2008.
429
DAVID, René. Op. Cit. p. 359.
430
DAVID, René. Op. Cit. p. 360.
431
DAVID, René. Op. Cit. p. 360.
124
sistema geral comportando regras para todas as situações, tanto de direito público
como de direito privado.432
O método de açambarcamento do poder real das jurisdições locais foi
interessantíssimo, pois nasceu exatamente para dar uma via de acesso à sociedade
minimamente organizada à capacidade de decisão e de coerção do poder central. Os Tribunais
de Westminster começaram a partir do século XIII a conceder a plausibilidade do direito de
ação, através de verossimilhança entre ações as quais detinha a jurisdição, ou seja, a velha
conhecida analogia.
Obter da Chancelaria real a outorga de um writ, ou convencer os
juizes a julgarem a ação intentada pela via da queixa não é simples. A autoridade
real no século XIII não é tal que o Chanceler possa outorgar um writ ou os juizes
possam aceitar preceituar em todos os casos. Durante muito tempo foi necessário,
antes de o fazer, ter em conta considerações de oportunidade, pelo que o número
dos casos em que o writ era automaticamente concedido (brevia de cursu) não
sofreu acentuado aumento; a primeira relação destes, estabelecida em 1227,
compreende apenas 56 fórmulas-padrão, e elas será apenas 76 em 1832, data em
que o sistema foi profundamente reformado.
O âmbito de competência dos Tribunais Reais não deve, contudo, ser
medido pelo alongamento da lista dos brevia de cursu. Contrariamente ao que
durante muito tempo se julgou e se ensinou, também não deve ter tido origem numa
lei de 1285, O Segundo Estatuto de Westminster, que autorizou ao Chanceler a
outorgar writs in consimili casu, isto é, em espécies que apresentem grandes
semelhanças com as outras que já tenham dado lugar à outorga de writs. Para que
os Tribunais Reais se decidissem a alargar a sua competência, utilizou-se uma outra
técnica: o autor, num ato introdutório de instância (declaration), expunha
pormenorizadamente os fatos da causa (case) e pedia aos juizes reais, em
consideração por estes fatos, que aceitasse a julgar o litígio. As novas ações, nas
quais os juizes admitiram a sua competência, passaram a chamar-se, por esta razão,
ações super casum (actions on the case). Com o tempo, estas ações vieram a
diversificar-se e a receber nomes relacionados com os fatos que motivaram a sua
outorga: ações de assumpsit, de deceit, de trover, de negligence, etc.433
432
DAVID, René. O Direito Inglês. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 04-05.
DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. 4. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2002,
p. 362-363.
433
125
Com esta evolução, é absolutamente previsível que o processo fosse mais importante
que o próprio direito, na medida em que o acessar das cortes de Westminster era dependente
do writ que dava tal possibilidade, tanto no aspecto formal como no aspecto instrumental.
Remedies precede rights: em primeiro lugar o processo. A common
law, nas suas origens, foi construído por um certo número de processos (forms of
actions) no termo dos quais podia ser proferida uma sentença; qual seria, quanto à
substância, esta decisão era algo incerto. O problema primordial era fazer admitir
pelos Tribunais Reais a sua competência, uma vez admitida, levar até o fim um
processo cheio de formalismo. A que solução se chegaria? Não havia para esta
pergunta nenhuma resposta concreta: a common law só aos poucos passou a conter
normas substantivas, que definissem os direitos e as obrigações de cada um.434
Daí porque a especialização das ações, que de uma forma lata guarda certa semelhança
a princípio com o período legis actiones romana, para depois se assemelhar ao período per
formulas, gerando o próprio meio de acesso.
Isto também acontecia no direito criminal, na medida em que determinados delitos,
podiam ser julgados como causas cíveis, como era o writ of trespass.
O writ de trespass tem por objeto sancionar um procedimento de
natureza delitual: o dano causado injustamente à pessoa, à terra, ou aos bens do
argüido. Isto nada tem a ver com os contratos. Mas os pleiteantes esforçar-se-ão por
convencer o tribunal que, em certas hipóteses em que um compromisso foi tomado
e não cumprido, os fatos da espécie, justificam que se trate o caso à semelhança das
situações, que precedentemente foram reputadas como trespass.435
Vendo-se o sistema à distância, pode-se afirmar que o modelo gerado na Inglaterra,
teve seu ponto inicial, no conceito de acesso à justiça, no sentido mais amplo da palavra.
Quase que como um resgate do conceito político grego clássico, para o cidadão inglês ir à
corte, reclamar os danos que lhe causaram era um ato político, de garantia de direito, a ponto,
como foi visto, a ponto de fazer que uma ação oriunda de um delito fosse à base para o
conceito de responsabilidade civil, como foi visto. Aliás, é de se ter que o writ era uma
verdadeira ordem do rei para seus agentes atuarem no resguardo de direitos de seus súditos.
O aspecto “direito público” do direito inglês aparece na técnica
particular do writ, que marca o começo da ação diante dos tribunais. O writ não é
434
435
DAVID, René. Op. Cit. p. 364
DAVID, René. Op. Cit. p. 366
126
uma simples autorização para agir dada ao autor. Apresenta-se, tecnicamente, como
uma ordem dada pelo rei aos seus agentes, para que estes ordenem ao demandado
agir de acordo com o direito, satisfazendo assim a pretensão do demandante. Se o
demandado se recusa a obedecer, o demandante agirá contra ele. A sua ação será
justificada diante do Tribunal Real, menos pela contradição que ele opõe à
pretensão do autor do que pela desobediência, que lhe é imputada, a uma ordem da
administração. O processo inglês é um processo público. 436
Ainda no direito inglês, sob o reinado dos Tudors, surgiu a Star Chamber, no começo
um tribunal penal de exceção, baseado no conceito de prerrogativa real sob comando do
Chanceler do reino, cargo que existe até hoje
437
, sendo ele uma espécie de presidente da
Câmara dos Lordes438, e baseava-se formalmente em conceitos de equidade, mas que na
realidade era um meio específico de intervenção quase que direta do rei.
Quando o sistema da common law funcionava mal – ou porque os
Tribunais Reais não podiam ser consultados, ou porque não podiam conceder a
solução adequada solicitada por um pleiteante, ou porque não tinha meios para bem
conduzirem um processo, ou ainda porque chegavam a uma decisão contrária a
equidade –, os particulares tinham, segundos as idéias da Idade média, a
possibilidade de pedir a intervenção do rei, fazendo apelo aos imperativos de sua
consciência, para que tomasse uma decisão que facilitasse o curso da justiça ou
para que impusesse a solução exigida pela justiça. O direito não era um tabu. O ri,
soberano justiceiro, devia assegurar aos seus súditos a justiça, a sua intervenção era
legítima nos casos em que a técnica do direito era defeituosa. 439
No entanto, é de bom alvitre lembrar que muito embora a equity tenha nascido para e
no direito criminal, ela na verdade acabou por tornar-se instrumento garantia de direitos não
criminais, ficando as estâncias criminais no âmbito da common law.
436
DAVID, René. Op. Cit. p. 368
DAVID, René. O Direito Inglês. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 62.
438
DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. 4. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2002,
p. 419
439
DAVID, René. Op. Cit. , p. 389
437
127
8 PORTUGAL E SUAS JUSTIÇAS.
Indubitavelmente, todas as estruturas analisadas até aqui, vieram até o Direito
Brasileiro através do canal primordial do direito e das instituições judiciais lusitanas.
Este fato, por si só, faz com que a amalgama dos institutos e sua aplicação no reino
português, fossem transferidas para cá, e dos séculos de experiências e resultados, foi-se
construindo uma tradição tanto jurídica como judicial que para o bem ou para o mal, continua
a fazer eco em nossas mais modernas letras jurídicas.
Dos “concelhos” até a nossa câmara de vereadores, do juiz ordinário ao juiz leigo, do
judiciário do rei à justiça federal, quase que nada de novo realmente se fincou nos direitos e
seus aforismos pátrios.
Relatar tal caminho é relatar os berços e cantigas que embalaram o direito brasileiro e
os sistemas de acesso à justiça criminal.
8.1 O Condado Portucalense até a crise de 1383 e Aljubarrota
A evolução da península ibérica pós-imperial, e em especial de Portugal, segue um
roteiro já bem conhecido. Com o desaparecimento da unidade imperial romana no ocidente,
os territórios provinciais foram preenchidos por povos germânicos, que de uma forma ou de
outra acabaram por coexistirem com os remanescentes das populações romanizadas e dos
celtas mais ou menos aculturados.
No século VIII, a expansão muçulmana acaba por alcançar a península ibérica que foi
conquistada até a região de Braga440, no chamado Taifa441 de Badajoz442
443
, que atingiria o
território centro-sul do atual Portugal, e isto em apenas cinco anos444.
Daí por diante, um longo, sangrento e financeiramente custoso processo de retomada
territorial445 da península que durou séculos, e muitos deles, pois a tomada final do último
440
<http://palma1.no.sapo.pt/indexport.htm>; acessado em 27 de abril de 2008.
Estado ou cidade estado do Califado de Córdoba, em <http://palma1.no.sapo.pt/indexport.htm>; acesso em 27
de abril de 2008.
442
Mapa bem detalhado das possessões muçulmanas na península ibérica em
http://palma1.no.sapo.pt/Image43.gif ; acesso em 27 de abril de 2008.
443
“Bannu Al Afta” na nomenclatura árabe da época – <http://palma1.no.sapo.pt/ Image43.gif>; acesso em 27 de
abril de 2008.
444
De 711 a716, no site já citado.
445
Conhecido como reconquista
441
128
reduto de Granada deu-se em 1492446, e tal reconquista foi fundamental para a existência de
Portugal.
Neste período a expansão ao sul dos Godos asturianos447, surge no bojo de diversas
montagens de suseranías e vassalagens, o chamado Condado Portucalense, quinhão de terras
que acaba mais por se desprender do que por se emancipar da Galícia, e por conta de várias
manobras e aventuras políticas448, e uma espetacular vitória sobre os mouros em Ouriques449,
acabou por ter o conde se declarando Rei, do castelo de Guimarães surge a primeira dinastia
real portuguesa.
Mas as estruturas que surgem no Portugal medievo, não são tão semelhantes a maioria
dos recantos da Europa feudal. Neste recanto ocidental, a nobreza, ainda que de origem
militar e nobiliárquica, não tiveram eles as mesmas extensões de poderes políticos que os
nobres franceses tinham na mesma época.
O poder central português recém nato, de pronto o fixa não em igualdade de
condições com os nobres no que diz respeito a terratenência, não ocorrendo poder total dos
senhores sobre os que em suas terras encontram-se. Estes muito embora tivessem poder
regular sobre os servos, não eram senhores absolutos deles.
Os reis portugueses mantiveram o poder centralizado, utilizaram-se como tempo de
um ardiloso instrumento de fragmentação do poder periférico. Instituíram eles os “concelhos”
e com isto um verdadeiro pacto entre os reis e os povos, através de forais declarações de
independência dos núcleos urbanos que surgiam ou eram criados. Com este estratagema,
apenas poderes fundiários dos senhores feudais que tinham a propriedade das terras eram
exercidos por eles, mas não exerciam poder politicamente aquilatado, porque não tinham o
poder político, pelo contrário.
Os forais - a carta de foral -, pacto entre o rei e o povo, asseguravam o
predomínio do soberano, o predomínio já em caminho do absolutismo, ao
estipularem que a terra não teria outro senhor senão o rei. Com a instituição dos
concelhos logrou a política medieval ferir a prepotência eclesiástica, num meio que
levaria a subjugar a aristocracia. A esta razão se agregava outra, inspirada na índole
militar do país, em estreita conexão com o fundamento político do alargamento da
forma municipal. Decretada a criação do concelho, que deveria organizar uma
povoação, reedificá-la ou reanimá-la, procurava o rei impor-lhe o dever de defendêla militarmente contra seus inimigos, os mouros ou os vizinhos estrangeiros. Criavase, obediente à monarquia, uma milícia gratuita, infensa às manipulações da nobreza
ou do clero – batizados os antigos municeps e castellanus com o nome de alcaide,
palavra sugerida pela invasão árabe. Abria-se, desta forma, um campo neutro aos
privilégios aristocráticos, muito deles – os coutos e as honras – isentos da prestação
446
Mais de 750 anos
MARTINS, Oliveira. História de Portugal. V. 1, Lisboa: Guimarães & Cia Editores, 1951, p. 79
448
MARTINS, Oliveira. Op. Cit. p. 83 e seguintes.
449
MARTINS, Oliveira. Op. Cit. p. 109
447
129
militar, paga pelo rei quando dela necessitava. Finalmente, os concelhos somavam à
renda do príncipe, oriunda de seu patrimônio fundiário, largas contribuições. 450
Os senhores das terras, detinham o que recebia a denominação de “dominare”, ou seja,
tinham o domínio e uso direto das terras, mas ao rei cabia o “regnare”, ou seja, a absoluta
dominação e governo de todas as terras do reino.
Entram em cena, nesta luta, os letrados, filhos diretos ou indiretos da
Escola de Bolonha (séculos XII e XIII) e das universidades européias,
progressivamente implantadas. Define-se, a partir da corte, a distinção entre o
dominare, reservado à nobreza territorial, e o regnare, exclusivo do príncipe,
embrião da futura doutrina da soberania, cujo proprietário será o rei. Refinado o
pensamento, o conceito de propriedade do reino se elevará para reconhecer ao
soberano a qualidade de defensor, administrador e acrescentador, teoria que assenta
sobre o domínio eminente e não real. São vésperas – vésperas de alguns séculos – do
absolutismo. 451
Dentro deste conceito, ou seja, o rei era o governante de todas as terras, e em outra
ponta da estrutura político-administrativa, o rei pactuava com os agrupamentos urbanos,
ficava evidente que a função judiciária era uma das mais claras das expressões de poder do
rei.
O rei de Portugal, desde o começo era o principal juiz, e qualquer um que exercesse a
jurisdição o faria em seu nome, sem qualquer intromissão de outro portentado. Ainda que se o
rei precisasse de uma força arma, pagava aos senhores feudais, mas a justiça lhe era uma
prerrogativa.
Percebeu bem a realeza que o poder de julgar envolve, em última
análise, o poder de sujeitar o homem a uma camada intermediária e autônoma. Sem
a jurisdição, o súdito ficaria liberto da obediência, preso apenas a uma lealdade de
segundo grau, indireta, convertido o poder supremo de ficção. Daí a doutrina, já
sustenta tenazmente no período da dinastia borgonhesa: “O direito e costume geral
do reino, dizia El-rei dom Diniz em 1317, eram e tinham sido sempre que em todas
as doações régias se entendesse reservada para a Coroa a justiça maior, a maior, a
suprema jurisdição, em reconhecimento ao maior senhorio”. À medida que
estendiam a atribuição jurisdicional, os reis conquistavam súditos, os quais, por um
movimento convergente, procuravam fugir às prerrogativas da nobreza e do clero.
Lavradores, artesãos e mercadores despontavam como aliados da Coroa, reforçados
com solidariedade da organização municipal, os concelhos. 452
Por conta disto, a vinculação do acesso à justiça, e em especial, no que dizia respeito à
matéria criminal, à um poder centralizado, desde o início do reino português, foi de tal forma
absoluta, que durante séculos, os membros da função judiciária, eram claramente ligados ao
rei, como por exemplo os Desembargadores do Paço, ou os Juizes de Fora.
450
FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder, 3. ed. Rio de Janeiro: Globo, 2001, p. 22.
