Damásio et al. Betabloqueador no Choque Cardiogênico Relato de Caso Rev Bras Cardiol. 2013;26(6):485-88 novembro/dezembro Uso de Betabloqueador no Choque Cardiogênico da Cardiomiopatia de Takotsubo Relato de Caso 2 Use of Beta-Blockers in Cardiogenic Shock due to Takotsubo Cardiomyopathy Ana Filipa Caldeira Damásio1, Carlos Alberto Dias Cotrim2, Maria José Pereira Campos de Frias Loureiro2, Inês Maria Rosário Cruz2, Daniel Gomes Caldeira2, Hélder Horta Pereira2 Resumo Abstract A cardiomiopatia de Takotsubo se caracteriza por alterações reversíveis na função sistólica e segmentar do ventrículo esquerdo associada à coronariografia normal. O choque associado a essa cardiomiopatia é causado por disfunção sistólica e/ou obstrução dinâmica do trato de saída do ventrículo esquerdo. A identificação da etiologia do choque tem implicações terapêuticas. Relata-se o caso de paciente feminina, 76 anos, com cardiomiopatia de Takotsubo cuja apresentação mimetizou infarto agudo do miocárdio complicado com choque cardiogênico. O choque foi revertido após administração endovenosa de propranolol. Takotsubo cardiomyopathy is characterized by reversible changes in the systolic and segmental left ventricular function associated with normal coronariography. The shock associated with this cardiomyopathy is caused by left ventricular systolic dysfunction and/or dynamic left ventricular outflow tract obstruction. Identification of the etiology of the shock has implications for treatment. This case study reports on a 76-year-old women diagnosed with Takotsubo cardiomyopathy whose presentation mimicked an acute myocardial infarction complicated by cardiogenic shock. The shock was reversed after intravenous administration of propanolol. Palavras-chave: Cardiomiopatia de Takotsubo; Choque cardiogênico; Valva mitral; Antagonistas adrenérgicos beta Introdução A cardiomiopatia de Takotsubo, também chamada de “síndrome do coração partido”, “síndrome de balonamento apical” ou “cardiomiopatia de estresse”, caracteriza-se por alterações reversíveis da contratilidade segmentar do ventrículo esquerdo (VE) em pacientes sem doença coronariana1. O quadro é desencadeado geralmente por estresse emocional ou físico. A queixa principal é dor torácica, mimetizando uma síndrome coronariana aguda (SCA). Foi descrita pela primeira vez no Japão, em 19911, e sua fisiopatologia não está esclarecida, identificando-se Keywords: Takotsubo cardiomyopathy; Cardiogenic shock; Mitral valve; Adrenergic beta-antagonists como possíveis mecanismos a descarga catecolaminérgica causada pelo estresse, com ação direta sobre o miocárdio, originando miocárdio hipercinético em algumas zonas e atordoado em outras; espasmo coronariano ou microvascular e rotura de placa coronariana2. Os critérios da Mayo Clinic para o diagnóstico devem estar todos presentes e são1,3: (1) hipocinesia, acinesia ou discinesia transitória dos segmentos médios do VE com ou sem envolvimento apical, reversível; (2) coronariografia normal ou lesões coronarianas mínimas; (3) novas alterações do segmento ST e/ou onda T; (4) ausência de Internato em Cardiologia - Hospital Espírito Santo, EPE - Évora - Portugal Hospital Garcia de Orta - Almada - Portugal Correspondência: Ana Filipa Caldeira Damásio E-mail: [email protected] Largo Senhor da Pobreza - 7000-811 - Évora, Portugal Recebido em: 20/05/2013 | Aceito em: 02/10/2013 1 2 485 Rev Bras Cardiol. 2013;26(6):485-88 novembro/dezembro miocardite, feocromocitoma e traumatismo craniano. Apesar de geralmente ter uma evolução benigna, os pacientes devem ser monitorizados como se fora SCA. Pode ocorrer insuficiência cardíaca, choque, bradi ou taquiarritmia, rotura do VE, perfuração do septo interventricular e trombo no VE1,4. O choque pode ocorrer por disfunção sistólica do VE e/ou por obstrução dinâmica do seu trato de saída, que pode estar associada ao movimento anterior sistólico (SAM) da válvula mitral e a insuficiência mitral grave3,5. Relato do caso Paciente feminina, 76 anos, caucasiana, com antecedentes de hipertensão arterial e dislipidemia, recorre ao Serviço de Urgência por quadro de angina pectoris em repouso, com seis horas de evolução. Ao exame: hipotensa (pressão arterial 75/50 mmHg), sopro sistólico grau 2/6 no bordo esquerdo do esterno com irradiação axilar. Eletrocardiograma: taquicardia sinusal com 122 bpm; supradesnivelamento do segmento ST de V2 a V4 e onda T negativa nas derivações V5, V6, DI e aVL. Ecocardiograma: VE não dilatado com hipertrofia das paredes (mais marcada na porção basal do septo interventricular); acinesia apical e hipocinesia grave Damásio et al. Betabloqueador no Choque Cardiogênico Relato de Caso dos segmentos médios de todas as paredes do VE. Fração de ejeção do VE estimada em 40 % pelo método de Simpson. Sem outras alterações. Verificou-se elevação sérica de troponina I de alta sensibilidade (1030 ng/mL). Foi encaminhada para a sala de hemodinâmica por suspeita de infarto agudo do miocárdio anterior, classe Killip-Kimbal IV. A coronariografia não mostrou doença coronariana significativa. Por instabilidade hemodinâmica foi colocado balão de contrapulsação intra-aórtico e iniciada dopamina (aumento progressivo até a dose