Cultura Política e Construção de Identidades Coletivas de Sujeitos

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XIII CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA
29 DE MAIO A 01 DE JUNHO DE 2007, UFPE, RECIFE (PE)
Grupo de Trabalho:
Emancipação, Cidadania e Reconhecimento
Cultura Política e Construção de
Identidades Coletivas de Sujeitos Sociais
FRANCISCO MESQUITA DE OLIVEIRA
UFPE – Universidade Federal de Pernambuco
Programa de pós-graduação em sociologia - Doutorado
[email protected]
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Cultura Política e Construção de Identidades Coletivas de Sujeitos Sociais
Francisco Mesquita de Oliveira
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Resumo
Na atualidade há dúvidas quanto há possibilidade de mudança estrutural
provocada pelos movimentos sociais (associações de bairros, grupos
comunitários, grupos específicos de luta por moradia, terra, trabalho,
reconhecimento de identidades e ONG´s...). As identidades e práticas
desses sujeitos forjam-se em uma cultura política dos costumes,
comportamentos, valores, procedimentos, hábitos e atitudes que
mesclam velhos e novos valores colocando em dúvida a eficácia de suas
práticas. Apesar disso, alguns avanços são percebidos na participação
desses sujeitos em processos de proposição, fiscalização e deliberação
de políticas públicas setoriais. Mas, mudança profunda e ampla envolve,
diretamente, mudança de hábitos das pessoas. Nesse aspecto, a cultura
política se configura em uma argamassa que mescla os valores a
realidade social por meio das relações e das interações entre estado e
sociedade. Por isso, a cultura política importa no processo de
emancipação social e política.
Palavras-chave: sujeitos sociais coletivos, participação, emancipação e cultura política.
Introdução
A realidade social, econômica, política e cultural do final do século XX e início do
século XXI apresenta dúvidas e incertezas quanto à capacidade dos movimentos sociais
populares de provocar mudança social do ponto de vista estrutural. Por outro lado,
aprofundam a exclusão e a marginalização de milhões de pessoas em todo o mundo,
especialmente decorrente da globalização. No entanto, “Esses processos estão sendo
enfrentados por resistências, iniciativas de base, inovação comunitária, e movimentos
populares que procuram reagir à exclusão social, abrindo espaço para a participação
democrática, para a edificação da comunidade, para alternativas às formas dominantes
de desenvolvimento e de conhecimento, em suma, para a inclusão social” (Santos, 2002:
457). Atualmente, ver-se uma forte movimentação social que se globaliza para resistir à
globalização econômica hegemônica, a exemplo do Fórum Social Mundial, realizado em
Porto Alegre, em janeiro de 2001, 2002, 2003 e 2004. A resistência extrapola a mera
crítica, propõe a valorização e expansão das alternativas econômicas do comércio
solidário e justo, bem como uma outra matriz para o desenvolvimento socioeconômico
1
Piauiense, licenciado em História, mestre em Ciências Políticas e doutorando em Sociologia pela
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
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mundial,
obedecendo
aos
princípios
de
sociedades
economicamente
justas,
politicamente democráticas, ecologicamente viáveis e socialmente fortes, cujo valor
principal o desenvolvimento humano, em vez da acumulação do lucro. Muitos
movimentos sociais no Brasil e Nordeste do Brasil atuam inspirados nesses propósitos
criando, assim, um ambiente importante para a investigação da ciência social.
Os processos desenvolvidos são eivados de costumes, comportamentos, valores,
hábitos, atitudes de uma cultura política, possivelmente, mesclada por velhos e novos
procedimentos que colocam em dúvida a eficácia e a eficiência das práticas sociais.
Todavia, existe avanço no aspecto da cidadania, conceito que vem sendo debatido nas
ciências sociais há muito tempo. Thomas H. Marshall (1949), refere-se à cidadania como
“direitos civis, conquistados no século XVIII, os direitos políticos do século XIX – ambos
chamados de direitos de primeira geração – e os direitos sociais, conquistados no século
XX – chamados de direitos de segunda geração” (Vieira, 2001: 33). Essa visão de
cidadania é fundamentalmente legalista e passiva. O Estado é quem, pela lei, concede a
cidadania ao indivíduo e como o Estado, no Brasil, sempre esteve nas mãos das elites é
de se presumir que ela é concessão das elites ao povo. Depois de discutir essas
tipologias, Liszt Vieira usa o conceito de cidadania desenvolvido por Janoski, para quem
a cidadania é “a pertença passiva e ativa de indivíduos em um Estado-nação com certos
direitos e obrigações universais em um específico nível de igualdade”. A noção de
cidadania trabalhada por muitos movimentos sociais é a do direito à conquista de direito.
