ENTIDADE MANTENEDORA INSTITUTO FILADÉLFIA DE LONDRINA Sra. Ana Maria Moraes Gomes Sra. Edna Virginia C. Monteiro De Mello Presidente Vice-presidente Sr. Edson Aparecido Moreti Secretário Sr. José Severino Tesoureiro Dr. Osni Ferreira (Rev) Chanceler Dr. Eleazar Ferreira Reitor Reitor Dr. Eleazar Ferreira Pró-Reitor de Ensino de Graduação Prof.º Ms. Lupercio Fuganti Luppi Coordenadora de Controle Acadêmico Esp. Alexsandra Pires Lucinger Coordenador de Ação Acadêmica Prof.º Ms. Lupercio Fuganti Luppi Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Profª. Dra. Damares Tomasin Biazin Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários Prof.º Dr. Mario Antônio da Silva Coordenadora de Extensão e Assuntos Comunitários Prof.º Drª. Valéria Maria Barreto Motta dos Santos Coordenador de Pesquisa e Publicações Científicas Prof.º Dr. Fernando Pereira dos Santos Coordenadora de Projetos Especiais e Assessora do Reitor Josseane Mazzari Gabriel Coordenador Geral Acadêmico da UniFil VIRTUAL Prof. Dr. Leandro Henrique Magalhães Coordenadores de Cursos de Graduação • Administração - Prof.ª Esp. Denise Dias Santana • Agronomia - Prof.º Dr. Fabio Suano de Souza • Arquitetura e Urbanismo - Prof.º Ms. Ivan Prado Junior • Biomedicina - Prof.ª Ms.Karina de Almeida Gualtieri • Ciências Biológicas - Prof.º Dr. João Antônio Cyrino Zequi • Ciência da Computação - Prof.º Ms.Sergio Akio Tanaka • Ciências Contábeis - Prof.º Ms. Eduardo Nascimento da Costa • Direito - Prof.º Dr. Osmar Vieira da Silva • Educação Física - Prof.ª Ms. Joana Elisabete Ribeiro Pinto Guedes • Enfermagem – Prof.ª Ms. Rosângela Galindo de Campos • Engenharia Civil - Prof.º Dr. Paulo Adeildo Lopes • Estética e Cosmética - Prof.ª Esp. Mylena C. 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Ms. Ana Paula Sefrin Saladini Prof. Ms. Douglas Bonaldi Maranhão Prof. Ms. Henrique Afonso Pipolo Prof. Ms. Luciana Mendes Pereira Prof. Ms. Anderson de Azevedo Prof. Ms. Mario Sergio Lepre Prof. Ms. Renata Cristina Oliveira Alencar Silva Profa. Ms. Cintia Patricia Romanholi Prof. Ms. Sandra Cristina M. N. Guilherme de Paula Prof. Ms. Denise Américo de Souza Prof. Ms. Ederson Safra Prof. Ms. Rodrigo Brun Silva Profa. Ms. Schirley Heritt CONSELHO CONSULTIVO Min. José Augusto Delgado (UFRN) Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC) Prof. Dr. Arnaldo de Moraes Godoy (UCB-DF) Prof. Dr. Gilberto Giacóia (UNESPAR) Prof. Dr. Luiz Fernando Bellinetti (UEL) Profª. Drª. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (USP) Profª. Drª. Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira (UNIPAR) Profª. Drª. Maria de Fátima Ribeiro (UNIMAR) CATALOGAÇÃO ELABORADA PELA DIVISÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS DA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA. Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Revista jurídica da UniFil / Centro Universitário Filadélfia. Colegiado do Curso de Direito. – v. 10 n.10 (2013) – Londrina : UniFil, 2013. 1 v. : il. Anual. Descrição baseada em: v. 1 n.1 (2004). ISSN 1087-1627 1. Direito – Pesquisa – Periódicos. 2. Pesquisa jurídica – Periódicos. 3. Direito – Estudo e ensino – Periódicos. I. Centro Universitário Filadélfia. CDU 34(05) SUMÁRIO ARTIGOS A RELAÇÃO ESTABELECIDA ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E O DIREITO INTERNO Adalberto Fraga Veríssimo Junior DA VIABILIDADE DA ARBIRTRAGEM NOS CONFLITOS DAS RELAÇÕES DE CONSUMO Anderson de Azevedo Dinéa Raquel Daudt de Mello REFLEXÕES A RESPEITO DO DIREITO À LIBERDADE EM RELAÇÃO À TRIBUTAÇÃO Antonio Carlos Lovato O PERFIL DO JUIZ GESTOR: O INTERCÂMBIO INTERDISCIPLINAR COMO CRITÉRIO CATALISADOR DE UMA BOA GESTÃO Artur César de Souza PODE O EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA SER CONVOCADO A DEPOR EM COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - CPI? Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz CONSTITUCIONALIDADE DO PACTO DE SÃO JOSE DA COSTA RICA João Ricardo Anastácio da Silva PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DO ACERTAMENTO JUDICIAL DA RELAÇÃO JURÍDICA DE PROTEÇÃO SOCIAL José Antonio Savaris ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO José Antonio Marques Osmar Vieira da Silva O CONSENTIMENTO INFORMADO NOS TRATAMENTOS DE DROGADIÇÃO Lígia Martins de Toledo Leme Luciana Mendes Pereira REFLEXÕES SOBRE A ONTOLOGIA SOCIAL EM LUKÁCS Marco Antonio Rossi A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE NA FIGURA DO AMICUS CURIAE Sérgio Aziz Ferrareto Neme PARECERES DIREITO ADQUIRIDO E APOSENTADORIA DE MAGISTRADOS. Carlos Thompson Flores DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Candido Rangel Dinamarco EDITORIAL A construção de uma sociedade livre, igualitária e democrática é fruto do constante do aprendizado e da multiplicação do conhecimento. Sem o constante compartilhamento do conhecimento não há democracia, sem conhecimento não há liberdade, muito menos igualdade. Apreender e multiplicar conhecimento é mais do que um direito fundamental; acima de tudo corresponde a um dever de todos os cidadãos para a consolidação de uma sociedade mais justa e solidária . A UNIFIL, ciente do seu papel na sociedade brasileira, oferece esse espaço cultural e científico para todos aqueles que desejam compartilhar aprendizado e conhecimento, a fim de cumprir com o seu papel de cidadão. A Revista Jurídica da UNIFIL é um importante instrumento de disseminação e frutificação do conhecimento, possibilitando o intercâmbio da ciências jurídica com as demais ciências afins. Por meio desse intercâmbio da construção do conhecimento, permite-se que os diversos ramos cognitivos de uma Universidade possam sedimentar-se num conhecimento amplo e global, corrigindo rumos e acertando marcos divisórios, sem nunca perder a autopoiese de cada centro de multiplicação do saber. Venha participar você também dessa construção e multiplicação do conhecimento, cumprindo com o seu papel de cidadão e contribuindo para a sedimentação de uma sociedade brasileira mais democrática. Conselho Editorial MENSAGEM DA REITORIA Decorridos dez anos da primeira edição da Revista Jurídica da Unifil, podemos dizer que ela já está devidamente madura como veículo de divulgação e socialização do conhecimento jurídico. Da lavra dos mais respeitados autores, os artigos publicados nesses dez anos trataram de vários temas, das mais variadas áreas do Direito, de forma a permitir ao leitor uma didática e contextualizada análise dos temas propostos. Com essa edição, a Unifil, através do seu Curso de Direito, mais uma vez, cumpre seu relevante papel institucional de fomentar a cultura jurídica, permitindo que seus alunos e a comunidade jurídica em geral tenham acesso a textos jurídicos da mais alta qualidade. Lembramos que a revista tem divulgação simultânea por meio impresso e eletrônico na Internet, em modo de acesso aberto, dando maior visibilidade à Revista Jurídica da Unifil. Cumprimentando os Conselhos Editorial e Consultivo e os autores que figuram nessa Revista, de tão esmerada confecção, agradecemos a participação e desejamos uma excelente leitura a todos. Londrina, agosto de 2013. Dr. Eleazar Ferreira Reitor A RELAÇÃO ESTABELECIDA ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E O DIREITO INTERNO Adalberto Fraga Veríssimo Junior1 RESUMO O presente estudo tem por escopo distinguir as concepções existentes em torno da relação que se estabelece entre o Direito Internacional Público e o Direito Interno, apresentando os pontos em que convergem e divergem, bem como destacar a existência de uma nova teoria para o solucionamento dos conflitos aparentes entre ambos os sistemas jurídicos. PALAVRAS-CHAVE: Direito Internacional Público. Direito Interno. Teoria Monista. Teoria Dualista. ABSTRACT The scope of this study is to distinguish existing conceptions about the relationship that is established between the Public International Law and Domestic Law, presenting the points that converge and diverge, as well as highlighting the existence of a new theory to the solving of the apparent conflicts between the two legal systems. KEY-WORDS: Public International Law. Domestic Law. Monist Theory. Dualist Theory. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 A PROBLEMÁTICA DO TEMA. 3 TEORIA DUALISTA. 4 TEORIA MONISTA. 4.1 Monismo Nacionalista. 4.2 Monismo Internacionalista. 4.3 Monismo Internacionalista Dialógico. 5 O STATUS HIERÁRQUICO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMUNS E A NOVA PIRÂMIDE NORMATIVA. 6 CONFLITOS ENTRE TRATADOS INTERNACIONAIS COMUNS E NORMAS DA CONSTITUIÇÃO. 7 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO 1 Adalberto Fraga Veríssimo Junior é Acadêmico do 5º ano de Direito do Centro Universitário Filadélfia de Londrina – UNIFIL; Estagiário de Direito na Câmara Municipal de Londrina. E-mail: [email protected]. A proposta do presente trabalho é apresentar ao leitor uma visão da sistemática envolvendo a relação do Direito Internacional Público e o Direito Interno, buscando solucionar os possíveis conflitos aparentes entre os tratados internacionais comuns e as normas constitucionais. Existe na doutrina internacional, duas correntes sobre o tema: a dualista e a monista. A primeira entende a relação dos dois sistemas como objetos distintos um do outro, sendo, portanto, congruentes, mas não comunicantes, rejeitando a interferência de um sistema no outro; já a segunda, além de aceitar a possibilidade de um sistema interferir no outro, admite a prevalência de um ordenamento sobre o outro, gerando duas alas, uma defendendo a imposição do direito interno (nacionalista) e outra sustentando a prevalência do direito internacional (internacionalista). Para além destas duas alas monistas, há que se registrar o surgimento de uma nova concepção da relação dos dois sistemas, em especial quando o objeto do tratado versar sobre direitos humanos, que é denominada de internacionalista dialógica, onde se declara a preferência pelo direito internacional, porém, se admite a aplicabilidade de norma interna desde que seja ela mais benéfica ao ser humano, cuja autorização vem expressa no corpo da norma internacional, materializada nos tratados. Para isso, também é mister que seja verificado com qual status hierárquico os tratados internacionais comuns ingressam no ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que os tratados internacionais também constituem paradigmas de controle da produção normativa doméstica, devendo ser analisado a compatibilidade das leis internas com os documentos internacionais. Uma vez conhecida a posição hierárquica dos tratados internacionais, é possível que seja realizado o controle normativo, seja ele de legalidade ou supralegalidade. 2 A PROBLEMÁTICA DO TEMA Sob o magistério de Valério Mazzuoli (2011, p. 74; 2013A, p.80), verifica-se a controvérsia que ainda existe no que tange às relações envolvendo o Direito Internacional Público e o Direito Interno. O ponto central deste embate reside na questão de se, depois de cumprido todos os tramites para a ratificação de um tratado, torna-se necessária a edição de um ato normativo para materializar o documento internacional na ordem interna, ou se tal sistemática seria dispensável. Esta questão pode ser analisada de duas maneiras distintas: sob a ótica do Direito Internacional, que irá estudar o problema de fora para dentro; e do Direito Interno, que busca entender o fenômeno de dentro para fora. Cada Estado, seguindo os seus fatores internos, poderá disciplinar a matéria da forma que melhor lhe aprouver, no entanto, não haverá óbices ao Direito Internacional, por ocupar uma condição de superioridade quanto aos ordenamentos, poderá “dar a última palavra” (MAZZUOLI, 2011, p. 75). Continua o internacionalista afirmando que, atualmente, busca-se encontrar respostas para o solucionamento destes conflitos. Em suas palavras: Frise-se, porém, que a tendência atual (que também entendemos como correta) é mais no sentido de procurar respostas concretas para os conflitos entre as ordens internacional e interna que propriamente continuar o debate teórico (já ultrapassado) entre os defensores de uma ou outra concepção. Tal não significa, contudo, que o problema das relações entre o Direito Internacional Público e o Direito interno perdeu interesse jurídico ou não tenha relevância prática, notadamente no que respeita à hierarquia (ou ausência de hierarquia) entre as normas relevantes dos dois sistemas (MAZZUOLI, 2011, p. 75). Assim, para cumprir com o que foi dito acima pelo professor Valério, surge na doutrina duas grandes correntes doutrinárias2 para apontar soluções ao tema: a dualista, que ganhou força nos estudos de Triepel, na Alemanha, e Anzillotti, na Itália; e, a monista, que vê em Kelsen o seu maior defensor. 3 TEORIA DUALISTA Insta esclarecer, inicialmente, que a primeira vez que a expressão “dualismo” foi utilizada por Alfred von Verdross, em 1914, tendo sido aceito por Carl Heinrich Triepel, em 1923, e posteriormente por Strupp, Walz, Listz, Anzillotti, Balladore Pallieri e Alf Ross (MAZZUOLI, 2011, p. 75). Para os seguidores do dualismo, o Direito Interno e o Direito Internacional constituem dois sistemas jurídicos distintos e independentes entre si, que podem ser compreendidos como dois círculos que não interceptam um ao outro. É como diz Mazzuoli 2 Existe ainda uma terceira corrente conciliatória ou mista, que não conseguiu encontrar amparo, nem nas normas, nem na jurisprudência, portanto, não será objeto deste ensaio. (2013, p. 80), “o direito internacional regularia as relações entre os Estados, enquanto o direito interno destinar-se-ia à regulação da conduta do Estado com os indivíduos”. Assim, por não tratarem da mesma matéria, não há que se falar em conflito entre os dois sistemas. Assim sendo, segundo os dualistas, “quando um Estado assume um compromisso exterior o está aprovando tão somente como fonte do Direito Internacional, sem qualquer impacto ou repercussão no seu cenário normativo interno” (MAZZUOLI, 2011, p. 75-76). Essa concepção dualista emana do entendimento de que os tratados internacionais refletem apenas as obrigações assumidas pelo Estado na ordem internacional, sem que, com isso, influem na sua vida interna, não podendo um sistema interferir no outro. Ou seja, não há qualquer relação entre ambos, muito menos nenhuma espécie de contato. Triepel (apud MAZZUOLI, 2011, p. 76) propõe esta fórmula quando diz que "o direito internacional rege as relações entre os Estados, e o direito interno as relações entre indivíduos". Por esta razão, segundo o entendimento dos dualistas, os acordos internacionais que forem assumidos pelo Estado precisam ser materializados em uma norma jurídica de direito interno (lei lato sensu), para que então possam produzir efeitos no âmbito interno, haja vista que não podem gerar efeitos imediatos sem que internalizados por instrumento jurídico doméstico. 4 TEORIA MONISTA Por outro lado, ao contrário do que entende a concepção dualista, a teoria monista entende que há unidade no conjunto das normas jurídicas. Nas palavras bem postas de Valério Mazzuoli (2013, p. 81) Enquanto para os dualistas as ordens jurídicas interna e internacional são estanques, para os monistas estes dois ordenamentos jurídicos coexistem, mas se superpõem, formando uma escala hierárquica onde o direito internacional subordina o direito interno ou vice-versa. Assim, ao ratificar um tratado internacional, o Estado se obriga na ordem internacional. E, se tal documento estabelecer obrigações para a ordem interna, não se exige a edição de lei, ou outro ato normativo, para internalizar a norma convencional, transformandoa em instrumento aplicável ao direito interno. Continua o professor ensinando que, ao aceitar o monismo, dever-se-á optar por uma de suas variantes, como forma de se descobrir qual ordem jurídica prevalecerá, quando da existência de conflitos, se a internacional ou a interna, tornado aplicável a teoria monista internacionalista ou a teoria monista nacionalista, respectivamente. 4.1 Monismo Nacionalista A ala dos que defendem a superposição da norma interna baseia-se no sistema de Hegel, sendo que, para eles, torna-se uma faculdade do Estado a aceitação das normas internacionais. Comentando sobre o tema, Mazzuoli (2013, p. 82) afirma que, para os monistas nacionalistas “o direito internacional só tem valor internamente sob o ponto de vista do ordenamento interno do Estado, pois é a Constituição deste mesmo Estado que prevê quais são os órgãos competentes para a celebração de tratados internacionais”. Os monistas nacionalistas possuem como principais argumentos a inexistência, no âmbito internacional, de um poder supranacional que vincule o Estado ao cumprimento das ordens internacionais, e a fundamentação constitucional dos poderes constituídos de cada Estado, para celebrar tratados em nome deste, que venham obrigá-lo no plano da sociedade das nações (MAZZUOLI, 2013, p. 83). 4.2 Monismo Internacionalista A corrente monista internacionalista, que teve grande influência na Escola de Viena, liderada por Kelsen, Verdross e Kunz, advoga o primado do direito internacional sobre o interno. Assim, conforme explica Mazzuoli (2013, p. 83), em razão do princípio pacta sunt servanda, “no ápice da pirâmide normativa, encontra-se o direito internacional, de que deriva o direito interno, que lhe é subordinado”. Na visão radical de Kelsen as normas de direito interno não podem afrontar as normas internacionais, sob pena de incorrerem em nulidade, tendo em vista que estas são a fonte do direito interno. Assim sendo, não se admite conflito entre ambos os sistemas jurídicos. Porém, Verdross, em um posicionamento mais moderado, advoga que o Estado poderá impugnar a norma conflitante solicitando a sua revogação ou inaplicabilidade diante do caso concreto. O magistrado deverá aplicar os dois sistemas jurídicos conforme as disposições do seu ordenamento interno, em especial a Constituição, de modo que, em havendo conflito entre as normas internacionais e internas deverá solucioná-los pelo critério cronológico (MAZZUOLI, 2013, p. 83). Para Mazzuoli (2013, p. 84), a tese mais adequada entre os monistas é a corrente sustentada pela Escola Austríaca, porque “permitir o solucionamento de controvérsias internacionais, fomenta o desenvolvimento do direito internacional e a evolução da comunidade das nações rumo à concretização de uma sociedade internacional universal”. A diferença encontrada entre as duas alas refere-se ao “fundamento de validade” do direito internacional, e não ao conteúdo destas normas, ou seja, a diferença está no ponto de referência. 4.3 Monismo Internacionalista Dialógico Se as relações entre o direito internacional e o direito interno forem sobre direitos humanos, o professor Valério Mazzuoli (2013, p. 85) propõe a utilização da corrente monista internacionalista dialógica. É dizer que, “se é certo que, à luz da ordem jurídica internacional, os tratados internacionais sempre prevalecem à ordem jurídica interna”, onde poderá haver coexistência e diálogo entre as leis internas e as leis internacionais. A autorização para esse diálogo pode vir expressa nos próprios tratados internacionais de direitos humanos, que consagram a primazia das normas mais favoráveis ao ser humano, como acontece com a CADH, que prevê esta regra no seu art. 29, alínea b. A hierarquia das normas consagra a prevalência da ordem internacional sobre a ordem interna, mesmo ao autorizar a aplicação de norma mais benéfica, que conforme ensina Mazzuoli (2013, p. 85-86) é autorização da própria norma internacional que lhe é superior. Em outras palavras é reconhecer a existência da prevalência do direito internacional, porém, dialogando com a norma interna, por isso monismo internacionalista dialógico, principalmente quando se tratar de tema relacionado aos direitos humanos. Assim, a inserção de cláusulas de diálogo nos tratados internacionais busca impedir a existência de antinomias entre os dois sistemas. 5 O STATUS HIERÁRQUICO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMUNS E A NOVA PIRÂMIDE NORMATIVA. Não obstante o Supremo Tribunal Federal venha conferindo o status de legalidade aos tratados internacionais comuns desde o julgamento do RE 80.004/SE, desde 1977, entende-se que este não é o melhor posicionamento hierárquico para estes diplomas normativos. Este posicionamento foi levantado pelo Min. Xavier de Albuquerque, ao relatar o julgamento do RE 80.004/SE, que versava sobre a Convenção de Genebra, Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias. Em seu voto, o ministro relator entendeu que aos tratados internacionais, em geral, deveriam ser atribuídos o mesmo status de norma infraconstitucional, calcado na jurisprudência anterior, votou no sentido do primado dos tratados e convenções internacionais em relação à legislação infraconstitucional. O RE 80.004/SE foi o leading case que veio modificar o ponto de vista anterior do STF. A partir de então, o Excelso Pretório tem adotado o sistema paritário ou monismo nacionalista moderado, segundo o qual tratados e convenções internacionais têm status de lei ordinária. O grande problema encontrado neste posicionamento funda-se na possibilidade de que, em havendo conflito aparente entre as normas de direito internacional com as normas domésticas, aplica-se o critério de solução cronológica, na qual lex posteriori revogat lex priori. Assim, por esta doutrina, entende-se possível a revogação de tratado internacional por meio de lei ordinária posterior. Seguindo a linha do posicionamento até então vigente no STF, o professor Hidelbrando Accioly entende que as normas previstas nos tratados internacionais, devidamente aprovadas pelo Poder Legislativo e promulgadas pelo Presidente da República, ingressam no ordenamento jurídico brasileiro como atos normativos infraconstitucionais (ACCIOLY, 1991, p. 126). Dizer que os tratados comuns possuem a mesma qualidade de norma infraconstitucional ordinária é permitir que, no caso de conflito aparente entre os dois sistemas jurídicos, aplicar-se-á o critério cronológico para a solução das antinomias, o qual lex posteriori revogat lege priori. No mesmo sentido, uma vez reconhecendo a legalidade dos tratados comuns considera-se a hipótese de revogação do texto convencional por meio da edição de normativos posteriores ao instrumento internacional. É claro que este posicionamento é um absurdo, constituindo flagrante violação aos princípios internacionais, onde o texto convencional é amplamente discutido pelos Estados-partes, votado e aprovado. Assim, se o Estado quiser se desobrigar do cumprimento das disposições do referido tratado deverá fazê-lo por meio do instituto da denúncia. Como exemplo de legislação interna que reconhece a supralegalidade dos tratados internacionais, tem-se a disposição do art. 983 do Código Tributário Nacional. Da redação legal, verifica-se que, os tratados internacionais, em matéria tributária, revogam ou modificam a legislação interna, quando forem divergentes, não obstante não possam ser revogados ou modificados por lei tributária superveniente. Note-se que os tratados em matéria tributária são tratados comuns, contudo, se os tratados em matéria tributária ampliarem, v.g., garantia dos contribuintes, podem ser considerados como tratados veiculadores de direitos fundamentais. Pelo preceito encontrado na legislação tributária, sobre a supralegalidade atribuídas aos tratados internacionais, segundo entende Hugo de Brito Machado (2004, pp. 67-68), é indubitável a primazia dos tratados em relação ao direito interno, de modo que nada poderá justificar a participação de determinando Estado na elaboração da norma internacional, e após isso sustentar “a prevalência de atos normativos anteriores, seus, em conflito com aquela norma multilateral voluntariamente produzida”. Por outro lado, a problemática encontrada pelo professor Valério Mazzuoli (2009), com relação aos tratados comuns, corresponde a inexistência de “cláusulas de diálogo” no corpo de seu texto, o que não é verificado nos textos internacionais de direitos humanos, que expressamente determinam a não exclusão da aplicabilidade do direito interno, quando, v.g., a norma interna for mais benéfica ao ser humano, em respeito ao princípio internacional pro homine. Dessa forma, entende-se que a solução dos conflitos entre as normas de direito interno e os tratados comuns há de ser realizada mediante o clássico critério hierárquico, tendo em vista que os tratados internacionais possuem prevalência sobre o ordenamento interno. Surge, então, a aplicação do controle de legalidade das leis, em relação aos tratados 3 Art. 98 do Código Tributário Nacional: “Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”. comuns, cuja fundamentação encontra-se na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, segundo o qual uma parte “não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”. 