FAORO, Raimundo. Op. Cit, p. 29
452
FAORO, Raimundo. Op. Cit.. p. 21
451
130
Nisto também se estabelece que, nos agrupamentos urbanos, existiria um juiz
municipal, que, de uma forma muitas vezes draconiana impunha as mais diversas punições,
mas que, eram verdadeiros olheiros do rei e de outro lado, ouvidos do rei aos seus súditos, e
em especial ao camponês, reduzido a servo da gleba, mas agora, com um rei bem próximo na
figura do juiz no concelho municipal.
Afonso IV, para remediar os graves inconvenientes do conflito, que
percutiam imediatamente na produção agrícola, expediu aos concelhos a circular de
3 de julho de 1349. Justificou a medida com o conhecimento da denúncia, chegada
aos seus reais ouvidos, de que homens que antes da peste se ocupavam no serviço
alheio, agora, convertidos em herdeiros, se tinham em tão grande conta, a ponto de
abandonar e desprezar a vida antiga. Outros, explica o monarca, empregados no
trabalho rural, exigiam, fiados na escassez de mão-de-obra, tal preço para seus
serviços que os proprietários, vergados com tais despesas, abandonam as culturas e
os rebanhos. Ordena que os concelhos nomeiem dois árbitros, escolhidos entre os
homens bons, burgueses aliados aos nobres, no momento, em conseqüência de
interesses comuns, para que arrolem as pessoas capazes de exercer alguns oficio ou
em condições de trabalhar para outrem, com a inclusão daqueles que, antes do
flagelo, estavam nesses casos e agora se recusavam a prestar seu trabalho. Todas as
pessoas cadastradas seriam obrigadas a continuar nos seus misteres ou noutros em
que o concelho lhes reconhecesse capacidade, mediante o salário que lhes taxasse. A
exclusão do arrolamento se poderia fazer, mediante prova da qualidade da pessoa e
do valor dos bens, circunstâncias que, reconhecidas, permitiam o emprego no trato
da mercancia, lavoura ou outra ocupação mais nobre. Aos recalcitrantes sobravam
açoites, multas e degredo, penas impostas pelos juízes municipais, prevista uma
recompensa aos acusadores. Conquistava a burguesia urbana, com a lei draconiana,
um poderoso aliado no campo, até então fechado à solidariedade. O povo miúdo do
interior, amargurado e ressentido, transformado em servo da gleba, estaria, daí por
diante, à espera de um aceno para vingar o agravo imposto no muramento à ascensão
econômica e social453
Logo, desde o início do reino português, o acesso à justiça criminal, era além de uma
garantia de direito pessoal ao qualquer um do reino, também se fazia como afirmação do
poder central, do rei e dos seus, colocando ao largo os poderes locais no que concerne ao dizer
do certo e do justo.
Esta condição centralizada, não foi implantada com tranqüilidade, e nem mesmo com
apoio dos grandes do reino. Ao contrário, foi um dos pontos de atrito dentro do reino e isto
por séculos, que de uma forma bem clara aportará cento e cinqüenta anos depois no Brasil
colonial.
8.2 As Ordenações do Reino e sua estrutura Judiciária
Após Aljubarrota a soberania geopolítica de Portugal, fica estabelecida, na medida em
que os demais reinos cristãos da Ibéria, não mais tentariam anexar a costa ocidental da
península.
453
FAORO, Raimundo. Op. Cit. p. 47-48
131
Os lusitanos enfrentam os invasores e obtém a grande vitória de
Aljubarrota (14 de agosto de 1385). Essa batalha decide o destino histórico de
Portugal, “como ela decorreu, os lances que a caracterizam, as razões de seus
movimentos – são pormenores que veriam segundo os cronistas, e nos não
interessam hoje.” O que é certo é que aquilo foi fulminante: “e duró la porfia de la
batalla, antes que pareciese quáles perdia ó ganaban, media hora asaz pequena”,
informa Ayala, que esteve nela na sua qualidade de “Alferes del Pendon de la
Banda”, e ficou prisioneiro.
Os castelhanos, inúmeros e valentes foram desbaratados, destroços,
escorraçados, corridos. Morreram dez mil homens, dos castelhanos. O Rei nem
cavalo tinha – para fugir. Deram-lhe primeiro, uma simples mula. Depois ante o
perigo de ser apanhado, Pero Gonzáles de Mendonza, cedeu-lhe o seu cavalo – e
perdeu a vida. E o Rei pode chegar são e salvo à Santarém, nessa mesma noite – do
dia famoso de 14 de agosto de 1385”. 454
Nesta nova fase, com independência de ações, os reis da casa de Avis, rapidamente
começaram a concentrar o poder político em uma esfera bem definida, vinculada à própria
figura do Rei.
Com esse contexto, se fazia absolutamente necessário a criação de um corpo
normativo que dessa estrutura jurídica ao reino, e, além disto, demonstra-se ao todo de
Portugal, que haviam regras a serem seguidas e que o Rei era seu grande guardião.
Sob este aspecto em especial, a conduta dos reis portugueses não era, em linhas gerais;
muito diferente dos demais soberanos europeus da época.
No entanto, houve na França uma série de grandes ordenações régias.
Era legislação de importância primordial, cuja a influência se faz sentir ainda hoje.
Embora as principais ordenações tenham sido promulgadas sob Luis XIV e Luis
XV, não houve ruptura na continuidade entre o medieval e o moderno. Um
exemplo é a Ordennance Cabochienne (1413), que foi uma tentativa de reforma
democrática das instituições políticas. A ordennace de Montil-lez-Tours (1454)
visava um processo jurídico melhor e mais rápido e contribuía para a redução
oficial dos costumes à escrita, de modo a obter maior certeza jurídica.455
Por conta disto, muito embora as ordenações Afonsinas sejam consideradas modelos
para as demais legislações, ela em si mesma era um produto típico de sua época.
454
GIORDANI, Mario Curtis. História do Mundo Feudal. V. 1. Tomo I. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 458
VAN CAENEGEM, R. C. . Uma introdução Histórica ao Direito Privado. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 128.
455
132
Outro dado importante a ser consignado é a importância do “Corpus Iuri Civilis” que
tinha o pendão de ser o direito geral a ser aplicado á toda a cristandade.
O direito erudito também podia fornecer um método e um princípio
adequados ao estudo acadêmico de direitos não-romanos. Aqui a distinção feita
pelos comentadores entre o ius commune (o direito “comum”, cosmopolita e
erudito de todo o Ocidente) e o jus proprium (o direito “próprio” ou particular de
um país, região, cidade ou corporação) assumiu uma importância decisiva. Embora
os comentadores reconhececem e respeitassem o signnificado do ius proprium, eles
frisavam que este deveria ser estudado e suas lacunas deveriam ser preenchidas
pelo direito erudito e seu método. Seu interesse nio ius proprium também os
conduziu a lhe dar com os problemas reais, constantemente tomados da vida
cotidiana. Um exemplo é a sua teoria dos estatutos (que ainda é aplicada ao direito
privado internacional), desenvolvida a partir do conflito entre os estatutos e as
outras leis municipais das cidades italianas. Não se deve esquecer que estes
professores estavam na maior parte das vezes diretamente envolvidos na prática
jurídica como juizes ou advogados. 456
Com estes parâmetros em vista, o então jovem reino, desde cedo, percebeu a
premência, de muito embora se manter ligado à tradição acadêmica do direito da baixa idade
média, e em especial aos trabalhos dos glosadores e comentadores, montar um sistema
jurídico que se liberta das velhas amarras jurídicas, e ao mesmo tempo, desse corpo de direito
ao conquistado pela espada.
Vê-se, pois, que D. Pedro confiava na “bartoli opinio” como critério
orientador da jurisprudência, mas não se esquecia de recomendar a necessidade de
sistematizar o direito pátrio. Na verdade, para boa administração da justiça, urgia
compilar o direito régio, demarcar o seu campo de aplicação, quando em conflito
com os outros ordenamentos jurídicos e, enfim, hierarquizar estes últimos sempre
que fosse inexistente norma nacional.
Toda via, a terminar este ponto há a sublinhar que a Carta de 18 de
abril de 1426 consagra, não a aplicação de todo Corpus Iuris, mas sim e apenas do
Código; e que por isso, somente são canonizados a glosa de Acúrsio e o
commentado de Bartolo, relativos a este mesmo Código. Por outro lado, embora o
propósito transmitido no início da carta seja o de uniformização judicial em todo o
reino, certo é que ela é dirigida ao concelho de Lisboa e parece conter medidas a
este concelho respeitantes. Afigura-se, pois, estar-se perante uma experiência
localizada.
456
VAN CAENEGEM, R. C. . Uma introdução Histórica ao Direito Privado. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 76
133
Tendo por âmbito todo o reino, vão surgir as Ordenações
457
Afonsinas.
Logo, a criação das ordenações, não foi necessariamente um fato novo no ocidente,
mas foi efetivamente uma regulamentação de todo o reino.
Desde as Ordenações Afonsinas, os textos já estavam ordenados em áreas de
abrangência, ou seja, definindo e regulando as mais diversas áreas e instituições do reino. Tal
conjunto de normas foi gestado por anos a fio, e não foi obra de um homem só mas de uma
era inteira do direito português. Começada no reinado de D. João I, passou por dois redatores
– João Mendes e Rui Fernandes – pelo reinado de mais dois soberanos – D. Duarte e D. Pedro
– ainda por uma revisão final efetivadas por Lopo Vasques, Luiz Martins e Fernão Rodrigues;
para entrar em vigor entre o final de 1446 e o começo de 1447.458
Sob o ponto de vista da organização do reino português, e com isto, das vias de acesso
à justiça, são estas ordenações que lhe dão corpo, muito embora as cortes régias e os
concelhos sejam-lhe anteriores, enquanto sistema judicial, só se vem organizados e
estruturados procedimentalmente a partir deste diploma legal.
Se passarmos agora a examinar o sistema das Ordenações Afonsinas,
verificaremos que elas a semelhança das decretais de Gregório XI se acham
também divididas em 5 livros ; por seu lado, os livros encontraram-se divididos em
títulos, e estes, por vezes, em parágrafos.
O Livro I, que compreende 72 títulos, contém os regimentos dos
cargos públicos, quer régios, quer municipais. O Livro II, dividido em 123 títulos,
contempla a matéria respeitante à Igreja e à situação dos clérigos, direitos do Rei,
em geral, e administração fiscal, jurisdição dos donatários, privilégios da nobreza e
legislação especial de judeus e mouros. O Livro III, abrangendo 128 títulos, ocupase do processo civil. O Livro IV, nos seus 112 títulos, trata do direito civil; enfim o
Livro V, com 121 títulos, versa direito e processo penal. São os vários livros
precedidos de proêmio.
Substancialmente,
as
Ordenações
Afonsinas
constituem
uma
compilação actualizada e sistematizada, das várias fontes de direito que tinham
aplicação em Portugal. Assim, em grande parte, são elas formadas por leis
anteriores, respostas a capítulos apresentados em Cortes, Concórdias e
Concortadas, costumes, normas das Siete Partidas e disposições dos direitos
romanos e canônicos.
457
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do Direito Português – Fontes de Direito. V. 1, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian Editora, 1986, p. 190.
458
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. Op. Cit. p. 191.
134
De um modo geral, a técnica legislativa usada, foi a de transcrever na
integra dentro de cada título a fonte ou fontes existentes, após o que se seguia um
comentário, contendo confirmação, alteração ou afastamento do regime jurídico,
até então em vigor. Toda via, nomeadamente no Livro I, o método é diferente,
sendo este volume escrito no chamado estilo decretorium ou legislativo, isto é,
enunciando-se, directamente a norma sem referência a fonte anterior. Para explicar
este facto, têm-se sugerido que o Livro I seria, ainda da autoria de João Mendes,
enquanto os restantes seriam devidos a Rui Fernandes; ou que a diferença de estilo
se justificaria pela razão de o Livro I versar matéria, antes não contempladas em
fontes nacionais, contrariamente ao que sucede com os livros seguintes. Julgamos e
esta última razão, por si só, suficiente para explicar a diferença de estilo, o que não
quer dizer que a conjectura de João Mendes, ser o autor do livro I, se não possa,
igualmente, ter verificado. Mas, de momento, é simples conjectura.
Têm as Ordenações Afonsinas lugar primacial na evolução do Direito
português; efectivamente, as posteriores Manuelinas e Filipinas – e estas últimas
estarão vigentes até o Código Civil – conservam o plano sistemático das
Ordenações Afonsinas e, mesmo quanto ao conteúdo, tem nelas fundamento.459
O surgimento das Afonsinas leva a um fato interessante, a concentração das regras
procedimentais em estatutos reais centralizados, e não mais nos Forais, ou nas determinações
dos Concelhos.
Como as Ordenações a partir da Afonsina fixa os crimes, as penas, e o processo em
seus corpos normativos, revogam de maneira tácita, ou em alguns casos expressa a vigência
da maioria dos Forais, que na realidade, já era solicitada pelos próprios aplicadores daqueles.
É sobre o reinado de D. Manuel I, o Venturoso, que readequou e redigiu novas regrs
localizadas, mas já sem a normatização de matéria criminal.
Por isso, subindo D. Manuel ao trono, pede os povos nas Cortes de
Montemor-o-Novo a reforma dos forais “por ser coussa, em geralmente recebiam
grandes opressoins, e descordias antre elles, e nossos Officiais o as pessoas, que de
nos tinha os Direitos Reais, assi por serem auuguns em Latim, e outros em
desacostumada linguagem (...)”. Vai D. Manuel dar satisfação às insistências dos
povos. Em 1497, nomeia uma comissão composta pelo chanceler-mor Rui Boto,
pelo Dr. João Façanho e por Fernão de Pinho, ordenando que “todos os ditos foraes
sejam entregues e enviados se ainda (...) alguns são por inviáveis (...)”. Também
Rui da Grã terá trabalhado na reforma.
459
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. Op. Cit. p.193
135
Para facilitar esta empresa, sai, no ano de 1502, a Ordenação e
Regimento dos pesos, procurando a uniformização dos pesos no reino; em 1502,
terá sido, ainda, elaborado o Regimento dos Oficiais das Cidades, Vilas e lugares
destes reinos, impresso como já se disse em 1504; enfim, em 1520, terminou a obra
de reforma dos forais. Estes forais reformados por D. Manuel, chamados forais
novos ou manuelinos, e que deixaram de conter normas respeitantes á
administração, ao direito e processo civil e penal – matérias estas, agora versadas
na legislação geral – passam assim, a regular apenas residualmente, os encargos e
prestações devidos pelos concelhos ao Rei ou aos senhores.460
Com isto, o direito português se firma, a ponto de as Ordenações Filipinas, publicadas
em 1603, serem na melhor das hipóteses uma consolidação das Ordenações Manuelinas e da
Coleção de Duarte Nunes, fazendo força de lei, no que tange ao direito penal no Brasil até
1830461, e no que diz respeito à matéria civil, até 1916!
Será este corpo de normas, que dará cor e instâncias aos sistemas de acesso judicial
nas terras do império português, e em especial a mais profícua delas, a Terra “Brasilis”.
460
461
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. Op. Cit. p. 214-215.
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. Op. Cit. 222.
136
9. O ACESSO FORMAL À JUSTIÇA CRIMINAL NO BRASIL COLONIAL
O Brasil descoberto, ou achado segundo os portugueses a começar por CAMINHA462,
de Portugal pertencia. Está é a máxima que vigorou até a Independência. Com isto, o sistema
judicial português passa a ter validade na colônia.
Entretanto, o primeiro momento gerou um primeiro conflito.