Assim, este estudo se propõe a refletir elementos das práticas sociais de sujeitos
coletivos.
Neste sentido, a mudança social, entendida enquanto nova ordem estrutural, é
parte do sujeito, ou seja, para mudar estruturas sociais, econômicas e políticas há que se
mudar, antes de tudo, a prática humana. Mudando as pessoas muda-se a sociedade. E a
cultura, costumes, valores, comportamentos se configura a argamassa que une a pessoa
à realidade social por meio das relações e das interações. Por isso, a cultura assume
uma condição sine qua non no processo de mudança social. Qualquer que seja a
perspectiva de mudança passará pela dimensão cultural. Assim, é forçoso reconhecer
que a cultura assume categoria importante no desvendamento da organização social e
dos padrões estabelecidos na sociedade. É difícil avançar na mudança estrutural sem
que haja modificações nas práticas sociais de sujeitos e entre homens e mulheres. Pela
leitura dos códigos culturais é possível discutir o sistema social de uma sociedade, as
estratégias de dominação dos grupos sobre os outros, as relações sociais e políticas
estabelecidas e os caminhos pelos quais elas se estabelecem no processo de
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dominação. Na cultura política contemporânea, tomando-a como conjunto de crenças,
atitudes e comportamentos, coexistem práticas tradicionais e inovadoras, evidenciadas a
partir da realidade social e da relação entre a sociedade civil organizada e o Estado. Na
cultura política tradicional predomina o clientelismo político, o autoritarismo e o
corporativismo. Porém, se fortalece no Brasil, a partir do final do século XX, elementos de
uma nova cultura política, a cultura da participação em processos sociais e políticos
(Santos,
2002;
Dagnino,
2002).
As
práticas
sociais
da
atualidade
requerem
sistematização e análise para se aferir até que ponto elas são realmente constitutivas de
uma nova cultura política, ou tais iniciativas já surgem manchadas pelos vícios da cultura
política tradicional. Este é um desafio em que muitos estudiosos vêm empreendendo
esforços e nos juntamos a eles com esta contribuição.
Por exemplo, Ernesto Laclau desenvolve estudos que valorizam as articulações
de práticas sociais de sujeitos coletivos em uma perspectiva globalizante: “quanto mais
particular for o grupo, menos ele será capaz de controlar o terreno comunitário global no
interior do qual opera, e tanto mais universalmente fundamentada terá que ser a
justificação de suas pretensões” (Laclau, 1997: 11). Essa é a razão pela qual muitos
sujeitos sociais coletivos, que tem um olhar abrangente, constroem suas redes, fóruns,
articulações no enfrentamento de desafios de uma sociedade globalizada.
Para entender melhor essa categoria social “sujeito”, no âmbito desse estudo,
recorro aos conhecimentos de Touraine: “O sujeito não é reflexão sobre Si-mesmo e
sobre a experiência vivida; ao contrário, ele se opõe ao que tentamos chamar
primeiramente de papéis sociais, e que na realidade é a construção da vida social e
pessoal pelos centros de poder que a criam consumidores, eleitores, um público, pelo
menos enquanto oferecem respostas às demandas sociais e culturais” (Touraine, 1995:
247). O sujeito é social e político. Pois ele tem consciência de suas vontades, de seus
desejos, de seus atos e atitudes, não é apenas um indivíduo, consumidor inconseqüente
ou ainda o “cidadão consumidor”. Ele se torna sujeito a partir da consciência das causas
e conseqüências dos problemas sociais e políticos de sua comunidade e age provocando
mudança. No processo de mudança, ele constrói identidade social. O sujeito social
coletivo é entendido como um movimento social, redes e articulações de movimentos
sociais populares, ONG’s e que se articulam através de suas práticas compartilhando
objetivos comuns como a efetivação de direitos e a conquista de novos, a luta por
mudança social, política, econômica e cultural. Ele é agente da mudança.