6 CONFLITOS ENTRE TRATADOS INTERNACIONAIS COMUNS E NORMAS DA CONSTITUIÇÃO Com o julgamento pelo STF do RE 80.004/SE, o tribunal entendeu, por maioria, que ante a realidade do conflito entre o tratado e lei posterior, deveria prevalecer esta última, por ser a expressão da última vontade do legislador. Esse posicionamento veio rever a antiga tese da Corte Suprema que, até então, apregoava a superioridade do direito internacional diante do ordenamento interno (MAZZUOLI, 2001). Dentro do atual sistema jurídico, os tratados e convenções internacionais, conforme entendeu o STF no julgamento do RE 80.004/SE, guardam relação de paridade normativa com as leis ordinárias editadas pelo Estado, situando os documentos internacionais no mesmo patamar hierárquico das leis internas. Assim, as normas internacionais passaram a ser consideradas, conforme o entendimento do professor Valério Mazzuoli (2001) com o mesmo “status e valor jurídico das demais disposições legislativas internas, pois a Constituição da República, ao tratar da competência do STF, teria colocado os tratados internacionais ratificados no Estado brasileiro, no mesmo plano hierárquico das normas infraconstitucionais”. Este novo entendimento fez com que o então ministro Francisco Rezek, quando do julgamento do pedido de Extradição nº. 426 (RTJ 115/973), declarasse a “prevalência à última palavra do Congresso Nacional, expressa no texto doméstico, não obstante isto importasse o reconhecimento da afronta pelo País, de um compromisso internacional. Tal seria um fato resultante da culpa dos poderes políticos, a que o Judiciário não teria como dar remédio”. Este posicionamento do STF, de reconhecer a possibilidade de um tratado internacional perca vigência, em decorrência da edição de lei posterior e conflitante, nas palavras de Mazzuoli (2001), é “permitir que um tratado possa, unilateralmente, ser revogado por um dos Estados-partes, o que não é permitido e tampouco compreensível”, tendo em vista que, na maioria das vezes, estes compromissos visam estabelecer situações a serem observados no âmbito interno dos Estados. Deste modo, uma vez aprovado um tratado internacional, o Poder Legislativo se obriga a não editar normas que sejam contrárias. A superioridade do Direito Internacional frente ao Direito interno foi declarada expressamente pela Corte Permanente de Justiça Internacional em 1930, ao declarar que “é princípio geral reconhecido, do Direito Internacional, que, nas relações entre potências contratantes de um tratado, as disposições de uma lei não podem prevalecer sobre as do tratado”; posteriormente, em 1932, a Corte Permanente de Justiça Internacional determinou ainda que “um Estado não pode invocar a sua própria Constituição para se esquivar a obrigações que lhe incubem em virtude do Direito Internacional ou de tratados vigentes”; pela ONU em 1948, ao argumentar que “os tratados validamente concluídos pelo Estado e regras geralmente reconhecidas de Direito Internacional formam parte da lei interna do Estado e não podem ser unilateralmente revogados puramente por ação nacional”, e adotada ainda expressamente no artigo 27º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 (MAZZUOLI, 2013, p. 84). Quando uma Constituição estabelece que o Estado reconhece, e acata, os princípios ou as normas de direito internacional, ela está assumindo o art. 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, que foi assinada pelo Brasil em 1969, e incorporada ao ordenamento brasileiro em 2009, mediante a edição do Decreto 7.030/2009, tendo sido opostas reservas apenas aos artigos 25 e 66. E nesse sentido, a atual Carta Magna consagra, em seu art. 4º, os princípios que serão adotados pelo Estado brasileiro em suas relações internacionais, e nos arts. 102, III, b, 105, III, a, 109, III e IV, as disposições no que concerne à aplicação dos tratados pelo Poder Judiciário (MAZZUOLI, 2001). Para além destas questões, o STF firmou o entendimento, proferido no Agravo Regimental interposto na Carta Rogatória 8.279, de 17.06.1998, de que o art. 4°, parágrafo único, da Lei Maior, não confere um procedimento privilegiado de incorporação ao direito interno aos tratados de integração regional. Isso porque tal dispositivo, analisado pelo Tribunal, possui conteúdo meramente programático e cujo sentido não torna dispensável a atuação dos mecanismos clássicos constitucionais de transposição para a ordem jurídica interna dos acordos celebrados pelo Brasil no âmbito do Mercosul. Sendo assim, é pacífico o entendimento, pela jurisprudência pátria, de que havendo um conflito entre uma lei anterior à promulgação do tratado e o próprio tratado, prevalece o tratado. Na situação inversa, qual seja, um conflito entre tratado e lei posterior, prevalece a lei posterior, independentemente das consequências pelo descumprimento do tratado no plano internacional. 7 CONCLUSÃO O embate doutrinário e jurisprudencial envolvendo as concepções monista e dualista é antigo, como se pode verificar, e não está perto de chegar ao fim, uma vez que tentam solucionar a questão da aplicação e da eficácia do Direito Internacional na ordem jurídica interna dos Estados. A tese sustentada pela corrente dualista, entende que o Direito Internacional e o Direito interno constituem dois sistemas jurídicas distintos. O monismo, por sua vez, acreditam que, entre o Direito Internacional e o Direito interno existe uma única ordem jurídica, de modo que, a depender da ala adotada, sustentar a prevalência da ordem jurídica internacional sobre a ordem interna ou, ao contrário, o primado ser atribuído à ordem interna. Sendo assim, o Direito Internacional constitui uma ordem jurídica, com hierarquia superior, limitando o poder soberano dos Estados. Desta forma, não obstante a jurisprudência internacional defender unanimemente a primazia do Direito Internacional sobre o Direito interno, este não é o posicionamento adotado no âmbito do Direito interno, de maneira uniforme. Segundo a doutrina internacional, esta questão poderia ser solucionada desde que existisse uma regra internacional que definisse expressamente a superioridade do Direito Internacional quando comparada com os ordenamentos internos. Assim, a questão da hierarquia entre os dois sistemas jurídicos, ainda é resolvida à luz do que estatui a ordem interna de cada Estado, sendo que, no caso brasileiro, a Constituição não determina expressamente a posição hierárquica das normas de Direito Internacional, à exceção apenas dos instrumentos relativos aos direitos humanos, que possui regulamentação especial no art. 5, §§ 2º e 3º, da Magna Carta. A jurisprudência brasileira passou então a conferir aos tratados em geral valor equivalente ao das leis infraconstitucionais e aos tratados de direitos humanos valor infraconstitucional, mas supralegislativo. Diante destes apontamentos, percebe-se a conflitante posição do STF, no que tange ao status hierárquico dispensado aos tratados internacionais comuns. Para o Tribunal, tais documentos possuem paridade com a legislação infraconstitucional ordinária, e em havendo conflito entre as disposições de tratado e lei interna posterior, permanecerá está última. Assim como a jurisprudência do STF evoluiu, ao reconhecer a prevalência dos tratados de direitos humanos sobre a legislação interna, mesmo que sejam supralegal, podemos aguardar uma nova evolução, tanto no que tange aos tratados comuns, reconhecendo a sua supralegalidade, quanto aos tratados de direitos humanos, reconhecendo o seu caráter de constitucionalidade (material e formal), conforme vem caminhando a doutrina. REFERÊNCIAS ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público. 11. ed., São Paulo: Saraiva, 1991. FRAGA, Mirtô. O conflito entre tratado internacional e norma de direito interno. Rio de Janeiro: Forense, 2006. MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional: artigos 96 a 138. Vol. 2. São Paulo: Atlas, 2004. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. 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REZEK, José Francisco. 2008. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 11 ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. DA VIABILIDADE DA ARBIRTRAGEM NOS CONFLITOS DAS RELAÇÕES DE CONSUMO Anderson de Azevedo4 Dinéa Raquel Daudt de Mello5 RESUMO Este artigo analisa a possibilidade de solucionar os conflitos da relação de consumo pela arbitragem. Apresenta as noções elementares de arbitragem e os requisitos legais para que o conflito possa ser submetido à decisão arbitral, como por exemplo, o fato de que somente interesses patrimoniais disponíveis podem estão sujeitos a esse modelo alternativo de solução de conflitos. Desenvolve, por outro lado, a ideia de que as normas da relação de consumo são consideradas de ordem pública e de interesse social e que, por essa razão, poderia se estabelecer aparente antinomia entre a arbitragem e a solução de conflitos da relação de consumo. Diferencia as modalidades de convenções arbitrais, entendendo que a convenção prévia (cláusula compromissória) não é permitida no âmbito das relações de consumo, por força de dispositivo expresso do Código de Defesa do Consumidor, enquanto o compromisso arbitral, estando no âmbito da disponibilidade do consumidor, é perfeitamente admissível. Por fim, destaca as vantagens da solução de conflitos de consumo pela arbitragem, especialmente a celeridade e a especialidade, o que garantem efetividade no acesso à justiça. PALAVRAS-CHAVE: Conflito de Consumo. Arbitragem. Viabilidade. ABSTRACT This article examines the possibility of resolving conflicts of consumer relationship by arbitration. Presents the basic notions of arbitration and legal requirements so that the conflict can be submitted to the arbitration award, such as the fact that only available property interests may be subject to this alternative model of conflict resolution. Develops, on the other hand, the idea that the rules of the consumption ratio are considered public order and social interest and, therefore, could establish apparent antinomy between arbitration and dispute resolution of consumer relationship. Differentiates the methods of arbitration agreements, understanding that prior agreement (clause) is not allowed under the consumer relations, under the express provision of the Code of Consumer Protection, while the arbitration agreement, being within the availability of consumer, is perfectly acceptable. Finally, highlights the advantages of the solution of consumer disputes by arbitration, especially the speed and 4 Mestre em Direito Negocial (UEL). Especialista em Filosofia Política e Jurídica (UEL). Docente de Direito das Relações de Consumo (UNIFIL). 5 Discente do Curso de Direito (UNIFIL). expertise, which ensure effective access to justice. KEYWORDS: Conflicts of consumer. Arbitration. Viability. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 ARBITRAGEM NOS CONFLITOS DAS RELAÇÕES DE CONSUMO. 3 CONFLITOS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO. 4 MECANISMOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. 5 ARBITRAGEM E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. 6 DIVERSAS VANTAGENS SOBRE A ARBITRAGEM NAS RELAÇÕES DE CONSUMO. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 1 INTRODUÇÃO O presente estudo versa sobre a viabilidade de utilizar o instituto da arbitragem em relação às lides que emanam das relações de consumo. A escolha do tema se pautou no fato de ser o direito do consumidor um assunto de extrema relevância no cotidiano de todos. Outro fator determinante para a escolha do tema foi o fato de estar o direito do consumidor consagrado na Constituição Federal de 1988 e incerto no rol das garantias fundamentais, o que atribui às normas que regulam o instituto o status de ordem pública e interesse social, imprimindo a natureza cogente à sua aplicação. O objetivo geral é analisar a viabilidade do uso da arbitragem para dirimir os conflitos advindos das relações de consumo, bem como verificar se há impedimento legal para que isto aconteça nas relações consumeristas. Com o advento da lei de arbitragem criada em 1996, a utilização deste instituto tem crescido e seu uso sendo cada vez mais incentivado, por ser um meio mais célere e eficaz de solucionar conflitos. O Código de Defesa do Consumidor por meio do artigo 4º, por um lado incentiva a criação e utilização de meios alternativos de solução de conflitos ao elencar esta possibilidade como um dos princípios a serem atendidos pela Política Nacional das Relações de Consumo na consecução de seus objetivos. A pesquisa bibliográfica do presente trabalho constatou que a doutrina tem se preocupado com o tema apresentado e parte dos doutrinadores consumeristas defendem a ideia de que a arbitragem pode e deve ser utilizada para dirimir os conflitos de consumo. Esta possibilidade, porém, não é consenso. Isto porque a própria Constituição Federal de 1988 consagrou a proteção aos consumidores como um direito fundamental e, portanto, como matéria de ordem pública, um limitador para a autonomia da vontade das partes na escolha da lei aplicável para as possíveis demandas advindas de suas relações. Ocorre que a lentidão da justiça brasileira é pública e notória e traz insatisfação generalizada. Este fato, somado à quantidade de processos que cada vez mais chegam para a apreciação do judiciário, tornam a prestação jurisdicional demorada e ineficiente, tornado-se cada vez mais imperativo a necessidade de se buscar meios alternativos para a solução de conflitos que atendam a expectativa dos consumidores em ver suas causas apreciadas com maior rapidez e eficiência. Nesse sentido o presente buscará debater a viabilidade de submeter os conflitos gerados das relações de consumo à arbitragem sem ferir o princípio legal, mas como uma alternativa de solução pactuada pelo princípio da autonomia da vontade das partes. 2 ARBITRAGEM NOS CONFLITOS DAS RELAÇÕES DE CONSUMO A arbitragem se mostra como um meio célere e eficaz em solucionar conflitos. Ela surge como uma alternativa viável para proporcionar o acesso à justiça. Hélcio Cunha (2010) declara que a arbitragem não tem a intenção de substituir a prestação jurisdicional estatal, mas certamente é uma alternativa viável para desafogar o judiciário. A primeira análise a ser feita antes de discutir a possibilidade do uso da arbitragem nas relações jurídicas de consumo refere-se aos requisitos impostos pela própria Lei de Arbitragem para a sua aplicabilidade. Já em seu primeiro artigo a Lei 9.307/96 estipula estas condições, quais sejam: que as partes tenham capacidade6 para contratar e que o litígio seja pertinente a direitos 6 A capacidade é definida legalmente pelo Código Civil no Livro I que trata das pessoas em seus artigos de 1º a 5º. patrimoniais7 disponíveis8. Dessa forma expressa o texto legal que “Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da Arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Segundo Cássio Penteado Jr. (2009, p.81) o que mais interessa em relação aos pressupostos de admissibilidade para aplicação da Lei de Arbitragem diz respeito à segunda condição, que foca em seu objeto, isto é, litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis e afirma: De forma sintética, parece possível afirmar, de logo, que o direito é disponível, quando é possível de ser transacionado, vale dizer, seu titular pode dispor sobre o direito que detém. Nessa simplificação, admite-se, portanto, uma categorização entre direitos disponíveis e indisponíveis, esses últimos dispostos em uma esfera tal, geralmente de natureza pública, que obsta – em princípio – a renúncia, a cessão, a transferência, ou, genericamente, qualquer espécie de transação. Em se tratando de direitos individuais, as obrigações que se originam da relação de consumo fundam-se basicamente sobre direitos patrimoniais disponíveis. Porém, o tratamento dado ao direito do consumidor no texto constitucional, inserindo a tutela consumerista no rol dos direitos e garantias fundamentais, outorga às normas criadas pelo Código de Defesa do Consumidor o status de “ordem pública e interesse social” 9, o que lhes atribui à natureza cogente10. Analisado por este prisma, a princípio, os conflitos advindos das relações de consumo não poderiam ser então dirimidos pela Arbitragem, posto que, embora as relações de consumo versem sobre direitos patrimoniais estes não entram na esfera da disponibilidade. Contudo, vários doutrinadores têm analisado este tema profundamente e considerado de forma diferente, dando um trato alternativo, sistêmico, à questão apresentada. Antes de analisar esta viabilidade, importa tecer algumas considerações sobre os tipos de conflitos que podem advir das relações de consumo, bem como dos mecanismos de solução de conflitos apresentados pelo Código de Defesa do Consumidor em seu texto, e que podem ser utilizados pelos sujeitos dessa relação. 7 Cunha (2010) “Tem-se por direito patrimonial aquele que possui objeto com valor pecuniário, como por exemplo, um carro, um piano. Em contrario sensu tem-se como direito não patrimonial ou extrapatrimonial aquele insuscetível de valoração pecuniária, como, por exemplo, a vida, o nome e demais direitos da personalidade”. 8 A característica da disponibilidade é sua transmissibilidade, ou seja, pode passar de uma pessoa para outra. 9 “O interesse público remete ao interesse da sociedade, da coletividade como um todo, que possui seus valores, anseios e necessidades, que são a tradução dos direitos que possui, muitos deles com características de indisponibilidade”. (FAVARON, 2008, p.99) 10 Normas cogentes são aquelas que se impõem mesmo contra a vontade das partes, tornando seu cumprimento obrigatório. 3 CONFLITOS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO Os conflitos11 se apresentam sempre que existe uma colisão de interesses entre as partes presentes numa relação jurídica e aqui, mais especificamente, em uma relação de consumo. O Código de Defesa do Consumidor traz em seu bojo uma série de normas que buscam prevenir e, ao mesmo tempo, determinar a responsabilidade nas mais diversas situações que podem gerar os conflitos entre consumidores e fornecedores. Sempre que houver a violação de algum dos direitos básicos12 do consumidor, expressos objetivamente no CDC, ou a violação de qualquer de seus princípios formadores, ou práticas que contrariem estes princípios, se estará diante de uma situação conflituosa. Entre as situações conflituosas, o Código destaca aquelas referentes à proteção da vida, saúde e segurança, o acesso às informações necessárias ao uso e conteúdo dos produtos e serviços oferecidos, bem como as de proteção contra a publicidade enganosa e abusiva e, principalmente, as relativas aos contratos de consumo. Cavalieri (2008, p.88) ressalta que “a expressão práticas abusivas é, evidentemente, genérica e, portanto, assim deve ser interpretada, para que nada lhe escape”. Nesse sentido tudo que afronte os princípios protetivos do Código de Defesa do Consumidor será considerado abusivo e, se praticados, se caracterizam como fonte de possíveis13 conflitos. Outro importante fator de geração de conflitos na seara consumerista e tratado especificamente pela Lei 8.078/90, diz respeito aos vícios e defeitos 14 decorrentes das chamadas anomalias de utilidade e de segurança dos bens e serviços disponibilizados no mercado de consumo. Naturalmente, o fato de um produto conter um vício ou defeito, não quer dizer que fatalmente o conflito se estabelecerá. Ciméa Bevilaqua (2001) relata que o consumidor 11 “Semanticamente, conflito deriva da palavra latina conflitus com a dimensão de choque entre duas coisas, embate de duas forças contrárias”. (FAVARON, 2008, p.86) 12 Os direitos básicos do consumidor estão elencados nos 10 incisos do artigo 6º da Lei 8.078/90. 13 Possíveis porque nem sempre o consumidor conhece seus direitos para poder exigi-los ou também pode ser que ao fazê-lo não enfrente a resistência do fornecedor, e neste caso o conflito não chega a se estabelecer. 14 Se faz necessário diferenciar vício de defeito. O vício é uma característica inerente ao produto ou serviço que os torna inadequados ao objetivo a que se destinam e podem ser aparentes ou ocultos. Já o defeito ocorre quando o vício extrapola o produto e atinge a pessoa do consumidor causando algum dano físico ou moral. Rizzatto Nunes (2009, p. 183) declara que pode haver vício sem defeito, mas não há defeito sem o vício. considera tais acontecimentos desagradáveis, mas passíveis de acontecer e sua primeira iniciativa é a de comunicar o fato ao fornecedor e procurar harmonizar a relação de consumo. Aliás, essa é mesmo a principiologia da relação consumerista. Neste caso para que o conflito surja dependerá da reação do fornecedor, que poderá reconhecer o dano e providenciar a reparação ou resistir à pretensão do consumidor recusando-se a assumir esta reparação. Aqui surge o conflito. Nesse sentido completa Bevilaqua (2011): Em resumo, a origem dos conflitos entre consumidores e fornecedores não reside nos atributos intrínsecos dos bens trocados, mas no rompimento das premissas que haviam possibilitado inicialmente a troca, a saber: a afirmação implícita da equivalência dos parceiros, que permitia neutralizar a assimetria de suas posições. O Código de Defesa do Consumidor procurou regular as mais diversas situações que possam gerar os conflitos, e deixou claro de quem é a responsabilidade no caso de descumprimento de suas normas. Estipulou um sistema específico no que diz respeito à responsabilidade pelo vício do produto e do serviço, previu a responsabilidade objetiva e solidária, como regra, e instituiu uma diversidade de mecanismos processuais de proteção àquele que é considerado vulnerável, tais como a inversão do ônus da prova, a desconsideração da personalidade jurídica, o privilégio de foro e, principalmente, diferentes mecanismos de solução desses mesmos conflitos. 4 MECANISMOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR O Código de Defesa do Consumidor elenca em seu artigo 5º15 uma série de instrumentos de ação para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo. São também meios disponíveis para a prevenção e solução de conflitos na seara consumerista. Dentre eles foram previstos os organismos administrativos específicos de proteção e defesa do consumidor (os PROCONS), que atuam administrativamente fiscalizando as relações de 15 Art.5º. Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o Poder Público com os seguintes instrumentos, entre outros: I – manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente; II – instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério Público; III – criação de delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de infrações penais de consumo; IV – criação de Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de litígios de consumo; V – concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações de Defesa do Consumidor. consumo e reprimindo atividades ilícitas no mercado de consumo. Nunes (2009a, p. 134) informa que “os Procons estaduais estão à frente de todos os órgãos públicos em matéria de atendimento ao consumidor, com larga atuação na orientação e conciliação”. Esses organismos possuem um importante papel de representatividade dos valores inerentes ao sistema consumerista e, via de regra, são respeitados no mercado consumo, até pela coercibilidade de suas decisões, geralmente coerentes e legitimadas pela legislação específica de tutela do consumidor. O autor também destaca a atuação dos Juizados Especiais que também se constituem em um meio de solução de conflitos e, inclusive, são expressamente citados pelo inciso IV do 5º artigo do Código do Consumidor como um dos instrumentos para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo. A grande maioria dos conflitos consumeristas acaba desaguando no leito dos Juizados Especiais Cíveis, nos balcões de atendimento popular, dos fóruns nas comarcas de todo o país. A possibilidade do consumidor formular reclamação diretamente, sem a assistência de advogado em causas pouco complexas, cujo valor não ultrapasse 20 (vinte) salários mínimos, é, em dúvida nenhuma, uma porta aberta par a efetivação da busca da tutela jurisdicional estatal. Além dos Procons e dos Juizados, as diversas agencias reguladoras16 criadas para fiscalizar a prestação de serviços públicos praticados pela iniciativa privada, também podem atuar como mediadoras para a solução de conflitos. Márcio Pirôpo Galvão e Mariantonieta Pailo Ferraz (2012) declaram que a criação de agências reguladoras por meio da Administração Pública Federal, tais como a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), entre outras, demonstra o interesse do Poder Público em criar meios alternativos de solução de conflitos para evitar o uso desnecessário da via judicial. Ademais, a própria regulamentação dada pelo Código, com relação às opções do consumidor relativo à situação descrita no artigo 18º17 e elencadas nos parágrafos 1º ao 4º do 16 As agências reguladoras são pessoas jurídicas de direito público, classificadas como autarquias. Seu papel consiste em intervir no domínio econômico e fiscalizar a prestação de serviços públicos praticados pela iniciativa privada, regulando, fiscalizando, mediando e arbitrando os conflitos dentro de suas respectivas áreas de atuação. (CARVALHO, 2002) 17 Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. § 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à mesmo artigo, são formas de harmonizar as relações de consumo evitando-se a via judicial. Embora o Código diga expressamente que o consumidor pode “exigir”, alternativamente e à sua livre escolha, a substituição do produto, a rescisão contratual com a restituição atualizada do preço pago, o abatimento proporcional do valor da mercadoria co vício, se houver resistência por parte do fornecedor em relação a tais pretensões, fatalmente, restará caracterizado um conflito e será necessária a intervenção através das vias administrativas ou jurisdicionais para a solução da lide. Para que as metas18 estabelecidas pela Política Nacional das Relações de Consumo sejam alcançadas, como o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, a proteção dos seus interesses econômicos e a melhoria de sua qualidade de vida, é necessário garantir ao consumidor o acesso à justiça e à jurisdição. Necessário também é observar que entre os princípios elencados no artigo 4º do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (2012, Vade Mecum) está o “incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo”. (grifo próprio) Com base neste princípio e de acordo com os objetivos a que se propõe a Política Nacional das Relações de Consumo, é que se deve analisar a viabilidade do uso da arbitragem como um desses meios alternativos para a solução de conflitos no âmbito das relações de consumo. 