de 10 µg/kg/min). A paciente foi transferida para a unidade de cuidados intensivos de cardiologia com a hipótese diagnóstica de cardiomiopatia de Takotsubo complicada com choque. Apesar do suporte, 24 horas após a admissão, persistiu o quadro de choque cardiogênico: hipotensão apesar de bem preenchida, diurese inferior a 0,5 mL/kg/hora, extremidades frias com sinais de má perfusão periférica. Repetiu-se o ecocardiograma transtorácico que mostrou, para além das alterações da função segmentar e sistólica acima descritas, obstrução do trato de saída do VE (LVOTO) condicionando gradiente intraventricular (GIV) em repouso superior a 30 mmHg associado à SAM da mitral e à insuficiência mitral grave (Figura 1). A quantificação exata do gradiente foi difícil pelo fluxo regurgitante da insuficiência mitral. Figura 1 Ecocardiograma transtorácico realizado antes da administração de propranolol. 486 Damásio et al. Betabloqueador no Choque Cardiogênico Relato de Caso Após estes achados, suspendeu-se a amina vasoativa, retirou-se o balão e administrou-se 6 mg de propranolol endovenoso dividido em três doses separadas por 10 minutos, verificando-se subida da pressão arterial média para 65 mmHg e da pressão arterial sistólica para 90-100 mmHg (a paciente tinha pressão arterial média de 50 mmHg até então). Na reavaliação ecocardiográfica, constatou-se redução do gradiente e da gravidade da insuficiência mitral. A paciente iniciou betabloqueador, aporte de líquidos (de forma cuidadosa) e inibidor da enzima de conversão da angiotensina. O ecocardiograma realizado após 48 horas do início do betabloqueador mostrou VE com discreta hipocinesia apical e normalização da função sistólica; sem insuficiência mitral ou LVOTO (Figura 2). Para além da boa evolução ecocardiográfica também houve uma evolução clínica, analítica e eletrocardiográfica favorável (sem lesão de órgão-alvo apesar de 24 horas de choque). A paciente teve alta após nove dias, mantendo a terapêutica que fazia em domicílio: bisoprolol 5 mg, ácido acetilsalicílico 100 mg, pravastatina 40 mg, ramipril 10 mg. O diagnóstico à alta foi de cardiomiopatia de Takotsubo complicada com choque cardiogênico. O ecocardiograma à alta foi igual ao realizado nas 48 horas após o início do betabloqueador. Rev Bras Cardiol. 2013;26(6):485-88 novembro/dezembro Discussão Cerca de 1-2 % dos pacientes com suspeita de SCA têm cardiomiopatia de Takotsubo5. Deve-se suspeitar em mulheres pós-menopausa com coronariografia normal. A reversibilidade das alterações ecocardiográficas torna-se necessária para se fazer o diagnóstico. Na maioria dos casos há elevação do segmento ST e a troponina sérica está discretamente elevada. A paciente relatada cumpria os critérios da Mayo Clinic para o diagnóstico dessa doença. A incidência de choque nessa cardiomiopatia com necessidade de uso de balão intra-aórtico é de 6-46 %3. O balão, os inotrópicos e os diuréticos, usados habitualmente no choque cardiogênico em caso de LVOTO aumentam o GIV e causam instabilidade hemodinâmica3,5, como se verificou neste caso. O uso de diuréticos e a depleção de volume diminuem o volume intravascular e consequentemente o volume telediastólico ventricular, agravando a obstrução. Nesses doentes está recomendado o uso de betabloqueador e volume. O bloqueio dos receptores β1 diminui a contratilidade basal do VE, aumentando o tempo de diástole e o volume telediastólico3,5, com redução da obstrução. Em pacientes com sobrecarga hídrica é necessário equilíbrio entre a reposição excessiva de volume e a depleção agressiva de água. A paciente apresentava septo interventricular espessado, um dos mecanismos identificados de maior probabilidade para ocorrer LVOTO. Figura 2 Ecocardiograma transtorácico realizado após a administração de propranolol. 487 Rev Bras Cardiol. 2013;26(6):485-88 novembro/dezembro Potencial Conflito de Interesses Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes. Fontes de Financiamento O presente estudo não teve fontes de financiamento externas. Vinculação Acadêmica Este artigo representa parte do estágio em Ecocardiografia do internato em Cardiologia de Ana Filipa Caldeira Damásio, pelo Hospital Espírito Santo de Évora, Portugal. Damásio et al. Betabloqueador no Choque Cardiogênico Relato de Caso 2. 3. 4. Referências 5. 1. Stöllberger C, Finsterer J, Schneider B. Transient left ventricular dysfunction (tako-tsubo phenomenon): findings and potential pathophysiological mechanisms. Can J Cardiol. 2006;22(12):1063-8. 488 Merli E, Sutcliffe S, Gori M, Sutherland GG. Tako-tsubo cardiomyopathy: new insights into the possible underlying pathophysiology. Eur J Echocardiogr. 2006;7(1):53-61. Ionescu A. Subaortic dynamic obstruction: a contributing factor to haemodynamic instability in tako-tsubo syndrome? Eur J Echocardiogr. 2008;9(3):384-5. Barriales Villa R, Bilbao Quesada R, Iglesias Río E, Bayón Meleiro N, Mantilla González R, Penas Lado M. [Transient left ventricular apical ballooning without coronary stenoses syndrome: importance of the intraventricular pressure gradient]. Rev Esp Cardiol. 2004;57(1):85-8. Migliore F, Bilato C, Isabella G, Iliceto S, Tarantini G. 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