Texto convite à filosofia CHAUI, Marilena: Convite à filosofia. Ed. Atila: SP: 1995 A atitude científica A ciência na Historia As ciências da Natureza As ciências humanas O ideal científico e a razão instrumental A atitude cientifica O senso comum O sol é menor do que a Terra. Quem duvidará disso se, diariamente, vemos um pequeno círculo avermelhado percorrer o céu, indo de leste para oeste? O sol se move em torno da Terra que permanece imóvel. Quem duvidará disso, se diariamente vemos o sol nascer, percorrer o céu e se pôr? A aurora não é o seu começo e o crepúsculo, seu fim? As cores existem em si mesmas. Quem duvidaria disso, se passamos à vida vendo rosas vermelhas, amarelas e brancas, o azul do céu, o verde das arvores, o alaranjado da laranja e da tangerina? Cada gênero e espécie de animal já surgiram tais como os conhecemos. Alguém poderia imaginar um peixe tomar-se réptil ou um pássaro? Para os que são religiosos, os livros sagrados não ensinam que a divindade criou de uma só vez todos os animais, num só dia? A família é uma realidade natural criada pela natureza para garantir a sobrevivência humana e para atender à afetividade natural dos humanos, que sentem à necessidade de viver juntos. Quem duvidará disso, se vemos, no mundo inteiro no passado e no presente, a família existindo naturalmente e sendo a célula primeira da sociedade? A raça é uma realidade natural ou biológica produzida pela diferença dos climas, da alimentação, da geografia e da reprodução sexual. Quem duvidará disso, se vemos que os africanos são negros, os asiáticos são amarelos de olhos puxados, os índios são vermelhos os europeus brancos? Se formos religiosos, saberemos que os negros descendem de Caim, marcado por Deus, e de Cam, o filho desobediente de Noé. Certeza como essas formam nossa vida e o senso comum de nossa sociedade, transmitido de geração em geração, e, muitas vezes, transformando-se em crença religiosa, em doutrina inquestionável. A astronomia, porém, demonstra que o sol é muitas vezes maior do que a Terra e, desde Copérnico, que é a Terra que se move em torno dele. A física óptica demonstra que as cores são ondas luminosas de comprimentos diferentes, obtidas pela refração e reflexão, ou decomposição, da luz branca. A biologia demonstra que os gêneros e as espécies de animais se formaram lentamente, no curso de milhões de anos, a partir de modificações de microorganismos extremamente simples. Historiadores e antropólogos mostram que o que entendemos por família (pai, mãe, filhos; esposa, marido, irmãos) é uma instituição social recentíssima - data do século XV - e própria da Europa ocidental, não existindo na Antigüidade, nem nas sociedades africanas, asiáticas e americanas précolombianos. Mostram também que não é um fato natural, mas uma criação sociocultural, exigida por condições históricas determinadas. Sociólogos e antropólogos mostram que a idéia de raça também é recente - data do século XVIII -, sendo usada por pensadores que procuravam uma explicação para as diferenças físicas e culturais entre os europeus e os povos conhecidos a partir do século XIV, com as viagens de Marco Pólo, e do século XV, com as grandes navegações e as descobertas de continentes ultramarinos , Ao que parece, há uma grande diferença entre nossas certezas cotidianas e o conhecimento científico. Como e por que ela existe? Características do senso comum Um breve exame de nossos saberes cotidianos e do senso comum de nossa sociedade revela que possuem algumas características que lhes são próprias: São subjetivos, isto é, exprimem sentimento e opiniões individuais e de grupos, variando de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições em que vivemos. Assim, por exemplo, se eu for artista, verei a beleza da árvore; se eu for marceneiro, a qualidade da madeira; se estiver passeando sob o sol, a sombra para descansar; se for bóia-fria, os frutos que devo colher para ganhar o meu dia. Se eu for hindu, uma vaca será sagrada para mim; se for dona de um frigorífico, estarei interessada na qualidade e na quantidade de carne que poderei vender; São qualitativos, isto é, as coisas são julgadas por nós como grandes ou pequenas, doces ou azedas, pesadas ou leves, novas ou velhas, belas ou feias, quentes ou frias, úteis ou inúteis, desejáveis ou indesejáveis, coloridas ou sem cor, com sabor, odor, próximas ou distantes, etc.; São heterogêneos isto é, referem-se a fatos que julgamos diferentes, porque os percebemos como diversos entre si. Por exemplo, um corpo que cai e uma pena que flutua no ar são acontecimentos diferentes sonhar com água é diferente