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Sociedade civil e cultura política em contexto de mudança
A sociedade brasileira passa por grandes mudanças na sua relação com o Estado
e mesmo na intra-relação dos sujeitos sociais que constituem a chamada sociedade civil
organizada. Ou seja, os movimentos sociais que lutam por conquista de direitos e
afirmação de suas identidades. Tais mudanças coincidem com o período de
implementação de políticas neoliberais as quais produzem tensões, conflitos e
negociações dos sujeitos sociais com o Estado, mas também, tensões intra-movimentos.
Com o avanço da democratização da sociedade brasileira, depois do período de
ditadura militar (1964–1988), o tecido social brasileiro ganhou impulso e maior densidade.
Juntamente com este avanço as relações ficam mais complexas: relação de
dependência, de autonomia, de complementaridade, de exclusão dos movimentos na
interação com outros sujeitos nos espaços de atuação e de relação com o Estado. Essas
práticas apontam para: a) uma sociedade civil mais forte com um conjunto de sujeitos
sociais autênticos e inovadores de prática social; b) continuísmo na cultura política
clientelista, conservadora e patrimonialista na atuação dos movimentos sociais com o
Estado para a exigibilidade de direitos; e c) aparecimento de atitudes, comportamentos e
valores que apontem para uma nova perspectiva da sociedade civil com participação
efetiva de sujeitos sociais nos processos organizativos da sociedade. Portanto,
elementos de nova cultura política. Tais elementos constituem aspectos importantes de
uma emancipação social e política.
O entendimento do conceito de sociedade civil, apresentado a seguir e sua
evolução na ciência social desde Marx, século XIX, até os dias atuais ajudará na
compreensão do exposto acima. Marx entendia a sociedade civil como o mercado, ou
seja, resultante das relações de compra e venda, onde a produção determina as relações
sociais, e, portanto, determinam, também, a sociedade civil. A compreensão de Gramsci
sobre a sociedade civil difere de Marx e está mais adequada ao entendimento
contemporâneo. Discutindo sobre o liberalismo, Gramsci afirma que “a atividade
econômica é própria da sociedade civil e que o Estado não deve interferi na sua
regulamentação. Mas, na realidade factual a sociedade civil e o Estado se identificam”
(...). Ele considera um “erro teórico a distinção entre sociedade política e sociedade civil,
que de distinção metódica se transforma e é apresentada como distinção orgânica” na
visão liberal (Gramsci, 1991). Ele entende que a sociedade civil não é o mercado, mas
um conjunto de organismos privados que pode assegurar a hegemonia do grupo
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dominante. Por sua vez, a definição de sociedade civil de Habermas, de certa forma, se
aproxima da visão de Gramsci. Para ele a sociedade civil “compõem-se de movimentos,
organizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que
ressoam nas esferas privadas, condensa-os e os transmite, a seguir, para a esfera
pública política”, (Habermas, 1997: 99). Elenaldo Teixeira, citando Cohen & Arato,
explicita que estes autores entendem a sociedade civil como: “(a) pluralidade – famílias,
grupos informais, associações voluntárias; (b) publicidade – instituições de cultura e
comunicação; (c) privacidade – domínio do autodesenvolvimento e da escolha moral; (d)
legalidade – estrutura de leis gerais e direitos básicos”, (Teixeira, 2001: 42).
A partir da leitura dos autores acima mencionados, pode-se compreender a
sociedade civil em uma perspectiva relacional de sujeitos sociais formais e informais,
heterogêneos, com diferentes graus de organização e de interesses em campo de
disputa. Tomando como referencia essa definição, cabe compreender, pela ótica da
cultural política os laços que estes sujeitos constituem na sua relação com o Estado, a
relação de disputa, inteiração e negociação que está sendo construída entre Estado e
sociedade, após os anos oitenta.
Assim, posterior ao período do regime político de ditadura militar, a sociedade civil
brasileira tem passado por um processo crescente de formação de consciência cidadã. O
resultado mais visível desse processo é o envolvimento de grande parte da população,
de modo geral, em diferentes planos, e em vários momentos da história social e política
do país2. Entre as mais recentes e de maior intensidade destaca-se a participação de
cidadãos nos espaços institucionais de efetivação de diretos sociais, econômicos,
políticos e culturais e as lutas diretas dos movimentos.