5 ARBITRAGEM E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR sua escolha: I – a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II – a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III – o abatimento proporcional do preço § 2º Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do prazo previsto no parágrafo anterior, não podendo ser inferior a sete nem superior a cento e oitenta dias. Nos contratos de adesão, a cláusula de prazo deverá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor. § 3º O consumidor poderá fazer uso imediato das alternativas do § 1º deste artigo sempre que, em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuir‑lhe o valor ou se tratar de produto essencial. § 4º Tendo o consumidor optado pela alternativa do inciso I do § 1º deste artigo, e não sendo possível a substituição do bem, poderá haver substituição por outro de espécie, marca ou modelo diversos, mediante complementação ou restituição de eventual diferença de preço, sem prejuízo do disposto nos incisos II e III do § 1º deste artigo. 18 Estas metas estão estabelecidas no artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor que também determina sobre quais princípios estes objetivos deverão ser alcançados. O artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor (2012, Vade Mecum), estabelece a nulidade, nos contratos de consumo, das cláusulas que possam prejudicar o consumidor. Entre estas cláusulas está, no inciso VII, aquela referente à utilização compulsória da arbitragem nos contratos que envolvem o fornecimento de produtos e serviços. Por certo, o legislador demonstrou preocupação em possibilitar que o fornecedor, mal intencionado, retire do consumidor a possibilidade de discutir determinado contrato em juízo, ou direcione a solução do conflito para determinada câmara arbitral. Por outro lado, o artigo 4º do mesmo Código dispõe que a Política Nacional das Relações de Consumo deve, entre outras coisas, incentivar a criação pelos fornecedores de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo. A arbitragem é um destes meios alternativos na solução de conflito e conforme descrito por Reis (2010), um instrumento auxiliar à Justiça Estatal bem mais eficiente e rápido que a própria Jurisdição Estatal. Mas será que o artigo 51 do Código do Consumidor ao determinar a nulidade de pleno direito das cláusulas que determinem a utilização compulsória de arbitragem impede que este instituto seja utilizado nas lides de consumo? Para analisar esta aparente antinomia se faz necessário abordar, ainda que brevemente, a cláusula compromissória do compromisso arbitral na convenção de arbitragem. A Convenção de Arbitragem é gênero do qual são espécies a cláusula compromissória e o compromisso arbitral. A cláusula compromissória é a previsão em contrato de que, caso surjam conflitos, estes serão submetidos à arbitragem, ou seja, ela nasce no momento que se estabelece o contrato e, portanto, antes do conflito. Já o compromisso arbitral é pactuado após o surgimento do conflito, quando as partes decidem de comum acordo que irão submeter o litígio à solução arbitral. O artigo 51 do Código do Consumidor proíbe a “utilização compulsória” da arbitragem. Sobre isto, Antônio Junqueira de Azevedo (1996) observa que esta expressão parece supor uma permissão de cláusula de arbitragem facultativa. Analisando então sob o aspecto do momento em que a cláusula ou o compromisso arbitral são pactuados, pode-se dizer que, em relação às lides de consumo, a cláusula compromissória não poderia ser utilizada19, posto que obrigaria o consumidor a se subter ao procedimento mesmo antes de surgir o conflito, dando margem ao seu estabelecimento compulsório. Já o compromisso arbitral, uma vez que necessita do consentimento mútuo das partes para ser instaurado, não está proibido pelo Código do Consumidor. Neste sentido Azevedo (1996) declara: A primeira observação a fazer é que o compromisso não está proibido; ele literalmente, não é clausula, é ato autônomo; além disso é realizado quando já há controvérsia existente, de tal forma que, se abuso houver, este terá que ser examinado in concreto; a lei, a priori, não o pressupõe. Uma vez, porém, feito o compromisso, é válido porque, sem abuso do consumidor, a arbitragem que se segue terá, por sua vez, que ser decidida sem ferir as normas cogentes do Código de Defesa do Consumidor. Andrighi (2006, p.18) compartilha a mesma linha de pensamento, explicando que o que é vedado pelo Código de Defesa do Consumidor é a “utilização compulsória da arbitragem”, o que não impede que o consumidor busque por livre vontade a solução de suas controvérsias por meio do procedimento arbitral, e dessa forma argumenta: O legislador consumerista, inspirado pelo princípio de proteção ao hipossuficiente, reputou prejudicial ao consumidor a pactuação, em contrato, de convenção de arbitragem, por entender que, usualmente, no momento da contratação, faltam informações suficientes ao consumidor para que possa optar, livremente e de forma consciente, pela adoção do procedimento arbitral como meio de solucionar futuro conflito de consumo. Proibiu-se com isso, a adoção prévia e compulsória da arbitragem no momento da celebração do contrato. No entanto, é possível que, posteriormente, já quando configurado o conflito, seja instaurado o procedimento arbitral. Luciano Benetti Timm e Luiz Gustavo Meira Moser (2010) também reforçam este pensamento, concluindo não existir óbice ao exercício da arbitragem nas relações de consumo. Pelo contrário, os autores analisam que existe até mesmo o incentivo a este meio de solução de conflitos por meio do artigo 4º, V do Código do Consumidor. Alertam, contudo, que o referido diploma legal não permite a cláusula contratual da arbitragem. Todavia, a escolha voluntária pela arbitragem através do compromisso arbitral é exercício legal do direito do consumidor. 19 Thiago Figuieredo Fujita (2008) alega que “o ponto principal desse entendimento é simples e se baseia na premissa de que, no momento da assinatura do contrato, existem duas partes desiguais na relação e a mais forte, no caso o fornecedor, como é parcial na relação, vai, intuitivamente, tentar tirar vantagem do acordo, induzindo o consumidor a aceitar a cláusula que concede poderes para a instituição de arbitragem de sua confiança, obrigatoriamente, dirimir o conflito”. Ora, por estas análises o que se constata é que não há impedimento legal para a utilização da arbitragem nos conflitos de consumo, desde que sua implementação ocorra após a instauração do conflito por meio do compromisso arbitral, respeitando a livre vontade das partes e que sejam obedecidas as regras do Código de Defesa do Consumidor na sua aplicação. Assim, toda a controvérsia de conflito de relações de consumo levada para ser discutida por meio da arbitragem teria que ter como pressuposto para o seu arbitramento o direito material estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, não podendo o árbitro embasar a sua decisão por outra fonte que não a Lei Consumerista e a Constituição, que, de antemão, protege o consumidor. 6 DIVERSAS VANTAGENS SOBRE A ARBITRAGEM NAS RELAÇÕES DE CONSUMO Certamente, dentre outras diversas vantagens, um dos principais benefícios do uso da arbitragem nas lides de consumo diz respeito à celeridade e eficiência que o instituto traz em comparação ao processo judicial. Sobre esse aspecto Cahali (2012) discorre: Também se pode apontar como benefício do procedimento arbitral a sua rapidez, principalmente ao se tomar como paradigma o processo judicial. Enquanto a “taxa de congestionamento” de nossos tribunais aponta um prazo demasiadamente longo para o trânsito em julgado de uma sentença judicial, a Lei de Arbitragem estabelece que o procedimento arbitral deva encerrar em seis meses após a instituição da arbitragem, embora as partes, árbitro e os regulamentos das câmaras arbitrais possam dispor de forma diversa. O autor também informa que outro motivo dessa viabilidade é o fato do julgamento arbitral se dar em instância única, sem os intermináveis recursos20, sempre previstos na jurisdição estatal. Szklarowsky (2005) afirma que a celeridade e eficiência é pressuposto fundamental da arbitragem e este instituto se constitui em um instrumento que pode e deva ser utilizado em benefício das pessoas diante da caótica situação dos órgãos prestadores de serviços jurisdicionais. Helder Fábio Cabral Barbosa (2010) segue a mesma linha de pensamento e 20 Lei da Arbitragem: Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. acrescenta que a arbitragem nas relações de consumo já é uma realidade em diversos países que buscam imprimir qualidade nas relações de consumo e eficiência, simplicidade, imparcialidade e rapidez na solução das eventuais lides que surgem dessa relação. A possibilidade de se criarem organismos especializados na solução de conflitos nas relações de consumo também é outra vantagem. A Jurisdição Estatal alberga uma centenas de conflitos, das mais variadas e diferentes origens e estirpes jurídicas. A criação de Câmaras Arbitrais especializadas na solução de conflitos consumeristas seriam, efetivamente, um dos grandes benefícios e garantias de acesso à justiça. Nesse sentido Barbosa (2010) destaca que: Uma das imensas vantagens do procedimento arbitral nas relações de consumo é a especialidade que o árbitro pode vir a ter na matéria em análise, fazendo com que haja mais segurança por parte do julgador e uma melhor solução para as partes que contarão com alguém que lida, como perito às vezes, com a questão discutida. É fato que a arbitragem nas relações de consumo pode ser uma ferramenta de imensa importância, se observado o bom senso, para o desafogamento do judiciário, e para uma melhor satisfação das partes envolvidas, no que se diz respeito à agilidade e à eficácia da decisão arbitral. Cunha (2010) trata sobre os inconvenientes da prestação jurisdicional oferecida pelo Poder Judiciário, na relação de consumo, principalmente no que se refere à morosidade até se chegar a uma decisão definitiva. O autor ainda menciona o elevado custo do processo e a insatisfação com as decisões judiciais como fatores que dificultam a adequada prestação jurisdicional. Nesse sentido sugere que a arbitragem venha a ser utilizada nas relações de consumo como uma alternativa para o adequado acesso a justiça. Em suas palavras, Cunha (2010) assevera que: O legislador, ao incentivar a criação de mecanismos alternativos de composição de conflitos, objetiva apenas disponibilizar ao consumidor diversos instrumentos para a tutela de seus direitos. Não se busca a substituição dos mecanismos judiciais de composição de litígios pelos mecanismos extrajudiciais, mas tão somente a coexistência de ambos. Na verdade, rompe-se a crença de que somente os mecanismos judiciais são eficientes e seguros para resolver disputas. A arbitragem deve ser encarada e utilizada como uma ampliação do acesso à justiça para a solução de conflitos de consumo, pois embora a Lei do Consumidor tenha inovado em relação a gama de direitos previstos para este sujeito, a possibilidade de se valer desses direitos fica comprometida devido às dificuldades de se obter o efetivo acesso à justiça. Nesta linha de raciocínio Azevedo (2011, p. 70) argumenta: As novas relações jurídicas que se constituem no âmbito consumerista necessitam de mecanismos propícios para o atendimento das necessidades sociais. A arbitragem fornece esses instrumentos e pode, inclusive, contribuir com a melhoria da qualidade da própria prestação jurisdicional. Inúmeros doutrinadores veem com bons olhos a utilização da arbitragem para solucionar os conflitos das relações de consumo e não encontram óbice legal à sua utilização. Com certeza a arbitragem é um instrumento de acesso à justiça e atende aos objetivos estabelecidos na Lei consumerista em atender as necessidades dos consumidores, respeitando a sua dignidade e possibilitando o acesso a uma prestação jurisdicional adequada e em tempo razoável, como determinado pela própria Constituição21. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho buscou analisar a viabilidade do uso da arbitragem como meio alternativo para dirimir conflitos oriundos das relações de consumo, bem como suas vantagens. A arbitragem é um meio alternativo à via judicial para a solução de conflitos em que as partes submetem os litígios advindos de suas relações à decisão de um terceiro por elas indicado. Mas, restou demonstrado que mais que um meio alternativo na solução de conflitos, a arbitragem é também um vantajoso instrumento auxiliar da Jurisdição Estatal. É notória a crise do Poder Judiciário em atender de forma célere e eficiente a prestação jurisdicional prevista constitucionalmente a todos os cidadãos diante da enorme demanda de processos envolvendo as relações jurídicas de consumo. A arbitragem, como apresentado, mostra-se como uma saída para o desafogamento do Poder Judiciário e para uma melhor satisfação dos interesses das partes envolvidas, no que diz respeito à agilidade e à eficácia da decisão arbitral. A utilização da Arbitragem tem crescido e seu uso sendo cada vez mais incentivado. Contudo, em relação aos litígios de consumo o que se percebe é a existência de dúvidas quanto à possibilidade, e uma certa resistência à sua utilização. Essas dúvidas se dão pelo fato de que a proteção ao consumidor foi inserida na ordem constitucional no rol dos direitos e 21 Constituição Federal, art. 5º, LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. garantias fundamentais, o que dá a Lei consumerista o status de “ordem pública e interesse social”, lhes atribuindo à natureza cogente. O Código de Defesa do Consumidor declara em seu artigo 51, VII, como sendo nula de pleno direito a cláusula em contratos de consumo que determinem a utilização compulsória da arbitragem e por conta desta determinação é que se questiona a validade do uso deste instituto para dirimir os litígios que surgem das relações de consumo. O que se conclui após a análise do artigo 51, VII, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor é que a utilização compulsória da arbitragem através da cláusula compromissória realmente não pode ser utilizada, impondo-se ao consumidor a solução do conflito pela via arbitral, porém nada impede que depois de instaurado o conflito, o consumidor aceite ou busque, por livre vontade, dirimir suas controvérsias por meio do compromisso arbitral. Conclui-se, também, que além de não haver proibição legal ao procedimento arbitral nas relações de consumo, a Lei consumerista até mesmo incentiva a sua utilização quando previu por meio do seu artigo 4º, V, a criação de meios alternativos de solução de conflitos de consumo. Depreende-se, portanto, que não há óbice para que a arbitragem possa ser utilizada nas relações de consumo e a escolha voluntária pelo consumidor por este instituto em suas demandas, baseado no princípio da autonomia da vontade, se caracteriza como sendo o exercício legal do seu direito de escolha e uma garantia de acesso à justiça. REFERÊNCIAS AMARAL NETO, Francisco dos Santos. A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica: perspectivas estrutural e funcional. Revista de Direito Civil. São Paulo, ano 12, n.46, p. 07-26, out.-dez. 1998. ANDRIGHI, Fátima Nancy. Arbitragem nas Relações de Consumo. Revista de Arbitragem e Mediação, ano 3 vol.9, p.13-21, abril-junho de 2006 Ed. RT. AZEVEDO, Anderson de. Jurisdição, Arbitragem e Relações de Consumo: Construção histórica e política dos principais mecanismos de solução de conflitos e a promoção de acesso à justiça nas relações de consumo. Dissertação de Mestrado. Londrina, UEL, 2011. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. 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REFLEXÕES A RESPEITO DO DIREITO À LIBERDADE EM RELAÇÃO À TRIBUTAÇÃO Antonio Carlos Lovato22 RESUMO O presente artigo tem como objetivo discorrer a respeito do direito à liberdade, nas várias acepções existentes, e dos reflexos nas áreas política, social e jurídica, principalmente em relação à tributação. O objeto da pesquisa se concentra em delinear uma possível relação entre as garantias fundamentais das liberdades no Estado moderno e os efeitos tributários decorrentes da efetivação dessas garantias. Constata-se que com uma presença maior do Estado como ente responsável pela satisfação das mais diversas garantias à sociedade, haverá mais necessidade de recursos, o que gera como consequência direta a necessidade da imposição de aumento da carga tributária. O problema a ser enfrentado consiste exatamente em saber se é admissível aceitar o aumento da carga tributária como o preço da liberdade e se há forma de estabelecer um equilíbrio sustentável entre a efetivação das garantias e a oneração tributária. PALAVRAS-CHAVE: Liberdade. Liberdade na Filosofia, nas Relações Sociais, na Política, na Esfera Jurídica e os Reflexos na Tributação. ABSTRACT This article aims to discuss about the right to freedom, existing in several senses and its reflex on the politic, social and juridical areas, mainly when it comes to taxation. The object of the research focuses on outlining a possible relationship between the guarantees of fundamental freedoms in the modern state and the tax effects arising from the realization of such guarantees. It appears that, with a greater presence of the state as being the responsible entity for the satisfaction of the most variable guarantees to society, it will be more need for resources, which generates as direct consequence the necessity for imposition an increase on tax burden. The problem to be faced is precisely whether it is permissible to accept tax increases as the price of freedom as the price of freedom and if there is a way to establish a sustainable balance between the effectivation of the guarantees and the tax burden. 22 Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina – UEL, professor da disciplina de Direito Tributário na Universidade Estadual de Londrina- UEL e no Instituto Filadélfia de Londrina – UNIFIL e Advogado tributarista. KEY-WORDS: Freedom. Freedom in Philosophy, Freedom in Social Relations, Political Freedom, Freedom in Legal Sphere and Its reflections on Taxation. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 LIBERDADE NA FILOSOFIA. 3 LIBERDADE NA POLÍTICA. 4 LIBERDADE NO DIREITO. 5 COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE ESTADO TRIBUTÁRIO E AS LIBERDADES. 6 COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE O ESTADO SOCIAL E AS LIBERDADES. 7 LEGALIDADE TRIBUTÁRIA COMO PONTO DE EQUILÍBRIO ENTRE À CONSAGRAÇÃO DAS LIBERDADES E O REFLEXO TRIBUTÁRIO DECORRENTE. 8 CONCLUSÃO 9. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO No campo filosófico, o tema liberdade suscita uma série de controvérsias, não somente no aspecto conceitual, mas também no aspecto da aplicação. A compreensão do conceito de liberdade requer uma análise desde sua origem e nas fases de sua história. Na esfera jurídica, a situação não é mais amena, pois existem controvérsias em relação tanto ao conceito quanto ao seu verdadeiro conteúdo. Portanto, é necessário delimitar o seu alcance partindo-se das concepções filosóficas até chegar ao positivismo jurídico, principalmente no aspecto constitucional. As implicações do tema liberdade no que concerne ao Estado, bem como ao poderdever da manutenção de sua efetivação, estarão relacionadas às restrições que se impõem aos cidadãos, principalmente na obtenção de recursos financeiros para manutenção da própria liberdade. Assim, verifica-se que de um lado os cidadãos, que tanto lutaram por uma autonomia privada e uma garantia da liberdade consagradora do exercício de um trabalho com a possibilidade de prosperar e de acumular riquezas, vão depender não só de uma série de interferências do Estado, em relação à própria liberdade, à paz, à segurança, à estabilidade nos negócios, à manutenção dos serviços públicos das mais diversas ordens, como também da manutenção da própria estrutura do Estado com o perfeito funcionamento dos poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, e, ainda, de investimentos em projetos sociais e econômicos. Isso tudo deverá ser custeado por aqueles que têm maior poder aquisitivo ou capacidade econômica de suportar o ônus. Diante desse quadro, é evidente que o exercício da liberdade supõe a contrapartida do ônus para sua efetivação, vale dizer, o exercício da liberdade exigirá um preço a pagar, preço que poderá ser representado por várias restrições de ordem pessoal, física ou econômica, mas, na maioria das vezes estará representado por restrições de ordem econômica através da imposição de tributos. O grande problema a ser enfrentado concentra-se justamente na busca do equilíbrio entre a manutenção da liberdade e seu preço, tendo-se como paradigma vários institutos que ora se confundem com a própria liberdade, ora estão intimamente relacionados com ela, como a propriedade, a igualdade e as limitações constitucionais em relação ao poder de impor tributos. A proposta deste estudo é demonstrar, mesmo que de forma singela, que existe a possibilidade da escolha de formas de exercício das atividades que causem menos impacto tributário, desde que os procedimentos adotados estejam em consonância com os princípios e garantias constitucionais. 2 LIBERDADE NA FILOSOFIA A convivência social depende inescusavelmente da garantia da liberdade manifestada sob vários aspectos, quer no plano individual quer no coletivo. No Estado moderno, essa garantia poderá ser efetivada somente pelo próprio Estado, o que dependerá do estabelecimento de restrições de determinadas liberdades para que as demais garantias sejam implementadas. Assim, é imprescindível que sejam perfeitamente delimitados o seu conceito, o seu alcance e as formas de efetivação, bem como as restrições estabelecidas, para que, a pretexto de garantir a liberdade, a interferência do Estado não acabe provocando uma violação dessa liberdade. Portanto, é perfeitamente justificável o estudo do tema, seja no campo filosófico, seja no campo jurídico, pois, embora seja ele um tema antigo, a sua aplicação revela-se atual. No campo filosófico, existem três grandes concepções de liberdade: A primeira, surge com Aristóteles e é endossada por Sartre: é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna da sua ação ou da decisão de não agir. A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser “autodeterminada.” (apud, CHAUI, 2001, p.360). A segunda concepção, desenvolvida no período helenístico, em que surge e se desenvolve o estoicismo, reativado no século XVII com o filósofo Espinosa e, no século XIX, com Hegel e Marx, conserva a liberdade como resultado da autodeterminação, não,porém, no sentido individual, e sim no coletivo (apud, CHAUI, p. 361). A terceira é decorrente da possibilidade objetiva defendida por Merleau- Ponty. Segundo esta concepção: A liberdade, porém, não se encontra na ilusão do ´posso tudo’, nem no conformismo do ´nada posso’. Encontra-se na disposição para interpretar e decifrar os vetores do campo presente como possibilidades objetivas, isto é, como abertura de novas direções e de novos sentidos a partir do que está dado (apud, CHAUÍ, 2001, p. 362). Desde a antiguidade o tema liberdade desperta controvérsia. No cristianismo, não poderia ser diferente. Dentro da perspectiva do cristianismo, Martinho Lutero nega que o “livre-arbítrio” seja uma qualidade humana; para ele, o homem é um escravo e ao mesmo tempo um servo para atender a vontade de Deus, ou a vontade de Satanás (apud, DIAS, 2004, p. 74). Para a filosofia, a liberdade é contemplada sob dois aspectos: liberdade dos antigos e liberdade dos modernos. Liberdade entre os antigos era entendida como uma liberdade centrada no modelo da democracia ateniense dos séculos V e IV a.C., entendida como distribuição democrática do poder entre os cidadãos que participam da elaboração das leis. Trata-se de uma liberdade positiva que está relacionada às teorias, às formas de governo, à justificação da democracia (LAFER, 1980, p.12-13). Portanto, segundo a posição de Kant, a liberdade antiga consiste na liberdade legal. (apud, LAFER, 1980, p.14) A liberdade antiga pode ser definida como: a liberdade do cidadão e não a do homem enquanto homem. Ela só se manifesta, por isso mesmo, em comunidades políticas que regularam adequadamente a interação da pluralidade. Daí a relação entre política, liberdade antiga e formas democráticas de governo, que criaram um espaço público ensejador pela liberdade de participação na coisa pública, do diálogo plural, que permite a palavra viva e a ação vivida, numa unidade criativa e criadora (apud, LAFER, 1980, p.17). Por outro lado, temos a liberdade moderna, centrada na possibilidade de fazer tudo o que não está proibido, daí porque ser denominada de liberdade negativa. Afirma HOBBES: “Liberdade, nesse sentido, não é o obrigatório, mesmo do autonomamente consentido, mas sim o que se encontra na esfera do não-impedimento.” (apud,LAFER,1980,18). Nesse sentido, a liberdade adquire uma objetividade, segundo os ensinamentos de Montesquieu que a define como “le droit de faire tout ce que les lois permettent”. (apud,LAFER,1980,p.19) Por essa acepção, “o conceito de liberdade coincide com o do lícito, vale dizer, está na esfera, como diz Bobbio, daquilo