de sonhar com uma escada, etc.; São individualizadores por serem qualitativos e heterogêneos, isto é, cada coisa ou cada fato nos aparece como um indivíduo ou como um ser autônomo: à seda é macia, a pedra é rugosa, o algodão é áspero, o mel é doce, o fogo é quente, o mármore é frio, a madeira é dura, etc.; Mas também são generalizadores, pois tendem a reunir numa só opinião ou numa só idéia coisas e fatos julgados semelhantes: falamos dos animais, das plantas, dos seres humanos, dos astros, dos gatos, das mulheres, das crianças, das esculturas, das pinturas, das bebidas, dos remédios, etc.; Em decorrência das generalizações, tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos: "onde há fumaça, há fogo"; "quem tudo quer tudo perde"; "dize me com quem andas e te direi quem és"; a posição dos astros determina o destino das pessoas; mulher menstruada não deve tomar banho frio; ingerir sal quando se tem tontura é bom para a pressão; mulher assanhada quer ser estuprada; menino de rua é delinqüente, etc.; Não se surpreendem e nem se admiram com a regularidade, constância, repetição e diferença das coisas, mas, ao contrário, a admiração e o espanto se dirigem para o que é imaginado como único, extraordinário, maravilhoso ou miraculoso. Justamente por isso, em nossa sociedade, a propaganda e a moda estão sempre inventando o “extraordinário”, o "nunca visto"; Pelo mesmo motivo e não por compreenderem o que seja investigação científica, tendem a identificá-la com a magia, considerando que ambas lidam com o misterioso, o oculto, o incompreensível. Essa imagem da ciência como magia aparece, por exemplo, no cinema, quando os filmes mostram os laboratórios científicos repletos de objetos incompreensíveis, com luzes que acendem e apagam, tubos de onde saem fumaças coloridas, exatamente como são mostradas as cavernas ocultas dos magos. Essa mesma identificação entre ciência e magia aparece num programa da televisão brasileira, o Fantástico, que, como o nome indica, mostra aos telespectadores resultados científicos como se fossem espantosa obra de magia, assim como exibem magos oculistas como se fossem cientistas; Costumam projetar nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido. Assim durante a Idade Média, as pessoas viam o demônio em toda a parte e, hoje, enxergam discos voadores no espaço; Por serem subjetivos, generalizadores, expressões de sentimentos de medo e angústia, e de incompreensão quanto ao trabalho científico, nossas certezas cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam-se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos. A atitude cientifica O que distingue a atitude científica da atitude costumeira ou do senso comum? Antes de mais nada, a ciência desconfia da veracidade de nossas certezas, de nossa adesão imediata às coisas, da ausência de crítica e da falta de curiosidade. Por isso, ali onde vemos coisas, fatos e acontecimentos, a atitude cientifica vê problemas e obstáculos, aparências que precisam ser explicadas e, em certos casos, afastadas. Sob quase todos os aspectos, podemos dizer que o conhecimento científico opõe-se ponto por ponto às características do senso comum: É objetivo, isto é, procura as estruturas universais e necessárias das coisas investigadas; É quantitativo, isto é, busca medidas, padrões, critérios de comparação e de avaliação para coisas que parecem ser diferentes. Assim, por exemplo, as diferenças de cor são explicadas por diferenças de um mesmo padrão ou critério de medida, o comprimento das ondas luminosas; as diferenças de intensidade dos sons, pelo comprimento das ondas sonoras; as diferenças de tamanho, pelas diferenças de perspectiva e de ângulos de visão, etc. É homogêneo, isto é, busca as leis gerais de funcionamento dos fenômenos, que são as mesmas para fatos que nos parecem diferentes. Por exemplo, a lei universal da gravitação demonstra que a queda de uma pedra e a flutuação de uma pluma obedecem à mesma lei de atração e repulsão no interior do campo gravitacional; a estrela da manhã e a estrela da tarde são o mesmo planeta, Vênus, visto em posições diferentes com relação ao sol, em decorrência do movimento da Terra; sonhar com água e com uma escada é ter o mesmo tipo de sonho, qual seja, a realização dos desejos sexuais reprimidos, etc.; É generalizador, pois reúne individualidades, percebidas como diferentes, sob as mesmas leis, os mesmos padrões ou critérios de medida, mostrando que possuem a mesma estrutura. Assim, por exemplo, a química mostra enorme variedade de corpos se reduz a um numero limitado de corpos simples que se combinam de maneiras