Essa atuação social está de certa forma garantida na Constituição Federal de
19883. Essas garantias constitucionais não só asseguram o exercício da participação
social nos espaços de luta por direitos dos cidadãos como produz um conjunto de
relações sociais e política entre sujeitos sociais e Estado que, possivelmente, procura reconfigurar a atuação dos sujeitos e, portanto, mudar seu modo de agir, sua linguagem,
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Entre os momentos fortes de movimentação social e política de âmbito nacional nos anos oitenta
e noventa, ressaltamos: a campanha pelas eleições diretas já, na primeira metade da década de
oitenta; a mobilização na Assembléia Nacional Constituinte (1986 a 1988); a campanha nacional
pró-impeachment do Presidente Collor em 1992, diversos movimentos populares urbanos a
exemplo dos que lutam por moradia nas periferias das grandes cidades brasileiras.
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A Constituição Federal assegura direitos sociais, políticos, econômicos e culturais para todos os
cidadãos, bem como a atuação social nos canais de participação, como os conselhos setoriais de
gestão e fiscalização de políticas públicas nas áreas: da Saúde, Art. 198, Inciso III; da Educação,
Art. 206, Inciso VI; da Assistência Social, Art. 204; da Criança e Adolescente, Art. 227; maior
controle e fiscalização das contas públicas, Art. 31 parágrafo 3º; na organização de cidadãos, Art.
10; na proposição de projetos de lei, Art. 29, Inciso XI (Constituição Federal, 1988).
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seus hábitos e até mesmo valores. Mais do que isso, adapta-se a um ambiente de cultura
tradicional ou podem irromper com elementos de outra cultura, a cultura de valores
éticos, participativos, coerentes.
Olhando por este lado, em alguns grandes centros urbanos brasileiros, a exemplo
do Rio de Janeiro (RJ); São Paulo (SP), Recife (PE), Fortaleza (CE), a atuação de
sujeitos sociais urbanos tem se fortalecido nas ultimas décadas com a redemocratização
política brasileira e com um processo de organização desses sujeitos. Os participantes de
movimentos urbanos geralmente vivem carências profundamente de bens matérias e
bens públicos, moram nas periferias dos grandes centros urbanos, sofrem a falta de
emprego, além das ausências de serviços públicos de saneamento, saúde, educação e
assistência social com qualidade e para todos. Esta realidade tem estimulado uma
grande pluralidade de sujeitos sociais coletivos, pessoas que se organizam em
associações de moradores de bairros, clubes de mães, grupos de jovens, grupos de luta
por moradia. Esses movimentos sociais populares se articulam em redes sociais, fóruns,
articulações locais, regional, nacional e até internacional, globalizando-se, para ter mais
força social e política e defender interesses e direitos de parcelas da população excluídas
social e economicamente. Estes, pelas suas lutas se constituem em sujeitos sociais
coletivos mesclados pela cultura política tradicional e cultura política de participação.
Nessa perspectiva, é importante compreender de que cultura política está se
falando e suas implicações para os sujeitos sociais coletivos. Cultura política é aqui
entendida em uma noção diferente do conceito de cultura tradicionalmente usada pela
sociedade. Refere-se a uma perspectiva de cultura que oferece elementos à sociedade
para que esta busque os sentidos de suas formas de organização e das relações
construídas pelos diferentes grupos e sujeitos sociais; cultura como “práticas sociais”,
voltadas para o campo do domínio das idéias; e cultura como “um modo de vida global”
(Hall, 2003: p. 136). Estas dimensões apontam para a construção das relações e das
interações entre sujeitos sociais coletivos. São as práticas sociais, o fazer cotidiano, o
dia-a-dia que constrói diferentes pontos de relação entre diferentes sujeitos os quais
geralmente expressam seus valores, crenças, hábitos e modo de atuação sociopolítica a
partir de suas interações. A cultura é a globalidade da vida, não se separa do sujeito e
nem do seu cotidiano, está entranhada na prática social tanto quanto a prática está
imersa no cotidiano.