que, não sendo nem comandado nem proibido, é permitido.” (LAFER, 1980, pp. 18/19). Trata-se de uma concepção enraizada no liberalismo defendido por Locke, que, conforme explicação de Celso Lafer, está relacionada a: um dos pensadores paradigmáticos do liberalismo – o poder estatal resulta de um contrato social que estabelece, no entanto, apenas aquelas normas que são necessárias para o convívio social. Para Locke o Estado é um meio-termo que compatibiliza a liberdade do estado de natureza – onde tudo é permitido –com as exigências da segurança da vida em sociedade (LAFER, 1980, p.21). Portanto, a liberdade moderna, fruto dessa concepção, seguida também por Benjamin Constant, Stuart Mill, Tocqueville, requer que não haja: poder absoluto, mas apenas alguns direitos absolutos. Estes resultam de uma esfera privada de ação não-controlada pelo poder, que provém de fronteiras não artificiais, invioláveis, que garantem a cada ser humano uma porção de existência independente do controle social. Esta porção é assegurada pela tutela dos direitos individuais, que vem encontrando guarida nos Diretos Positivos – nacional e internacional – desde o século XVIII, através das declarações de direitos (LAFER, 1980, p.21). Benjamin Constant, emitindo uma posição em defesa da liberdade no mundo moderno, adverte: O mundo moderno oferece-nos um espetáculo totalmente oposto. Os menores Estados atualmente são incomparavelmente mais vastos que Esparta ou Roma durante cinco séculos. Mesmo a divisão da Europa em vários Estados e, graças ao progresso do saber, mais aparente do que real. Enquanto antigamente cada povo formava uma família isolada, inimiga nata das outras famílias, uma massa de homens existe agora sob diferentes nomes, sob diversos modos de organização social, mas essencialmente homogênea. Ela é suficientemente forte para não temer hordas bárbaras. É suficientemente esclarecida para não querer fazer a guerra. Sua tendência é para paz (CONSTANT, 1985, p.12). Seguindo essa linha, o autor (CONSTANT, 1985, p.13) faz a seguinte distinção quanto aos efeitos da guerra em relação à liberdade: “Para os antigos, uma guerra feliz acrescentava escravos, tributos, terras, à riqueza pública e particular. Para os modernos, uma guerra feliz custa infalivelmente mais do que vale.” O principal reflexo em relação a esta distinção é que, para os antigos, o objetivo maior é o poder social e, para os modernos, é a segurança e a manutenção dos privilégios privados (CONSTANT, 1985, p.15-16). Poderíamos simplesmente dizer que, para os antigos, eram mais relevantes os direitos coletivos e, para os modernos, a relevância está na manutenção das garantias individuais. São nítidas as consequências desastrosas decorrentes desses extremos. No caso da liberdade antiga, as pessoas estavam engajadas na participação social abstraindo-se dos direitos e garantias individuais. No caso da liberdade moderna, a concentração na autonomia privada e nos interesses particulares denota uma evidente renúncia à participação no poder político (CONSTANT, 1985, p.23). Uma questão tormentosa consiste em identificar qual será o melhor sistema para a sociedade, pois não há que falar em liberdade, se a pessoa não pode utilizá-la. Assim, de que adianta uma concentração de proteção à propriedade privada para aqueles que não têm propriedade, ou a liberdade pessoal para aqueles que não têm saúde, não têm roupa. Berlin faz essa advertência: O que é a liberdade para aqueles que não a podem empregar? Sem as condições adequadas para o uso da liberdade, qual é o valor dela? As coisas mais essenciais vêm em primeiro lugar: há situações em que – para usar um ditado que Dostoiévski satiricamente atribuiu aos niilistas – as botas são superiores a Puchkin, a liberdade individual não é a necessidade primaria de todos. Pois a liberdade não é a mera ausência de frustração – isso inflaria o sentido da palavra até ela significar de mais ou de menos. O camponês egípcio precisa de roupas e remédios antes da liberdade pessoal e mais de roupas e dos remédios do que liberdade pessoal, mas a liberdade mínima de que ele necessita hoje, e o maior grau de liberdade de que pode vir a necessitar amanhã, não é uma espécie de liberdade que lhe é peculiar, mas é idêntica à de professores, artistas e milionários (BERLIN, 2002, p. 231). Pode-se dizer, embora de forma provisória, que o equívoco dos liberais, como Locke, Adam Smith, Hobbes e o próprio Benjamin Constant, está em que poderia haver uma total harmonização entre os direitos sociais e os interesses privados, reservando-se uma área nesse campo em que o Estado não poderia intervir (BERLIN, 2002, p.232-233). Kant defende uma liberdade advinda da razão, invocando uma racionalidade pautada na lei, segundo a qual o próprio cidadão impõe uma liberdade para si através do legislador. Bentham, mais enfático, diz que a liberdade decorrente da lei consiste numa restrição (BERLIN, 2002, p.232-233). Com a legalidade amplia-se o conceito de liberdade, visto que, conforme definiu Rousseau, no contrato social, com a lei surge o conceito de liberdade, considerando-se esta em seu sentido político de forma autônoma, ou seja, como desenvolvimento das liberdades civis, centradas na existência de leis intimamente desejadas e internamente estabelecidas (BERLIN, 2002, p.232-233). Bobbio (2000, p.489) anota que houve uma importante transmutação do conceito de liberdade com a passagem da concepção da liberdade negativa para a concepção da liberdade positiva. Segundo esta, a liberdade é como um “poder positivo”, significando com isso a possibilidade de tornar concretas as previsões abstratas contidas nas constituições liberais e gerar o embrião dos direitos sociais, isto é, os indivíduos passam a ter liberdade não apenas no sentido de ter a faculdade, mas no de ter o poder para fazer (BOBBIO, 2000, p.504). Na verdade, o conceito e o alcance do manto protetor designado de liberdade sofrem várias transmutações. Assim, do conceito de Hobbes, que apresenta a liberdade como a ausência de impedimentos (BERNARDES, 2002, p.19), para uma visão kantiana, sedimentada na liberdade segundo uma lei universal (JORGE FILHO, 2005, p.108), o indivíduo age de certa maneira porque pretende que sua máxima se transforme em uma lei universal (KANT, 2005, p.86). Pretensão essa que se subsume à forma universal do imperativo categórico advindo da razão, entenda-se, da razão prática. Assim, diz Hannah Arendt “A razão prática opera por conceitos, comanda ativamente através de imperativos, “‘raciocina’ e diz o que devo e o que não devo fazer” (LFPK, 22), ocupando-se apenas com o que é ‘universal’ e ‘necessário’” (ARENDT, 1994, p.153). 3 LIBERDADE NA POLÍTICA Nota-se, portanto, que a resposta à indagação sobre o que é liberdade comporta várias acepções. Poder-se-ia dizer que seria o fruto da imaginação do ser humano e, assim, poderia ser explicada pela psicologia. Neste caso, seria fruto da vontade humana em conformidade com manifestação do querer do indivíduo, conforme enfatiza Sõnia Maria Schio (SCHIO, 2006, p. 135) em estudos sobre a obra de Hanna Arendt: “Isso indica que o curso da ação humana pode ser modificado por um ato de vontade. Tal ato está estreitamente ligado à liberdade humana, pois, segundo ela, sempre há a possibilidade de realizar algo ou não, momento no qual a liberdade, intrínsica à vontade, se faz presente.” Por essa concepção, liberdade, no plano da vontade, seria uma liberdade no plano interno que antecede o livre-arbítrio, daí uma diferença fundamental entre o ato livre e o livrearbítrio (liberum arbitrium), conforme explica Sõnia Maria Schio (SCHIO, 2006, p. 135-136): O livre –arbítrio auxilia a vontade ao abrir a possibilidade de escolha entre alternativas igualmente possíveis. Nessa acepção, ele existe e atua internamente na vontade, compondo a esfera teórica desta. A vontade recebe os dados dos desejos, da razão e do intelecto, e também aqueles apreciados pelo juízo. Após, o livre-arbítrio entra em cena, escolhendo uma das alternativas. A vontade divide a alternativa em positiva (quero) e negativa (não quero). Ao unir-se novamente, ela gera o impulso para o agir, atuando, nesse caso, em nível prático, externo, de ligação entre a vida contemplativa e a ativa. A liberdade não pode ser resultado apenas do pensamento, conforme adverte Hannah Arendt (1979, p.191): O ponto de vista das considerações que seguem é que o motivo para essa obscuridade está em que o fenômeno da liberdade não surge absolutamente na esfera do pensamento, que nem a liberdade nem o seu contrário são vivenciado no diálogo comigo mesmo no decurso do qual emergem as grandes questões filosóficas e metafísicas, e que a tradição filosófica, cuja origem a esse respeito consideraremos mais tarde, destorceu, em vez de esclarecer, a própria idéia de liberdade, tal como ela é dada na experiência humana, ao transpô-la de seu campo original, o âmbito da Política e dos problemas humanos em geral, para um domínio interno, a vontade, onde ela seria aberta à auto-inspeção. A liberdade nesse sentido íntimo, conquanto seja importante para o ser humano não tem significação política, visto não se comunicar com as manifestações externas, conforme adverte Hanna Arendt (1979, p. 192): “Esse sentir interior permanece sem manifestações externas e é, portanto, por definição, sem significação política.” Na distinção feita por Arendt, a liberdade interna é a liberdade filosófica, e a externa, a liberdade política. A filosófica é portadora de verdade, a política é composta de opiniões flexíveis e mutáveis (SCHIO, 2006, p. 146). Pelo que se percebe, é através da liberdade política que o indivíduo se manifesta de forma livre, é também através dela que se manifesta o agir nas várias acepções inerentes ao ser humano no contexto social. Portanto, é através da liberdade política que o querer se identifica com o poder, segundo explicações de Schio ( 2006, p. 156): Na liberdade política, o ser livre e o agir estão unidos de forma indissolúvel . A liberdade permite que a vontade dirija a ação para sua consumação, na qual o quero e o posso coincidam. A liberdade, nesse enfoque, manifesta-se no ato praticado. A política, nesse sentido, é composta por ações humanas livres, e a sua demonstração mais autêntica está na possibilidade de iniciar os processos. O resultado da ação é contingência. Ou seja, a ação gera o inusitado, o desconhecido, aquilo que não depende de opções pré-fixadas e de resultados previstos e previsíveis. 4 LIBERDADE NO DIREITO Diante dessa concepção de liberdade, vale dizer, a da modernidade, surge um sério problema, qual seja: Como conciliar o exercício da liberdade de um com a liberdade de outros? Num sentido, a liberdade está relacionada à garantia dos direitos sociais e, no outro, a liberdade está relacionada ao acumulo de riquezas à propriedade e à segurança desta. Muitos constitucionalistas separam os direitos à liberdade das garantias individuais (JOSÉ AFONSO, 1992,pp.242/243). Pontes De Miranda (1987, p.650-651) faz uma nítida separação entre a liberdade e a liberdade do exercício de direitos, dizendo que esta última é faculdade. No entanto, não se pode esquecer que a origem do direito de propriedade está ligada ao direito da pessoa, como uma projeção da personalidade humana. (CRETELLA JÚNIOR, 1986, p.126). Essa forma de entender o direito de propriedade já fora abordada por Kant, ao afirmar “os direitos privados concernentes à propriedade privada podem ser fundamentados a partir do único direito inato à liberdade que o homem possui já no estado de natureza...”(apud, DURÃO, 2007, p.12). A consagração das liberdades públicas figura como a principal baliza do Estado republicano, conforme enfatiza Geraldo Ataliba (1985, p.166): A consideração dessas liberdades mostra que a república, melhor do que qualquer outro regime, existe não só para conservação dessas liberdades – que não a própria razão de ser da estrutura do Estado constitucional – como, também, para o seu pleno desenvolvimento e afirmação. É em clima de liberdade e segurança que os cidadãos produzem, trabalham, crescem, afirmam e expandem sua personalidade e perseguem sua felicidade, como consta da solene promessa republicana paradigmática dos tempos modernos. Portanto, eis o problema: Como compatibilizar a liberdade ao exercício de uma profissão com a liberdade de acumular riquezas e propriedade, e como resolver o problema daqueles que têm sua liberdade ao trabalho, à moradia, à alimentação, à segurança abalada, por não tê-la efetivamente e adequadamente. Nesse contexto, Habermas (apud, MOREIRA, 2002, p.56-57): fala em coordenação entre os direitos dos cidadãos e os do soberano, de modo que se possa falar em império da lei. Isso significa que os direitos à vida, à liberdade e à propriedade privada do sujeito de direito já não são apenas uma área reservada à atuação individual. Tais liberdades já não são apenas liberdade negativa, mas a idéia de Estado de direito implica o estabelecimento de normas jurídicas em nível constitucional, moralmente justificada, que, em última instância, perpassam todo o sistema jurídico e a pertinente atividade estatal em seu todo. É evidente que existe uma manifesta contradição entre a liberdade individual e a liberdade social e econômica. A liberdade individual é sempre resistência ao poder, já a liberdade social ou econômica é reivindicação de melhores condições de vida, são exigências de um fazer ou reformar (COMPARATO, 1989, p.33). Essa aparente contradição não passou despercebida de Kant, porquanto, segundo sua posição, o direito à liberdade implica o dever de humanidade (DUTRA, 2005, p.91). Isso se revolve na modernidade com pagamento de tributos: o proprietário paga para custear os pobres. A conexão entre o direito à propriedade e os direitos sociais e econômicos está relacionada ao dever de humanidade (DUTRA, 2005, p.93-95). 5 COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE O ESTADO TRIBUTÁRIO E AS LIBERDADES Seria então, o tributo o preço da liberdade? Através de uma breve incursão na Ciência das Finanças, embora esta ciência tenha ascendido à posição de disciplina autônoma somente no século XIX, há evidências de que, desde a Antiguidade, já havia estudos a respeito do assunto. Aliomar Baleeiro (1973, p.13) relata que escritos de Xenofonte (430 ou 445-352 a.C.) fazem referências a empréstimos e rendas de Atenas e de suas minas de prata. Cita também fragmentos sobre finanças em Aristóteles (384-322 a.C.). Menciona ainda, escritos de Plínio (62-120), Tácito (55-120), Cícero (107-42 a.C.) e outros. Essa evolução passa pela Idade Média, conforme São Tomás de Aquino (1226-1274) que admitia a tributação em caso de escassez das rendas patrimoniais dos príncipes. Com a Renascença tem início a Idade Moderna, quando surgem pensadores políticos que fazem estudos a respeito da correlação entre economia privada e finanças (BALEEIRO, 1973, p.14). No período mercantilista, do século XVI até o século XVIII, ampliam-se as despesas públicas e incrementa-se a tributação (BALEEIRO, 1973, p.15). Surgem na Alemanha, contemporâneos dos mercantilistas, os cameralistas, estudiosos da política e administração financeira (BALEEIRO, 1973, p.16). O Inglês Adam Smith (1728-1790) dedicou todo um capítulo do seu livro “riqueza das nações” às finanças, no qual deixou evidente sua posição liberal, dando impulso à autonomia da ciência das finanças (BALEEIRO, 1973, p.16-17). É importante ressaltar que, com o liberalismo, destaca-se a ideia das liberdades individuais; a riqueza não é mais a dos príncipes, mas a dos indivíduos. A riqueza de uma nação é a riqueza do conjunto dos cidadãos (TORRES, 1991, p.102-103). Pode-se afirmar que essa transformação do conceito de liberdade é o embrião da transformação do Estado patrimonial para o Estado fiscal, surgindo a consagração das garantias dos direitos individuais centrados no direito à propriedade, à legalidade e à igualdade, mas também o fenômeno tributário, ou seja, o exercício da tributação, sendo este, talvez, o preço da liberdade (TORRES, 1991, p.38-39/138). A árdua tarefa consiste em estabelecer um equilíbrio entre as liberdades da coletividade, principalmente aquelas representadas pelos direitos sociais e econômicos, e a liberdade individual ao trabalho, à propriedade e ao acumulo da riqueza. Se houver um desequilíbrio entre esta e aquela, poderá ocorrer uma violação daquelas. Por outro lado, a restrição de forma desordenada sobre a liberdade individual através da imposição de tributos arbitrários, poder-se-á desestimular a poupança, os empreendimentos e o trabalho. Portanto, o exercício da tributação deve ser efetuado sob o manto do Estado republicano, seguindo-se rigorosamente as normas constitucionais. 6 COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE O ESTADO SOCIAL E AS LIBERDADES A liberdade moderna não deve ser vista como o era no passado, até porque a propalada liberdade inexistia na pólis grega, conforme aponta Paulo Bonavides (2001, p. 149). A concepção de liberdade advinda do passado sofreu transformações pela mudança de pensamento, principalmente a partir do XVII com as revoluções tendo, como ponto culminante, a Revolução Industrial. No século XX, a partir da Primeira Guerra Mundial, deuse a separação entre o pensamento antigo e o pensamento moderno. A produção de conhecimento passa a ter uma finalidade ou utilidade, conforme enfatiza Sônia Maria Schio (2006, p. 29): A nova relação estabelecida entre o fazer e o pensar opunha-se àquela vigente no passado. Ou seja, a própria ciência tornou-se uma forma de retificar o mundo, de produzir conhecimento com uma finalidade ou utilidade, obedecendo às demandas sempre novas advindas do desenvolvimento técnico, exigindo descobertas contínuas e úteis. A ruptura com o antigo é selada com a Primeira Grande Guerra mundial, e com essa ruptura desacredita-se a ideologia liberal. No lugar das ideologias contra o Estado, surgem postulados calcados no pensamento democrático com a finalidade da preservação da liberdade humana. O foco são os direitos sociais, conforme coloca Paulo Bonavides (2001, p. 139-140): A sobrevivência da democracia liga-se ao êxito que eventualmente possa alcançar uma teoria política que afirme e reconcilie a idéia dos direitos sociais, que faz lícita uma maior intervenção do poder estatal na esfera econômica e cultural, com a idéia não menos justa do individualismo, que pede a segurança e o reconhecimento de certos direitos fundamentais da personalidade, sem os quais esta se deformaria e definharia, como fonte que se deve sempre conservar de iniciativa úteis, livres e fecundas. No lugar do Estado totalitário e do Estado liberal surge o Estado social, com matizes democráticas, evidenciando-se a compatibilização entre os interesses do proletário e do capitalismo, conforme explica Paulo Bonavides (2001, p. 184): O Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal . Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o socialismo marxista intenta implantar: é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia. Daí compadecer-se o Estado social no capitalismo com os mais variados sistemas de organização política, cujo programa não importe modificações fundamentais de certos postulados econômicos e sociais. Modernamente, o Estado (social) tem, de se preocupar com a preservação das liberdades de uma forma muito mais ampla, pois, além de zelar pela compatibilização entre as instituições que tradicionalmente representam existência da liberdade como a propriedade privada e o acumulo de riqueza, tem, outrossim, de preservar a liberdade das ideias tendo como foco a justiça social Luiz Felipe Pondé (2010, p. E8). 7 LEGALIDADE TRIBUTÁRIA COMO PONTO DE EQUILÍBRIO ENTRE À CONSAGRAÇÃO DAS LIBERDADES E O REFLEXO TRIBUTÁRIO DECORRENTE No mesmo plano da consagração das garantias fundamentais contidas na Constituição Federal, encontra-se elencada também a consagração do direito à segurança jurídica e à propriedade (art.5º, “caput”), permitindo-se apenas o exercício da imposição tributária na forma prevista pela Constituição Federal, cabendo observar que, entre as garantias que impõem limitações constitucionais ao Poder de tributar, desponta o princípio da legalidade tributária, encartado no art. 150, I, da CF. A legalidade tributária deve ser vista como uma restrição ao exercício à imposição tributária pelo Estado e, dessa forma, a garantia da liberdade deve ser vista como forma de garantir ao cidadão a segurança jurídica para impedir que o Estado, ao exercer o poder de tributar, não extrapole a demarcação estabelecida pela Constituinte. Portanto, o exercício da liberdade é a regra. Assim, o Estado deverá exercer o poder de tributar de forma compatível com as realidades política, social e jurídica, ou seja, deve estabelecer um equilíbrio entre o poder-dever de consagrar as liberdades nas suas mais diversas acepções e o direito à liberdade que têm os cidadãos de somente sofrer imposições tributárias nas formas previstas na Constituição Federal, ou, de nada adiantarão, as demais liberdades. 8 CONCLUSÃO A vida em sociedade depende inescusavelmente da garantia da liberdade manifestada sob vários aspectos, quer no plano individual quer no coletivo. Na atualidade, cabe ao Estado a garantia das liberdades. Seu exercício demandará restrições da liberdade de alguns em prol do interesse da coletividade. Torna-se imperativa a delimitação do seu conceito, seu alcance e as formas de efetivação, bem como as restrições estabelecidas, para que, a pretexto de garantir a liberdade, a interferência do Estado não acabe provocando uma violação dessa liberdade. Com o surgimento da legalidade e tendo-se como precursor, o contrato social de Rousseau, amplia-se o conceito de liberdade. A lei vai implementar o conceito de liberdade, em seu sentido político de forma autônoma, ou seja, como desenvolvimento das liberdades civis, centradas na existência de leis intimamente desejadas e internamente estabelecidas Várias transformações a respeito da concepção de liberdade foram provocadas pelos grandes e trágicos eventos, causando mudança de pensamento, principalmente a partir do XVII com as revoluções e tendo como ponto culminante a Revolução Industrial. No século XX, a partir da Primeira Guerra Mundial com separação entre o pensamento antigo e o pensamento moderno. No Estado moderno, voltado para o social, a preservação das liberdades tem uma conotação mais ampla, uma vez que, além de zelar pela compatibilização entre as instituições que tradicionalmente representam existência da liberdade como a propriedade privada e o acumulo de riqueza, tem de preservar a liberdade das ideias tendo como foco a justiça social. O Estado deverá exercer o poder de tributar de forma compatível com a realidade política, social e jurídica, implementando o atendimento às exigências sociais nas mais diversas acepções, pautando-se, todavia, pelo equilíbrio entre a consagração das liberdades dos destinatários das ações governamentais e a daqueles que serão os responsáveis pelo suprimento dos recursos financeiros necessários às atividades governamentais, pois a liberdade de todos os cidadãos estão no mesmo nível, e, portanto, a consagração deve ser para todos. REFERÊNCIAS ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. ______________. Hipótese de Incidência Tributária. 5. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1994. ARENDT, Hannah. Lições Sobre a Filosofia Política de Kant. 2. Ed. Tradução André Duarte e Paulo Rubens da Rocha Sampaio. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. Rio de Janeiro: Forense, 1973. BERLIN, Isaiah. Estudos Sobre a Humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. BERNARDES, Júlio. Hobbes & A Liberdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política (A Filosofia Política e as Lições Clássicas). 2. Ed. Organização Michelangelo Bovero. Tradução Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000. BORGES, Humberto Bonavides. Gerência de Impostos. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2002. CENCI, Miguel Elve. A Interpretação Política de Hannah Arendt dos Juízos Estéticos Kantianos. Disponível em: <htt://www.uel.br/cch/filosofia/revista/interpretação.html.>. Acesso em: 13 de janeiro de 2007. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 12. Ed. São Paulo: Editora Ática, 2001. COMPARATO, Fábio Konder. Para Viver a Democracia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. CONSTANT, Benjamin. Da Liberdade dos antigos comparada à dos modernos, Filosofia Política 2.Ed. Porto Alegre: L P M Editores, 1985. CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Liberdades Públicas. Rio de Janeiro: Forense, 1986. DESCARTES, René. O Discurso do Método, Os Pensadores. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1991. DIAS, Vladimir Duarte. Genealogia da Liberdade. Porto Alegre: Age Editora, 2004. DURÃO, Aylton Barbieri. A Tensão entre Fatividade e Validade no Direito Segundo Habermas. Disponível em: <http://www.cth.ufsc.br/ethc@/et51art.7.pdf> . Acesso em: 13 de janeiro de 2007. DUTRA, Delamar José Volpato. Propriedade e Ajuda aos Pobres na Doutrina do Direito de Kant, In Immanuel Kant. Liberdade e Natureza. Organização Maria de Lourdes Borges e José Heck. Florianópolis: Editora da UFSC, 2005. GARCIA, Bianco Zalmora. Projeto Político – Pedagógico, Autonomia e Gestão Democrática das Escolas: Uma Perspectiva Habermasiana. Disponível em: http://www.168:96.200.17/ar/livros/Garcia.pdf.. Acesso em: 13 de janeiro de 2007. JORGE FILHO, Edgard José. Sobre os Princípios da Moral, do Direito e da Ética em Kant. In Immanuel Kant. Liberdade e Natureza. Organização Maria de Lourdes Borges e José Heck. Florianópolis: Editora da UFSC, 2005. KANT, Immanuel. Textos Seletos. Tradução Raimundo Vier e Floriano de Sousa Fernandes. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. LAFER, Celso. Ensaios Sobre a Liberdade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n° 1 de 1969. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. 2. Ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 8. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1992. TORRES, Ricardo Lobo. A Idéia de Liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991. O PERFIL DO JUIZ GESTOR: O INTERCÂMBIO INTERDISCIPLINAR COMO CRITÉRIO CATALISADOR DE UMA BOA GESTÃO Artur César De Souza.23 RESUMO O Juiz, neste início de Século, não está mais delimitado apenas ao exercício da atividade jurisdicional. Diante da dimensão que se apresenta o atual poder judiciário, exige-se do magistrado capacitação que vá além do conhecimento estritamente dogmática constante da ciência do direito. Deve o magistrador buscar conhecimento interdisciplinar para que possa gerir com zelo e competência as novas atribuições que a sociedade moderna lhe conferiu. PALAVRAS-CHAVE: Juiz. Gestor. Capacitação. Formação. Conhecimento. ABSTRACT The judge, this century opening, not just to exercise more delimited activity jurisdiction. Before the size that presents current judiciary, required to magistrate's training that go beyond the knowledge strictly dogmatic constant science of law the magistrador must go for interdisciplinary knowledge that can manage with zeal new powers and duties which the company modern conferred. KEY-WORDS: Judge. Manager. Training. Education. Knowledge. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 A INTERDISCIPLINARIEDADE COMO CRITÉRIO CATALISADOR DA BOA GESTÃO DO PODER JUDICIÁRIO. 3 COMPARTIMENTALIZAÇÃO DOS SABERES CIENTÍFICOS. 4 VISÃO DA INTEGRALIDADE – REAGRUPAMENTO DOS SABERES. 5 A FORMAÇÃO INTERDISCIPLINAR DO JUIZ DO SÉCULO XXI COMO CRITÉRIO DE MODERNIZAÇÃO DA ATIVIDADE GESTOR-JUDICIAL. 6 O EFETIVO 23 Doutor em Direito em Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR; Pós-Doutor pelas seguintes Universidades: Università Statale di Milano –Itália; Universidad de Valencia – Espanha; Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Pós-Doutorando pela Universidade de Lisboa; Pesquisador da CAPES; Membro do IBDP; Juiz Federal da Vara de Execução Fiscal em Londrina; Professor em Direito pela UNIFIL APROVEITAMENTO DE PROFISSIONAIS DAS CIÊNCIAS. 7 A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA VOLTADA PARA UM PROJETO INTERDISCIPLINAR E DE PLANEJAMENTO A MÉDIO E LONGO PRAZO – PLANO PLURIANUAL. 8 ESCRITÓRIO CENTRAL DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA E OS COMITÊS DE CONFERÊNCIA JUDICIAL. 9 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO A complexidade das relações sociais modernas, o despertar da cidadania instigado pela assim denominada Constituição cidadã, o aumento da litigiosidade, a valorização de direitos fundamentais como a efetividade da tutela jurisdicional e a celeridade processual reclamam uma nova feição administrativa e gestora por parte dos órgãos do Poder Judiciário que atenda aos anseios de uma sociedade pluralista, heterogênea e plenamente consciente de seus direitos Constitucionais. A caricatura de um Poder Judiciário hermeticamente fechado no âmbito da pureza de sua ciência, auto-suficiente, indiferente ao processo de desenvolvimento social, econômico, cultural e tecnológico não se harmoniza com as reais necessidades da sociedade brasileira desse liminar do Século XXI. Diante desse cenário, a capacitação e a formação do juiz deve ir além do conhecimento estritamente delimitado pela dogmática jurídica. Exige-se do magistrado uma atividade gestora vinculada ao planejamento, organização, direção e controle dos serviços administrativos, tudo isso em prol de uma justiça mais eficiente. Não há dúvida de que em face desse novo cenário, o magistrado precisa adquirir competência e capacitação gerencial administrativa, mediante o aprimoramento de sua formação acadêmica. Surge então a figura do juiz-gestor. A literatura sobre as características do juiz-gestor tem sido quase unânime e unívoca no que concerne a esse novo modelo de magistrado, a saber: a) pensamentos sistêmico; b) percepção, reflexão, avaliação e compartilhamento de experiências; c) cultura de inovação, mediante promoção de um ambiente favorável à criatividade; d) liderança e constância de propósitos, mediante atuação de forma aberta, democrática, inspiradora e motivadora das pessoas; e) visão de futuro, por meio da compreensão dos fatores que afetam a organização, seu ecossistema e o ambiente externo; f) valorização das pessoas; g) desenvolvimento de parcerias; h) responsabilidade social etc.24 Na realidade, o que até então tem sido divulgado na literatura sobre as características do juiz gestor assemelha-se ao devaneio do paradigma do juiz Hércules, que é uma metáfora utilizada por Ronald Dworkin para demonstrar as qualidades excepcionais, quase divinas, do juiz que adota a melhor decisão em cada caso concreto. Para Dworkin, o juiz Hércules seria um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas.25 Não se nega a necessidade de uma nova formação e capacitação para este novo perfil de magistrado que se postula nesse limiar do Século XXI, bem como sua necessidade de gerir juntamente com a de julgar. Mas esta formação e capacitação do magistrado, por melhor que se apresente, esbarra na impossibilidade de aprofundamento sobre as questões técnicas e acadêmicas de cada ciência humana, permanecendo, como não poderia deixar de ser, no âmbito da superficialidade e da generalidade, pois seria impossível a qualquer magistrado assimilar com necessária e indispensável profundidade todas os fundamentos e princípios das ciências afins do conhecimento humano. Na verdade, a literatura ao descrever as características de um juiz gestor esqueceu-se de mencionar talvez a mais importante, que é a própria essência do ser humano, qual seja, a reflexão e constatação de que o magistrado não é auto-suficiente e independente para gerir uma estrutura tão dinâmica e complexa como é o atual Poder Judiciário, um sistema organizacional estruturado por uma rede interligada de diversos campos do conhecimento humano, como, por exemplo, a ciência tecnológica, administrativa, pedagógica, sociológica, médica, contabilidade, informática, estatísticas, recursos humanos, prestação de contas etc. O auto-reconhecimento de sua limitação cognitiva e de formação acadêmica corresponde ao primeiro passo para se buscar o aprimoramento da figura do juiz gestor. Daí porque a imprescindível necessidade de o magistrado compartilhar e suprir sua deficiência de formação acadêmica mediante o aproveitamento do conhecimento mais substancial dos profissionais capacitados em outras ciências afins, valendo-se de servidores e auxiliares provenientes de centros de estudos e de pesquisas universitários de todo país, os 24 DONIZETE LOPES. Joemilson. O juiz como gestor – gestão de pessoas. In:http://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/publicacoes/palestras/juiz_gestor.pdf 25 DWORIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 165. quais poderão ofertar ao magistrado dados, pareceres, opiniões que serão valorizadas e avaliadas no momento de escolher qual a melhor solução a ser tomada. O reconhecimento da necessidade de compartilhar a deficiência de formação com aqueles que podem suprir com profundidade essa ‘ignorância’ de formação acadêmica não é uma fragilidade, mas, sim, uma grande virtude daquele que poderá vir a ser um indiscutível juiz gestor. Por isso, o primeira característica de um bom juiz gestor é justamente a auto-reflexão de que não existe um juiz Hércules, e de que a boa gestão não decorre de uma só pessoa, mas de uma equipe de profissionais voltada para uma finalidade única que é a justiça a ser prestada de forma rápida e eficiente. Ninguém isoladamente é auto-suficiente para gerir as estruturas dinâmicas e complexas do moderno Poder Judiciário, por mais preparado que seja. Na realidade, conforme já afirmará Aristóteles, não somos auto-suficientes quando estamos isolados, porque não podemos desenvolver nossa capacidade de linguagem e de deliberação moral. Segundo o filósofo grego: “O homem isolado – incapaz de compartilhar os benefícios da associação política, ou que não precisa compartilhá-los por já ser autossuficiente – não é parte da ‘polis’ e deve, portanto, ser uma besta ou um deus”.26 De nada adiantarão os investimentos realizados em infra-estrutura, na melhoria do aparelhamento da máquina estatal judiciária, sem que se leve em consideração e sem que haja a efetiva valorização dos profissionais provenientes das ciências humanas afins, sem que haja uma efetiva preocupação com a equipe que será formada pelo magistrado para gerir e administrar toda essa estrutura organizacional. Um bom gestor é aquele que, além de angariar conhecimentos e aprimorar sua capacitação para além de sua área fim, consegue a coalizão de uma equipe heterogênea, valorizando os profissionais que possam contribuir com informações mais profundas e técnicas sobre cada setor do conhecimento humano. A humanização é uma circunstância que vai além do processo jurisdicional em si, alcançando também o campo da gestão do Poder Judiciário. O reconhecimento humanístico de cada profissional e de sua área de conhecimento é o primeiro passo para que o juiz possa angariar bons resultados na sua gestão como 26 ARISTÓTELES. The Policitcs, edição e tradução para o inglês de Ernest Barker , Nova York, Oxford University Press, 1946, Livro I, cap II (1253 a). profissional. E para se aprimorar o elemento humanístico na gestão do Poder Judiciário, é necessário reconhecer que o fio condutor de toda essa capacitação e formação é justamente a interdisciplinariedade com as ciências humanas afins. 2 A INTERDISCIPLINARIEDADE27 COMO CRITÉRIO CATALISADOR DA BOA GESTÃO DO PODER JUDICIÁRIO A formação acadêmica do juiz ainda hoje está pautada e estruturada a partir da concepção de uma ciência jurídica conceitual e teórica, em que se propõe um ilusório distanciamento das ciências sociais. O distanciamento entre a formação acadêmica jurídica e os fundamentos das demais ciências humanas afins ainda é muito âmbito de nossas universidades.28 Tal postura mostra-se usual nas Universidades brasileiras, dando-se ênfase ao ensinamento dogmático. É inegável que a questão da formação do juiz é uma problemática jurídica, contudo, também é correto afirmar que a ciência jurídica deve ser nutrida pelos conhecimentos provenientes de outras disciplinas, através de uma perspectiva pluridisciplinar que até então não tem sido feita a contento.29 Para Luiz Solano Carrera, Juiz da Corte Suprema de Justiça da Costa Rica, o fundamental na formação e capacitação do magistrado é o desenvolvimento da capacidade de trabalho interdisciplinar, a consulta a especialistas e uma visão mais ampla das situações.30 As conclusões do “Primeiro Congresso Internacional dos Magistrados”, realizado em Roma, em 1958, aprovaram, entre outras resoluções, especialmente a seguinte, que trata da preparação do juiz para o exercício da função jurisdicional: “a formação do magistrado deverá 27 Em sua acepção mais geral e abstrata, a interdisciplinariedade consiste numa certa razão de unidade, por meio de relações e atuações recíprocas, de interpenetração entre os diversos ramos do saber. SMIRNOV, Stanislav Nikolaevitch. La aproximación interdisciplinaria en la ciencia de hoy – fundamentos ontologicos y epistemológicos – formas y funciones. In Interdisciplinariedad y ciencias humanas. Trad. Jesús Gabriel Péreza Martín. Madrid: Editorial Tecnos, 1983. p. 29 e 55. 28 CASTORIADIS, Cornelius. L ïnstitution imaginaire de la societé. Paris: E. Seuil, 1975. p.256. 29 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder judiciário – crise, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995. p 22. 30 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. O juiz – seleção e formação do magistrado no mundo contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 35, tender: à integração das noções extrajudiciais necessárias ao exercício de suas funções (estudos de economia, de sociologia, de psicologia e de criminologia etc...”.·). O poder judiciário é um sistema que desenvolve suas atividades em um “ambiente”, onde mantém várias relações com outros sistemas e subsistemas. 31 Essas relações conduzem à conclusão de que “se existe uma verdade na sociedade, é a de que a neutralidade é impossível”.32 A formação e a capacitação do juiz para gerir cada vez mais a estrutura do Poder Judiciário reclamam pontos de encontro e cooperação com as disciplinas que formam as ciências humanas, construindo-se uma teia entre a ciência jurídica e as ciências sociais afins. Modernamente, torna-se impraticável isolar um determinado tipo de investigação, sem que haja inevitáveis contatos interdisciplinares. Jean Piaget preconiza que “tanto a evolução interna de seu campo, como o desenvolvimento dos outros saberes obriga a levar em consideração múltiplas tendências centrífugas que conduzem inevitavelmente a problemas de conexões interdisciplinares”.33 Michel Serres, por sua vez, afirma que há uma lei universal de intercâmbio teórico, onde há transferência de conceitos, representando um tecido em que estão subsumidos os objetos que são as próprias coisas, mediante uma rede complexa de interinformação34 Não se pode esquecer que, atualmente, a realidade social se caracteriza por uma interação cada vez mais próxima entre os processos técnicos ligados à produção, ao processo econômico, ao processo político e social e ao processo cultural. As relações que se travam no seio social apresentam-se mais estreitas do que aquelas observadas no princípio do século XX, sendo que, todas as modificações bruscas que se possam evidenciar em um determinado setor, fatalmente se propagarão mais ou menos rapidamente no seio das outras, “em função do grau de integração a que todos estes campos chegaram, ou estão a ponto de chegar, produzindo nestes últimos, modificações que por sua vez voltam a atuar sobre o organismo 31 ZAFFARONI, E. R., op. cit., p. 32. ROCHA, Leonel Severo. A problemática jurídica: uma introdução transdisciplinar. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1985. p.32. 33 “La evolución interna de su campo, como el desarrollo de los otros saberes obligan a tener en cuenta múltiples tendencias centrífugas que plantean inevitablemente problemas de conexiones interdisciplinarias”.(BENOIST. Jean-marie. La interdisciplinariedad en las ciencias sociales. In Interdisciplinariedad y ciencias humanas. Trad. Jesús Gabriel Péreza Martín. Madrid: Editorial Tecnos, 1983. p. 165). 34 BENOIST, J. M., id., p. 166. 32 social completo”.35 A formação cultural moderna representa a exclusão da monocultura jurídica, objetivando propiciar ao magistrado uma visão integral das questões sobre as quais o direito incide, reconhecendo a importância dos aspectos psicológicos, sociais, econômicos e históricos. A multivisão humanística permitirá um amplo apanhado das aflições convertidas em processo judicial. Se se incumbe à consciência aplicar a norma objetiva às circunstâncias e aos casos particulares, manifesta-se indeclinável a obrigação do magistrado em formar e aperfeiçoar o conhecimento íntimo de si próprio e de seus atos.36 Defender-se o intercambio na formação e capacitação do magistrado com as ciências afins, mediante uma perspectiva interdisciplinar ou transdisciplinar, nada mais representa do que se deixar conduzir pela nova visão globalizada em que o mundo se encontra. Contudo, ao contrário do que se possa imaginar à primeira vista, essa sustentação interdisciplinar/transdisciplinar não significa um apoio incondicional à globalização política e econômica institucionalizada internacionalmente, mas, acima de tudo, resgatar o caráter humano nas relações sociais. As influências das ciências afins no âmbito da formação e capacitação do magistrado são de extrema importância para a construção cultural e humanística do juiz, podendo-se enfatizar os seguintes aspectos: a) as ciências sociais conduzem à formação cultural e ideológica do magistrado; b) as ciências econômicas e políticas, a interferência da ordem econômica e política decorrente da globalização na formação subjetiva do sujeito-juiz; c) a história permite ao magistrado refutar a afirmação de existência de uma verdade absoluta, como bem demonstrou Michel Foucault; d) a psicologia e a psicanálise com suas pertinentes observações quanto à influência da consciência e da inconsciência do magistrado no exercício da atividade jurisdicional. A partir do momento que se estabelece em definitivo e concretamente este intercâmbio na formação e na capacitação do magistrado, deixando-se de lado uma postura que apenas prioriza concepções meramente jurídicas, conforme se tem verificado nos programas das Escolas de Magistraturas, assegura-se à Administração da Justiça a 35 36 SMIRNOV, S. N., op. cit., p. 55. NALINI, José Renato. Uma nova ética para o juiz. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1994. p.9. possibilidade de conduzir o processo de modernização e aprimoramento do Poder Judiciário com maior segurança e eficácia de gerenciamento. 3 COMPARTIMENTALIZAÇÃO DOS SABERES CIENTÍFICOS Atualmente já existe um processo mais ou menos espontâneo de cooperação interdisciplinar desencadeado pelas necessidades intelectuais ou científicas. A transdisciplinariedade e a interdisciplinariedade , segundo Edgar Morin e M. Piattelli-Palmarini, provém do mesmo fenômeno que representa a humanidade.37 Na concepção de Smirnov, o marco geral para a investigação científica e a união das diferentes disciplinas entre si, decorre da integração cada vez mais desenvolvida pela vida social, principalmente a partir do momento em que se concebe uma real importância à planificação do desenvolvimento econômico e social.38 Estruturar o Poder Judiciário sem se preocupar com a capacitação e formação do magistrado no contexto social, econômico, político-ideológico, e, principalmente, gerencial, é correr o risco de se ter em mãos uma instituição altamente qualificada para a era transmoderna, mas sem o instrumental humano apropriado para a condução e movimentação dessa magnífica máquina estatal. Pensar a formação e a capacitação do juiz desvinculada dessas circunstâncias afins, seria o mesmo que “o autoritário pensamento de Kant e sua tentativa de sistematizar o conhecimento, em detrimento de seus aspectos político-ideológicos, a procura de uma razão pura, tentativa infrutífera...”.39 É bem verdade que há muito se fala sobre a necessidade de uma relação interdisciplinar entre os conhecimentos científicos; contudo, também é verdade, que pouco ou quase nada se tem feito para que isso realmente se torne uma realidade. O que se percebe é que ainda existem enormes dificuldades para que os intercâmbios interdisciplinares sejam efetivamente partes da realidade na capacitação e formação gerencial 37 APOSTEL, L; BENOIST, J. M.; BOTTOMORE, T.B.; DUFRENNE, M..; MOMMSEN, W.J.; MORIN, E.; PIATTELLI-PALMARINI, M.; SMIRNOV, S.N.; UI, J. Interdisciplinariedad y ciencias humanas. Trad. Jesús Gabriel Pérez Matin. Madrid: Editoral Tecnos, 1983. p. 13. 38 APOSTEL, L; BENOIST, J. M.; BOTTOMORE, T.B.; DUFRENNE, M..; MOMMSEN, W.J.; MORIN, E.; PIATTELLI-PALMARINI, M.; SMIRNOV, S.N.; UI, J. , id., p. 15. 39 ROCHA, L. S., op. cit. p.24. do juiz. Impera, constantemente, uma perspectiva conservadora no sentido de compartimentalizar o conhecimento jurídico, como se fosse auto-suficiente para a realização de seus objetivos. Percebe-se que a compartimentalização dos saberes conduz ao isolamento entre as próprias disciplinas, cada qual fazendo de seu método e de seus conceitos a única vertente possível para se chegar à verdade. Essa postura é reflexo das mudanças consideráveis do disciplinamento dos saberes que advém desde o século XVIII, em decorrência daquilo que se costumou denominar de progresso da razão, o que, de certa forma, não passava de um disciplinamento de saberes polimorfos e heterogêneos. Na ótica de Michel Foucault, o aparecimento das Universidades contribuiu muito para essa compartimentalização dos saberes, principalmente a partir da criação da universidade napoleônica que se configurou como um grande aparelho uniforme dos saberes, com suas diferentes categorias e seus distintos prolongamentos.40 Sobre o aparecimento das Universidades e sua condensação dos saberes, relata Michel Foucault: A universidade tem sobretudo uma função de seleção, não tanto das pessoas (afinal de contas, isso não é muito importante, essencialmente), mas dos saberes. O papel da seleção, ela o exerce com essa espécie de monopólio de fato, mas também de direito, que faz que um saber que não nasceu, que não se formou no interior dessa espécie de campo institucional, com limites aliás relativamente instável, mas que constitui em linhas gerais a universidade, os organismo oficiais de pesquisa, fora disso, o saber em estado selvagem, o saber nascido alhures, se vê automaticamente, logo de saída, se não totalmente excluído, pelo menos desclassificado a priori. Desaparecimento do cientista-amador: é um fato conhecido nos séculos XVIII – XIX. Portanto: papel de seleção da universidade, seleção dos saberes; papel de distribuição do escalonamento, da qualidade e da quantidade dos saberes em diferentes níveis; esse é o papel do ensino, com todas as barreiras que existem entre os diferentes escalões do aparelho universitário; papel de homogeneização desses saberes com estatuto reconhecido; organização de um consenso; e, enfim, centralização, mediação, mediante o caráter direto ou indireto, de aparelhos do Estado.Compreende-se o aparecimento, pois, de algo como a universidade, com seus prolongamentos e suas fronteiras incertas, no início do século XIX, a partir do momento em que, justamente, se operou esse pôr em disciplina os saberes, esse disciplinamento dos saberes.41 Friedrich August Wolf, Fichte e Schleiermacher redigem por ocasião da fundação da Universidade de Berlim (1810), que será a universidade piloto do século XIX europeu, alguns textos de notáveis interesses sobre a natureza e a fundação da universidade, dizendo que o teólogo, o filósofo e o filólogo assinalam, cada qual, a necessidade de afirmar a 40 41 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.219. FOUCAULT, M., id., p. 219. solidariedade entre as principais disciplinas do conhecimento. Segundo eles, a vida do espírito é uma vida comum; reúne sob a inspiração de uma mesma vocação, os homens que perseguem investigações diversas e se enriquecem mutuamente pelo testemunho da diversidade de seus interesses.42 Contudo, o discurso de Charles Dupuy, em 1911, ao falar do fracasso da reconstrução da unidade do saber, ressoa até os dias atuais: Essa palavra universidade não é mais que uma palavra [...], porque não encerra uma organização cujos elementos sejam solidários, cujas partes se sintam órgãos de um mesmo todo [...]. Cada qual olha para seu lado; os homens do Direito, os de Letras, formam outros tantos grupos a parte; em cada uma dessas faculdades, as especialidades formam grupos isolados, eu não diria abertos, porém muito fechados. É de conhecimento público [...] que na Sorbone, por exemplo, está o grupo dos historiadores, dos filósofos, e que existe muito pouco contato, e ainda menor penetração entre eles [...]. Porém, no momento, todos se submetem à especialização.43 Tal advertência feita no início do século XX, conforme se afirmou, permanece viva atualmente, pois, ainda hoje, o conhecimento humano está inserido numa “patologia do saber”, o que representa uma particularidade da crise que atravessa a civilização humana. 44 O fracasso da epistemologia representa o fracasso humano em seu conjunto. Evidentemente que essa centralização do conhecimento no âmbito das Universidades passou a concentrar e a legitimar todos os saberes possíveis, representando um disciplinamento, uma relação de poder, não tanto sobre os corpos (na visão de Foucault) mas sobre o conhecimento das pessoas. Trata-se de uma sociedade de normalização, reeducada e conduzida segundo os fins de um dado sistema dominante. O magistrado é fruto dessa compartimentalização dos saberes proveniente de sua formação universitária. O positivismo e o cientificismo correspondem a esse novo estatuto do saber; cada disciplina se enclausura no esplêndido isolamento de sua própria metodologia, fazendo de sua linguagem uma espécie de conhecimento absoluto. 42 GUSDORF. Georges. Pasado, presente y futuro de la investigacion interdisicplinaria. In Interdisciplinariedad y ciencias humanas. Trad. Jesús Gabriel Péreza Martín. Madrid: Editorial Tecnos, 1983. p. 38. 43 “Esa palabra ‘universidad’ no es más que una palabra [...], porque no encierra una organización cuyos elementos sean solidarios, cuyas partes se sientan órganos de un mismo todo [...]. Cada cual tira por su lado; los hombres del Derecho, los de Letras, forman otros tantos grupos aparte; en cada una de esas facultades, las especialidades forman asimismo grupos, yo no diría celosos, pero sí bastante cerrados los unos hacia los otros. Es de conocimiento público [...] que en la Sorbona, por ejemplo, está el grupo de los historiadores, el de los filósofos, y que existe muy poco contacto, y aun menor penetración entre ellos [...]. Por el momento, todo se somete a la especialización”. (GUSDORF. G., id., p. 39). 