Um dos maiores problemas do reino era povoar as colônias, pois Portugal era
diminuto, tendo entre um e um milhão de habitantes463, e tinha interesses políticos,
econômicos e militares que iam dos Açores até a China, passando pela África e Índia464, o que
por si só era um problema de fenomenal complexidade.
Para poder dirimir, ou ao menos diminuí-lo, foi implantado na colônia americana,
depois das feitorias, o regime das capitanias hereditárias.
Este sistema, já empregado em outros lugares portugueses, tinha como origem um
critério econômico, posto que D. João III, sucessor de D. Manuel I, O Venturoso; era tudo
menos aventureiro com o erário, que estava quase que falido.
Um apontamento de Frei Luís de Sousa, extraído de um códice do
Conde de Castanheira, permite-nos avaliar as causas determinantes do volume que
haviam atingido as dívidas da coroa. Em 1534, o rendimento do reino, incluindo os
almoxarifados, ilhas e tratos da Índia e Mina, fora de 279 contos e meio, somando as
despesas 247:350$000! Ficava pois um saldo de pouco mais de trinta e dois contos
para fazer face às despesas extraordinárias do mesmo exercício, entre as quais a de
Safim orçava por 400:000$000, e o pagamento de juros vencidos, que já a esse
tempo eram de 160:000$000 anuais. Este era o quadro do reino, denunciando o
déficit, atribuído ao serviço dos empréstimos, o vício do sistema. 465
Com isto, usando o expediente de relegar a tarefa de colonizar e explorar a terra para
os particulares, em termo semelhantes ao já usado no início da reconquista no território luso,
doando aos fidalgos do reino, nacos, às vezes imensos, de território, de forma hereditária, mas
mantendo a soberania do território.
Neste sistema, a administração de forma geral da herdade, ficava com o donatário, que
seria o responsável pela sua vida político-administrativa. Com isto, a resolução de querelas
462
In <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000292.pdf>, acesso em 21/07/2008
WEHLING, Arno et al,. Formação do Brasil Colonial. 3. ed.,Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.54.
464
SANTOS, João Marinho dos. A Integração do Brasil no Império Colonial Português. in
<http://www.chsc.uc.pt/biblioteca/digital/001.htm>, acessado em 21/07/2008.
465
FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder – A Formação do Patronato no Brasil. 3. ed., Rio de Janeiro:
Globo, 2001, p. 138.
463
137
entre a os colonos, e entre aqueles que habitassem suas terras466 seriam por eles donatários
resolvidos.
As atribuições dos donatários eram judiciárias, fiscais e
administrativas. Aplicavam a justiça: a cível, com alçada até cem réis, e a criminal,
podendo chegar a decretar a pena de morte para escravos, índios e homens livres.
Neste último caso, para os de categoria social mais elevada, os donatários tinham
competência para sentenças de degredo e multa, como prescreviam as Ordenações
Manuelinas. Nos crimes mais graves, como heresia, traição, sodomia e moeda falsa,
admitia-se até a condenação à morte, independentemente da condição social do réu.
Nos casos previstos em lei eram permitidos recursos aos tribunais metropolitanos.
Quanto ao fisco, encarregava-se da arrecadação de impostos devidos à Coroa.
Poderiam, também, fundar vilas, nomear funcionários e distribuir terras (sesmarias)
entre colonos que preenchessem as condições determinadas em lei. 467
Isto era um “bode” imenso, posto que as terras da América portuguesa ficassem a
meses de navegação, o que deixava o senhor local como senhor da vida e da morte.
Sobre essa qualidade, de ordem particular, sobressaíam as suas
funções públicas – aquelas que destacavam a capitania de uma fazenda,
equiparando-a a uma província. Agora, a despeito da hereditariedade do cargo, das
atribuições amplas, ele agia em nome do rei, sujeito implicitamente aos seus
ditames, como se depreende ao limitar os negócios do rei dos seus, quer na justiça,
no comércio e no regime fiscal. Não se trata, agora, de privilégios econômicos, mas
de competência pública, sempre restrita, restrita quer pelas ordenações do reino ou
pelo conceito então reinante dos poderes centralizadores do soberano. É o contexto
geral da estrutura de governo, plantada, desenvolvida e fixada desde Avis, que
explica a contradição aparente – mais forjada do que aparente – entre as donatárias e
a organização político-administrativa do reino. O capitão podia criar vilas, nomear
ouvidores, dar tabelionatos tanto de notas como judiciais, tudo, porém, sujeito à
alçada, com reserva vigilante, embora nem sempre clara, do monarca. 468
Como poucos dos donatários se aproaram a tomar posse da terra e de seus haveres, e
muito menos ainda deram seqüência a qualquer projeto de colonização. No entanto, o sistema
como um todo, só seria revogado durante a administração pombalina no século XVIII469, mas
demonstrou, ou pelas derrocadas administrativas, ou avidez de lucro pela coroa, que era
necessária a centralização do governo colonial.
As donatárias fracassaram como plano político, orientado à defesa
do inimigo externo, guloso das riquezas do Brasil, e ao controle do gentio, em
revolta perpétua. Sem estas duas garantias, o risco atingia o negócio do rei – o paubrasil e os incipientes e já promissores engenhos de açúcar. Imaginou a corte um
sistema de delegação de autoridade, à custa dos agentes locais, conferindo-lhes
vantagens reais em troca de encargos, com a vista aplicada aos monopólios, rendas e
tributos.
[...]
466
Para o bem ou para o mal, como bem conheceram os indígenas, os negros da terra.
WEHLING, Arno et. al. Formação do Brasil Colonial. 3. ed.,Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.67
468
FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder – A Formação do Patronato no Brasil. 3. ed., Rio de Janeiro:
Globo, 2001, p. 141
469
VAINFAS, Ronaldo et. al,. Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 98
467
138
Os quinze anos das donátarias, tempo muito curto para definir uma
tendência ou para definir um rumo, sofrem drástico corretivo. O governo-geral,
instituído em 1548, instalado na Bahia, no ano seguinte, não extinguiu as capitanias.
De imediato, as atribuições públicas dos capitães se incorporam no sistema do
governo-geral, fiscalizados por um poder mais alto, em assuntos militares, da
fazenda e da justiça. A instituição, no seu lado particular, prolongou-se até o século
XVIII. 470
Com isto, em 1549, por carta regia ou regimento, um primo de Martim Afonso de
Souza
471
, o Desembargador Tomé de Souza, alça ao cargo de governador geral do Brasil, e é
mandado à América para fazer nascer à administração pública centralizada nessas terras. Com
ele, além de jesuítas, soldados que na realidade eram colonos, colonos que na realidade eram
degredados cumprindo penas previstas nas Ordenações Manuelinas, vieram o responsável
pela arrecadação de rendas – Provedor – e o responsável pela justiça – Ouvidor.
A escolha do homem que verdadeiramente lançará os fundamentos da
América lusitana recai sobre um fidalgo sisudo, de bom tino e entendimento, com
experiência nos negócios ultramarinos. Já se distinguira Tomé de Sousa em pelejas
contra a mourama da África, onde aparece entre 1527 e 1532 em Arzila e Safim,
duas das praças agora largadas ao inimigo da Fé. Depois estivera na Índia, ao tempo
em que lá andava, antes de ser feito vice-rei, seu primo Martim Afonso. Deste e
também de Pedro Lopes, teria obtido, sem dúvida, alguma informação sobre coisas
do Brasil.
A armada, composta de três naus, duas caravelas e um bergantim,
que o trouxe, com autoridades, missionários jesuítas – Manuel da Nóbrega e seus
cinco companheiros, três padres e dois irmãos -, funcionários civis e militares,
soldados, oficiais de diferentes ofícios, mais de mil pessoas ao todo, inclusive 400
degredados, deixou Lisboa a 1º de fevereiro. A 29 do mês seguinte chegava à Bahia
de Todos os Santos, onde se deveria escolher o lugar mais próprio para a construção
da sede do governo.
A igual distância, aproximadamente, dos extremos da demarcação
portuguesa na costa, bem correspondia o sítio ao novo propósito que moveu a Coroa
a corrigir, onde necessário, a dispersão e o particularismo que caracteriza o regime
dos donatários. Tudo denuncia já nessa etapa incipiente de organização dos
diferentes núcleos de povoamento, entregues, de início, ao esforço privado, o
deliberado empenho de centralizarem-se as esferas de administração nas mãos dos
agentes da Coroa.
Tomé de Sousa torna-se governador, assim, da povoação de terras
da Bahia de Todos os Santos, como das “outras capitanias e terras da costa...” O
Regimento que trazia pôde ser mesmo considerado por Serafim Leite um
“documento básico, verdadeira carta magna do Brasil e sua primeira Constituição,
tendente à unificação jurisdicional, já com os elementos aptos para a colonização
progressiva”. O governo central deveria dar favor e ajuda às mais povoações,
ministrar-lhes justiça e prover nas coisas que cumprissem ao serviço de Sua Alteza e
aos negócios da Régia Fazenda a ao bem das partes, segundo consta textualmente da
carta régia de 7 de janeiro de 1549.
Assim, a tendência para centralização do poder, que na prática
jamais se realizará cabalmente durante todo o nosso período colonial, está longe de
querer significar que o exerceria indiviso o governador. Assistiam-no, com grande
470
FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder – A Formação do Patronato no Brasil, 3. ed., Rio de Janeiro:
Globo, 2001, p. 163 e 167.
471
Na época vice-rei das Índias
139
soma de atribuições próprias e intransferíveis, os encarregados dos negócios da
justiça – isto é, o ouvidor geral – e da Fazenda – ou seja o provedor-mor. 472
Além disto; fixa-se o esquema de administração local, com o “Concelho” e seus
vereadores.
Com isto, evidentemente que os donatários, e em especial o da capitania de
Pernambuco, D. Duarte Coelho, não apreciaram a instalação de governo centralizado, e com
isto, fixando a justiça e a provedoria em Salvador473.
Com isto, o poder local e o poder central têm seu primeiro embate, mas que com o
tempo, acabou-se em uma longa carta de recriminações e queixumes el-Rey474, ficando a
justiça centralizada nos cargos reais ou locais, mas sob regras gerais e aplicadas em todo o
reino.
Mas como reagiria a população em suas contendas de ordem criminal, recorria ao
Ouvidor ou ao Senhor mais próximo. No caso, existiam sim uns personagens, um agente local
e um agente real, que a guisa de função judicial.
Antes de dissertar sobre o Juiz Ordinário e o Juiz de Fora, duas ponderações devem ser
feitas.
A primeira delas, de ordem sociológica, o país era um conglomerado de senhores que
a mando e desmando, controlavam seus territórios com mão de ferro.
Um clássico da historiografia brasileira, década de 1930, descreve com
pormenorização e profundidade o microcosmo da sociedade escravocrata e protofeudal, que
se estabeleceu no Brasil dos quinhentos, e nele permaneceu até a primeira metade do século
XX.
FREIRE (1933), na obra prima e reveladora da realidade histórica brasileira,
demonstra que a época da colônia, o poder imediato era o do senhor de engenho ou possuidor
de terras. Este tudo decidia, e de tudo se valia, sendo a justiça certa e ao alcance dos seus.
Tudo, deixou-se, porém, à iniciativa particular. Os gastos de
instalação. Os encargos de defesa militar da colônia. Mas também os privilégios de
mando e de jurisdição sobre terras enormes. Da extensão delas fez-se um chamariz,
despertando-se nos homens de pouco capital, mas de coragem, o instinto de posse; e
acrescentando-se ao domínio sobre terras tão vastas, direitos de senhores feudais
sobre a gente que fosse aí mourejar. A atitude da Coroa vê-se claramente qual foi:
povoar sem ônus os ermos da América. Desbravá-los do mato grosso, defendê-los
do corsário e do selvagem, transformá-los em zona de produção, correndo as
472
HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I, V. 1 – A Época
Colonial – Do descobrimento a expansão territorial; 13. ed., Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil Ltda, 2003,
p. 124.
473
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Cit. p. 139.
474
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Cit. p. 140.
140
despesas por conta dos particulares que se atrevessem a desvirginar terra tão áspera.
A estes se deve, na verdade, a coragem de iniciativa, a firmeza de ânimo, a
capacidade de organização que presidiram o estabelecimento, no Brasil, de uma
grande colônia de plantação. 475
De outro lado, durante todo o período colonial, o judiciário não era um poder
autônomo, nos termos em que Montesquieu preconizava476, mas sim uma função real,
derivada do “regnare”, já discutido aqui. A justiça era um atributo dos poderes do soberano,
e, portanto, os juizes ordinários ou de fora, e os desembargadores, eram homens Del Rey,
falavam por ele e por ele agiam. O judicial era sempre uma derivação do real.
A estes, também se junte o fato de o Brasil ter sido mais de um durante o período
colonial, pois no século XVII existia o Brasil e o Vice Reino do Grão-Pará e Maranhão477,
com governos e realidades distintas; e, que além disto às jurisdições eclesiásticas diziam
respeito às coisas da fé, onde o titular do bem jurídico tutelado era apenas Deus.
Dito isto, veja-se que a administração do reino na colônia era centralizada nas sedes
como Salvador (1549) e depois no Rio de Janeiro (1763), assim como as cortes de apelo
conhecidas como Tribunais da Relação.
No nível primário da organização política do império colonial português estava o
município, a cidade. Nela as funções legislativas478, executiva e judiciária, estavam enfeixadas
na instituição conhecida como Senado da Câmara.
A que pese a primeira sede do governo tenha sido Salvador, o primeiro senado da
câmara foi a de São Vicente, em 1532479, e repetia o modelo de conselho que vigia na
metrópole desde muito antes. Nestas eram eleitos, entre os homens bons, ou seja, a elite do
local, além dos vereadores com funções administrativas, o Juiz Ordinário.
Na verdade salvo um fugaz momento de estímulo régio de um século,
estímulo que não busca a autonomia mas subordinação, por meio do compromisso, o
município se submete ao papel de braço administrativo de centralização monárquica.
A própria categoria de vila, habitada a possuir a câmara, depende da vontade régia,
mesmo quando a palavra do soberano se limita e reconhecer um fato. A presença do
chefe da monarquia se faz sentir na nomeação do presidente – se importante o
município – na pessoa de um letrado, o juiz de fora (desde 1696 no Brasil).
Desnecessária essa autoridade, ocupa o seu lugar o juiz ordinário. Fora desta e
outras ilhas régias, que dominam a autonomia local, acentuando a função auxiliar da
câmara ao ordenamento geral, prevalece o princípio da eletividade: eleitos eram os
juízes ordinários, os três vereadores (em algumas vilas, quatro), o procurador, o
tesoureiro e o escrivão, cada um com as estritas atribuições que lhe conferem as
Ordenações. A Câmara se compõe dos juízes ordinários e dos vereadores – os outros
475
FREIRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 30. ed., São Paulo:Record, 1992, p. 244.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder Judiciário Crise, Acertos e Desacertos. São Paulo: RT, 1995, p.81.
477
WEHLING, Arno et al, Formação do Brasil Colonial, 3. ed.,Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.314
478
Quase que formalmente ínfima
479
In <http://www.filologia.org.br/anais/anais%20iv/civ01_31-38.html>, acesso em 21 julho de 2008.
476
141
funcionários, eletivos ou nomeados, incumbem-se de funções pré-traçadas, sob o
comando da vereança ou vereação, sem que se possa discernir, nas atribuições das
autoridades, funções separadas, no tocante à administração, justiça e legislativo, ou
com respeito à esfera superior das capitanias480
Sua previsão vinha desde as Ordenações Afonsinas481, e tinha na época colonial,
competência482 determinada pelo livro I Título LXV das Ordenações Filipinas483. A eleição do
Juiz Ordinário, que era leigo, sem necessária formação jurídica e tinha como um de seus
símbolos, a vara vermelha, além de presidir o senado da câmara484.