Nesse aspecto, a cultura política de uma sociedade resulta de sua composição
política e social no decorrer de sua evolução histórica; de seus referenciais culturais
específicos e sua reelaboração na convivência com as demais culturas. Contudo, as
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relações de poder constituídas pelos diversos grupos sociais, a partir do lugar que cada
um ocupa, impulsionam o surgimento de novas práticas sociais. Conforme Andrade
apresenta em “Cultura Política, Identidade e Representações Sociais” (Andrade, 1999), a
visão Norte Americana sobre a cultura política, enquanto “um conjunto de atitudes a
respeito dos objetos e processos políticos”, é restrita e um tanto quanto limitada. No
Brasil, há muito que a cultura política vem sendo discutida: Gilberto Freyre, em “Casa
Grande Senzala” (1933), estuda o sistema escravocrata dando ênfase às relações
familiares; Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil” (1936), com enfoque
diferente de Freyre, analisa o Brasil a partir da relação colonizador versus colonizado. No
campo da constituição do poder político, no Brasil, Faoro no seu livro intitulado “Os
Donos do Poder” (1979 [1952]) apresenta o cerne da construção do poder político, o
patriarcalismo. A sociedade patriarcalista foi o alicerce da construção e formação do
poder no Brasil. A cultura política brasileira, que ainda hoje ostenta o clientelismo, tem
raízes fincadas nos mais de trezentos anos de colonização do Brasil, na sociedade
patriarcal e na relação de dominação do colonizador sobre o colonizado.
Andrade adota um caminho diferente da visão Norte Americana que define o
conceito de cultura política centrando-se nas “atitudes”. Discuti com os autores acima
citados buscando entender os elementos constitutivos da cultura política brasileira
tradicional, onde predomina, na relação entre políticos e indivíduos, a “obediência, o que
não significa passividade, uma relação de compromisso e de troca de proveito”. Aqueles
autores tratam a cultura política no campo das relações sociais, diferentemente do
enfoque americano. A proposta de Andrade substitui as ênfases das atitudes e relações
pelas “representações sociais”. Ou seja, seu olhar sobre a cultura política se volta para os
papéis que os sujeitos desempenham na sociedade. Ela difere dos autores acima citados
quando concentra sua definição na “representação social” e não nas relações sociais. No
nosso entendimento, a cultura política são práticas que envolvem valores, atitudes,
costumes e comportamentos. Não se restringe só a atitudes e tão pouco a
representações. O contraponto à cultura política tradicional brasileira é a emergência da
nova cultura de participação social e cidadã que fortalece a sociedade civil e democratiza
o Estado.
Construção de identidades de sujeitos sociais coletivos
Desde os anos 1980 que há uma forte atuação de sujeitos sociais coletivos
(associações comunitárias, sindicatos, ONG´s, grupos de jovens, grupos de mulheres,
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grupos de negros e negras, entre outros),
na sociedade brasileira. Estes sujeitos
produzem uma cultura Política de Participação em espaços de dialogo entre estado e a
sociedade como os conselhos setoriais de políticas públicas, mas também, em fóruns,
redes, articulações, alianças dos próprios movimentos. A participação a aponta para duas
frentes: a primeira, para a tomada de decisões com apresentação de demandas ao poder
público e a deliberação de políticas públicas, como por exemplo, nos orçamentos
participativos, nas conferências de políticas públicas e em alguns poucos conselhos
setoriais, tipo o de saúde. A segunda, refere-se a participação para o controle social,
acompanhamento da ação pública do gestor pela sociedade, que se efetiva nos
conselhos setoriais fiscalizadores da implementação e do uso dos recursos nas políticas
publicas.
A construção de identidades coletivas de sujeitos sociais na relação com o estado
é um dos resultados desse processo de interação de sujeitos sociais com o estado.
Tomamos aqui o sentido de identidade construído pelos estudos de Hall, para o qual
identidade “são pontos de apego temporários às posições-de-sujeito que as práticas
discursivas constroem para nós” (Hall, 2004). E o autor ainda acrescenta, as “identidades
não são unificadas elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e
fraturadas”. Partindo dessa premissa, algumas questões que pretendemos aprofundar
com o desdobramento desse trabalho, referem-se ao processo de construção temporária
da identidade dos sujeitos coletivos na relação com o estado. A relação entre sujeitos
sociais e estado altera a identidade dos sujeitos? Se sim, como que se dá tal mudança?
Até que ponto o estado tem sido influenciado pela relação com os sujeitos sociais? Bem,
estas questões serão aprofundadas com a seqüência do desenvolvimento deste trabalho
que pretendo dá continuidade.