44 JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imag, 1976. p. 39. Não obstante tenha sido a preocupação unitária do saber uma das principais características do pensamento das Luzes (Enciclopeida), o projeto enciclopédico se encaminha a reunir e condensar a imensa massa de saberes disponíveis, espelho onde se projeta a totalidade do domínio mental; a Enciclopédia deve justapor os dados das ciências e ordenar racionalmente as disciplinas. Contudo, a centralização do conhecimento nas Universidades também favoreceu a compartimentalização isolada de cada área em seu correspondente departamento, especializando o conhecimento. São comuns áreas afins do conhecimento humano, encontrarem-se tão próximas estruturalmente e materialmente no mesmo prédio de um dado “Campus Universitário”, e, ao mesmo tempo, tão distantes e isoladas no que diz respeito a interdisciplinariedade. É lamentável que isso ainda ocorra, mas é certo a sua existência. Por certo, o homem levará alguns anos para recuperar o tempo perdido por esse distanciamento proposital de um dado sistema, de uma dada relação de saber-poder.45 4 VISÃO DA INTEGRALIDADE – REAGRUPAMENTO DOS SABERES À medida que a progressão dos saberes decorre da especialização do conhecimento, a preocupação por uma dada unidade realça o desejo de um reagrupamento que se poderia considerar como um remédio necessário para por fim à intolerável desagregação dos campos do próprio conhecimento e da ciência.46 E esse parece ser o papel importância do juiz gestor da modernidade. A visão da integralidade, segundo Miguel Reale, “é da essência da teoria do conhecimento atual, infensa a todas as modalidades de setorização ou de unilateralidade”. 47 O conhecimento interdisciplinar deve ser de acordo com a lógica do descobrimento, uma abertura recíproca, uma comunicação entre os campos do saber, uma fecundação mútua, “e não um formalismo que neutraliza todos os significados, fechando as saídas”.48 45 É muito comum nos simpósios e nos congressos jurídicos valorizar-se o discurso jurídico, dando-se pouca ênfase aos conhecimentos trazidos por profissionais de outras áreas, isso quando o jurista não se arvore na transmissão exclusiva de conhecimentos que pouco ou quase nada tem em comum com sua ciência. 46 GUSDORF. G., op. cit., p. 32. 47 REALE, Miguel. A ética do juiz na cultura contemporânea. In Uma nova ética para o juiz. Coord. José Renato Nalini, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1994. p.138. 48 “y no un formalismo que neutraliza todos los significados cerrando todas las salidas”. (GUSDORF. G., op. cit., p. 49). O que se pretende afirmar é que uma determinada ciência, seja ela qual for, não se pode manter isolada, enclausurando-se num egoísmo epistemológico, à margem das necessárias relações com outras ciências. É imprescindível na formação e capacitação do magistrado optar-se por uma análise epistemológica conduzida pela dialetização dos aspectos políticos, sociais e históricos dos saberes instituídos, abandonando-se a concepção de “ciência” com (m)aiúscula – ciência única. A dialética permite abrir um canal constante de comunicação entre teoria e a práxis (dever-ser e ser). 49 Em que pese a tendência moderna seja no sentido de se preconizar a especialização dos saberes (principalmente no âmbito da ciência jurídica), razão pela qual não se deva levar em consideração a afirmação de J. Ui, no sentido negativo dessa atual tendência de especialização, o fato é que, tal perspectiva, por vezes, é extremamente maléfica aos intentos de cooperação e intercâmbio da relação interdisciplinar.50 Promover o estudo da formação e capacitação do juiz para a gestão administrativa do Poder Judiciário segundo a ótica da interdisciplinariedade/transdisciplinariedade com base numa visão construtivista é “animar todas essas investigações científicas que provaram que podem enriquecer e aprimorar nossos conhecimentos”.51 A noção de transdisciplinariedade enuncia a idéia de uma transcendência, de um princípio capaz de impor sua autoridade às disciplinas afins e particulares; estabelece um lugar de convergência, uma perspectiva de objetivos que unificará o horizonte do saber das diversas epistemologias. Reclama a atividade humana, mais do que uma condição material apropriada52, uma formação conjunta dos diversos campos epistemológicos até então existentes, razão pela qual, a decisão do magistrado deve ser construída não apenas no âmbito da ciência jurídica, mas recolhendo subsídios nos saberes de outros profissionais das áreas científicas afins, pois a “decisão não é exatamente uma síntese, conforme preconiza o positivismo, seja na sua forma 49 ROCHA, L. S., op. cit., p.28 APOSTEL, L; BENOIST, J. M.; BOTTOMORE, T.B.; DUFRENNE, M..; MOMMSEN, W.J.; MORIN, E.; PIATTELLI-PALMARINI, M.; SMIRNOV, S.N.; UI, J. ,. op. cit. p. 16. 51 APOSTEL, L; BENOIST, J. M.; BOTTOMORE, T.B.; DUFRENNE, M..; MOMMSEN, W.J.; MORIN, E.; PIATTELLI-PALMARINI, M.; SMIRNOV, S.N.; UI, J. ,. id. p. 18. 52 Não se quer dizer com isso que a estrutura material não seja importante. O que se pretende afirmar é que a estrutura humana é muito mais importante, uma vez que o magistrado, no interior do horizonte de concreção axiológica, não é mero intérprete da norma abstrata; ao contrário, ele somente compreende a norma enquanto ela se refere a determinadas conjunturas circunstanciais, em função das quais os valores se realizam. (REALE, Miguel. op. cit., p. 137). 50 clássica ou nas suas revisões sofisticadas, mas uma soma dos conhecimentos essenciais, uma forma de filosofia do conhecimento e pelo conhecimento, fundada na hipótese de que o saber é uma narração do mundo cujos fragmentos podem reunir-se”.53 Sobre a necessidade imperiosa da interdisciplinariedade, escreveu Leibniz (16461716): O gênero humano, considerado em relação com as ciências que servem a nossa felicidade, parece-me semelhante a um rebanho de gente que marcha em confusão pelas trevas, sem ter chefe, nem ordem, nem palavra, nem outro sinal com que regular a sua marcha e reconhecer-se. Ao invés de caminhar com as mãos dadas para guiar-nos e assegurar nossos passos, corremos como loucos, chocando uns contra os outros, longe de nos ajudar e nos sustentar[...]. Observamos que o que mais poderia nos ajudar seria reunir nossos trabalhos, compartilhá-los com vantagens e regulá-los com ordem; porém, até agora, apenas se chega à difícil conclusão de que nada se esboçou ainda, e que todos correm em massa ao que os outros já tenham feito, ou se copia, ou inclusive se combatem eternamente [...]. 54 Segundo J. A. Condorcet, o progresso geral das ciências tem sido de tal ordem, que nenhuma, por assim dizer, pode ser reduzida à totalidade de seus princípios sem que não tenha que pedir ajuda às demais.55 O reconhecimento da necessidade de um intercâmbio entre as ciências afins, demanda o reconhecimento da interdisciplinariedade. Para que haja tal relação é necessário que haja disciplinas; a interdisciplinariedade se desenvolve a partir das disciplinas; porém, ela permite que se modifique a maneira de pensar, de refletir sobre determinados pontos no interior de cada disciplina. Assim, as duas noções “disciplina” e “interdisciplinariedade” não só dependem uma da outra, como também estão intimamente unidas. 56 5 A FORMAÇÃO INTERDISCIPLINAR DO JUIZ DO SÉCULO XXI COMO CRITÉRIO DE MODERNIZAÇÃO DA ATIVIDADE GESTOR-JUDICIAL A atividade judiciária brasileira e sua nova perspectiva contemporânea tornaram evidente a inviabilidade da composição do Poder Judiciário através de magistrados que 53 SINACEUR, Mohammed Allal. Que es la interdisciplinariedad. In Interdisciplinariedad y ciencias humanas. Trad. Jesús Gabriel Péreza Martín. Madrid: Editorial Tecnos, 1983. p. 29. 54 GUSDORF. G., op. cit., p. 34. 55 GUSDORF, G., id., p. 36. 56 KRISHNA. Daya. La cultura. In Interdisciplinariedad y ciencias humanas. Trad. Jesús Gabriel Péreza Martín. Madrid: Editorial Tecnos, 1983. p.216. tenham apenas formação jurídica advinda de nossas Universidades. O ideal, evidentemente, seria um esforço concentrado para elevação do nível dos ensinos jurídicos das Universidades, por meio de uma efetiva relação interdisciplinar entre o curso de direito e as demais ciências humanas. Tendo em vista que aludida solução se mostra inviável a curto e médio prazo, o próprio Poder Judiciário há que encontrar solução para suprir essa falha de formação profissional e, principalmente, humanística. Na lição de José Renato Nalini: O Juiz do séc. XXI não pode ser homem alheio às profundas transformações da sociedade. Não é mais o árbitro dos conflitos intersubjetivos, mas toma decisões que terão relevo para expressivos grupos, quando não para a comunidade toda. Exige-selhe conhecer os problemas do ecossistema, dos conflitos de massa, dos direitos do consumidor e do usuário de serviços públicos, ostentando formação complexa e de amplitude nunca até então imaginada. Por isso é que ‘à função sempre crescente da Magistratura, a sempre mais consistente relevância política do seu papel, é necessário fazer corresponder – como já se vem fazendo em proporção variada em outros países de tradição democrático-constitucional - uma marcada modernização do aparato Judiciário a todos os níveis; com mais eficazes instrumentos de acesso à Justiça para todos os cidadãos e maiores garantias sobre a qualidade do Juiz’. 57 Evidentemente que a preconização de uma nova leitura da formação e capacitação do juiz reclama ao mesmo tempo uma importante mudança nos mecanismos pedagógicos da formação dos magistrados contemporâneos da América latina, que ainda permanecem fundados historicamente na autonomia da ciência jurídica com base na: “(a) separação entre Direito e Moral (Kant); b) separação entre Economia e Política (Smith); c) separação entre Estado e sociedade civil (Savigny).58 Para se ter uma idéia, no sistema argentino, segundo Gladys J. Mackinson, a comunidade universitária da Prata procura angariar adesões à tese que a magnitude da função jurisdicional excede o mero conhecimento da norma jurídica previsto por uma carreira universitária de colação de grau. Na verdade: “Por melhor que seja a complexa trama de relações sociais, exige-se adicionalmente do magistrado não só a percepção das expectativas sociais dos jurisdicionados, como também sua capacidade para conseguir a incorporação de 57 NALINI, José Renato. Recrutamento e preparo de juízes. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1992. 17. 58 “a) la separación entre Derecho y Moral (Kant); b) la separación entre Economía y Política (Smith); c) separación entre Estado y sociedad civil (Savigny)”.( BARCELLONA, Pietro. La formación del jurista. La formación del jurista – capitalismo monopolístico y cultura jurídica. Traducción de Carlos Lasarte. ed. Madrid: Editorial Civitas, S.A., 1993. p. 47). p. la in 3. conhecimento de outras disciplinas em auxílio ou apoio de suas apreciações”.59 Não obstante essa insistência necessidade de um conteúdo epistemológico interdisciplinar, a continuidade da tradição arcaica parece resistir às investiduras do desenvolvimento cultural e às transformações sociais. “Os sacerdotes do direito assistem indiferentes à queda dos deuses”.60 Mas a realidade exige um rompimento drástico com essa postura reacionária. A economia, por exemplo, não se desenvolve segundo as leis jurídicas e solicita, cada vez mais, ajuda da política, principalmente no momento de crises e de conjunturas difíceis, quando então o Estado penetra na sociedade civil e por meio de direções públicas conduz a economia. O jurista “reduzido a mero técnico, corre o risco de perder a qualificação de científico... o jurista trata de se propor a si mesmo como chefe da tribo. Mais além da ciência permanece sempre o poder”.61 O magistrado, de certa forma, ainda se encontra delimitado ao restrito campo de ensinamento jurídico que provém das Universidades, que, na sua grande maioria, preconiza o ensino do direito como simples transmissão de informações, que se reduzem após em definições, “como se se tratasse simplesmente de descrever formas de ser da realidade existente”.62 Segundo Salete Maccalóz, no Brasil, lamentavelmente, não existe uma Faculdade que se destaque pela aplicação de uma metodologia crítica. As que se destacam pelo seu bom desempenho aplicam na maior parte do tempo o método dogmático.63 “Nossa história na educação formal não possibilitou o surgimento de estabelecimentos que caracterizassem o tipo de profissional mais humanista, mais politizado etc...”.64 Atualmente se percebe que a formação universitária resulta insuficiente para a 59 NALINI, J. R., op. cit., p. 25. “Los sacerdotes del iure asisten indiferentes a la caída de los dioses”.( BARCELLONA, P., op. cit.., p. 53). 61 “reducido a mero técnico, corre el riesgo de perder la calificación de científico...el jurista trata de proponerse a sí mismo como jefe de la tribu. Más allá de la ciencia permanece siempre el poder”. (BARCELLONA, P., id., ibid. 62 “como si se tratase simplemente de describir formas de ser de la realidad existente”.(BARCELLONA, P., id., p. 54). 63 “Etimologicamente, o dogma assinala, primeiro, uma tese ou doutrina e, depois, uma regra ou norma, como a própria lei, a cuja imperatividade atribui um caráter intocável.” (LYRA FILHO, Roberto. Para um direito sem dogma. Porto Alegre: Ed. Fabris, 1980. p. 11). 64 “Os poucos profissionais que escrevem filosoficamente o Direito e suas diferentes implicações, quando professores se concentram nos cursos de pós-graduação; raríssimos permanecem nos curso de graduação, daí a mínima influência de um pensamento mais aprofundado nos estudantes e futuros profissionais”. (MACCALÓZ, Salete Maria Polita. O poder judiciário, os meios de comunicação e opinião pública. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2002. p. 94). 60 capacitação que se deseja do magistrado no exercício das inúmeras e complexas atividades jurisdicionais e administrativas que lhe são conferidas.65 O magistrado, muitas vezes, parece: “Prisioneiro de um dilema: se reconhece a compenetração entre o Direito e a Política, entre o Direito e a Ética, se vê constrangido a negar o caráter científico e a autonomia da própria disciplina; se enfatiza a autonomia da ciência jurídica deve permanecer com os olhos vendados diante dos processos reais. O preço da compreensão é a confusão e o medo do desconhecido; o preço da autonomia é a cegueira”.66 Contudo, não basta cerrar os olhos para que o juiz possa ter paz de espírito.67 O recrutamento de magistrado em Portugal para as escolas de formação deve servir de paradigma para o Brasil. Além de levar em consideração o nível de sedimentação de conhecimentos jurídicos, também exige provas que procurem verificar a capacidade individual dos candidatos quanto à compreensão das questões interdisciplinares.68 Segundo o magistrado português, Mário Tavares Mendes: no processo de recrutamento a seleção das instituições de formação de magistrados por júri de concurso, averiguar-se-á, ainda, mediante uma prova ou provas específicas, o nível de conhecimentos do candidato em matérias culturais, sociais e econômicas que, não se inserindo diretamente no domínio do saber jurídico, são indispensáveis à compreensão da sociedade e para a administração da justiça....É um pressuposto, em nosso entender, essencial ao correto funcionamento das Escolas de Magistraturas, a necessidade de conceber uma formação que se não detenha, apenas, no essencial da dogmática jurídica, mas que englobe, numa perspectiva transdisciplinar, outras áreas, como a economia, a psicologia e a sociologia, a administração, que ajudem a compreender e a, conseqüentemente, ter em conta a realidade social efetiva.69 Em reunião realizada em julho de 2001, pelos docentes do Centro de Estudos Judiciários da Escola Nacional de Magistratura da França e da Escola Judicial da Espanha, chegou-se à seguinte conclusão: 65 66 FIX-ZAMUDIO, Hector. Preparación, selección y nombramiento de los jueces. In Revista de Processo, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, n. 10, ano 3, abr/junh., 1978., p.127. “Prisionero de un dilema: si reconoce la compenetración entre Derecho y Política, entre Derecho y Etica, se ve constreñido a negar el carácter científico y la autonomía de la propia disciplina; si subraya la autonomía de la ciencia jurídica debe permanecer con los ojos vendados frente a los procesos reales. El precio de la comprensión es la confusión y el miedo a lo desconocido; el precio de la autonomía es la ceguera”. (BARCELLONA, P., op. cit.. p. 45 e 46). 67 BARCELLONA, P., id., p. 46. MENDES, Mario Tavares. A formação inicial e contínua de magistrados – uma perspectiva do centro de estudos judiciários de Portugal. In Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, n. 24, ano VIII, março de 2004, p. 26. 69 MENDES, M. T., id., ibid. 68 A formação técnico-jurídica deverá ser complementada com atividades dirigidas ao conhecimento do contexto socioeconômico-cultural no qual se desenvolve a formação judicial e a formação humanista do futuro magistrado; Em relação à avaliação, defende-se um sistema avaliativo de natureza permanente e contínua que incida sobre o aproveitamento, a participação, a atitude e a própria idoneidade dos formandos... Quanto aos conteúdos curriculares - o objetivo de proporcionar os elementos necessários à correta interpretação da realidade econômica e social subjacente à aplicação do Direito determina a concepção de módulos de formação em economia, fiscalidade, contabilidade, sociologia, antropologia e psicologia, preferencialmente ministrados por especialistas não-magistrados.70 A crise social espanhola verificada após a ditadura franquista, realçou a necessidade de se estabelecer uma reformulação no âmbito da Escola Judicial Espanhola, até então voltada à necessidade de “fabricar juízes”, para uma nova postura, desta vez direcionada “à formação de um juiz mais humano, mais próximo das pessoas, que compreenda a cidadania, não se acovarde diante da retórica e utilize uma linguagem compreensível por todos”.71 A preocupação com o material humano há muito já havia sido preconizada pelo Ministro Aliomar Baleeiro: “não são suficientes os meios materiais, os Palácios de Justiça, os computadores, os aparelhos de microfilmagem, os equipamentos: há sempre o problema do Juiz como homem”.72 Na mesma linha de preocupação era o pensamento de Piero Calamandrei: “o problema da reforma das leis é, antes de tudo, um problema de homens”.73 Assim, a capacitação contínua dos magistrados deverá ser vista como “direito/dever intimamente ligado à sua atitude ética, na qual esteja implícita uma obrigação de permanente atualização determinada por um imperativo de honestidade intelectual”.74 6 O EFETIVO APROVEITAMENTO DE PROFISSIONAIS DAS CIÊNCIAS HUMANAS AFINS Atribui-se aos magistrados tantas tarefas paralelas que muitas vezes se tem dúvida qual seria a sua atividade essencial. Toda e qualquer instituição tem por dever cumprir determinadas funções, as quais 70 MENDES, M. T., id., p. 27. TEIXEIRA, S.F., op. cit., p. 38 72 NALINI J. R., id., p. 98. 73 CALAMANDREI, Piero. Instituciones de derecho procesal según el nuevo código. 3. ed. Buenos Aires, 1958. p. 63. 74 MENDES, M. T., loc. cit. 71 devem ser otimizadas para a perfeita realização de seus fins:“A estrutura otimizada de uma instituição será sempre a que a capacite para o melhor desempenho do que a ela será cometido. Quando o que lhe é cometido não seja bem definido, ainda menos definidos serão seus modelos estruturais”.75 O que se percebe, no dia-a-dia, é a realização por parte dos magistrados (com formação eminentemente jurídica) de funções nitidamente que não lhe são próprias, e para as quais não têm qualquer formação científica. Por exemplo, o simples fato de o magistrado administrar uma Vara Federal, ou mesmo uma Seção Judiciária, realizando atribuições de administração, planejamento administrativo, planejamento econômico, segundo seus parâmetros de conhecimento, denota a falta de otimização no desenvolvimento e na agilidade da prestação jurisdicional. O magistrado é praticamente obrigado à realização de atividades científicas que não lhe são próprias, realizando funções eminentemente distintas de sua formação jurídica, procurando soluções através de meios práticos, empíricos, de erros e acertos, sem qualquer critério científico ou mesmo formação intelectual para tanto. Repita-se, “a análise do judiciário, como de qualquer instituição, requer uma perspectiva interdisciplinar, que não tem sido feita”.76 Não se pretende, contudo, afirmar que não se deva investir na formação e capacitação do magistrado, mediante a realização de cursos de aperfeiçoamento ou de capacitação, para que eles possam compreender melhor outros ramos das ciências humanas e, também, desenvolver com racionalidade crítica a atividade jurisdicional. Mas apenas isso não é suficiente para que haja uma efetiva e concreta integração interdisciplinar entre o Judiciário e os outros ramos do conhecimento humano. O que se pretende sugerir, é que sejam contratados profissionais qualificados para a realização de funções denominadas não essenciais da atividade jurisdicional, valorizando-se as demais áreas do conhecimento humano, aproveitando-se profissionais altamente qualificados e com experiência nas áreas afins. Se as Universidades levam alguns anos para a capacitação e formação de profissionais da área de administração, economia, sociologia, planejamento etc., fácil é perceber que a administração de uma Vara Federal ou Estadual, a administração do Forum ou 75 76 ZAFFARONI, E. R. op. cit.., p. 21 e 22 ZAFFARONI, E. R., id., p. 22. de uma Seção Judiciária, seu planejamento, sua otimização, não poderia permanecer na direção de alguém que não possui conhecimento específico, muito menos formação científica para tanto. Eis um dos pontos que contribui para a burocratização e para a lentidão da atividade judiciária, uma vez que o deslocamento e a utilização de um profissional com formação eminentemente jurídica para a realização de atividades administrativas que exigem profissionais altamente capacitados para tal fim, representa um desperdício do potencial do magistrado. Se o Poder Judiciário deseja ingressar efetivamente no Século XXI, fazendo parte desse sistema massificado e globalizado, não basta apenas encontrar soluções tecnológicas, ou ampliação e criação de órgãos jurisdicionais, se, contudo, permanece estagnado em suas concepções de auto-suficiência epistemológica, deixando de aproveitar a valiosa colaboração interdisciplinar de profissionais de outras áreas das ciências afins. Cada vez que o juiz deva interromper seu trabalho (jurídico) para realizar atividades de planejamento e administração de uma secretaria (para as quais, repita-se, não possui formação científica), tal fato, por si só, representa um desvirtuamento e um desperdício de seu potencial. Evidentemente que a opacidade teórica na identificação das funções judiciais pode conduzir à própria perda de identidade do Juiz, que por vezes encontra-se angustiado entre a atividade de julgar, organizar, administrar etc. Além do mais, outorgando-se aos Magistrados as funções administrativas, econômicas e de planejamento de uma Vara Federal ou Estadual, ou mesmo de uma Seção Judiciária, sem qualquer conhecimento profissional na área de administração, impede-se que se estabeleça no âmbito do Poder Judiciário padrão otimizado de qualidade, pois tais atividades (que também dependem de conhecimento científico) devem ficar sob a responsabilidade de profissionais treinados e tecnicamente capacitados e qualificados para tal fim. Nenhuma grande empresa privada, atualmente, deixa de aproveitar os profissionais qualificados nas áreas específicas de suas atividades afins. A administração da Justiça deve espelhar-se na forma organizacional das grandes empresas capitalistas, porque nessa área elas têm muito que ensinar. A complexidade moderna estatal e a multiplicação das relações jurídicas contemporâneas reclamam uma atitude profissional no trato da coisa pública.77 7 A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA VOLTADA PARA UM PROJETO INTERDISCIPLINAR E DE PLANEJAMENTO A MÉDIO E LONGO PRAZO – PLANO PLURIANUAL Sustenta-se teoricamente e enfaticamente a necessidade de o Poder Judiciário concretizar sua atividade preponderante mediante cooperação e coordenação interdisciplinar com as demais ciências afins. Mas nada disso resultará bons frutos se não se pensar a Administração da Justiça com olhos para o futuro e mediante um criterioso planejamento a médio e longo prazo. O que se percebe é que os objetivos institucionais preconizados pela administração da Justiça brasileira circunscrevem-se, por vezes, às necessidades prementes e momentâneas de agilização da entrega da prestação jurisdicional, manipulada pelas necessidades urgentes da opinião pública, segundo diretrizes traçadas pela cúpula que dirige os Tribunais, num determinado período normalmente restrito a dois anos de administração. Não se coloca em dúvida a necessidade imediata e urgente de estabelecer, no presente, soluções para o grave problema da rápida, equo e justa prestação jurisdicional por parte dos diversos órgãos institucionais da Justiça brasileira. Ocorre que, qualquer política administrativa adotada por uma determinada cúpula diretiva da administração do Poder Judiciário, não é garantia de sua efetiva continuidade, ficando à mercê da adesão ou não das pessoas que irão compor os órgãos diretivos na seqüência. Num passado recente (1999), observou-se que a direção do Conselho da Justiça Federal conduzia sua atenção ao projeto de agilização e informatização virtual das Varas de Execuções Fiscais, as quais, atualmente, estão em estado deplorável. Sem que se concluísse o objetivo anteriormente traçado, atualmente, a atenção está direcionada aos Juizados Especiais Cíveis, como, evidentemente, não poderia deixar de ser. Na próxima gestão, pouco ou nada se sabe quais serão os objetivos a serem 77 MARTÍN, Valeriano Hernández. Independencia del juez y desorganización social. Madrid, 1991, p. 59. alcançados. O órgão de administração da Justiça modernamente não pode ser visto apenas como parte do Poder Judiciário brasileiro, desvinculado dos critérios estabelecidos para o gerenciamento e administração dos grandes complexos públicos e privados. Tenha-se em mente que atualmente já se fala em parceria pública e privada para alcançar os objetivos institucionais do Poder Executivo. Os grandes complexos públicos ou privados necessitam, num mundo globalizado, acima de tudo, de projetos estruturados e democraticamente elaborados, com base em estudos técnicos e científicos a médio e longo prazo, que tenham uma seqüência institucional de início, meio e fim, e que não corram o risco de se perderem na burocracia pública ou ficarem relegados à vontade política dos administradores que porventura possam vir a assumir a direção do Poder Judiciário. Há necessidade de se abandonar uma postura imediatista de resultados, com base em projetos contigenciais e momentâneos, normalmente reclusos ao âmbito de juristas, sem que se estabeleçam estudos técnicos, científicos, programáticos de médio e longo prazo, bem como, e, principalmente, a viabilidade econômica orçamentária. A valorização dos profissionais de outras áreas científicas é de extrema importância para que se possa pensar numa administração da Justiça segura, profícua e permanente. É imperiosa a oitiva de profissionais tão ou mais qualificados que os juristas sobre a administração da Justiça. O intercâmbio entre as ciências afins não é meramente facultativo, mas obrigatório quando se fala de uma tentativa séria e permanente de se pontuar resultados que procurem reverter a atual visão da sociedade brasileira em relação ao Judiciário, numa maneira geral. O intercâmbio com as Universidades Públicas ou Privadas, conforme já se asseverou, para o aproveitamento de profissionais das áreas da administração, pedagogia, sociologia, psicologia, arquitetura, engenharia, processamento de dados etc., além de conferir uma oportunidade de emprego para aqueles que estão ingressando no mercado de trabalho, demonstra por parte do Judiciário o reconhecimento da importância de profissionais que há anos vem sendo lapidados academicamente para exercerem suas atividades. Mas de nada adianta um intercâmbio de tal envergadura, se não há uma política de planejamento e estruturação da Justiça brasileira a médio e longo prazo, sem que haja um programa plurianual que vincule as diversas administrações sucessivas. O mesmo se verifica em relação às escolas da magistratura federal, pois, até então, não há uma metodologia uniforme e um planejamento geral, não obstante algumas escolas já tenham atingido um certo grau de funcionamento relativamente satisfatório. O que prepondera, são os cursos rápidos de atualização e os de preparação com pequena duração.78 Há necessidade de se estabelecer no âmbito da Justiça Federal e Estadual, conforme já se externou, um “plano plurianual” elaborado de acordo com um projeto interdisciplinar e, principalmente, vinculativo às administrações que se sucedem na administração da justiça, nos mesmos moldes preconizados pelo artigo 165, inciso I, parágrafo primeiro da Constituição Federal brasileira, em relação ao Poder Executivo, in verbis: “A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada”. 