Ele era o agente judiciário mais próximo, mas não o único, pois o mesmo diploma
legal cria o juiz de vintena, que julgava causas cíveis de menor valor, em locais com até vinte
casas, sem poder prender, processar ou julgar causas criminais, mas poderia entregar os
criminosos, aos juízes, ordinários ou de fora, conforme o caso, além de juízes outros, como
dos órfãos, agentes judiciais, sem atribuição criminal.
Mas o dado mais interessante é que o Juiz Ordinário pertence a elite, mas à elite local.
Este fato, congregado com a rarefeita população do local onde o mesmo agia, fazia com que
acesso ao mesmo fosse quase que imediato.
Além disto, mesmo que as ordenanças previssem que a instrução do feito485, previsse
até oito testemunhas de cada parte486, o juiz ordinário, com certeza, já sabia dos fatos de
antemão.
Na realidade, as decisões e as circunstâncias dessas decisões dos Juizes Ordinários,
passava certamente pelas relações pessoais, não apenas na aquisição da prova, mas também e
principalmente para com o cargo de relevância no cotidiano, galgar posições sociais, dentro
de uma sociedade estratificada e autofágica.487
A competência criminal do Juiz Ordinário era bem ampla, como por exemplo, as todas
as contravenções, furtos de escravos até quatrocentos reis, e os delitos contra a honra.488
480
FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder – A Formação do Patronato no Brasil. 3. ed., Rio de Janeiro:
Editora Globo, 2001, p. 212-213
481
In <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l1p164.htm>, acesso em 21 de julho de 2008.
482
Tecnicamente atribuição, pois era um agente administrativo.
483
In<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p134.htm>, acesso em 28 de julho de 2008
484
Daí o termo vara para as unidades judiciárias até hoje.
485
Termo aqui usado com sentido técnico.
486
O mesmo número ainda vige na legislação processual penal, reformada no mês de junho de 2008, tem sua
origem nas ordenações do reino, e para o processo penal de rito ordinário, ou seja, aquele processado pelo juiz
ordinário não mudou nos últimos quatro séculos conforme <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p139.htm>,
acesso em 22 de julho de 2008.
487
WOLKMER, Antonio Carlos et al,. Fundamentos de História do Direito. 3. ed., Belo Horizonte:Del Rey, ,
2006, p. 305.
488
WAHLING, Arno; e, WAHLING Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial – O Tribunal da Relação
do Rio de Janeiro (1751-1808), Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004, p. 61.
142
Obviamente, como era da natureza sedimentada das classes sociais, as de status mais
altos, tinham direitos ao foro privilegiado e recursos extraordinários489.
Por fim, é de se ter em mente que o Juiz Ordinário, era mais um ator político do que
um decisor jurídico, não era técnico nem precisava sê-lo. Com isto as soluções que propunha
eram empíricas ou política, sendo que às vezes era a própria câmara que julgava.490
O personagem seguinte da organização judiciária da colônia era o Juiz de Fora, e sua
vara branca.
Este personagem, já existia desde o início do reino português, e previsto nas
ordenações afonsinas491, e representava a justiça do rei e do reino. Os primeiros Juízes de Fora
foram designados para o Brasil em 1696492, o que demonstra o seu tardio.
Este magistrado era estranho ao local onde atuava, e tinha a competência semelhante à
do Juiz ordinário493, mas era um juiz profissional, técnico, bacharel.
Necessariamente membro da elite, formado em Coimbra494, ele era imposto pelo poder
real aos locais do reino, quaisquer que fosse eles.
Os juízes de fora somente foram estabelecidos no Brasil a partir de
fins do século XVII e os tribunais da Relação funcionaram, na Bahia, entre 1609 e
1624 e de 1652 a 1808 e no Rio de Janeiro entre 1752 e 1808.
Os juízes de fora tinham suas atribuições definidas nas Ordenações
Manuelinas e, a partir de 1603, nas Ordenações Filipinas. O título que definia essas
atribuições compreendia indistintamente aos juízes ordinários de fora.
A distinção básica entre ambos, fixada naquela legislação, era a de
que os primeiros elegiam-se anualmente nas câmaras municipais, ao passo que os
juízes de fora eram magistrados profissionais de nomeação real, com o claro
objetivo de corrigir a ação dos primeiros e aumentar o poder do rei. Permanece
válida, do ponto de vista da intenção do legislador, a clássica definição de Candido
Mendes de Almeida:
“Juiz de fora ou de fora-aparte, como a princípio se denominaram
desde o primeiro instituidor, o rei D. Afonso IV, era o magistrado imposto pelo rei a
qualquer lugar, sob o pretexto de que administravam melhor a justiça aos povos do
que os juízes ordinários ou do lugar, em razão de suas afeições e ódios.
O fim principal da sua criação foi a usurpação da jurisdição, para
o poder régio, dos juízes territoriais; o que pouco a pouco se foi fazendo, com
gravame das populações, a quem a instituição sempre pareceu e foi obnóxia; até
que o reinado de D. Manuel ou de D. João III, tomando a realeza a seu cargo o
pagamento da mor parte de seus ordenados, impô-los por todo o Estado.
(...)
O juiz de fora era de ordinário letrado, ou antes instruído no direito
romano, legislação mui patrocinada pelos príncipes, pelo predomínio que lhes
assegurava no Estado; ao revés do juiz ordinário, que administrava justiça aos
489
WAHLING, Arno; e, WAHLING Maria José. Op. Cit. p. 62
WAHLING, Arno; e, WAHLING Maria José. Op. Cit. p. 66
491
In <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l1p57.htm>, acesso em 22 de julho de 2008
492
VAINFAS, Ronaldo et. al,. Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000, p. 338
493
NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito. 15. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006,
p.232
494
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direto no Brasil. 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 65.
490
143
povos tendo em vista o direito costumeiro, os forais, que não podiam ser do agrado
do poder real e nem dos juristas romanos a seu soldo.” 495
Isto ficava claro quando este julgava. Enquanto o Juiz Ordinário julgava no senado da
câmara, junto com os outros vereadores, o Juiz de Fora julgava monocraticamente e
independentemente.
Os juízes de fora, reconhecidos pela vara vermelha que deveriam
portar – e cuja ausência implicava multa de 500 réis – tinham alçada ate hum mil
réis nos bens móveis; nas localidades abaixo de 200 habitantes, julgariam ações de
até 600 réis nos casos de bens móveis e de 400 réis nos de bens de raiz.
Tinham, ainda, jurisdição criminal, destacando a legislação sua
atuação no que se referia às injúrias e às devassas especiais. A competência do juiz
ordinário e do juiz togado, nestes casos, era semelhante. Havia, entretanto, pequena
diferença de procedimento quanto à prolação da sentença: o juiz ordinário
sentenciava na Câmara Municipal com a participação dos demais vereadores, exceto
no caso de as partes serem fidalgos ou se o ofendido tivesse oficio de justiça; o juiz
de fora sentenciava sempre de forma independente. 496
Um dado importante, para fins de discussão do acesso à justiça no caso do Juiz de
Fora, era que era, como os desembargadores também o eram, proibidos de casar com
mulheres da colônia.
A carreira do magistrado estava inserida na rigidez de um sistema
burocrático que delineava a circulação e a prestação de serviço na Metrópole e nas
colônias. Em geral, o exercício da atividade judicial era regido por uma série de
normas que objetivavam coibir envolvimento maior dos magistrados com a vida
local, mantendo-os eqüidistantes e leais servidores da Coroa. Dentre algumas dessas
regras, vale lembrar a designação por apenas um período de tempo no mesmo lugar,
as proibições de casar sem licença especial, de pedir terras na sua jurisdição e de
exercer o comércio em proveito pessoal. Ainda que essas regras se impusessem em
Portugal, no Tribunal Superior da Bahia, sua violação acabava sendo constante,
tanto por parte de desembargadores portugueses (aqueles que pretendiam
497
permanecer no país) quanto de magistrados brasileiros.
Isto dá o tom da falta de acesso direto ao Juiz de Fora, nas querelas criminais durante o
período colonial.
O Juiz de Fora, posição que era na realidade, verdadeiro ritual de passagem para o
cargo de Desembargador em um dos Tribunais da Relação, e pouco se prestava a posturas
paroquianas, sendo inclusive desencorajado a se relacionar com as coisas da terra498.
Aliás, isto também alimentava uma verdadeira disputa entre os Juizes Ordinários e os
Juizes de Fora499, sempre as turras com suas atribuições quase que sobrepostas.
495
WAHLING, Arno; e, WAHLING Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial – O Tribunal da Relação
do Rio de Janeiro (1751-1808), Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004, p. 72.
496
WAHLING, Arno; e, WAHLING Maria José. Op. Cit. p. 73.
497
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direto no Brasil. 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 68-69.
498
WOLKMER, Antonio Carlos, Op. Cit., p. 63. e 64
144
Também é de se ter que os Tribunais da Relação, não eram fontes de acesso direto à
justiça criminal pela vítima, a não ser que fosse a vítima El-Rey, mas neste caso as
determinações e devassas viriam do Desembargo do Paço.
Para findar o tema colonial, registre-se que as ordenanças500, possibilitava a acusação
feita por qualquer um contra alguém pela prática de crime, que, como já se disse pode ser bem
traduzido como delação501.
9.1 Reino Unido, Regência e Independência.
O caminhar para a independência do Brasil da metrópole portuguesa, não foi nem
imediata e nem completa, inclusive no que diz respeito às instituições judiciais e corpo
normativo.
Nesse aspecto em especial, é de se notar que uma das conseqüências da jurídicoinstitucionais da declaração do Ipiranga foi a validação das normas jurídicas portuguesas,
principalmente as ordenações e alvarás, mantendo assim uma unidade jurídica formal no
território imperial502.
Obviamente que o governo imperial em seus primeiros movimentos não tinha nem
mesmo material humano para de pronto criar todo um conjunto unificado de normas para o
território imperial, ainda mais se levarmos em conta as personalidades dos atores políticos da
época, como José Bonifácio e o próprio imperador.
Portanto o ordenamento jurídico imperial foi forjado com o decorrer do processo de
estabilização do país, com a criação de instituições mais ou menos estáveis e confiáveis503,
caminho este que levou décadas, às vezes em tempestuosas mudanças de rumo político.
Foi neste ambiente que surgiram algumas das legislações mais representativas deste
período, o Código Criminal do Império (1830) e o Código do Processo criminal de 1ª
Instância (1832).
Nestes instrumentos normativos, que foram sendo modificados através do século XIX,
residiram os meios de acesso das vítimas de delitos às instituições judiciais da época.
499
WOLKMER, Antonio Carlos et al, Fundamentos de História do Direito. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, ,
2006, p. 302, nota 18.
500
In <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1278.htm>, acesso em 22 de julho de 2008.
501
PIERANGELLI, José Henrique. Processo Penal, Evolução Histórica e Fontes Legislativas, Bauru: Editora
Jalovi, 1983, p. 64.
502
Lei
de
20
de
outubro
de
1823;
disponível
em:
<http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-F_82.pdf>; acesso em 21 de
abril de 2008.
503
Sob o ponto de vista da elite governante é óbvio.
145
Aliás, as vias de acesso, ainda que tivessem nomenclatura distinta, eram de forma
razoavelmente clara, evoluções daquelas que existiam durante o período colonial, o que é de
certa forma o esperado, já que a burocracia estatal brasileira no período do primeiro império
manteve-se balizada com a estrutura anterior reinol.
Tal dava-se, por não ocorrer a princípio, uma ruptura total com a metrópole, e o ponto
mais claro deste fato, reside em que o Brasil passou de colônia a pais, não por um processo
revolucionário, mas sim, por um movimento que começa com o estabelecimento da família
real no Rio de Janeiro, pelo “Fico” do Príncipe Real, e por fim a independência; um processo
que durou 14 anos.
Por conta disto, as instituições sofreram mudanças, mas não de forma radical, e de
certa forma o que ocorrera na realidade fora uma evolução.
Uma análise um pouco mais acurada, leva a observação de que embora a estrutura
estatal em um nível mais alto tenha sofrido modificações de vulto504, os agrupamentos
urbanos continuaram de uma forma ou de outra com a mesma estrutura da colônia.
Sem Prefeitos505, e com as câmaras governativas, ainda concentrando o poder local,
algumas das vias institucionais de acesso à justiça, que estavam intimamente ligadas ao poder
local, acabaram, ao menos institucionalmente, a ponto de o art. 1º do Código de Processo
Criminal de Primeira Instância de 1830, manteve a estrutura judiciária existente, ainda que
mais adiante se criam alguns institutos novos.
Portanto, o império do Brasil, ao menos no que concerne às suas instituições
judiciárias, antes que uma ruptura, foi um evoluir distinto da metrópole, na medida que
manteve em um primeiro momento as instituições coloniais de forma expressa, mantendolhes, ainda que em grandes linhas, as atribuições e jurisdições506 daquelas.
Neste aspecto, a criação institucional do império, foi muito mais uma questão políticoinstitucional, do que um problema de soberania organizada. Isto porque o país, já era uma
unidade autônoma, até por haver sido erigida à condição de parte de um reino unido507,
contendo ao menos formalmente uma paridade de status.
Não foi à toa que a casa real criou uma estrutura governamental no Brasil, ainda que
soubesse que o retorno a Portugal seria inevitável. Esta era necessária para a efetividade do
governo exilado, pois não poderia o reino manter o reinado sem poder reinar. Por conta disto,
504
Como a instituição do sistema parlamentarista, por exemplo.
Novidade há porvir na república
506
Jurisdições no sentido territorial
507
Tais quais os componentes da Grã-Bretanha da época, cujo modelo evidentemente influenciou o príncipe
regente.
505
146
órgãos como o Banco do Brasil, Chancelaria do Reino, Intendência Geral de Polícia, casa da
moeda, foram criados, os portos abertos ao comércio508, e a cidade do Rio de Janeiro, quase
que toda ela tomada pelos reinos.
Mas, no que concebia aos altos tribunais do reino, este foram simplesmente
transladados de Portugal para o Brasil. Desembargo do Paço e Mesa da Consciência e Ordens
se viram reinstalados no Rio de Janeiro509.
Toda via no que concerne aos tribunais, à exceção da Relação do Rio de Janeiro que
foi alçada à Casa de Suplicação510, e foros, estes pré-existiam na antiga colônia511,
principalmente no grau mais amiúde, como os Juizes Ordinários e os Juízes de Vintena.
Perceba-se que a organização do Brasil durante o período de reunião com a metrópole,
não tem suas estruturas públicas primárias modificadas, principalmente nos escalões mais
básicos da organização política da antiga colônia512. A Câmara continuava a ser eleita; seus
membros continuaram a repartir as atribuições de governança, e, para os fins judiciais, o Juiz
Ordinário continuava a decidir.
Talvez a única mudança mais significativa, foi no que dizia respeito ao Juiz de Fora,
que por conta da estar a Corte no território brasileiro, não era mais um representante
institucionalmente externo.
Mesmo no período em que o rei voltara a Portugal, ainda assim, e sob pressão do
poder político português, as estruturas aqui criadas, funcionava, e as estruturas aqui mantidas
também eram em grande parte eficazes.
A independência, fora para os foros muito mais uma mudança de atores, com uma
evolução do texto, mas sempre no mesmo palco e com a mesma claque, do que um radical
movimento de transformação.
A grande mudança, que não foi tão espetacular assim, foi a criação de um judiciário
organizado de forma autônoma, mas sem atuar de forma independente, pela constituição
imperial.