variadas, de modo que o número de elementos é infinitamente menor do que a variedade empírica dos compostos. São diferenciadores, pois não reúnem nem generalizam por semelhanças aparentes, mas distinguem os que parecem iguais desde que obedeçam as estruturas diferentes. Lembremos aqui um exemplo que usamos no capitulo sobre a linguagem, quando mostramos que a palavra queijo parece ser a mesma coisa que a palavra inglesa cheese e a palavra francesa fromage, quando, na realidade, são muito diferentes, porque se referem a estruturas alimentares diferentes. Só estabelecem relações causais depois de investigar a natureza ou estrutura do fato estudado e suas relações com outros semelhantes ou diferentes. Assim, por exemplo, um corpo não cai porque é pesado, mas o peso de um corpo depende do campo de gravitação onde se encontra - é por isso que, nas naves espaciais onde a gravidade e igual a zero, todos os corpos flutuam, independentemente do peso ou do tamanho; um corpo tem uma certa cor não porque é colorido, mas porque dependendo de sua composição química e física, reflete a luz de uma determinada maneira,etc. Surpreende-se com a regularidade, a constância, a freqüência, a repetição e a diferença das coisas e procura mostrar que o maravilhoso, o extraordinário ou o “milagroso“ e um caso particular do que é regular, normal, freqüente. Um eclipse, um terremoto, um furacão, embora excepcionais, obedecem às leis da física. Procura, assim, apresentar explicações racionais, claras, simples e verdadeiras para os fatos, opondo-se ao espetacular, ao mágico e ao fantástico. Distingue-se da magia. A magia admite uma participação ou simpatia secreta entre coisas diferentes, que agem umas sobre as outras por meio de qualidades ocultas e considera o psiquismo humano uma força capaz de ligarse a psiquismos superiores (planetários, astrais, angélicos, demoníacos) para provocar efeitos inesperados nas coisas e nas pessoas. A atitude cientifica ao contrário, opera um desencadeamento ou desenfeitiçamento do mundo, mostrando que nele não agem forças secretas, mas causas e relações racionais que podem ser conhecidas e que tais conhecimentos podem ser transmitidos a todos; Afirma que, pelo conhecimento, o homem pode libertar-se do medo e das superstições, deixando de projetá-los no mundo e nos outros; Procura renovar-se e modificar-se continuamente, evitando a transformação das teorias em doutrinas e destas, em preconceitos sociais. O fato cientifico resulta de um trabalho paciente e lento de investigação e de pesquisa racional, aberto a mudanças, não sendo nem um mistério incompreensível nem uma doutrina geral sobre o mundo. Os fatos ou objetos científicos não dados empíricos espontâneos de nossa experiência cotidiana, mas são construídos pelo trabalho da investigação cientifica. Esta é um conjunto de atividades intelectuais, experimentais e técnicas, realizadas com base em métodos que permitem e garantem: Separar os elementos subjetivos e objetivos de um fenômeno; Construir o fenômeno como um objeto do conhecimento, controlável verificável, interpretável e capaz de ser retificado ou corrigido por novas elaborações. Demonstrar e provar os resultados obtidos durante a investigação graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados; a demonstração deve ser feita não só para verificar a validade dos resultados obtidos, mas também para prever racionalmente novos fatos como efeitos dos já estudados; Relacionar com outros fatos um fato isolado integrando-o numa explicação racional unificada, pois somente essa integração transforma o fenômeno em objeto científico, isto é, em fato explicado por uma teoria; Formular uma teoria geral sobre o conjunto dos fenômenos observados e dos fatos investigados, isto é, formular um conjunto sistemático de conceitos que expliquem e interpretem causas e os efeitos, as relações de dependência, identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado. Delimitar ou definir os fatos a investigar, separando-os de outros semelhantes ou diferentes; estabelecer os procedimentos metodológicos para observação, experimentação e verificação dos fatos; construir instrumentos técnicos e condições de laboratório específicas para a pesquisa; elaborar um conjunto sistemático de conceitos que formem a teoria geral dos fenômenos estudados, que controlem e guiem o andamento da pesquisa, alem de ampliála com novas investigações e permitam a previsão de fatos novos a partir dos já conhecidos: esses são os pré-requisitos para a constituição de um ciência e as exigências da própria ciência. A ciência distingue-se do senso comum