Quanto me refiro aos movimentos sociais populares, sujeitos sócias coletivos,
compartilho da compreensão de Warren, que os entende como sendo: “um conjunto mais
abrangente de práticas sócio-políticas e culturais que visam a realização de um projeto
de mudança (social, sistêmica ou civilizatória), resultante de múltiplas redes de relações
sociais entre sujeitos e associações civis”, (Warren, 1999: 15 -16). Parte dos movimentos
sociais de hoje, especialmente movimentos de lutas concretas como os que lutam pela
moradia, pela terra e pelo meio ambiente integram um conjunto de características que
lhes dão uma dimensão política e social abrangente: escala de atuação social (local,
estadual, regional e nacional); grau de relação com o Estado (participação em conselhos
de políticas públicas, comissão paritária e em algum órgão público); heterogeneidade das
pessoas que o compõem (homens, mulheres, negros, brancos); capacidade de
10
articulação com outros sujeitos em âmbito estadual, regional, nacional e internacional
(como fóruns, redes, participação em conferências internacionais da ONU).
Estes
sujeitos sociais vivem as conseqüências das mudanças da atualidade e por isto a
construção de identidade, elementos de cultura política e sua própria constituição
enquanto sujeitos são aspectos fundamentais de se compreender para a emancipação
social e política.
Os movimentos sociais populares urbanos – MSPU’s, nas últimas duas décadas
do século XX se fortaleceram e assumem, cada vez mais, a condição de sujeitos sociais.
A sociedade civil brasileira conseguiu avanços importantes na área da cidadania: “dois
momentos principais merecem registros: a) durante os regimes militares, quando
predominaram as lutas de libertação, contra o autoritarismo, as restrições políticas, pela
anistia, liberdade de expressão, transformação do regime político; b) com o fim das
ditaduras, quando passam a vigorar lutas pela democratização com justiça social, a qual
prioriza a defesa de direitos sociais, econômicos e culturais como o direito das minorias,
o repensar o desenvolvimento diante da degradação ecológica e da exclusão social”
(Warren, 1999: 60). No primeiro momento, os movimentos sociais populares se vêem
obrigados a adotar uma postura de mobilização e enfrentamento diante da prática
autoritária do Estado, tendo como principal estratégia de luta a reivindicação. No
segundo, há uma combinação de lutas de mobilização com reivindicação e proposição
com participação e, conseqüentemente, uma evolução na relação da sociedade civil com
o Estado.
Neste sentido, a atuação social extrapola a militância política partidária e o
engajamento nas organizações, que Pedro Demo chama de tradicionais: sindicatos,
partidos políticos, clubes e Igrejas. Ela está sendo repensada. A participação social
política, enquanto prática de atuação concreta dos cidadãos em processos de
organização que provoca mudança social está sendo possível através dos movimentos
sociais nos centros urbanos brasileiros: o elemento determinante da democratização é a
participação de representantes da sociedade civil nos processos decisórios de governo
(Tavares da Silva, 1998). No que pese esta leitura ser um pouco normativa, faz sentido o
aspecto da participação como elementos importantes para a democratização do Estado.
O tema da participação dos sujeitos sociais coletivos e sua relação com o Estado
têm despertado o interesse de intelectuais, entre os quais podemos citar: Ilse SchererWarren, que tem produzido reflexões sobre a constituição dos movimentos sociais e sua
relação como Estado; e sobre cidadania e participação em políticas sociais (Warren,
1996); Maria da Glória Gonh, que tem vários estudos, destacando-se: Teorias dos
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Movimentos Sociais e História dos Movimentos e Lutas Sociais (Gohn, 1997). Evelina
Dagnino, que investiga o processo de democratização da sociedade brasileira através da
participação cidadã e construção de sujeitos sociais, não só no Brasil, mas, também, na
América Latina (Dagnino, 2000, 2002). Porém, existe certa controvérsia entre alguns
estudiosos sobre a capacidade de atuação dos movimentos sociais, uma vez que muitas
lideranças foram e ainda são cooptadas pelos governos. Destaca-se nessa área (Olson,
1999) com a lógica da ação coletiva. Por outro lado, Melúcci faz uma leitura mais
atualizada dos movimentos sociais buscando entender o surgimento de identidades
coletivas, as novas temáticas e as estratégias de atuação desses sujeitos em sociedades
complexas.