8 ESCRITÓRIO CENTRAL DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA E OS COMITÊS DE CONFERÊNCIA JUDICIAL O “plano plurianual”, anteriormente referido, seria elaborado seguindo-se os critérios e a estrutura que atualmente são adotados pela administração da Justiça Federal nos Estados Unidos da América, através do chamado Escritório Administrativo dos Tribunais Federais, que atua como Secretariado da Conferência Judicial dos Estados Unidos. Segundo Peter J. Messite, Juiz Distrital de Maryland, nos Estados Unidos, ao Escritório Administrativo dos Tribunais Federais compete elaborar e preparar os orçamentos dos tribunais federais, manter seu quadro de funcionários, coletar estatísticas referentes aos trabalhos dos tribunais, fornecer equipamentos, manuais e publicações aos vários distritos e apoiar os comitês da Conferência Judicial.79 O Escritório Administrativo, conhecido pelas iniciais A. O. – Administrative Office, criado em 1939, fornece serviços administrativos, financeiro-legal, de programação e de tecnologia de informação aos tribunais federais. O escritório fornece assessoria de pessoal à 78 79 TEIXEIRA, S. F., op. cit., p. 45. MESSITE. Peter J. A administração da justiça federal nos estados unidos da América. In Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, n. 24, ano VIII/Março de 2004, p.6. Conferência Judicial e seus comitês, implementa e executa política do Conselho Judicial, bem como certas leis e regulamentos, e facilita comunicações entre o Judiciário e o Congresso, e entre o Poder Executivo e o público, em nome do Judiciário.80 Mas o que é mais importante, e aqui reside o ponto principal que se sugere para a administração da Justiça brasileira, é que o A. O. Administrative Office “realiza estudos e planejamentos em longo prazo para o Judiciário... além de compilar estatísticas e atuar na sua análise...” (gripo nosso).81 Um dos aspectos que mais chama a atenção em relação à administração da Justiça Federal dos Estados Unidos, é o fato de que o Conselho Judicial, que supervisiona a administração das cortes da região conforme as decisões da Conferência Judicial é presidido pelo presidente do Tribunal Regional, e “tem a prerrogativa de nomear um executivo que trabalhará juntamente com o presidente, coordenando uma gama de assuntos administrativos da região” (grifo nosso).82 Portanto, a administração da Justiça Federal americana não só teoriza a necessidade de um projeto interdisciplinar, como, na prática, implementa essa teoria, inclusive mediante a contratação de um executivo que trabalha juntamente com o presidente do Conselho Judicial. Poder-se-ia implementar no Brasil o denominado Escritório de Administração da Justiça Federal brasileira, em convênio com as Universidades Públicas e Privadas, o qual seria encarregado de elaborar o “plano plurianual” do Poder Judiciário, estabelecendo projetos de administração a longo e médio prazo, coletando estatísticas referentes aos trabalhos dos tribunais e juízes, consultando profissionais de áreas afins, desvinculados da administração da Justiça, para o efeito de criação de Varas, Tribunais, bem como, segundo a necessidade local, a forma de especialização das Varas, etc..., servindo de base para a atuação do Conselho da Justiça Federal e dos Tribunais Estaduais. Poder-se-ia, também, pensar na contratação de um executivo (formado em administração de empresa) para exercer suas funções como colaborador do Conselho da Justiça Federal brasileira, nos moldes Norte Americano. Aliás, a contratação de um executivo para a administração da Justiça brasileira não seria uma prerrogativa exclusiva do Conselho da Justiça Federal e dos Tribunais, pois também as Varas Federais apresentam a necessidade de sua respectiva administração, que, 80 MESSITE, P. J., id., p. 8. MESSITE, P. J., id., p. 8. 82 MESSITE, P. J., id., p. 7. 81 normalmente, fica a cargo do Juiz Federal titular e de seu Diretor de Secretaria, ambos com formação eminentemente jurídica. Contudo, de regra, nem o Juiz Federal, nem o Juiz Estadual, muitos menos seu Diretor de Secretaria, possuem formação em administração ou planejamento. Todos, na maioria das vezes, são formados em Direito, com suas limitações, e, através de uma política administrativa de erros e acertos, procuram estabelecer critérios que melhor atendam aos interesses de uma rápida prestação jurisdicional. A iniciativa é extremamente louvável, mas ainda arcaica e pouco profissional. A estrutura de uma Secretaria de Vara Federal, atualmente, representa a complexidade de gerenciamento nos mesmos moldes de qualquer microempresa, o que, por si só, justifica a contratação de um administrador que tenha qualificação para tal desiderato. Sendo a atividade jurisdicional desenvolvida em Secretaria de extrema importância, não se pode negar, igualmente, que o gerenciamento por parte de um profissional cientificamente habilitado na área de administração somente vem contribuir para o aperfeiçoamento do sistema, pois permite que o magistrado e seu Diretor de Secretária, especialistas na área jurídica, possam direcionar todo o seu conhecimento para o processo judicial. É lamentável, por vezes, desperdiçar o potencial jurídico desses profissionais, exigindo deles atuação em outras áreas que poderia muito bem ser suprida através dos convênios interdisciplinares com as Universidades brasileiras. Um outro aspecto relevante observado na administração da Justiça Federal Americana, e que também poderia ser implementado na Justiça brasileira, são os chamados Comitês da Conferência Judicial, os quais estão articulados nos seguintes moldes: “Comitê Executivo; comitê de regras de processo civil e processo criminal; comitê de automação e tecnologia; comitê de administração de cortes e gerenciamento de processos; comitê de Direito Penal; comitê de relações internacionais e judiciais; e comitê de segurança e instalações”.83 Por meio desses comitês se realizariam estudos concentrados e permanentes em determinadas áreas, tanto para suprir de informações o Escritório Central de Administração da Justiça brasileira, como para realizar projetos de lei sobre as matérias de competência da Justiça Federal ou Estadual a fim de serem encaminhamentos aos órgãos respectivos. 83 MESSITE, P. J., id., p. 8. 9 CONCLUSÃO A complexidade da administração da Justiça brasileira reclama uma estrutura profissional desvinculada de uma postura isolada e auto-suficiente. O planejamento da Administração da Justiça Federal ou Estadual há de ser feito levando-se em consideração as estruturas dos grandes complexos empresariais público e privado, para que se possa efetivamente reverter o atual conceito da sociedade civil sobre os resultados alcançados pelo Poder Judiciário, bem como para que se possa concretizar não somente no presente, mas, acima de tudo, no futuro, um projeto inovador e permanente no âmbito das administrações que se sucedem. Para a concretização de tal objetivo, será necessário: a) a elaboração de um plano plurianual; b) a criação de um Escritório Administrativo da Justiça Federal ou Estadual; c) a criação de Comitês de Conferência Judicial; d) contratação de profissionais de outras áreas afins para administração e gerenciamento das Varas Federais ou Estaduais e das Seções Judiciárias; e) uma nova formação e capacitação dos juízes voltada para o gerenciamento administrativo do Poder Judiciário. O plano de capacitação e formação do magistrado deve-se pautar, preferencialmente, numa preocupação humanística, nos seguintes termos: a) dar efetiva interdisciplinariedade como fio condutor da formação e capacitação dos magistrados; b) comungar do aproveitamento dos conhecimentos das ciências humanas afins através de intercâmbio e parceria com Universidades brasileiras. REFERÊNCIAS APOSTEL, L; BENOIST, J. M.; BOTTOMORE, T.B.; DUFRENNE, M..; MOMMSEN, W.J.; MORIN, E.; PIATTELLI-PALMARINI, M.; SMIRNOV, S.N.; UI, J. 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Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz84 RESUMO Busca-se analisar a constitucionalidade do ato convocatório de Comissão Parlamentar de Inquérito – C.P.I. em face de ex-Presidente da República Federativa do Brasil, tendo por fio condutor o princípio da separação de poderes. PALAVRAS-CHAVE: C.P.I.. Convocação. Separação de poderes. ABSTRACT The aim is to analyze the constitutionality of the act of summoning the Parliamentary Commission of Inquiry - CPI in the face of former President of the Federative Republic of Brazil, with the guiding principle of the separation of powers. KEYWORDS: CPI. Convocation. Separation of powers. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO – FATO DETERMINADO. 3 O PRINCÍPIO DE SEPARAÇÃO DOS PODERES EM RELAÇÃO AO EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA. 4 CONVOCAÇÃO DE EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA POR C.P.I. NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. 1 INTRODUÇÃO O presente estudo tem por finalidade avaliar a legitimidade e a constitucionalidade da convocação de ex-Presidente da República Federativa do Brasil para prestar esclarecimentos perante Comissão Parlamentar de Inquérito – C.P.I. 84 Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Diretor da Escola da Magistratura Federal - EMAGIS Para tanto, transita-se pela doutrina sedimentada no direito comparado, especialmente dos Estados Unidos da América. Avalia-se a exigência de ato convocatório expedido por Comissão Parlamentar de Inquérito – C.P.I. diante do princípio da separação dos poderes. 2 DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO – FATO DETERMINADO Dispõe o § 3º do artigo 58 da Constituição da República que o Poder Legislativo está autorizado a criar Comissões de Inquérito para apurar fato determinado, observados os requisitos ali traçados. A investigação parlamentar somente pode ter por objeto fato determinado ou, como decorrência, acerca de fatos determinados que se encadeiem, ou se seriem. A respeito, colha-se o ensinamento do Mestre Pontes de Miranda, em seus festejados Comentários à Constituição, verbis: 3) COMISSÃO DE INQUÉRITO SÔBRE FATOS DETERMINADOS. — (a) Fato determinado é qualquer fato da vida constitucional do país, para que dele tenha conhecimento, preciso e suficiente, a Câmara dos Deputados ou o Senado Federal; e possa tomar as providências que lhes couberem. Se fizerem funcionar tal regra jurídica, se lhe revelarem todo o conteúdo e a tornarem, na prática, o instrumento eficaz que o texto promete, ter-se-á conferido à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal relevante função no regime presidencial, ainda asfixiante, que a Constituição manteve, crendo tê-lo atenuado quanto devia. (b) A investigação somente pode ser sobre fato determinado, ou, em consequência, sobre fatos determinados que se encadeiem, ou se seriem. O estado permanente, em que se aponte, e. g., insolvência, comércio ilícito, é fato determinado; porém é preciso que se diga qual é. Se, por exemplo, alguma empresa de serviços ao público está a cobrar preços mais altos do que o preço fixado, há fatos determinados, que se repetem, mais ou menos frequentemente. Se o banco está a cobrar, por fora, juros ilegais, há fatos determinados, que se repetem, mais ou menos frequentemente. Se o Governo está a emitir sem lei, há fato determinado: aí, determinou-se fato, que pode ter sido único, ou ter-se repetido (pluralidade de fatos determinados por seus elementos componentes, isto é, emissão + carência de lei). O que se inquire é se, ou quando, ou onde, ou como; mas é preciso que se trate de fato determinado.85 Embora o art. 58, § 3º, da Constituição Federal atribua amplos poderes à Comissão Parlamentar de Inquérito, acrescidos pela nova ordem constitucional inaugurada pela Constituição de 1988, o fato é que, inclusive em homenagem ao princípio da separação e harmonia dos Poderes, insculpido no art. 2º da Lei Maior, a competência das Comissões de 85 In Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969, 2ª edição, revista, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1970, t. III, p. 49. Inquérito não ultrapassa a própria competência do Poder Legislativo. Dessa forma, o fato determinado sobre o qual pode se debruçar a Comissão Parlamentar de Inquérito é, única e exclusivamente, aquele que esteja dentro das atribuições da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal para servir de base à edição de nova legislação, ao seu controle, à sua aprovação ou rejeição, enfim, ao âmbito de sua fiscalização. Demonstra-o lucidamente George B. Galloway, de maneira que se me afigura irretorquível, como que advertindo os parlamentares com estas palavras, verbis: Any analysis of congressional investigations must take account of their political motivation. (...) There exists a strong temptation to transcend the proper limits of a public inquiry and a great disposition to enter the domain of private life. The door is open to an indefinite search after evidence; and the suspension of the usual rules of evidence and of judicial procedure has often transformed the legislative committee into a tribunal of inquisition. 86 3 O PRINCÍPIO DE SEPARAÇÃO DOS PODERES EM RELAÇÃO AO EXPRESIDENTE DA REPÚBLICA Em nosso país, de há muito encontra-se pacificado o entendimento de que o Poder Legislativo, inclusive por meio de seus órgãos fracionários como o são as comissões de inquérito, não tem o poder para convocar o Presidente da República. E a pergunta que se impõe, até porque pouco versada na doutrina, é se pode o Parlamento convocar o ex-Presidente da República para se pronunciar sobre atos ou fatos ocorridos em seu governo? Atentaria tal proceder contra a letra e o espírito do princípio da separação dos Poderes previsto no artigo 2º da Lei Maior? A resposta a essas indagações exige a exata compreensão do especial significado na vida institucional de uma Nação da grandeza e da peculiaridade do cargo de Presidente da República. Quadra lembrar aqui a observação do Presidente Truman, que assim se pronunciou em suas consagradas memórias, verbis: No one who has not had the responsibility can really understand what is like to be President, not even his closest aides or members of his immediate family. There is no end to the chain of responsibility that binds him, and he is never allowed to forget 86 “Governmental Investigations”, in Encyclopaedia of the Social Sciences, The Macmillan Co., New York, 1937, v. 8, p. 256. that he is President. 87 Com efeito, nos Estados Unidos tem-se pacificado que o princípio da separação dos poderes, no que diz com a presidência da república, projeta-se àquele que já deixou o exercício do cargo, não se tratando de uma imunidade da pessoa, mas de imunidade da função, dela não podendo se despojar nem quando exerce esse elevado cargo, nem quando dele se retira. Como dizia o admirável jurista João de Oliveira Filho, verbis: O art. 37 da Constituição, em que se dispõe que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal criarão Comissões de Inquérito sobre fato determinado, sempre que o requerer um terço dos seus membros, não ultrapassa a competência do Poder Legislativo da União, não dá a tais comissões poder absoluto de pesquisa sobre tudo e sobre todos, nem poder de coerção sobre todos, cidadãos e autoridades, membros dos poderes estaduais e respectivos funcionários, órgãos da administração municipal e respectivos funcionários. O fato determinado, sobre o qual a Comissão de Inquérito possa inquirir pessoas, sob comparecimento coercitivo, é o que esteja dentro das atribuições da Câmara dos Deputados ou do Senado para servir de base à legislação, ao seu controle, à sua aprovação, ou à sua desaprovação. Nos Estados Unidos o princípio da separação dos poderes se estende aos que deixam o exercício dos cargos. Não se trata de imunidade de pessoa, mas de imunidade das funções, que as pessoas não podem dela se despojar, nem quando exercem os cargos, nem quando deles se retiram. A transitoriedade das pessoas não importa em se seccionar de uma em uma a independência dos poderes, de que elas foram detentoras. O compromisso, que assumem, cumprimento dos seus deveres, projetase além do término das suas funções. Se, como o Presidente Buchanan declarava, cada Presidente tem o dever de fazer com que "nunca sejam violados em sua pessoa" os direitos e prerrogativas na execução do seu mandato, mas "passá-los a seu sucessor inalterados por algum precedente perigoso", admitir que depois de terminado o mandato pudesse o ex-mandatário ser compelido a publicar aquilo que, como Presidente, não o estava, será quebrar o princípio do segredo de Estado, que, como o segredo profissional, só pode ser quebrado sob a responsabilidade do seu detentor, sem coação de quem quer que seja. O perjúrio é impulso natural, a inquisição será o resultado de uma fraqueza ante os sofrimentos. O ex-Presidente Truman, nos Estados Unidos, sustentou que "se tem algum valor a doutrina da separação dos Poderes e independência da Presidência, deve ser igualmente aplicável a um Presidente depois de cumprido seu mandato, quando se trata de interrogá-lo sobre atos ocorridos durante sua Presidência. 88 Em 1953, após ter deixado a Presidência dos Estados Unidos, a Câmara dos Representantes convocou o ex-Presidente Truman para depor acerca de fatos ocorridos em seu governo. O ex-Presidente recusou-se a comparecer, escrevendo uma longa e erudita carta ao Presidente da Comissão declinando os seus motivos, cujo teor merece ser reproduzido, verbis: 87 88 In Memoirs by Harry S. Truman, Doubleday & Co., Garden City, N. Y., 1956, v. 2, p.1. In Legislativo: Poder Autêntico, 1ª edição, Forense, 1974, pp. 280/1. Apesar de meu desejo pessoal de cooperar com sua Comissão - disse o ex-Presidente Truman - vejo-me obrigado, por meu dever para com o povo dos Estados Unidos, a declinar do cumprimento da intimação. Ao fazê-lo, cumpro com as estipulações da Constituição dos Estados Unidos e sigo uma longa linha de precedentes, que começa com o próprio George Washington, em 1796. Desde essa data, os Presidentes Jefferson, Monroe, Jackson, Tyler, Polk, Fillmore, Buchanan, Lincoln, Grant, Haves, Cleveland, Theodore Roosevelt, Coolidge, Hoover e Franklin D. Roosevelt se negaram a atender às intimações ou aos pedidos de informação de vários tipos, pelo Congresso. A razão que fundamenta esta doutrina constitucional, claramente estabelecida e universalmente reconhecida, foi apresentada sucintamente pelo Professor Charles Warren, uma de nossas principais autoridades constitucionais, da maneira seguinte: Nesta longa série de lutas do Poder Executivo para manter sua integridade constitucional, tiramos uma conclusão legítima de nossa teoria de governo ... Sob nossa Constituição, cada ramo do Governo está destinado a ser um representante, coordenado, da vontade do povo ... A defesa de seus direitos constitucionais pelo Poder Executivo se converte, portanto, e em verdade, na defesa dos direitos populares; defesa das faculdades que o povo lhe conferiu. Foi neste sentido que o Presidente Cleveland falou de seu dever para com o povo: o dever de não renunciar a nenhuma das faculdades de seu grande cargo. Ao mesmo se referia o Presidente Buchanan quando declarou que o povo tem direitos e prerrogativas na execução de seu mandato pelo Presidente, e cada Presidente tem o dever de fazer com "que nunca sejam violados em sua pessoa" mas "passá-los a seu sucessor inalterados por algum precedente perigoso". Ao manter seus direitos contra um Congresso que excede os limites de sua competência, o Presidente não se representa a si mesmo, mas o povo. O presidente Jackson repeliu uma tentativa do Congresso de anular a separação dos poderes, com estas palavras : Quanto a mim, repelirei todas as tentativas desse gênero como atentados contra a justiça, assim como contra a Constituição, e estimarei que é meu sagrado dever para com o povo dos Estados Unidos resistir, como resistiria ao estabelecimento da inquisição espanhola. Poderia recomendar-lhe - continuou Truman - a leitura da opinião de uma das comissões da Câmara dos Deputados, de 1879, relatório 141, datado de 3 de março de 1879, 45.° Congresso, 3.ª Sessão, no qual a Comissão de Justiça da Câmara disse o seguinte: O Poder Executivo é independente de cada uma das Câmaras do Congresso, corno cada Câmara do Congresso é independente do Executivo, e aqueles não podem exigir os arquivos da ação deste, nem tampouco de seus funcionários, contra seu consentimento, tal como o Poder Executivo não pode pedir nenhum dos arquivos ou as atas da Câmara ou do Senado. Deve ser óbvio para você, pois, que, se tem algum valor a doutrina da separação dos poderes e da independência da Presidência, deve ser igualmente aplicável a um Presidente depois de cumprido seu mandato, quando se trata de interrogá-lo sobre atos ocorridos durante sua presidência. A doutrina se esboroaria e o Presidente, contrariamente à nossa teoria básica do governo constitucional, se converteria em mero braço dos ramos legislativos do Governo, se soubesse que, ao fim de seu mandato, cada um de seus atos poderia estar sujeito a uma investigação oficial e a uma possível deformação, para servir a propósitos políticos. Não obstante, se sua intenção é investigar meus atos como indivíduo, seja antes ou depois de minha presidência, desde que não estejam relacionados com nenhum de meus atos como Presidente, com prazer comparecerei ante sua Comissão. Sinceramente, Harry S. Truman. 