porque este é uma opinião baseada em hábitos, preconceitos, tradições cristalizadas, enquanto a primeira baseia-se em pesquisas, investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade. A ciência é conhecimento que resulta de um trabalho racional. O que é uma teoria científica? É um sistema ordenado e coerente de proposições ou enunciados baseados em um pequeno numero de princípios, cuja finalidade é descrever, explicar e prever do modo mais completo possível um conjunto de fenômenos, oferecendo suas leis necessárias, A teoria cientifica permite que uma multiplicidade empírica de fatos aparentemente muito diferentes sejam compreendidos como semelhantes e submetidos às mesmas leis; e vice-versa, permite conipreender por que fatos aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes. A ciência na História As três principais concepções de ciência Historicamente, três têm sido as principais concepções de ciência ou de ideais de cientificidade: o racionalista, cujo modelo de objetividade é a matemática; o empirista, que toma o modelo de objetividade da medicina grega e da história natural do século XVII; e o construtivista, cujo modelo de objetividade advém da idéia de razão como conhecimento aproximativo. A concepção racionalista - que se estende dos gregos até o final do século XVII - afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo como a matemática, portanto, capaz de provar a verdade necessária e universal de seus enunciados e resultados, sem deixar qualquer dúvida possível. Uma ciência é a unidade sistemática de axiomas, postulados e definições, que determinam à natureza e às propriedades de seu objeto, e de demonstrações, que provam as relações de casualidade que regem o objeto investigado. O objeto cientifico é uma representação intelectual universal, necessária e verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria realidade, porque esta é racional e inteligível em si mesma. As experiências cientificas são realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto, pois este é conhecido exclusivamente pelo pensamento. O objeto cientifico é matemático, porque à realidade possui uma estrutura matemática, ou como disse Galileu, "o grande livro da natureza esta escrito em caracteres matemáticos". A concepção empirista - que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do século XIX - afirma que a ciência é alma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem estabelecer induções e que, ao serem completadas, oferecem a definição do objeto, suas propriedades e suas leis de funcionamento. A teoria científica resulta das observações e dos experimentos, de modo que a experiência não tem simplesmente o papel de verificar e confirmar conceitos, mas tem a função de produzi-los. Eis por que, nesta concepção, sempre houve grande cuidado para estabelecer métodos experimentais rigorosos, pois deles dependia a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada. Essas pressuposto, duas concepções embora o de realizassem cientificidade de possuíam maneiras o mesmo diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como esta é em si mesma. A ciência era uma espécie de raios-X da realidade. A concepção racionalista era hipotéticodedutiva, isto é, definia o objeto e suas leis e nisso deduzia propriedades, efeitos posteriores, previsões. A concepção empirista era hipotético-indutiva, isto é, apresentava suposições sobre o objeto, realizava observações e experimentos e chegava à definição dos fatos, às suas leis, suas propriedades, seus efeitos posteriores e a previsões. A concepção construtivista - iniciada em nosso século - considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade e não uma representação da própria realidade. O cientista combina dois procedimentos – um vindo do racionalismo, e outro, vindo do empirismo - e a eles acrescenta um terceiro, vindo da idéia de conhecimento aproximativo e corrigível. Como o racionalista, o cientista construtivista exige que o método lhe permita e lhe garanta estabelecer axiomas, postulados, definições e deduções sobre o objeto científico. Como o empirista, o construtivista exige que a experimentação guie e modifique axiomas, postulados, definições e demonstrações. No entanto, porque considera o objeto uma construção lógicointelectual e uma construção experimental feita em laboratório, o cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade em si mesma, mas ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade, explicando os fenômenos observados. Não espera, portanto apresentar uma verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida, modificada, abandonada