508
Em especial para a Inglaterra, mas não apenas a ela.
VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, p. 451.
510
VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit..
511
Inclusive no que concernem às relações, na Bahia, Pernambuco e Rio de janeiro.
512
Em especial ao que diz respeito às cidades, e em grau variado, as vilas.
509
147
10. O ACESSO FORMAL NO IMPÉRIO
A independência do Brasil de Portugal foi na realidade, uma seqüência de fatos mais
ou menos pré-determinados, não sendo este trabalho sede das mais adequadas para discuti-las.
No entanto deve-se ter em mente que não ocorreu uma ruptura absoluta entre as estruturas
geradas pelo pacto colonial.
No mesmo talante, as normas vigentes na época da colônia foram mantidas por lei
imperial513, e ao que concerne às normas penais, vigeram até 1830, e no que diz respeito ao
direito civil, até 1916.
Mas com a declaração da soberania institucional brasileira, apesar de ter sido
prorrogada a legislação portuguesa, se fazia necessária sim, a efetivação de um corpo de
normas novo, sob os auspícios de uma nova estrutura filosófica de direito, que havia mais ou
menos estabilizado naquele momento histórico.
Pelo menos era assim que pensavam os liberais da época, e em especial aqueles que
formaram a assembléia constituinte de 1823.
Mas logo em 1824, D. Pedro I514 outorgou a nossa primeira constituição, a dita
imperial, no título do poder judiciário, ocorreram as primeiras mutações, e de cunho profundo.
Neste aspecto em especial, é de se ter que o Brasil teve sua independência declarada
pouco depois das restaurações européias que criaram várias cortes constitucionais, ou seja,
seguindo o modelo oriundo do Congresso de Viena, e tal modelo ainda que constitucional e
tripartite, era concentrador de poderes na figura do chefe do executivo. Logo, estes modelos
acabaram por se estender para o Brasil, até mesmo pelo fato do imperador daqui ser herdeiro
do trono de lá.
Daí ter a constituição outorgada no e pelo Paço Imperial, ter os contornos de estados
dos constitucionais europeus, mas de viés autocrático da safra de 1815-1830515.
Mas o ordenamento normativo infraconstitucional, como, aliás, também ocorreu de
forma mais ou menos intensa na Europa continental, seguiu por caminhos filosóficos mais
liberais, a começar pelo às vezes expresso e por vezes implícito Kantianismo, mas também
seguindo dois modelos básicos de normas gerais codificadas; os Códigos Napoleônicos.
513
Lei de 20 de outubro de 1823 – in
<http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-F_82.,pdf>, acesso em 23 de
julho de 2008.
514
Príncipe herdeiro do trono português, o qual assumiu sob o título de D. Pedro IV.
515
Período de tempo entre o Congresso de Viena e o surto revolucionário de 1830.
148
Tendo isto em mente, não é de se admirar que as vias estatais imperiais e seus órgãos
são frutos exatamente do embate entre liberalismo e conservadorismo, tanto na forma como
no conteúdo. Partidos, gabinetes imperiais, leis, condutas dos membros da corte, a vida
político-administrativa do Brasil Imperial, tudo enfim balança ao vento de liberais e
conservadores.
A postura do estado brasileiro era por conta desta disposição ambivalente, por conta
das instituições que em um primeiro momento tinham caráter eminentemente liberal, mas
eram transformadas em instituições mais conservadoras no decorrer do tempo.
Nesta ciranda, nada mais verdadeiro que se dizer que o judiciário imperial foi o
produto pronto e acabado desta política do estado brasileiro.
Se em um momento o império extingue as cortes voltadas ao poder político ou de
atribuição especial, como o Desembargo do Paço e a Mesa das Consciências e Ordens;
mantém como expressão do chamado poder moderador a concessão de graça516 pelo
imperador, como vontade pessoal, fazendo-se superior a qualquer decisão judicial.
Mas na visão de quem era vítima de um delito, ou como poderia o crime ser anunciada
para a autoridade pública, a via não se modificaram de imediato, mas foi nelas que incidiram
as grandes discussões sobre o sistema criminal do império.
Uma demonstração disto foi que algumas das instituições tipicamente coloniais
permaneceram intactas, como foi o caso do senado da câmara, mas sem sua função judicial,
que foi colocado à parte, e de forma autônoma517.
O texto constitucional de 1824 fixou a existência de um tribunal de alto grau de
jurisdição, unitário para o império, o Supremo Tribunal de Justiça; mas lançou apenas linhas
gerais do judiciário, com as prerrogativas dos magistrados, sistema geral de dedução de
pretensões punitivas, bem como o júri como regra de foro518.
Estabeleceu-se a estrutura judicial, não só através da constituição imperial, mas
também através dos códigos, e na justiça dos feitos criminais, em especial atua o código de
processo criminal de 1ª instância, que dá voz e ação à justiça criminal.
516
Instituição que de certo modo permanece na legislação penal, como causa de extinção de punibilidade.
Art. 151. O Poder Judicial independente, e será composto de Juizes, e Jurados, os quais terão lugar assim no
Cível, como no Crime nos casos, e pelo modo, que os Códigos determinarem. – in
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm>, acesso em 22 de julho de
2008.
518
Art. 152. Os Jurados pronunciam sobre o facto, e os Juízes aplicam a Lei. – in
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm>, acesso em 22 de julho de
2008.
517
149
Se a estrutura do estado imperial é um elogiar ao conservantismo, o Código do
Processo Criminal de Primeira Instância foi um monumento à filosofia liberal de Jeremy
Bentham519.
Para se entender os esquemas de acesso aos agentes judiciais, magistrados letrados, ou
não, é preciso que se entenda que o “scholar” de Oxford é um produto dos tribunais e do
ambiente acadêmico britânico do final do século XVIII, e o mundo liberal pós-napoleônico
era um produto de também seu520.
Utilitarista por excelência colocava o sistema penal521 em função da sociedade e não
ao contrário, posto que a possibilidade dos limites da ética privada está nas leis que balizam as
condutas certas e punem as proibidas. Se assim o é, e a lei é a expressão dos limites das ações
humanas, o estado, que edita as leis, deve propiciar a defesa dos direitos dos indivíduos, que
não podem por si agir para punir os que delinqüem522.
Com isto dito, observe-se que o código do processo criminal de primeira instância,
promulgado em 29 de novembro de 1832523, estabelecia existiriam três classes, por assim
dizer de juizes de primeiro grau; o Juiz de Direito, o Juiz Municipal e o Juiz de Paz.
O Juiz de Direito, previsto no art. 44 do código do processo criminal de primeira
instância, nomeados pelo imperador, necessariamente bacharel524, com idade mínima de vinte
e dois anos e no mínimo um ano de experiência de foro, provado por certidão dos tribunais e
foros525, era por lei movível526 e vitalício por termo constitucional527.
Os Juizes Municipais, previstos no art. 34 do código do processo criminal de primeira
instância, era nomeado pelos presidentes das províncias, escolhidos em listas tríplices, em
triênios, apresentadas pelas câmaras municipais528, e escolhidos entre bacharéis em direito, ou
advogados provisionados529, ou na falta destes, pessoas dotadas de bom conceito na sociedade
519
PIERANGELLI, José Henrique. Processo Penal, Evolução Histórica e Fontes Legislativas. Bauru: Editora
Jalovi, 1983, p. 99.
520
MORRIS, Clarence. Os Grandes Filósofos do Direito. São Paulo: Martins Fontes, São Paulo, 2002, p.261
521
E legal também.
522
MORRIS, Clarence. Op. Cit. p. 270.
523
PIERANGELLI, José Henrique. Processo Penal, Evolução Histórica e Fontes Legislativas, Bauru: Editora
Jalovi, Bauru-SP, 1983, p. 97
524
É interessante lembrar que os cursos jurídicos foram implantados cinco anos antes co código do processo
criminal de primeira instância.
525
PIERANGELLI, José Henrique. Op. Cit. p.105
526
Art. 45 do Código do Processo Criminal de Primeira Instância
527
Art. 153. Os Juízes de Direito serão perpétuos, o que todavia se não entende, que não possam ser mudados de
uns para outros Lugares pelo tempo, e maneira, que a Lei determinar.
528
Não existia a figura do prefeito.
529
Práticos “ad hoc”, sem formação acadêmica, nomeados pelo juízo, e conhecidos como rábulas.
150
local e instruídas nas letras. Dentre suas competências, serviam como substitutos do Juiz de
Direito nos limites dos termos, e nas falta, impedimentos e suspeições daqueles. 530
Os Juízes de Paz, previstos no art. 10 do código do processo criminal de primeira
instância, mas existentes desde 1827531, eleitos em conjunto com os vereadores, em número
de quatro, que serviam cada um, por um ano, começando-se pelo mais votado. Tinham poder
de polícia, tanto administrativa como judiciária, além de função jurisdicional, dando fiança e
julgando crimes leves e contravenções ao código de posturas municipais532.
Colocados assim, a primeira vista, aparenta repetir o esquema básico da organização
judiciária do período colonial, com o Juiz de Fora, Juiz Ordinário e o Juiz de Vintena, ao
menos no que concerne ao primeiro grau.
Tal aparência tem suas cores reforçadas se tivermos em conta que os Juizes de Direito,
ao menos no princípio do império, eram formados na tradição de Coimbra, e na tradição de
começar bacharel, nomeado Juiz de Fora para mirar o cargo de Desembargador.
Obviamente que apenas as elites, coloniais ou imperiais, tinham como alcançar a
formação acadêmica, e ao retornar ao Brasil, as chances de ser nomeados por sua Majestade
Imperial eram grandes.
Portanto, ao menos no que dizia respeito aos Juízes de Direito, que poderiam ser
eleitos para o legislativo533, representava o judiciário um núcleo corporativo e elitista.
Ademais, determinados fatores contribuíram para dar singularidade à
postura da magistratura no período que se sucede à Independência: o
corporativismo elitista, a burocracia como poder de construção nacional e a
corrupção como prática oficializada.
Na análise que faz do legado judicial engendrado a partir de 1822,
Thomas Flory assinala, já naquela época, existência muito forte do exclusivismo
educacional e do espírito corporativista na magistratura. Esses profissionais
formados na erudição e no tradicionalismo da Universidade de Coimbra assumiram,
no cotidiano da colônia, procedimento pautado na superioridade e na prepotência
magisterial. O exclusivismo intelectual gerado em princípios e valores alienígenas,
que os transformava em elite privilegiada e distante da população, revelava que tais
agentes, mais do que fazer justiça, eram preparados e treinados para servir aos
interesses da administração colonial. A arrogância profissional, o isolamento elitista
e a própria acumulação de trabalho desses magistrados, aliados a uma lenta
530
PIERANGELLI, José Henrique. Op. Cit. 105.
PIERANGELLI, José Henrique. Processo Penal, Evolução Histórica e Fontes Legislativas. Bauru: Editora
Jalovi, 1983, p. 117
532
Art. 12 do código do processo criminal de primeira instância
533
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. 2. ed., São Paulo: Editora Max Limond, 2002, p. 328
531
151
administração da justiça, pesada e comprometida colonialmente, motivaram as
forças liberais para desencadear a luta por reformas institucionais, sobretudo para
alguns, no âmbito do sistema de justiça. Daí resultariam o processo de
constitucionalização (Carta Imperial de 1824), a criação das faculdades de Direito
(1827) e o primeiro código nacional de controle social (Código Penal de 1830). 534
Por conta disto, o acesso das vítimas ao judiciário, era refratado não apenas pela quase
certa postura olímpica do magistrado535, mas pela própria competência dos feitos a ele
colocados em mesa, que de regra diziam respeito também às elites, ao menos quando estas
eram vítimas.
Já o Juiz Municipal, em muitos pontos assemelhados ao Juiz Ordinário, tinha uma
atribuição subsidiária ao Juiz de Direito536, e ao que tudo indica, era caminho de passagem
para este cargo.
Mas é na figura do Juiz de Paz, que o acesso à justiça criminal pela vítima e seu
cotidiano tiveram reverberação.
O primeiro ponto que se discutiu no império era se os Juizes de Paz eram magistrados
e, portanto com as mesmas garantias.
O Conselho de Estado, órgão que assessoramento do Imperador, cujas decisões tinham
condão de pareceres e votos, que balizavam a decisão do Imperador, e, portanto do próprio
poder executivo; determinou em consulta decidida na 40ª sessão, datada de 30 de março de
1830537, que os Juizes de Paz eram magistrados com todas as prerrogativas atinentes ao
cargo538.
Sendo magistrado, suas decisões eram judiciais, e ainda que fossem escolhidos pelas
classes mais na base da pirâmide e não fossem pagos539, eram eles que atuavam no cotidiano
das pessoas, e eram a eles que se dirigiam as queixas e querelas dos centros urbanos540.
Isto o colocava em circunstâncias tais que no dizer de FLORY, 1986 apud
WOLKMER, 2006:
[...] Os reformadores liberais fizeram do Juiz de Paz o portaestandarte de suas preocupações filosóficas e práticas: formas democráticas,
localismo, autonomia e descentralização. Por outro lado [...] os conservadores
534
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direto no Brasil. 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 91.
Pelo menos no primeiro império, já que no segundo império, as idéias liberais, calcadas em especial pelas
arcadas.
536
Art. 35 e Art. 342 do código do processo criminal de primeira instância
537
Em data anterior ao código do processo criminal de primeira instância, mas baseando-se em termos
constitucionais, mais precisamente no art. 154 da Constituição imperial
538
LYRA, Tavares de, Instituições Políticas do Império, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1979, p. 95
539
WOLKMER, Antonio Carlos, História do Direto no Brasil, 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 96
540
Se tiver câmara, é um agrupamento de certa respeitabilidade.
535
152
viram no magistrado local [...] uma ameaça ao controle social no vasto Império[...]
A nova instituição estava desenhada idealmente para funcionar dentro de uma
estrutura legal liberal compatível; porém, de fato, o Juiz de Paz começou sua
existência isoladamente, sem o benefício de nenhuma legislação que o apoiasse [...]
O Juiz de Paz, encontrou-se, desde o início, à deriva da estrutura incompleta e
hostil de uma judicatura colonial sem mudanças.541
Este personagem coloca as claras que a formatação da sociedade e da política imperial
era claramente conservadora e centralizadora, enquanto as normas e as instituições eram
previstas como liberais e democráticas.
No ano de 1842, o código do processo criminal de primeira instância foi reformado,
onde a figura do Juiz de Paz foi fortemente solapada com a criação do delegado de polícia,
pela lei 261 de 3 de dezembro de 1841, submetidos a chefes de polícia provinciais, que eram
escolhidos entre desembargadores ou juízes de direito pelo imperador.542
Logo, a cúpula judiciária, comandaria os agentes policiais diretamente543, sem um
magistrado fazendo às vezes de tais.
A população em geral, não tinha mais um magistrado para dirimir suas controvérsias,
mas tinha a polícia para lhe vigiar, e eventualmente atender suas queixas.
O cotidiano, a partir disto, só terá nova fonte de acesso ao judiciário criminal, mais de
cento e cinqüenta anos depois disto.
541
WOLKMER, Antonio Carlos. Op. Cit., p. 96.
PIERANGELLI, José Henrique. Processo Penal, Evolução Histórica e Fontes Legislativas. Bauru: Editora
Jalovi, 1983, p. 117.
543
A submissão do inquérito ao Juízo, no seu tramite, é um resquício desta vassalagem.
542
153
11 ACESSO FORMAL NA REPÚBLICA ATÉ 1950
Quando do advento da república, uma das mais mudanças foi exatamente no acesso ao
judiciário criminal. Primeiro por conta da formatação federalista do exercício do poder, criouse uma política de estados, ou uma república de governadores.