Na região Nordeste do Brasil, os sujeitos sociais urbanos demonstram uma
presencia significativamente e parecem ganhar mais densidade organizacional, além de
construir parâmetros de relação social e política intramovimentos sociais e deste com o
Estado. Suas bandeiras apontam para a melhoria da qualidade de vida de parcelas da
população, o fortalecimento dos próprios sujeitos sociais e o aprofundamento da
democratização do Estado. No entanto, considera-se a fragilidade teórica; as questões
materiais de sobrevivência de suas lideranças; e a prática de cooptação do Estado, eles
tornam-se susceptíveis a uma relação confusa com o Estado e até mesmo com a
sociedade, no aspecto de tornar mais claras suas bandeiras e galgar credibilidade social.
Um dos elementos dessa nebulosa relação é a cultura política tradicional que os sujeitos
sociais incorporam em suas praticas.
Considerações finais
Com este trabalho analiso os conceitos de sociedade civil e sujeitos sociais
coletivos na perspectiva da emancipação social e política de movimentos sociais. Para
tanto, retomo os desafios da construção de identidades desses sujeitos na relação com o
estado. A sociedade civil assume uma perspectiva relacional de sujeitos sociais formais e
informais, heterogêneos, com diferentes graus de organização e de interesses em um
determinado campo de disputa. Por sujeitos sociais coletivos entende-se o conjunto de
organizações populares do tipo; associações comunitárias de bairros, conselhos
comunitários de moradores, grupos específicos de luta por moradia, por terra, por
melhorias comunitárias, por políticas públicas, além de ONG´s, redes e articulações de
movimentos sociais. Estes sujeitos vivem os efeitos da cultura política tradicional forjada
no coronelismo, no mandonismo, no patriarcalismo brasileiro há mais de três séculos,
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que imprimi marcas do tradicionalismo cultural no modo de ser das pessoas e das
organizações. Por outro lado, com a redemocratização do estado, sujeitos sociais
assumem práticas de participação em espaços de fiscalização, proposição e deliberação
de políticas sociais, a exemplo dos conselhos setoriais, conferências e consultas de
políticas públicas, entre outros.
Apesar dessa participação política-social contribuir para instigar a emancipação
social e políticas das pessoas que constituem esses sujeitos coletivos, há pouca
capacidade deles se contraporem de modo radical às práticas, valores e hábitos da
cultura política tradicional. Esta situação põe em risco sua capacidade de promover
mudança social e política. O risco está no fato dos sujeitos atuarem num ambiente eivado
de elementos da cultura política, onde velhos e novos valores coexistem, e dificilmente
estes sujeitos conseguem isentarem-se dos efeitos das velhas práticas culturais.
Tal constatação coloca em duvida as possibilidades de mudança no âmbito
estrutural no campo político, econômico, social e cultural porque, entre outros aspectos,,
os hábitos da cultura política tradicional estão entranhados às práticas sociais e políticas
dos sujeitos limitando,assim, os avanços das novas práticas de participação para a
decisão, deliberação e o exercício de partilha de poder entre estado e sociedade. Neste
sentido, a participação nos espaços públicos do tipo conselhos, conferência e fóruns têm
valor mais pedagógico e organizativo do que valor político deliberativo.
Por fim, a construção de identidades desses sujeitos, seus processos de
organização e sua relação com o estado podem caminhar em dois sentidos: no primeiro,
a legitimação de práticas políticas de setores de pouco compromisso com a participação
e a emancipação, mesmo incorporando algumas atividades participativas à gestão do
estado. Com pouca diferença, a legitimação também pode ocorrer com setores
progressistas que, pelo discurso, apresentam indicativos de mudança, mas tem pouca
capacidade
de
efetivação.
No
segundo,
a
necessidade
dos
sujeitos
de
se
autoconhecerem pela análise da prática, reconhecerem seus limites, suas dificuldades e
estimular os valores da cultura política inovadora e sobrepor os velhos valores. Para isto,
a mudança é, sobretudo, pessoal, pois mudança estrutural passa pela mudança de
valores pessoais. E assim, os sujeitos sociais coletivos poderão contribuir, efetivamente,
com sua emancipação social e política.
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