por outra mais adequada aos fenômenos. São três as exigências de seu ideal de cientificidade: 1. que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios que orientam a teoria; 2. que os modelos dos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam construídos com base na observação e na experimentação; 3. que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos, mas também alterar os próprios princípios da teoria corrigindo-a. Diferenças entre a ciência antiga e a moderna. Quando apresentamos os ideais de cientificidade, dissemos que tanto o ideal racionalista quanto o empirista se iniciaram com os gregos. Isso, porém, não significa que a concepção antiga e a moderna (século XVII) de ciência sejam idênticas. Tomemos um exemplo que nos ajude a perceber algumas das diferenças entre antigos e modernos. Aristóteles escreveu uma Física. O objeto físico ou natural, diz Aristóteles, possui duas características principais: em primeiro lugar, existe e opera independentemente da presença, da vontade e da ação humanas; em segundo lugar, é um ser em movimento, isto é, em devir, sofrendo alterações qualitativas, quantitativas e locais; nasce, vive e morre ou desaparece. A Física estuda, portanto, os seres naturais submetidos à mudança. O mundo escreve Aristóteles, divide-se em duas grandes regiões naturais, cuja diferença é dada pelo tipo de substância, de matéria e de forma dos seres de cada uma delas. A região celeste, formada de Sete Céus ou sete Esferas onde estão os astros, tem como substância o éter, matéria sutil e diáfana, forma universal que não sofre mudanças qualitativas quantitativas, mas apenas a mudança ou movimento local, nem realizando eternamente o mais perfeito dos movimentos, o circular. A segunda região é a sublunar ou terrestre, nosso mundo, constituída por quatro substâncias ou elementos – terra, água, ar, fogo -, de cujas combinações surgem todos os seres. São substancias fortemente materiais e, portanto (como vimos no estudo da metafísica aristotélica), fortemente potenciais ou virtuais, transformando-se sem cessar. A região sublunar é o mundo das mudanças de forma ou da passagem continua de uma forma a outra, para atualizar o que está em potência na matéria. Os seres físicos não se movem da mesma maneira (não se transformam nem se deslocam da mesma maneira). Seus movimentos e mudanças dependem da qualidade de suas matérias e da quantidade em que cada um dos quatro elementos materiais existe combinando com os outros num corpo. Deixemos de lado todas as novidades de movimentos estudadas por Aristóteles e examinemos apenas uma: o movimento local. Os corpos, diz o filósofo procuram atualizar suas potências materiais atualizando-se em formas diferentes. Cada modalidade de matéria realiza suai forma perfeita de maneira diferente das outras. No caso do movimento local, a matéria define lugares naturais, isto é, locais onde ela se atualiza ou se realiza melhor do que em outros. Assim, os corpos pesados (nos quais predomina o elemento terra) têm como lugar natural o centro da Terra e por isso o movimento local natural dos pesados é a queda. Os corpos leves (nos quais predomina o elemento fogo) têm como lugar natural o céu e por isso seu movimento local natural é subir. Os corpos não inteiramente leves (nos quais predomina o elemento ar) buscam seu lugar natural no espaço rarefeito e por isso seu movimento local natural é flutuar. Enfim, os corpos não totalmente pesados (nos quais predomina o elemento água) buscam seu lugar natural no líquido e por isso seu movimento local natural é boiar nas águas. Além dos movimentos naturais, os corpos podem ser submetidos a movimentos violentos, isto é, àqueles que contradizem sua natureza e os impedem de alcançar seu lugar natural. Por exemplo, quando o arqueiro lança uma flecha, imprime nela um movimento violento, pois força-a a permanecer no ar, embora seu lugar natural seja a terra e seu movimento natural seja a queda. Este pequeno resumo da Física aristotélica nos mostra algumas características marcantes da ciência antiga: é uma ciência baseada nas qualidades percebidas nos corpos (leve, pesado, liquido, sólido etc.); é uma ciência baseada em distinções qualitativas do espaço (alto,baixo, longe, perto, celeste, sublunar); é uma ciência baseada na metafísica da identidade e da mudança (perfeição imóvel, imperfeição móvel); é uma ciência que estabelece leis diferentes para os corpos segundo sua matéria e sua forma, ou segundo sua substância; como conseqüência das características anteriores, é uma ciência que concebe a realidade natural como um mundo hierárquico no qual os seres possuem um lugar natural de acordo com sua perfeição, hierarquizando-se em graus que vão dos inferiores aos superiores. Quando comparamos a física de Aristóteles com a moderna, isto é, a que foi elaborada por Galileu e Newton, podemos notar as grandes diferenças: para a física moderna, o espaço é aquele definido pela geometria, portanto, homogêneo, sem distinções qualitativas entre alto, baixo, frente, atrás, longe, perto. .