O processo de inversão da distribuição natural do poder exigiria a
ditadura centralizadora, incompatível com a riqueza regional, regionalmente autodeterminada. O apelo às camadas médias, que o jacobinismo esboça e promete, não
se mostrara viável, quer pela fraqueza interna do setor, que peã preponderância,
dentro dele, do tropismo liberal. Nessa encruzilhada de decisões entrecortadas de
sangue e de violência, uma convicção conquistará já todos os espíritos: os Estados
não se deixariam subjugar pelo Rio de Janeiro, pela Rua do Ouvidor ou pelos
quartéis. Os Estados, armados e aguerridos estavam prontos a exercer seu papel –
“sobressalente de resistência invencível contra estas investidas à legalidade
republicana”544.
Com esta formar de estado federado, onde o estado tinha grande poder de dissuasão,
era natural que os sistemas judiciários fossem vinculados aos estados e não ao poder central,
ainda que a constituição de 1891 previsse juízes e tribunais federais545 546.
544
FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder – A Formação do Patronato no Brasil. 3. ed., Rio de Janeiro:
Globo, 2001, p. 639.
545
Organizados em seções correspondentes a cada um dos estados, com um cargo na capital, conforme art. 13 do
Dec.848/1890, portanto anterior a Constituição Republicana – conforme, PIERANGELLI, José Henrique,
Processo Penal, Evolução Histórica e Fontes Legislativas, Bauru: Editora Jalovi, 1983, p. 433.
546
Art 62 - As Justiças dos Estados não podem intervir em questões submetidas aos Tribunais Federais, nem
anular, alterar, ou suspender as suas sentenças ou ordens. E, reciprocamente, a Justiça Federal não pode intervir
em questões submetidas aos Tribunais dos Estados nem anular, alterar ou suspender as decisões ou ordens
destes, excetuados os casos expressamente declarados nesta Constituição.
154
Nos termos da Constituição Republicana, foi deslocada para o Estado Federado a
competência legislativa no que concernia aos direitos processuais, tanto civis com penal, por
conta da competência legislativa.
Contudo, a maior inovação da Constituição de 1891, em clara
influência ao federalismo norte-americano, deve-se à possibilidade dos Estadosmembros poderem legislar sobre matéria processual civil e criminal, face a
competência subsidiária 547
Com isto, os sistemas de acesso estavam dimensionados pelas normas tanto
processuais como de organização judiciária dos estados, que estabelecia não só os
instrumentos processuais como também os órgãos jurisdicionais.
Vários são os exemplos destes meios e modos, como os estabelecidos pelo Código de
Processo Penal do estado do Paraná, Lei Estadual 1916, de 23 de fevereiro de 1920548.
O código paranaense tem algumas características que o tornava peculiar.
A primeira delas é a de ter fugido do modelo geral previsto no Decreto 848 de 11 de
outubro de 1890549, que cria organiza a Justiça Federal, tanto no tange aos juízes de primeiro
grau, chamados de juízes de seção550, e que estabelece também o processo penal e civil no
âmbito desta. Como a competência legislativa do estado era subsidiária, enquanto não
promulgado o código estadual, usava-se este decreto, ou a legislação imperial modificada
como foi o caso de São Paulo até o advento do Código de Processo Penal Brasileiro551, ou do
próprio Distrito Federal, que teve seu Código de Processo Penal promulgado em 1924552.
O segundo ponto é o de estabelecer níveis de justiça criminal, e em posição
expressamente hierarquizada:
Art. 28 – Há conexão de crimes:
[...]
b) pela pluralidade de crimes, por qualquer forma ligados entre si e
attribuidos a uma ou mais pessoas.
547
PAULA, Jonatas Luiz Moreira de. História do Direito Processual Brasileiro. Baueri: Editora Manole,
2002, p. 245.
548
Estado do Paraná, Leis de 1920, Typografia A República, Curytiba-PR, 1921, p.195
549
Texto completo em PIERANGELLI, José Henrique, Processo Penal, Evolução Histórica e Fontes
Legislativas, Editora Jalovi, Bauru-SP, 1983, p. 431 e seguintes.
550
Art. 1º do Dec. 848/1890
551
Ob. Cit. p.164
552
ESPINDOLA FILHO. Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. V. I, Campinas: Editora
Bookseller, Campinas-SP, 2000, p. 285
155
§1º - Nos casos de connexão de delictos é competente para processalos e julgá-los conjunctamente, o Juz ou Tribunal superior competente para
processar e julgar algum dos ditos crimes ou delinqüentes.
§2º - A ordem de superioridade, para esse effeito é a seguinte:
a) O foro de Juízes Municipaes sobre o dos Juízes Distritaes ou da
Polícia;
b) O dos Juízes de Direito sobre o dos Juízes Municipaes,
c) O do Jury sobre o dos Juízes de Direito;;
d) O do Superior Tribunal de Justiça sobre o do Jury;
e) O do Congresso Legislativo sobre o do Superior Tribunal.
Neste caso, o que surge é um avocamento em razão de matéria ou pessoa, para juízos
de hierarquia mais alta.
Apesar disto, o diploma paranaense mantém as ações privadas553, até porque o Código
Penal Republicano de 1890 mantinha as ações privadas, inclusive prevendo o perdão como
ato bilateral554; ou seja, era plenamente possível a conciliação entre as partes, ainda que
necessariamente extrajudicialmente.
Outro aspecto interessante é a previsão do rito sumaríssimo555, onde o que se chama de
instrução e julgamento era prevista e em ato concentrado, com o interrogatório do réu como o
último ato de instrução:
Art. 420 – O processo sumaríssimo obedecerá às normas seguintes:
[...]
§3º - Si o réo comparecer, comparecer no dia referido, a autoridade
lerá em voz alta as peças da acusação, receberá a defesa com ou sem ról de
testemunhas, e fará a inquirição das testemunhas da acusação.
§4º - No mesmo dia ou no immediato serão ouvidas as testemunhas de
defesa e interrogado o réo, juntando-se aos autos os documentos que ele apresentar.
Modelagem de instrução judicial assim apenas em 1995, setenta e cinco anos depois!
Entretanto, por conta da sujeição da polícia ao Juiz, na medida em que era um
magistrado o Chefe de Polícia; o acesso à justiça criminal por parte das pessoas comuns em
seu cotidiano, se dava, não através do judiciário, mas através da polícia.
553
Lei Estadual 1916/20, art. 55 e seguintes.
Art. 77 do Código de 1890.
555
Art. 419 da Lei Estadual 1916/20; Para delitos que reputaríamos de menor potencial ofensivo.
554
156
Este estratagema, criado por conta do afastamento da jurisdição do cotidiano, ainda no
império, fez com que as soluções deste ou daquele conflito envolvendo algum crime,
normalmente de baixa lesividade, tivesse seu deslinde ainda na delegacia de polícia.
Portanto, até o sistema de Juizados Especiais Criminais, não havia um sistema formal
de acesso ao judiciário por parte da vítima, a não ser as ações privadas ou em grau diminuto
nas ações penais públicas condicionadas.
Na Legislação processual que se seguiu, ou seja, na outorga do Código de Processo
Penal vigente, as formas de acesso à justiça criminal continuaram as mesmas, sem
modificações mais importantes. A vítima seja ela quem fosse, apenas daria a noticia crime, e
se fosse a ação pública condicionada, representar, e se privada a ação, demandar.
Mas, na segunda metade do século XX, uma profunda modificação da sociedade
ocidental, em todos os sentidos, forçou a que novas formas e metodologias jurisdicionais
fossem criadas, caso o contrário, a própria atividade jurisdicional estaria seriamente
comprometida.
12 MODERNIDADE NO BRASIL E NO OCIDENTE.
Naturalmente os meios de acesso da justiça criminal evoluíram de forma avassaladora,
em especial no que concernem às formas de tal acesso no mundo ocidental.
Após a revolução industrial-tecnológica ocorrida na Europa após o séc. XVIII a
própria sociedade ocidental modificou-se, e em alguns casos de forma dramática. Veja-se que
a Inglaterra inicia o século XVII como uma sociedade rural, de economia industrial incipiente
e deficitária, para tornar-se século XIX a motriz da economia ocidental.
Veja-se que no campo econômico, apenas para demonstrar o que ocorre na economia
ocidental, a produção de aço, entre os anos de 1870 e 1890, passa de quinhentas mil toneladas
para onze milhões de toneladas, ou seja, um crescimento de vinte e duas vezes.556
556
HOBSBAWM, Eric J., A Era dos Impérios. 9. ed. São Paulo: Editora Terra e Paz, 1875 – 1974, 2005, p.58
157
Além disto, o próprio ocidente expandiu-se, em termos de importância tanto
econômica como política, e o maior exemplo disto são os Estados Unidos da América, que de
uma posição de colônia, passa a protagonista no espaço de menos de 150 anos.
Veja-se que a própria população cresceu de forma impressionante. As Américas só no
século XIX foram de trinta milhões de habitantes para cento e sessenta milhões de habitantes,
e em especial nos Estados Unidos, onde a população foi de sete milhões para oitenta milhões
de habitantes.557
Além destes aspectos, a própria sociedade modificou-se de forma radical, gerando
uma nova estrutura em que a própria importância dos núcleos populacionais, se viu rarefeita
frente ao conceito de nação, e de normas nacionais e soberania. Neste clima de evolução
acelerada, o próprio conceito de acesso à justiça viu-se mudado ciclicamente.
Se analisarmos este conceito, sob a ótica criminal, teremos que no século XVIII, a
discussão era o acesso à defesa, e os modos de exercê-la558.
Veja que o grande problema era que a estrutura judicial, ao menos no que concerne
aos estados organizados, era a proteção de reino e não a proteção dos súditos.559
Com a industrialização, e evolução das sociedades burguesas, novas necessidades,
novas regras de condutas, ideologias e valores sociais acabaram surgindo no ocidente.
Talvez o mais significativo estado nacional que surge, e de certa forma sintetiza estas
sociedades são os Estados Unidos.
Sua sociedade e suas estruturas políticas e suas normas internas, foram discutidas,
estruturadas e gerenciadas por instituições eminentemente liberais.560
Neste modelo de sociedade, na primeira metade do século XIX, TOQUEVILLE
descreve que a possibilidade de acesso pela vítima ao sistema criminal; através das divisões
administrativas judiciárias conhecidas como condados561.
Nestes, usando-se o exemplo do estado de New England, existia um xerife, verdadeiro
agente público de efetivação das decisões judiciais, e de forma reversa, o agente público ao
qual procuravam os indivíduos para terem resolvido suas pendências, ou nos termos atuais,
reclamarem a lesão de um bem jurídico tutelado.
Até este ponto, não há diferenciação maior, mas uma observação de TOQUEVILLE
dá o tom de como seria a arquitetura política dos estados nacionais modernos. O Poder
557
HOBSBAWM, Eric J., Op. Cit, p. 31.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 11. ed., São Paulo: Editora Hemus, 1998, p. 21.
559
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone Editora, 1995, p. 34
560
TOQUEVILLE, Aléxis. Da Democracia Americana. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1998,
p. 48.
561
TOQUEVILLE, Aléxis. Op. Cit. p. 63.
558
158
Executivo seria sempre fracionado, enquanto o legislativo seria sempre concentrado em um
órgão562. Com isto o modelo seria sempre o que privilegia as políticas legislativas,
concentrando suas funções em poucos órgãos, mas pulverizando a sua execução.
Outro aspecto é que com a evolução tecnológica, as relações entre os meios de
produção e a massa trabalhadora transformaram-se de forma contundente, e até mesmo pelo
recrudescimento da disputa entre trabalhadores e empresariado, e o aumento significativo das
movimentações das populações dentro e fora da civilização ocidental.
Entretanto, as duas reações não governamentais mais comuns foram
a emigração e a formação de cooperativa, sendo está última a opção, principalmente,
dos sem-terra e dos proprietários de terras sem bens líquidos, estes sobretudo
camponeses com propriedades potencialmente viáveis. Os anos 1880 conheceram as
taxas mais elevadas de migração ultramarina, no caso dos países de emigração
antiga (salvo o caso excepcional da Irlanda na década seguinte à Grande Fome) (ver
A Era das Revoluções, cap. 8:5), e o início real da emigração em massa de países
como a Itália, a Espanha e a Áustria-Hungria, seguidos pela Rússia e pelos Bálcãs.
Era a válvula de escape que mantinha a pressão social abaixo do ponto de rebelião
ou revolução. Quanto às cooperativas, ofereciam empréstimos modestos aos
pequenos camponeses – por volta de 1908, mais da metade dos agricultores
independentes da Alemanha pertenciam a tais minibancos rurais (cujo pioneiro foi o
Rauffeisen católico, nos anos 1870). Nesse meio tempo, as cooperativas de compra
de suprimentos, de comercialização e de processamento (estas últimas notadamente
no setor de laticínios e, na Dinamarca, de defumação de bacon) se multiplicaram em
vários países. Dez anos depois de 1884, os agricultores franceses aproveitaram uma
lei destinada a legalizar os sindicatos em benefício próprio, quando 400 mil deles
entraram para dois mil desses syndicats. Por volta de 1900, havia 1.600 cooperativas
processando laticínios nos EUA, a maioria delas do meio-oeste, e as cooperativas de
agricultores detinham firmemente o controle da indústria de laticínios da Nova
Zelândia. 563
Estas circunstâncias condicionaram o que seriam as sociedades do século XX, e em
especial as sociedades industrializadas; tanto no que tange às relações político-sociais, como
também, como um verdadeiro derivativo, no surgimento de direitos individuais e supra
individuais.
Durante os anos mil e novecentos, a própria organização da sociedade, dos estados
nacionais e das próprias cidades, modificaram-se de forma dramática, tanto pelo avanço das
tecnologias, como da explosão demográfica das sociedades que aderem ao progresso das
tecnologias recém descobertas ou implementadas564.
562
TOQUEVILLE, Aléxis. Op. Cit. p. 64.
HOBSBAWM, Eric J.. A Era dos Impérios. 9. ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1875 – 1974, 2005, p.6061
564
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal – Uma avaliação de novas
tendências políticos-criminais. IBCCRIM: São Paulo, 2005, p. 25
563
159
Para se ter uma idéia do que isto significou, o Brasil tinha no início da década de vinte
30.635.605 habitantes565, ficando em 169.779.170566 habitantes no censo do ano dois mil, ou
seja, 554% em oitenta anos, o que dá quase 7% ao ano.
Se este aumento demográfico foi impressionante, o crescimento dos bens de consumo
duráveis alcançou níveis inimagináveis. Para se ter um parâmetro de como a evolução
tecnológica impactou as sociedades, e em especial as sociedades urbanas, em 1925, a cidade
de São Paulo tinha 12.970 automóveis567. Em 2007 o número era de 4.009.301 automóveis,
sem contar outros tipos de veículos como caminhões e motocicletas568, ou seja, um aumento
de trezentas vezes em oitenta e dois anos, o que dá uma média aritmética em torno de 376%
ao ano!
Estes números se repetem de forma mais ou menos expressivas nos paises ocidentais e
nos de cultura ocidentalizadas como o Japão e parte do oriente médio.
Obviamente que as demandas criminais iriam aumentar de forma correlata, e em
alguns casos, como nos acidentes de trânsito, os delitos que sequer existiam, surgiram com a
tecnologia.
Com isto, as próprias agências criminais, para usar um termo de ZAFFARONI tiveram
de modificarem-se de forma igualmente dramática, até para darem vazão ao caudal de
problemas e conflitos que seriam, quer queira quer não, chamados a solucionar.
Nesses casos, o deslocamento do conflito está motivado por uma
transferência da responsabilidade à agência judiciária, à qual, por sua maior
vulnerabilidade (e menor poder), é mais fácil atribuir-lhe inoperância, ineficácia,
negligência, corrupção etc.
Os operadores das agências políticas estão melhor treinados do que
os juízes, no que diz respeito à manipulação da opinião pública. Isto lhes permite
repassar conflitos, gerando falsas expectativas de solução no âmbito judiciário. Os
juízes, de sua parte, freqüentemente satisfazem ao seu narcisismo na medida em que,
por lhes serem transferidos graves conflitos sociais, se sentem projetados ao centro
da atenção pública. Deste modo, não percebem que estão carentes de atuais
expectativas, as quais em seguida gerarão frustrações. 569
É sob este aspecto, no âmbito da justiça criminal, é que evoluiu o conceito de acesso à
justiça da vítima que agregado aos direitos coletivos e bens jurídicos difusos, geraram uma
nova classe, e resgataram outras, de vias de acesso.
565
In
<http://www.ibge.com.br/home/estatistica/populacao/censohistorico/1872_1920.shtm>, acesso em
21/07/08
566
In <http://www.ibge.com.br/censo/>, acesso em 21/07/2008
567
In <http://www.automoveldobrasil.com.br/html/historiadoautomovel.htm>; acesso em 21/07/2008
568
In <http://www.ibge.com.br/cidadesat/>, acesso em 21/07/2008
569
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder Judiciário Crise, Acertos e Desacertos. São Paulo: RT, 1995, p.33.
160
Modernamente, os esquemas traçados no século XIX, teórica e normativamente
sustentados até o último quartel do século XX, acabaram por esgotarem-se frente à
judicialização do cotidiano.
Este fenômeno sócio-jurídico nasce exatamente das necessidades do complexo social
que se colocou a partir da década de 1950, e estão calcadas nos avanços que a Revolução
Tecnológica gerou.
Hoje em dia, a demanda judicial cresce de forma frenética, e o Brasil é um exemplo
significativo disto.
Para se dar um exemplo de como o judiciário foi definitivamente assolado pelo
volume de demandas, vejam-se os números levantados pelo Conselho Nacional de Justiça.
Só o estado de São Paulo, no final ano de 2006, tramitavam 69.693.734 de ações570,
apenas no âmbito da justiça estadual, com um acréscimo de inacreditáveis 4.131.114 por
ano571!
Apenas para fins de comparação, no ano de 1922, foram distribuídos no judiciário em
todo o Estado de São Paulo apenas 2740 feitos.572
Neste talante, a própria atuação do magistrado jamais pode ser a mesma que o era no
momento histórico do surgimento do código de processo penal.
O Juiz contemporâneo, não pode mais ficar a reboque dos fatos, como se fizesse dele
inerte e não a jurisdição, fosse ele passivo, e assim definisse a própria imparcialidade.
Talvez, esta crise ôntica como define NALINI, 2008, seja o propulsor de novas
possibilidades e engenhosidades criativas, éticas e funcionais.
Rebeldia é a qualidade ou característica do rebelde. O inconformado pode resignars ou rebelar-se.
[...]
É isso que se pretende do juiz brasileiro. Daquele que sente que a Justiça pode ser
melhor e que não se acomoda. Observador qualificado de uma realidade cada vez
menos compatível com o ideal que ele concebeu do que deva ser justo, ele não pode
perder a capacidade de indignação.573
Por conta disto, novas formas de acesso à justiça em geral, foram sendo criadas com o
tempo, como os “Magistrates574” e o sistema chamado “Small Claims575” na Inglaterra e Pais
570
In <http://serpensp2.cnj.gov.br/justica_numeros_4ed/RELATORIO_JN_2006.pdf>, p. 183, acesso em 22 de
julho de 2008.
571
Idem, p. 187.
572
In <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1180/000120.html>, acesso em 26 de julho de 2008.
573
NALINI, José Renato. A Rebelião da Toga. 2. ed., Campinas: Millenium, 2008, p.299.
574
In <http://www.magistrates-association.org.uk/> acessado em 22 de julho de 2008.
575
In <http://www.hmcourts-service.gov.uk/infoabout/claims/index.htm>, acesso em 22 de julho de 2008
161
de Gales (Her Majesty's Courts Service – a HMCS)576, com competências tanto cíveis como
criminais577; ou o U.S. Small Claims Court System, espalhado por todo o território
americano578, ou ainda os Juízos de Paz e os Juízos de Pequena Instância em Portugal579.
Na Alemanha, o processamento não dá a amplitude de atuação da vítima, mantendo os
esquemas de comunicação de delito e investigação580. No entanto, prevê um procedimento
sumário especial (§§ 407 a 412 do StPO), onde se abrevia o procedimento, mas sem
participação da vítima.
Na Bélgica, a vítima pode ingressar como parte no processo, mantendo o esquema
tradicional de decisão, e tem um status jurídico de pessoa lesada581.
Na França e na Itália a intervenção da vítima, assim como na Bélgica, pode ser
mediante adesão a ação em litisconsórcio ativo facultativo, mas com direcionando-se
fundamentalmente para obter ressarcimento do dano causado.
Na América Latina, em especial na Argentina, existem projetos de mediação e
conciliação em matéria criminal, que estão sendo efetivadas por departamentos judiciais e
pelas províncias582.
Regras e ritos foram sendo criados para solucionarem as demandas das vítimas de
delitos, e tais encontram-se a caminho de serem bem estruturadas em todo o ocidente.
12.1 O Modelo Brasileiro – Judicialização do Cotidiano
O sistema processual penal brasileiro, sempre caminhou de forma espelhada e paralela
aos modelos europeus continentais, e isto tinha sua razão de ser ante a formação acadêmica
.das primeiras faculdades de direito serem eminentemente vinculadas àquela cultura jurídica.
Entretanto, a estrutura criada com o código de 1941, trazia dentro de si, o germe de um
novo modelo processual, em que amalgamado com o texto constitucional de 1988, gerou dois
fatos da mais extremada relevância, como será visto posteriormente.
O código de processo penal nasce da necessidade de uniformizar-se o procedimento
processual penal, tendo em vista, o momento político conhecido como getulismo, que em
576
In <http://www.hmcourts-service.gov.uk/>, acesso em 22 de julho de 2008
Sistema semelhante existe na Austrália, in <http://www.magistratescourt.vic.gov.au>, acesso em 22 julho de
2008.
578
In <http://consumer-law.lawyers.com/U.S.-Small-Claims-Court.html>, acessado em 22 de julho de 2008.
579
In <http://www.stj.pt/nsrepo/geral/cptlp/Portugal/Lei3_99.pdf>, acessado em 22 de julho de 2008.
580
DELMAS-MARTY, Mireille et al. Processos Penais da Europa, Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2005,
p. 33
581
DELMAS-MARTY, Mireille et al. Op. Cit. p. 93
582
DEL VAL, Teresa M., Mediación em Matéria Penal. Buenos Aires: Editorial Ad-Hoc, 2006, p. 95
577
162
muito se afinava com o fascismo italiano, e como tal, impunha uma administração
centralizada e com regras também centralizadas, voltada a repressão penal.
Neste aspecto, a exposição de motivos da lei processual geral, datada de oito de
setembro de mil novecentos e quarenta e um é reveladora de tal escopo, conforme se segue:
II- De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras
do processo penal, num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu
ajustamento ao objetivo de dar maior eficiência e energia da ação repressiva do
Estado contra os delinqüentes. As nossas vigentes leis de processo penal, asseguram
aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas,
um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna,
necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí, um indireto estímulo a
expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do
interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode, continuar a
contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum.O
indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídicopenal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias
ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público
fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu á
elaboração do presente projeto de Código. No seu contexto, não são reproduzidas as
formulas tradicionais de um mal-avisado favorecimento legal aos criminosos. O
processo penal, é aliviado dos excessos de formalismo e joeirado de certos critérios
normativos com que, sob o influxo de um mal-compreendido individualismo ou de
um sentimentalismo mais ou menos equivoco, se transige com a necessidade de uma
rigorosa e expedita aplicação da justiça penal.583
Isto já dá o tom do código de processo, impositivo, cerceador, em fim, de alma
fascista. Mas também esconde dois instrumentos e um procedimento, sob os quais se submete
a moderna forma de acesso à justiça por parte da vítima.
A regra geral é que a vítima de um delito, e isto quando ela é personificada, pois pode
ser difusa, como nos crimes ambientais, onde a vítima pode ser certa, como no caso do artigo
49584 da lei de crimes ambientais, ou não como no caso do delito previsto pelo artigo 60585 da
mesma lei; apenas dê a chamada “notitia criminis”, ou seja, leve ao conhecimento das
agências persecutórias, e seja informante durante as investigações e no decorrer da ação penal,
se houver.
Isto se dá por conta da ação penal ser, de regra, pública incondicionada, ou seja, não se
submete a vontade da parte vítima, pouco importando para ela a possibilidade ou não da
vítima querer ou não a punição do agente. Um exemplo vívido de tais fatos está vinculado aos
583
584
Código de Processo Penal, 2004, p. 6
Art. 49. Destruir, danificar, lesar ou maltratar, por qualquer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros
públicos ou em propriedade privada alheia:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. No crime culposo, a pena é de um a seis meses, ou multa.
585
Art. 60. Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional,
estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais
competentes, ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
163
delitos envolvendo bens jurídicos indisponíveis, como no caso do auxílio ao suicídio, previsto
no art. 122 do Código Penal586. Logo a ação penal é obrigatória. 587
Entretanto, previu o processo penal e o próprio código penal, um subtipo de ação
pública, a condicionada, onde a persecução criminal está fixada na existência de
representação, ou seja, uma mera autorização sem forma prescrita, mas que deve ser objetiva
no sentido de ser clara com relação ao deslinde da persecução contra alguém específico588.
Outro dado importante, é que o prazo para exercer o direito de representação é
decadencial, ou seja, é havido pelo código penal como exercício de direito subjetivo589, e a
contrário senso retratável590. A vítima tem função determinadora no processo criminal.
Se a ação é pública por regra, significa que seu pressuposto lógico, admite exceção.
Primeiramente é de se trazer à baila que, a possibilidade de um direito privado no seio
de um direito público, sempre foi controversa no moderno direito penal e processo penal591.
Esta se fez presente desde a edição do código penal de 1940, chegando alguns tratadistas em
afirmar que a ação penal privada seria mero exercício de mesquinharias vingativas592.
A ação penal pode ser privada, ou seja, com pretensão punitiva e impulsionamento do
feito, efetivado pela própria vítima.
Neste caso, o processo não é uma obrigatoriedade, mas sim uma faculdade, um direito
a ser exercido593, nos casos previstos por norma formal de forma expressa.
Neste tipo de ação penal, os bens jurídicos tutelados são de ordem disponível e o são
sempre, e de natureza a serem de quilate eminentemente subjetivo, ofendendo, como colocava
MONTEQUIEU594, diretamente o indivíduo e indiretamente o estado.
Explicitado sobre as ações penais, veja-se que um dispositivo do código de processo
penal, vinculado à ação penal privada, no rito dos crimes contra a hora:
586
Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio
resulta lesão corporal de natureza grave.
Parágrafo único - A pena é duplicada:
Aumento de pena
I - se o crime é praticado por motivo egoístico;
II - se a vítima é menor ou tem diminuído, por qualquer causa, a capacidade de resistência.
587
JARDIM, Afrânio Silva. Ação Penal Pública – Princípio da Obrigatoriedade. 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, Rio de
Janeiro, 1998, p. 48
588
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Manual de Processo Penal, 6ª ed. Editora Saraiva, São Paulo, 2004, p. 130
589
Art. 103 - Salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o
exerce dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do § 3º do
art. 100 deste Código, do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia
590
Art. 102 - A representação será irretratável depois de oferecida à denúncia.
591
Sempre se levando em conta que o conceito de moderno no direito é algo que tenha menos de um século,
aproximadamente.
592
CARVALHO FILHO, Aloysio et HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. V. IV 5. ed., Rio de
Janeiro: Forense, , 1977, p. 16
593
Daí porque decai.
594
CARVALHO FILHO, Aloysio et HUNGRIA, Nelson. Op. Cit. p. 13.
164
Art. 520. Antes de receber a queixa, o juiz oferecerá às partes
oportunidade para se reconciliarem, fazendo-as comparecer em juízo e ouvindo-as,
separadamente, sem a presença dos seus advogados, não se lavrando termo.
Antes mesmo de a CLT prever em seu texto, ou o processo civil admiti-la, a
conciliação era prevista como meio de solução de um litígio intersubjetivo.
Pois bem, estes eram basicamente os instrumentos em que a vítima de um delito
poderia intervir, em maior ou menor grau.
Na prática, as ações decaiam, ou prescreviam, ante ao então nascente aumento de
ações penais e inquéritos tramitando perante o judiciário.
Nesta esteira o próprio STF, dava caráter de crime material ao estelionato mediante
emissão de cheque sem provisão de fundos595, e considerar, de forma indireta e implícita, mas
aceita por toda a doutrina e jurisprudência, que o pagamento do cheque antes da denúncia leva
ao arquivamento do inquérito.596
Fica claro que a judicialização da vida cotidiana era cada vez mais premente nos
escaninhos dos tribunais, que criavam práticas evasivas para o afogamento que se alastrava.
Prescrições pela pena em perspectiva597, unificações de audiências, e tantas outras medidas
paliativas eram aqui e ali tomadas, mas que não surtiram efeito.
Foi nesta esteira, e na experiência do Juizado de Pequenas Causa598, que a constituição
de 1988, a dita cidadã, estatuiu a existência dos Juizados Especiais, cíveis e criminais599. Esta
previsão vai gerar todo um sistema a partir de meados da década de noventa, que é um
verdadeiro divisor de águas no contexto nacional de acesso a justiça.
Claramente inspirada nos posicionamentos de CAPELLETTI (1988), retoma a Lei
9.099/95, o posicionamento de que a decisão não é necessariamente uma solução, e que
solucionar o conflito e não decidi-lo600 é o escopo da jurisdição.
595
Art. 171 –[ ]
........
VI - emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento.
596
Súmula 554: “O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não
obsta ao prosseguimento da ação penal”.
Data
de
Aprovação:
Sessão
Plenária
de
15/12/1976
–
in
<http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=554.NUME.%20NAO%20S.FLSV.&b
ase=baseSumulas>, acesso em 23 de julho de 2008.
597
RT 669/315
598
LEI Nº 7.244 de 7 de novembro de 1984
599
Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o
julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial
ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação
e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;
600
Como os Juizes de Paz Imperiais e os Juizes de Vintena da Colônia tão-bem sabiam.
165
Na realidade, até mesmo penalistas do calibre de ROXIN, estabelece de forma clara
que é possível uma solução de um caso criminal sem a necessidade de impor pena ao réu, ou
mesmo poder ser um ônus com a concordância do acusado.
Ao lado das penas e medidas de segurança, devem surgir bom futuro
direito penal sanções, que não se poderá chamar de pena (strafähnlich), pois se , de
um lado inflige algo ao autor, por outro carecem do caráter coativo da pena. Arei
referencia a duas delas: (a) o trabalho de utilidade comum (gemeinnützige Arbeit) e
(b) a reparação voluntária (freiwillige Weiedergutmachung). Pontos de apoio para
uma oi outra destas sanções encontram-se já hoje em quese todos os códigos penais
modernos; mas seu grande futuro tem as duas ainda diante de si.601
No âmbito criminal, a lei dos juizados especiais, criou uma verdadeira agência602 de
solução criminal, o Juizado Especial Criminal – JECrim, inicialmente com competência
restrita, mas alargada em 2001, através de construção pretoriana, pela interpretação da Lei
10.259/01, e posteriormente normatizada pela Lei
11.313/06, sendo aplicável a todo o
delito603 com pena privativa de liberdade de até dois anos.