É um espaço onde todos os pontos são reversíveis ou equivalentes, de modo que não há "lugares naturais" qualitativamente diferenciados; os objetos físicos investigados pelo cientista começam por ser purificados de todas as qualidade; sensoriais - cor, tamanho, odor, peso, matéria, forma; liquido, sólido, leve, grande, pequeno, etc. -, isto é, de todas as qualidades sensíveis, porque estas são meramente subjetivas. O objeto é definido por propriedades objetivas gerais, válidas para todos os seres físicos: massa, volume, figura. Torna-se irrelevante tipo de matéria, de forma ou de substância de um corpo, pois todos se comportam fisicamente da mesma maneira. Tomase inútil a distinção entre um mundo celeste e um mundo sublunar, pois astros e corpos terrestres obedecem às mesmas leis universais da física; a física estuda o movimento não como alteração qualitativa e quantitativa dos corpos, mas como deslocamento espacial que altera a massa, o volume e a velocidade dos corpos. O movimento e o repouso são as propriedades físicas objetivas de todos os corpos na Natureza e todos eles obedecem às mesmas leis aquelas que Galileu formulou com base no Princípio da inércia (um corpo se mantém em movimento indefinidamente, a menos que encontre um outro que lhe faça obstáculo ou que o desvie de seu trajeto); e aquelas formuladas por Newton, com base no principio universal da gravitação (a toda ação corresponde a uma reação que lhe é igual e contrária). Não há diferença entre movimento natural e movimento violento, pois todo e qualquer movimento obedece às mesmas leis; a Natureza é um complexo de corpos formados por proporções diferentes de movimento e de repouso articulados por relações de causa e efeito, sem finalidade, pois a idéia de finalidade só existe para os seres humanos dotados de razão e vontade. Os corpos não se movem, portanto em busca de perfeição, mas porque a causa eficiente do movimento os faz moverem-se. A física é uma mecânica universal. A física da Natureza se torna geométrica, experimental, quantitativa, causal ou mecânica (relações entre a causa eficiente e seus efeitos) e suas leis têm valor universal, independentemente das qualidades sensíveis das coisas. Terra, mar e ar obedecem às mesmas leis naturais. A Natureza é a mesma em toda parte e para todos os seres, não existindo hierarquias ou graus de imperfeição-perfeição, inferioridade-superioridade. Há, ainda, uma outra diferença profunda entre a ciência antiga e a moderna. A primeira era uma ciência teorética isto é, apenas contemplava os seres naturais sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles. A técnica era um saber empírico, ligado a praticas necessárias á vida e nada tinha a oferecer à ciência nem a receber dela. Numa sociedade escravista, que deixava tarefas, trabalhos e serviços aos escravos, à técnica era vista como uma forma menor de conhecimento. Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos antigos: a afirmação do filósofo inglês Francis Bacon, para quem "saber é poder", e a afirmação de Descartes, para quem "a ciência deve tornar-nos senhores da Natureza". A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza, de conhecê-la para apropriar-se dela para controlá-la e dominá-la. A ciência não é apenas contemplação da verdade, mas, sobretudo o exercício do poderio humano sobre a natureza. Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e, para acumular o capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a Natureza, a nova ciência será inseparável da técnica. Na verdade, é mais correio falar em tecnologia do que em técnica. De fato, a técnica. é um conhecimento empírico, que, graças á observação, elabora um conjunto de receitas e praticas para agir sobre as coisas. A tecnologia, porém, é um saber teórico que se aplica praticamente. Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar horas seguindo o movimento solar no céu. Um cronômetro, porém, é um objeto tecnológico: por um lado, sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre as leis do movimento (as leis do pêndulo) e, por outro lado seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa percepção não consegue perceber. Uma lente de aumento é um objeto técnico, mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção pressupõe o conhecimento das leis cientificas definidas pela óptica. Em outras palavras, um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas cientificas. A ciência moderna tornou-se inseparável da tecnologia. As mudanças científicas Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciência. A primeira delas se refere à passagem do racionalismo e empirismo ao construtivismo, isto é, de um ideal de cientificidade baseado na idéia de que o objeto cientifico é um modelo construído e não uma representação do real, uma aproximação sobre o modo de funcionamento da realidade, mas não o conhecimento absoluto dela. A segunda mudança refere-se à passagem da ciência antiga – teorética, qualitativa – à ciência moderna – tecnológica quantitativa. Por que houve tais mudanças no pensamento cientifico? Durante certo tempo julgou-se que a ciência (como a sociedade) evolui e progride. Evolução e progresso são duas idéias muito recentes – datam dos séculos XVIII e XIX --, mas muito aceitas pelas pessoas.Basta ver o lema da bandeira brasileira para perceber como as pessoas acham natural falar em “ Ordem e Progresso” . As noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é uma linha reta continua e homogênea (como a imagem do rio que, vimos ao estudar a metafísica). O tempo seria uma sucessão continua de instantes, momentos, fases, períodos, épocas, que iriam se somando uns aos outros, acumulando-se de tal modo que o que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu antes. Continuo e cumulativo, o tempo seria um aperfeiçoamento de todos os seres (naturais e humanos). Evolução e progresso são crença na superioridade do presente em relação ao passado e do futuro em relação ao presente. Assim os europeus civilizados seriam superiores aos africanos e aos índios, a física galilaiconewtoniana seria superior à aristotélica, a física quântica seria superior à de Galileu e de Newton. Evoluir significa: tornar-se superior e melhor do que se era antes. Progredir significa: ir no rumo cada vez melhor na direção de uma finalidade superior. Evolução e progresso também supõe o tempo como uma serie linear de momentos ligados por relações de causa e efeitos, em que o passado é causa e o presente, efeito, vindo a tornar-se causa do futuro. Vemos essa idéia aparecer quando, por exemplo, os manuais de História apresentam as “ influências” que um acontecimento anterior teria tido sobre um outro, posterior. Evoluir e progredir pressupõem uma concepção de História semelhante à que a biologia apresenta quando fala em germe, semente ou larva. O germe, a semente ou larva são entes que contêm neles mesmos tudo o que lhe acontecerá, isto é, o futuro já esta contido no ponto inicial de um ser, cuja história ou cujo tempo nada mais é do que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era potencialmente. Essa idéia encontra-se presente, por exemplo, na distinção entre paises desenvolvidos e subdesenvolvidos. Quando digo é ou está desenvolvidos digo que sei que alcançou a finalidade à qual estava destinado desde que surgiu. Quando digo que um pais é ou está subdesenvolvido estou dizaendo que a finalidade – que é a mesma para ele e para o desenvolvido – ainda não foi, mas deverá ser alcançada em algum momento do tempo. Não por acaso, as expressões desenvolvido e subdesenvolvido foram usadas para substituir duas outras, tidas como ofensivas e agressivas: paises adiantados e paises atrasados, isto é paises evoluídos e não evoluídos, paises com progresso e sem progresso. Em resumo, evolução e progresso pressupõem: continuidade temporal, acumulação causal dos acontecimentos, superioridade do futuro e do presente com relação ao passado, existência de uma finalidade a ser alcançada. Supunha-se que as mudanças científicas indicavam evolução ou progresso dos conhecimentos humanos. Desmentindo a evolução e o pregresso científicos A Filosofia das Ciências, estudando as mudanças científicas, impôs um desmentido as idéias de evolução e progresso. Isso não quer dizer que a Filosofia das Ciências viesse a falar em atraso e regressão cientifica, pois essas duas noções são idênticas às de evolução e progresso, apenas com o sinal trocado (em vez de caminhar causal e continuamente para frente, caminhar-se-ia causal e continuamente paia trás). O que a Filosofia das Ciências compreendeu foi que as elaborações cientificas e os ideais de cientificidade são diferentes e descontínuos. Quando, por exemplo, comparamos a geometria clássica