No esquema procedimental criado, o delito será julgado, como exceção e não como
regra, pois tanto a metodologia do processo como os princípios informativos do JECrim604,
levam, preferencialmente, a uma solução consensual do conflito.
A Lei 9.099/95 representou verdadeira revolução no sistema
brasileiro, libertando a justiça para o consenso em matéria penal, sendo, em virtude
disso, aplaudida pela grande maioria dos estudiosos e dos operadores do direito.
Insere o Brasil entre os países que adotam o modelo consensual de justiça criminal,
na linha que vinha sendo estimulada pela doutrina.605
Além disto, o próprio processamento estatuído para o juizado, deixa de lado o conceito
lide, que é inexistente no processo penal propriamente dito606, e se aproximando ao conceito
de caso criminal607 .
Este conceito leva ao “derretimento” do conceito lide processual penal, na medida em
que o conflito perde importância dentro do processo, ao menos como legitimador da
persecução, para ganhar valoração como objeto a ser analisado e solucionado. Nestes termos
HASSEMER, 2005, dá, talvez, a mais precisa definição da função judicial moderna:
601
ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.22.
Nos termos em que ZAFFARONI preconiza.
603
Exceto os militares, conforme art. 90-A da Lei. 9.099/95.
604
Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade,
economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima
e a aplicação de pena não privativa de liberdade.
605
FERNADES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 2. ed., São Paulo: RT, 2000, p. 197.
606
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A Lide e o Conteúdo do Processo Penal, Curitiba: Juruá Ltda,
1989, p. 34
607
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 134
602
166
Os juristas cautelosos dizem que a tarefa do jurista consiste em decidir
o caso. Não se pode imaginar uma solução para o caso com os meios limitados do
Direito Penal. Por muito simpática que seja esta atitude de modéstia, não deixa de
ser falsa. Deve-se apenas indagar outra vez, o por quê dos juristas terem de produzir
e decidir os casos. A solução do caso consiste no fato a partir do qual a produção e a
decisão do caso recebe o seu sentido e obtém a sua justificação. Todavia, poderia
ocorrer que se aproximassem melhor do mundo se os juristas se ocupassem com
algo diferente do que com a produção e decisão de seus casos. Eles precisam
oferecer mais do que o cumprimento do dever, o cumprimento do dever precisa ter
um sentido positivo, seja qual for, para o mundo exterior aos juristas.608
Assim, no modelo posto em prática a partir da segunda metade dos anos noventa,
estabelece que ocorrido o fato, a vítima tem acesso imediato à autoridade persecutória, com a
formalização da noticia crime, que aqui é reduzida a termo609, com as circunstâncias em que o
mesmo aconteceu, e a versão daquele contra quem é noticiado o fato.
Enfim, formaliza-se o termo inicial do caso. Mas o que esta metodologia leva a vítima
a ter voz ativa no feito é que se, os fatos trazerem a luz um delito cuja ação penal
correspondente seja pública condicionada610 ou privada é611 designada audiência de
conciliação entre as partes612.
Portanto, a audiência de conciliação613 se posta como condição objetiva de
procedibilidade, onde, na fase preliminar614 é a vitima que decide e define uma possível
608
HASSEMER, Wilfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. Tradução da 2ª edição alemã, Porto
Alegre: Sergio Fabris Editor, 2005, p. 365
609
Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o
encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos
exames periciais necessários.
610
O FONAJE recentemente editou enunciado admitindo conciliação em ações penais públicas incondicionadas
- Enunciado Criminal nº. 99 - Nas infrações penais em que haja vítima determinada, em caso de desinteresse
desta ou de composição civil, deixa de existir justa causa para ação penal. In <http://www.fonaje.org.br>,
acessado em 24 de julho de 2008.
611
No mais das vezes pela própria autoridade policial.
612
Art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e,
se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da
composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade.
Art. 73. A conciliação será conduzida pelo Juiz ou por conciliador sob sua orientação.
Parágrafo único. Os conciliadores são auxiliares da Justiça, recrutados, na forma da lei local, preferentemente
entre bacharéis em Direito, excluídos os que exerçam funções na administração da Justiça Criminal.
Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença
irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente.
Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à
representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação.
Art. 75. Não obtida a composição dos danos civis, será dada imediatamente ao ofendido a oportunidade de
exercer o direito de representação verbal, que será reduzida a termo.
Parágrafo único. O não oferecimento da representação na audiência preliminar não implica decadência do
direito, que poderá ser exercido no prazo previsto em lei.
613
Como já foi dito antes, isto já era possível no procedimento sumário de crimes contra a honra, mas agora é
possível sempre.
614
Verdadeiramente uma fase judicialiforme, posto que não haja acusação formal, o que leva a não haver
processo propriamente dito.
167
solução do caso criminal, na medida em que ela pode desistir, transigir, intransigir, ou mesmo
deixar o feito suspenso até o fim do lapso decadencial; enfim, ser protagonista da solução.
A que pese opinião diversa isolada de KARAN, 2004, que afirma ser a conciliação
fase processual e a sentença que a homologa ser de natureza condenatória615
616
, esta
possibilidade de ser a vítima um “player”, um ator primordial na solução de seus conflitos617,
o que se adequa aos conceitos de exercícios de direitos, conforme BOBBIO, 1992 preleciona:
Também os direitos do homem são, indubitavelmente, um fenômeno
social. Ou, pelo menos, são também um fenômeno social: e, entre os vários pontos
de vista de onde podem ser examinados (filosófico, jurídico, econômico, etc.), há
lugar para o sociológico, precisamente, o da sociologia jurídica.
Essa multiplicação (ia dizendo proliferação) ocorreu de três modos: a)
porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b)
porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do
homem; c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, o
homem abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas
maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente, etc. Em substância: mais
bens, mais sujeitos, mais status do indivíduo ponto. É supérfluo notar que, entre
esses três processos, existem relações de interdependência: o reconhecimento de
novos direitos de (onde “de” indica o sujeito”) implica quase sempre o aumento de
direitos a (onde “a” indica o objeto). Ainda mais supérfluo é observar, o que importa
para nossos fins, que todas as três causas dessa multiplicação cada vez mais
acelerada dos direitos do homem revelam, de modo cada vez mais evidente e
explícito, a necessidade de fazer referencia a um contexto social determinado618.
Com isto temos uma atuação concreta dos personagens, sujeitos de direitos, acessando
as vias que lhes são abertas para, se não para recompor, mas para dar uma solução negociada,
discutida e concordada, ao problema gerado pela lesão sofrida.619
Outro aspecto a ser levado em consideração, é que a consensualidade leva a certo
desmistificar alguns conceitos que permeiam o inconsciente do coletivo jurídico. O mais
afetado é a que a imposição de uma punição por uma sentença indiscutida, leva a prevenção
tanto geral como especial620; pois as soluções pactuadas tendem a dar resultados mais do que
satisfatórios, inclusive no que concerne aos números de reincidência.
615
KARAN, Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais – A concretização antecipada do poder de punir. São
Paulo: RT, 2004, p. 108.
616
Fica difícil sustentar esta posição, quando as partes resolvem por um acordo de posturas, como, por exemplo,
não mais usar sons em volume elevado, durante a noite!
617
Sim, pois o conflito é vinculado a vítima também, até mesmo por ordem lógica.
618
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, , 1992, p. 68.
619
BACELLAR, Roberto Portugal. Juizados Especiais – Nova Mediação Paraprocessual. São Paulo: RT, 2004,
p.169
620
PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa do. A ponderação de Interesses em matéria de prova no processo
penal. São Paulo: IBCCRIM São Paulo, 2006, p. 88.
168
O conflito não é, para este modelo teórico, uma necessidade para validar a ação do
sistema em sua fase inicial, mas sim uma possibilidade a ser verificada em sua ontologia e
axiologia.621
Um ponto a mais a ser analisado é a impressionante busca pelas personagens de
crimes de baixa lesividade, ao sistema de juizados especiais.
Apenas para se ter uma idéia, o JECrim do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP,
no mês de abril do ano de dois mil e oito, tinha em seu acervo (tramitando), três mil,
novecentos e sessenta e nove casos; sendo-lhe encaminhado quase oitocentos novos casos no
mês, além de ter arquivado definitivamente seiscentos e quarenta e um casos622. No mesmo
período, o 2º JECrim da Comarca de Porto Alegre/RS, contabilizava um mil, oitocentos e
dezessete casos no acervo, com distribuição a ele de setecentos em vinte e três casos no mês e
com o arquivamento definitivo de duzentos e noventa e dois processos623.
A prestação jurisdicional, não impositiva, faz com que unidades judiciais céleres dê ao
caso uma, ou várias, soluções aos casos apresentados de forma a gerar coeficientes de
soluções, não alcançadas até o advento do sistema.
Nesta nova variável, coloca-se em jogo, não a função do sistema penal, se reprime o
crime, ou ressocializa o réu, mas sim se o sistema penal condenatório e punitivo é necessário
naquele caso624. Aliás, seria fantasioso achar-se que antes do advento da lei, os problemas
interpessoais eram resolvidos pelo apopléctico direito de culpa forma e julgada.625
Por fim, apenas para dar um arcabouço de razoável formatação lógica, veja-se que em
qualquer das hipóteses previstas nas grandes linhas de raciocínio penal moderno626, o sistema
existiria para pacificar a sociedade e controlar e reduzir as ações de “leso-jus”, a possibilidade
de efetivá-la, antes mesmo do início da persecução, é no mínimo um formato econômico no
aspecto de meios e de desgastes pessoais, além de evitar-se ao máximo a fricção dos
elementos sociais, mantendo-se por tempo desnecessário um embate em que a vítima nem
mesmo participava.
621
Ou seja, se ela realmente existe e se existir se é relevante para os atores.
Dados do CNJ, in
<http://serpensp2.cnj.gov.br/justica_aberta/?d=consulta&a=consulta&f=formRespostas&cod_substituto=16437>
acesso em 24 de julho de 2008.
623
Dados do CNJ, in
<http://serpensp2.cnj.gov.br/justica_aberta/?d=consulta&a=consulta&f=formRespostas&cod_substituto=7764>,
acesso em 24 de julho de 2008.
624
Termo aqui usado como sucedâneo do “case” americano.
625
Há quem diga que nem mesmo 1% dos casos chega ao sistema hoje, o que dirá antes.
626
Kantianos e seu “dever-ser” de um lado, ou os Positivistas e seu “ser” de outro, com todas as vertentes e
dialetos penais criados nos últimos 200 anos.
622
169
13 CONCLUSÃO
Como pode ser visto os meios de acesso à justiça criminal, na realidade, sempre
comportou uma diarquia no sentido de que sempre houve instrumentos e estruturas
organizacionais, para receber, processar e dar uma solução tanto a delitos de graves
repercussões, como àqueles que vinculavam apenas a disputas intersubjetivas.
Na realidade, o próprio conceito de crime, e dentro dele o conceito de bem jurídico,
bem como o de acesso à justiça, estão intimamente ligados, inclusive quando se tem uma
perspectiva histórica mais abrangente.
Veja-se que desde as sociedades mais primitivas até o momento atual das sociedades
urbanas e tecnologicamente evoluídas, o conceito de acesso à justiça criminal, por parte da
vítima e da própria sociedade, salvo em fugidios momentos, esteve ligado aos bens jurídicos
tutelados.
Se o bem jurídico era de importância secundária, ou, de interesse apenas
intersubjetivo, os meios de acesso eram via de regra localizados e de instrumentalização
rápida ou por vezes consensualizadas, como por exemplo, os Juízes Ordinários, das cortes
senhoriais ou as soluções do “Paeter” família.
170
No entanto, se o bem jurídico era de alto valor intrínseco, ou se a lesão causada a
refletia em toda a sociedade, os meios e modos de julgamento e solução do caso eram
diferentes, de regra mais parcimoniosos e com penas mais agudas; como nos crimes contra a
cidade em Roma ou na Grécia, ou nos delitos de lesa majestade das ordenações do reino.
Outra característica interessante e que se mantém, é que acessar a justiça criminal, era
e é mais que uma atitude pessoal, é um exercício político, uma afirmação de que a justiça
enquanto instituição é voltada para ela sociedade, e a serviço dela.
Não existe na verdade a atitude parnasiana de ser o sistema criminal, de ser ele voltado
para si mesmo, ele é parte dos sistemas de coerção e estabilização do tecido social, e atua não
só em esferas ou sistemas unificados, mas também em sistemas com nivelamentos tanto de
meios de acesso, como de resposta aos fatos a eles apresentados.
Não só o sistema de Juizados Especiais Criminais no Brasil, mas os “Magistrates” no
sistema judicial britânico, os “Small Claims” nos Estados Unidos; deram vazão aos casos de
lesões de direitos por via distinta dos crimes mais graves, e ainda criaram mecanismos de
inserção do cotidiano em esferas capazes de dar soluções menos agressivas, e menos
conflitivas, criando respostas ponderadas e aliviando a pressão sobre os componentes do
tecido social.
Isto é pacificar a sociedade, pois, a postura de que o sistema penal tem apenas a função
repressora, é de uma miopia extrema e cria conflitos absolutamente indesejáveis, como por
exemplo, um conflito, ou onde o bem jurídico é de baixa relevância, até mesmo para a vítima
– como no caso da ameaça entre vizinhos – onde condenar ou absolver não levam, nem de
longe a uma solução do conflito.
De outro lado, um dos fatos propulsores do desenvolvimento dos meios de acesso à
justiça, e em especial, a justiça criminal, é a própria evolução quantitativa da sociedade e de
seus meios de vida.
Enquanto as sociedades são primitivas, no sentido de que sua estrutura organizacional
é pequena e pouco sofisticada, os meios de acesso são diretos e personificados em um ou
poucos personagens.
Na medida em que vão se sofisticando, os meios de acesso começam a evoluir em dois
sentidos. Um deles para decidir causas onde a lesão ou o bem lesado é de grande valia ou
repercussão – o Tribunal dos Heliastas na Grécia ou os “duunviros” da Roma arcaica. Outros
meios eram ligados às questões do cotidiano, do dia a dia, das pequenas infrações ou conflitos
interpessoais – como a postura do “Paeter” família ou dos delitos privados em Roma; e as
cortes locais durante a idade média européia.
171
Com o passar da história, as sociedades foram crescendo de forma exponencial
elevando os níveis de tensão, de forma a impor que os estados regulassem as possibilidades e
meios de intervenção junto à população de maneira a diminuir aqueles níveis.
Daí o motivo de o número de casos criminais terem aumentado de forma
impressionante – e sem possibilidades de diminuição – a ponto de no Estado de São Paulo,
existir apenas na justiça estadual, mais processos judiciais do que habitantes.
Por fim, o próprio papel da vítima – ainda que esta seja difusa – que tem relevância
parcial no processo penal tradicional – e arcaico – mas que se encontra reativada em sua
participação ativa nos casos em que são levados aos novos juízos de solução rápida da causa –
JECRIM no Brasil atual.
Além disto, e apenas para encerrar, na realidade, nua e crua, o sistema criminal só
entra em ação na medida em que a vítima seja ela quem for, assim o quiser, pois, se for
furtado um bem, a persecução, na verdade dos fatos, só começa quando alguém alerta a
polícia.
172
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