ou geometria euclidiana (que opera com o espaço plano) e a geometria contemporânea ou topológica (que opera com o espaço tridimensional), vemos que não se trata de duas etapas ou de duas fases sucessivas da mesma ciência geométrica, e sim de duas geometrias diferentes, com princípios, conceitos, objetos, demonstrações completamente diferentes. Não houve evolução e progresso de uma para outra, pois são duas geometrias diversas e não geometrias sucessivas. Quando comparamos as físicas de Aristóteles, Galileu-Newton e Einstein, não estamos diante de uma mesma física, que teria evoluido ou progredido, mas diante de três físicas diferentes, baseadas em princípios, conceitos, demonstrações, experimentações e tecnologias completamente diferentes. Em cada uma delas, a idéia de Natureza é diferente; em cada uma delas os métodos empregados são diferentes; em cada uma delas o que se deseja conhecer é diferente. Quando comparamos a biologia genética de Mendel e a genética formulada por bioquímica (baseada na descoberta de enzimas, de proteínas do ADN ou código genético), também não encontramos evolução e progresso, mas diferença e descontinuidade. Assim, por exemplo, o modelo explicativo que orientava o trabalho de Mendel era o da relação sexual como um encontro entre duas entidades diferentes - o esperma e o óvulo -, enquanto o modelo que orienta à genética contemporânea é o da cibernética e da teoria da informação. Quando comparamos a ciência da Iinguagem do século XIX (que era baseada nos estudos de filologia, isto é, nos estudos da origem da história das palavras) com à Iingüística contemporânea (que, como vimos no capitulo dedicado à linguagem, estuda estruturas), vemos duas ciências diferentes. E o mesmo pode ser dito de todas as ciências. Verificou-se, portanto, uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias científicas como conseqüência não de uma forma mais evoluída, mais progressiva ou melhor de fazer ciência, e sim como resultado de diferentes maneiras de conhecer e construir os objetos científicos, de elaborar os métodos e inventar tecnologias. O filósofo Gaston Bachelard criou à expressão ruptura epistemológica* para explicar essa descontinuidade no conhecimento cientifico. * Lembremos que a palavra epistemologia e composta de dois termos gregos: episteme, que significa ciência e logia, vinda de logos significando conhecimento. Epistemologia é o conhecimento filosófico sobre as ciências. Rupturas epistemológicas e revoluções científicas Um cientista ou um grupo de cientistas começam a estudar um fenômeno empregando métodos e tecnologias disponíveis em seu campo de trabalho. Pouco a pouco, descobrem que os conceitos, os procedimentos, os instrumentos existentes não explicam o que estão observando nem levam aos resultados que estão buscando. Encontram, diz Bachelard, um "obstáculo epistemológico”. Pira superar o obstáculo epistemológico, o cientista ou grupo de cientistas precisam ter a coragem de dizer: Não. Precisam dizer não à teoria existente e aos métodos e tecnologias existentes, realizando a ruptura epistemológica. Esta conduz à elaboração de novas teorias, novos métodos e tecnologias, que afetam todo o campo de conhecimentos existentes. Uma nova concepção cientifica emerge, levando tanto a incorporar nela os conhecimentos anteriores, quanto a afastá-los inteiramente. O filósofo da ciência Khun designa esses momentos de ruptura epistemológica e de criação de novas teorias com a expressão revolução científica, como, por exemplo, a revolução copernicana, que substituiu a explicação geocêntrica pela heliocêntrica. Segundo Khun, um campo cientifico é criado quando métodos, tecnologias, formas de observação e experimentação, conceitos e demonstrações formam um todo sistemático,uma teoria que permite o conhecimento de inúmeros fenômenos. A teoria se torna um modelo de conhecimento ou um paradigma cientifico. Em tempos um cientista, diante de um fato ou de um fenômeno ainda não estudado, usa o modelo ou o paradigma cientifico existente. Uma revolução científica acontece quando o cientista descobre que os paradigmas disponíveis não conseguem explicar um fenômeno ou um fato novo, sendo necessário produzir um outro paradigma, até então inexistente e cuja necessidade não era sentida pelos investigadores. A ciência, portanto, não caminha numa via linear contínua e progressiva, mas por saltos ou revoluções. Assim,quando a idéia de proton-elétron-nêutron entra na física, a de vírus entra na biologia, a de.enzima entra na química ou a de fonema entra na lingüística, os paradigmas existentes são incapazes de alcançar,