89 Da mesma forma, durante o episódio conhecido como o “escândalo de Watergate”, o Congresso Americano chegou a cogitar de convocar o Presidente Nixon para depor. No dia 07 de julho de 1973, o Presidente Nixon dirige uma correspondência ao Senado onde manifesta a sua recusa a uma eventual convocação para depor, expressa nestes termos, verbis: The question of my own testimony, however, is another matter. I have concluded that if I were to testify before the Committee irreparable damage would be done to the Constitutional principle of separation of powers. My position in this regard is supported by ample precedents with which you are familiar and which need not be recited here. It is appropriate, however, to refer to one particular occasion on which this issue was raised. In 1953 a Committee of the House of Representatives sought to subpoena former President Truman to inquire about matters of which he had personal knowledge while he had served as President. As you my recall, President Truman declined to comply with the subpoena on the ground that the separation of powers forbade his appearance. This position was not challenged by the Congress. It is difficult to improve upon President Truman’s discussion of this matter. Therefore, I request that his letter, which is enclosed for the Committee’s convenience, be made part of the Committee’s record. The Constitutional doctrine of separation of powers is fundamental to our structure of government. In my view, as in the view of previous Presidents, its preservation is vital. In this respect, the duty of every President to protect and defend the Constitutional rights and powers of his Office is an obligation that runs directly to the people of this country. 90 Realmente, como decorrência do princípio da separação e harmonia dos poderes, o Chefe do Poder Executivo, mesmo após o término do seu mandato, não está obrigado a comparecer perante uma Comissão Parlamentar de Inquérito para depor sobre fatos relacionados ao seu governo. Entendimento contrário, comprometeria, de maneira irremediável, a independência dos Poderes, consagrada no art. 2º da Constituição. Commodissimum est, id accipi, quo res de qua agitur, magis valeat quam pereat. Na república norte-americana, desde sempre se reconheceu ao Presidente da República a competência para determinar que funcionários diretamente a ele subordinados deixem de comparecer ao Legislativo para depor quando convocados, ou mesmo que não se disponibilizem documentos solicitados pelo Parlamento, principalmente em temas de 89 90 In Public Papers of the Presidents of The United States – 1973, Washington, 1975, pp. 638/9. In Public Papers of the Presidents of the United States – Richard Nixon – 1973, United States Government Printing Office, Washington, 1975, pp. 637/8. segurança nacional e de política externa, constituindo tal prerrogativa no denominado “Executive Privilege”. 91 4 CONVOCAÇÃO DE EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA POR C.P.I. NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. De todo o exposto, apreende-se, à evidência, que o conjunto preceptivo do disposto no § 3º do artigo 58 da Constituição Federal tem o inequívoco sentido, quer por sua letra quer por sua função no contexto da Lei Maior, de ordenação, composição e competência da Comissão Parlamentar de Inquérito, de excluir do âmbito de sua abrangência o Presidente da República, mesmo após o término de seu mandato. Consoa esse entendimento com a interpretação que José Wanderley Bezerra Alves, em alentada monografia sobre as Comissões Parlamentares de Inquérito, dá ao alcance do § 3º do artigo 58 da Carta da República, verbis: O princípio da separação dos Poderes, expresso no artigo 2º da Carta Política Nacional, também constitui um limitador às comissões de inquérito, no que diz respeito à pretensão de tomada de depoimento de autoridades. No Brasil, está pacificado o entendimento de que o Congresso Nacional, suas Câmaras e comissões não têm poder para convocar o Presidente da República para depor, salvo em processo de impeachment em que este é denunciado, podendo fazêlo por escrito. Quanto às comissões de inquérito, o entendimento é o mesmo, reconhecendo-se que elas não têm poder para convocar o Chefe do Poder Executivo. O Supremo Tribunal Federal, por reiteradas vezes, tem manifestado entendimento no sentido de que o Chefe do Poder Executivo não está obrigado a comparecer pessoalmente ao Legislativo para prestar informações, ainda que sob fato determinado. Nos Estados Unidos, tem prevalecido o entendimento de que o Chefe do Poder Executivo, mesmo após o encerramento do mandato, não está obrigado a comparecer perante CPI para depor sobre fatos relacionados ao seu exercício, porque não se trata de imunidade de pessoa, mas de funções das quais seu ocupante não poderá se despojar nem mesmo após se retirar delas, compreensão que também 91 Nesse sentido, farta é a doutrina: Raoul Berger, in Executive Privilege: A Constitutional Myth, Harvard University Press, 1974, pp. 373 e seguintes; Philip Collins, “The Power of Congressional Committees to obtain information from the Executive Branch”, in The Georgetown Law Journal, v. 39, 1950-1951, pp. 563/598; Robert Kramer e Herman Marcuse, “Executive Privilege – A Study of the Period 1953-1960”, in The George Washington Law Review, v. 29, 1960-1961, pp. 898/909 e 914/916; Da mesma forma, os documentos constantes em Public Papers of the Presidents – Harry S. Truman – 1950, United States Government Printing Office, Washington, 1965, pp. 229/230 e 270/271; e Public Papers of the Presidents – Richard Nixon – 1973, United States Government Printing Office, Washington, 1975, pp. 184/7. Do Presidente Nixon, ainda, da mesma coleção, Public Papers of the Presidents – Richard Nixon – 1974, pp. 478/481. Importante referir, ainda, as seguintes obras: Memoirs by Harry S. Truman, Doubleday & Co., Garden City, N.Y., 1956, pp. 430/431 e 452/454; The Memoirs of Richard Nixon, Grosset & Dunlap Publishers, New York, 1978, pp. 896/903. deve ser aplicada no Brasil. 92 A seu turno, ao julgar o caso Nixon v. Fitzgerald, em 24 de junho de 1982, disse o Chief Justice Warren Burger, ao recusar o pretendido direito à indenização contra o exPresidente Nixon em razão de atos praticados durante o seu mandato como Presidente, verbis: The immunity of a President from civil suits is not simply a doctrine derived from this Court’s interpretation of common law or public policy. Absolute immunity for a President for acts within the official duties of the Chief Executive is either to be found in the constitutional separation of powers or it does not exist. (…) Exposing a President to civil damages actions for official acts within the scope of the Executive authority would inevitably subject Presidential actions to undue judicial scrutiny as well as subject the President to harassment. 93 E, noutro passo, consta do julgado da Suprema Corte, verbis: Former President of the United States was entitled to absolute immunity from damages liability predicated on his official acts as functionally mandated incident of his unique office… 94 À luz desses ensinamentos, recolhendo-se a experiência da Democracia Americana, pode-se concluir que, dentre os amplos poderes que a Constituição confere às Comissões Parlamentares de Inquérito, em seu artigo 58, § 3º, não está o de convocar para depor o Chefe do Poder Executivo, mesmo após o término do seu mandato, em razão do princípio da separação dos Poderes, insculpido no artigo 2º da Lei Maior. Doutrinando a respeito do assunto na consideração do direito americano, manifestouse o Justice Brandeis em célebre voto proferido na Suprema Corte, em 1920, por ocasião do julgamento do caso Atherton Mills v. Johnston, verbis: One branch of the Government cannot encroach upon the domain of another without danger. The safety of our institutions depends in no small degree on a strict observance of this salutary rule.95 REFERÊNCIAS Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969, 2ª edição, revista, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1970. 92 In Comissões Parlamentares de Inquérito: Poderes e Limites de Atuação, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2004, pp. 234/235. 93 In Supreme Court Reporter, West Publishing Co., St. Paul, Minn., 1985, v. 102-A, p. 2707. 94 In Op. cit, p. 2.690. 95 In The Unpublished Opinions of Mr. Justice Brandeis, organizado por Alexander M. Bickel, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1957, p. 14. Governmental Investigations”, in Encyclopaedia of the Social Sciences, The Macmillan Co., New York, 1937. Memoirs by Harry S. Truman, Doubleday & Co., Garden City, N. Y., 1956. Public Papers of the Presidents of The United States – 1973, Washington, 1975. Public Papers of the Presidents of the United States – Richard Nixon – 1973, United States Government Printing Office, Washington, 1975. Comissões Parlamentares de Inquérito: Poderes e Limites de Atuação, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2004. The Unpublished Opinions of Mr. Justice Brandeis, organizado por Alexander M. Bickel, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1957. CONSTITUCIONALIDADE DO PACTO DE SÃO JOSE DA COSTA RICA João Ricardo Anastácio da Silva96 RESUMO Durante anos, desde o advento da Constituição Cidadã, a doutrina e a jurisprudência vem travando uma batalha que veio a se encontrar nos umbrais da Suprema Corte brasileira que buscou pacificar a matéria referente a ilicitude da prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico brasileiro. Tal discussão jurídica se encontra intimamente ligada com a constitucionalidade ou não do Pacto de São José da Costa Rica. PALAVRAS-CHAVE: Prisão Civil. Depositário Infiel. Constitucionalidade. Direitos Humanos. Pacto de São José da Costa Rica. ABSTRACT During years, from the advent of the Constitution Citizen, the doctrine and the jurisprudence is locking a battle that was come to find in the thresholds of the Supreme Brazilian Court for that it looked to pacify the matter referring to ilicitude of the civil prison of the unfaithful trustee in the legal Brazilian ordenamento. Such a legal discussion is intimately tied by the constitucionalidade or not of the Pact of Saint Jose of Costa Rica. KEYWORDS: Civil prison. Trustee Infiel. Constitucionalidade. Human rights. Pact of Saint Jose of Costa Rica. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 HIERARQUIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. 3 O POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COM RELAÇÃO AOS REFLEXOS JURÍDICOS ORIUNDOS DA DECISÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 466.343-1/SP. 4 CONFLITO ENTRE O PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. 5 96 Advogado e Professor Universitário da UNIFIL, Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, Pós-graduado pela Escola do Ministério Público – Londrina Paraná e foi Aluno Especial do Mestrado em Direito Penal da Universidade Estadual de Maringá. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO Como um dos 51 países precursores da fundação da Organização da Nações Unidas em 1945, dentro do processo de judicialização da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Brasil ratificou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, elaborado em 1966, que foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº. 226/91, ratificado por nosso país em 24 de janeiro de 1992, e adotado na legislação interna pelo Decreto Presidencial nº. 592/92. Dentro do processo de internacionalização dos Direitos Humanos, o Brasil também ratificou da Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, sendo considerado o Estatuto da Organização dos Estados Americanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, tendo o Brasil como signatário desde 1992, ratificando o texto do referido Pacto sem qualquer reserva, e que foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº. 27/92, e incorporada no ordenamento pátrio pelo Decreto Presidencial nº. 678/92. Entretanto a ratificação sem qualquer ressalva dos Tratados Internacionais supracitados anteriormente sempre causou estranheza e contradição face à proteção dos direitos fundamentais de caráter nacional e os Direitos Humanos reconhecidos, aprovados e insertos no ordenamento jurídico brasileiro, que se rege nas suas relações internacionais pelo reconhecimento do princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos. Tal discussão oriunda do texto constitucional de 1988 se encontra no cerne da questão do reconhecimento da excepcionalidade da prisão civil nos casos de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel, tais medidas extremas reconhecidas dentre o rol dos direitos e garantias fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição Federal, prevendo em seu inciso LXVII: não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel Conforme já visto, o Pacto de São José da Costa Rica foi ratificado pelo Brasil em 1992, portanto, quatro anos após o advento da Carta Magna de 1988, sendo que o mesmo dispõe em seu artigo 7º a proteção da liberdade da pessoa humana, e em seu item 7 trata da questão da privação da liberdade por dívida: Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal (...) 7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Vale dizer que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, desde 1966, ano de sua criação, já pacificava internacionalmente o referido assunto prevendo claramente como proteção aos direitos humanos a vedação da prisão proveniente de mero descumprimento de obrigação contratual. A questão será abordada sem a pretensão de esgotar o tema, na busca de trazer a tona alguns aspectos essenciais a questão da prisão civil por dívida, partindo da premissa de se ter o conhecimento do posicionamento sobre o assunto no ordenamento jurídico brasileiro, e diante deste aspecto passando a verificar as particularidade do assunto no que diz respeito à relação do direito pátrio com o direito internacional, especificamente no que se refere a constitucionalidade do Pacto de São José da Costa Rica. A abordagem sobre tal questão de constitucionalidade está intimamente ligada com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a hierarquia dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, em especial relacionada à importante decisão da Suprema Corte no Recurso Extraordinário nº 466.343-1/SP, onde negou o provimento do mesmo, por entender ser ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito. Dessa forma, sem o intuito de esgotar a vasta bibliografia que trata o assunto, pretende-se neste trabalho abordar as principais vertentes emblemáticas sobre o assunto na busca de levantar questionamentos pertinentes à solução de referido conflito doutrinário e jurisprudencial, e, portanto, passa-se a abordagem das principais temáticas referentes ao tema central. 2 HIERARQUIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO A recepção e distribuição hierárquica dos Tratados Internacionais pelo Brasil possui como parâmetros primeiramente o aspecto formal, qual seja o quórum de aprovação junto ao Congresso Nacional, e num segundo momento o aspecto material, portanto, tratar-se de matéria inerente aos Direitos Humanos ou não. Dessa forma diante da pirâmide normativa os Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos aprovados pelo quórum especial do Congresso Nacional serão equivalentes às Emendas Constitucionais, portanto, possuem status constitucional, conforme dispõe o § 3º do artigo 5º da Constituição: § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Entretanto, caso o tratado internacional que verse sobre Direitos Humanos, for aprovado por quórum de maioria inferior ao requisito formal exigido pelo parágrafo §3º do artigo 5º, este estará posicionado abaixo da Constituição e acima de todas as leis infraconstitucionais, portanto, possui status supralegal. Derradeiramente, em caso de tratados internacionais que não disponham sobre Direitos Humanos, terão status legal, coexistindo no mesmo grau hierárquico das demais normas infraconstitucionais. Diante do elevado quórum especial necessário apenas um tratado até os dias atuais fora aprovado atingindo o requisito formal necessário de maioria qualificada de 3/5, conforme o § 3º do artigo 5º que foi inserido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, qual seja, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, passando portanto, a ser reconhecido hierarquicamente no ordenamento jurídico pátrio como de caráter constitucional. Ocorre, porém que diversos tratados internacionais foram ratificados pelo Brasil após o advento da Constituição de 1988, inclusive o Pacto de São José da Costa Rica que foi aprovado pelo Congresso Nacional por maioria simples no ano de 1992, entretanto, obviamente não passaram pelo crivo do quórum especial de 3/5, diante da questão de que tal requisito somente foi inserido na Carta Maior mediante a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, o que leva a concluir que o referido Pacto foi resgatado pela nova disposição constitucional inserida com o §3, do artigo 5º, a qual possui eficácia retroativa no que tange a reconhecer que todos os tratados internacionais de Direitos Humanos que tiveram sua ratificação posterior a promulgação da Constituição de 1988 e anterior a reforma constitucional provinda da EC nº 45 devem ser reconhecidos em sua essência como de caráter constitucional. Assim sendo, temendo um estado de insegurança jurídica, diante do possível reconhecimento de tal status aos tratados internacionais de direitos humanos, assim como diante de haver uma flagrante dificuldade de se realizar o controle de constitucionalidade de tais espécies normativas internacionais, por passarem a se revestir do caráter constitucional, excluindo assim, o parâmetro necessário para tal medida, o Supremo Tribunal Federal mantinha uma posição conservadora no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos entram no ordenamento jurídico brasileiro com status de lei ordinária, e desta forma, o entendimento majoritário vinha sendo no sentido de que a prisão civil do depositário infiel era constitucional, não tendo sido revogada pelo Pacto de São José da Costa Rica. Mas, todavia, tal posicionamento não é mais dominante na Suprema Corte conforme será a seguir exposto. 3 O POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COM RELAÇÃO AOS REFLEXOS JURÍDICOS ORIUNDOS DA DECISÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 466.343-1/SP Muito embora seja tarefa do Poder Legislativo Federal aprovar os Tratados Internacionais que o Brasil faz parte e ao Poder Executivo ratificar tais tratados após o referendum do Congresso Nacional, coube ao Poder Judiciário através do Supremo Tribunal Federal posicionar tais tratados no grau de subordinação normativa interna. Entretanto, o STF se colocou no fio da navalha quando julgou o Recurso Extraordinário nº 466.343-1/SP interposto pelo Banco Bradesco S.A, contra Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, no julgamento de apelação, confirmou sentença de procedência de ação de depósito, fundada em alienação fiduciária em garantia, deixando de impor cominação de prisão civil ao devedor fiduciante, em caso de descumprimento da obrigação de entrega do bem, tal como o postulara o autor fiduciário, por entendê-la inconstitucional, sendo que o relator de referido recurso foi o Min. Cezar Peluso, tendo negado provimento, por entender o STF ser ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito, eis a redação da Ementa: EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do artigo 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do artigo 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. Referida decisão datada de 03 de dezembro de 2008 entrou para história diante do fato do Supremo Tribunal Federal superar seu posicionamento conservador e inovar quando se manifestou em sua decisão pela impossibilidade da decretação de prisão civil do depositário infiel. O fato que originou a questão levada a julgamento se deu na Ação de Busca e Apreensão nº 004.01.000764-8 de veículo alienado fiduciariamente em garantia do contrato de financiamento celebrado entre as partes, sendo que o autor alegava na inicial o inadimplemento das prestações pecuniárias e o réu foi citado para contestar onde alegou que não estava mais na posse do bem, e por esta razão a ação foi convertida em depósito. Novamente citado, o réu não apresentou o veículo no prazo determinado nem depositou o correspondente valor em dinheiro. O referido pedido foi julgado procedente vindo a condenar o réu a restituir o veículo ou a entregar seu equivalente em dinheiro no prazo de vinte e quatro horas, porém, o juízo de primeiro grau deixou de decretar a prisão civil do devedor fiduciante, no caso de descumprimento da obrigação, por entender inconstitucional tal restrição à liberdade do devedor. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, após a apreciação da apelação pela parte vencida, negou provimento ao recurso da instituição financeira, confirmando a sentença primária em sua íntegra, portanto, também entendendo como inconstitucional a prisão do devedor no caso em questão. Banco Bradesco S.A, inconformado com a decisão de manutenção da tese de inconstitucionalidade da decisão em questão interpôs recurso extraordinário com fulcro no artigo 102, inciso III, alínea a da Constituição Federal sustentando que o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo estaria em desacordo o artigo 5º, inciso LXVII da Carta da República, dentre o rol de direitos fundamentais, sendo que o próprio Supremo Tribunal Federal já havia aplicado o mesmo entendimento em casos idênticos, ferindo tal julgamento do Tribunal inferior a própria jurisprudência dominante do STF. O posicionamento do Ministro Celso de Mello em seu voto no julgamento do RE nº 466.343-SP conferiu status de norma constitucional aos tratados celebrados pelo Brasil que versarem sobre direitos humanos, mesmo anteriores à EC 45/04, diante de entender que a Constituição Federal determina a prevalência dos direitos humanos sobre outras normas através de seu artigo 4º, inciso II: Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – (...); II - prevalência dos direitos humanos Além disso o Ministro Celso de Mello entendeu serem os tratados internacionais de direitos humanos materialmente constitucionais por sua natureza e importância frente aos próprios direitos fundamentais que nada mais são que direitos humanos de caráter nacional. Partilhando o mesmo entendimento do Ministro Celso de Mello, também proferiram seus votos no mesmo sentido no julgamento do referido Recurso Extraordinário os ministros Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, hoje já aposentados. Porém, ocorre que tal posicionamento foi voto vencido no plenário por maioria de votos liderados pelo Ministro Gilmar Mendes, que consagrou status de norma supralegal ao Pacto de São José da Costa Rica, sendo apoiado em seu voto pelos Ministros Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia e Menezes Direito, já falecido, por entenderem a necessidade do requisito formal previsto no §3º do artigo 5º para sua equiparação com as emendas constitucionais e por sua vez com a própria constituição, qual seja, a aprovação qualificada do Congresso Nacional por 3/5 de seus membros, o que não ocorreu no ato de aprovação do Pacto de São José, tendo sido aprovado em 1992 por quórum de maioria simples do Congresso. O Ministro Marco Aurélio não perfilhou qualquer dessas orientações e o Ministro Joaquim Barbosa também não aderiu a nenhuma delas. Na busca de solucionar a controvérsia apresentada no referido recurso extraordinário o STF, utilizando-se de princípios de interpretação constitucional, reconheceu a ilicitude da prisão civil do depositário infiel em qualquer de suas modalidades de depósito e atribuiu o status de norma supralegal aos tratados internacionais de direitos humanos. Partindo da premissa que a prisão do depositário infiel foi declarada inconstitucional pelo STF, a mesma modalidade privativa de liberdade está elencada no rol dos direitos fundamentais do artigo 5º da Carta Maior na segunda parte do inciso LXVII, portanto, diante do reconhecimento da supralegalidade do Pacto, a referida prisão deve permanecer constitucional, pois referido Pacto de São José estaria abaixo da Constituição e por esta razão submisso a mesma e não imperativo sobre a própria. Dentro da linha de raciocínio que imperou no julgamento do RE nº 466.343-SP, a única forma de tal prisão civil ter sido de fato considerada inconstitucional seria reconhecer a validade do §2º do mesmo artigo 5º que dispõe: os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Conforme dispõe referido parágrafo do artigo 5º, a segunda parte do inciso LXVII estaria afastada com o advento da ratificação do Pacto de São José da Costa Rica em 1992, diante do fato de que os tratados internacionais em que o Brasil passou a fazer parte posteriormente ao advento da Constituição de 1988, não podem ser excluídos em seus ditames nem mesmo diante de confronto direto com os direitos e garantias fundamentais assegurados pela mesma Carta Maior, aplicando-se a caso concreto do princípio do tempus regit actum, ou seja, a prevalência dos tratados internacionais sobre os direitos e garantias expressos na Constituição Federal no tempo em que foram ratificados pelo Brasil quando não existia o quórum especial de 3/5 como requisito necessário para o reconhecimento do caráter constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. Por via reflexa à contraditória decisão do RE nº 466.343-SP, o STF revogou a Súmula nº 619, do STF, segundo a qual “a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”. Depois de muitos embates sobre a questão da ilicitude da prisão do depositário infiel, finalmente o STF pacificou o assunto com a publicação da Súmula Vinculante n° 25, eis o inteiro teor: É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. Na opinião do Ministro Celso de Mello, quando o Supremo Tribunal supre omissões dos órgãos públicos e adota medidas que objetivam restaurar a Constituição violada pela inércia dos poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir sua missão constitucional e demonstra, com essa atitude, respeito incondicional à Carta Magna. Em suma, mesmo sendo pacificado pela Suprema Corte o caráter supralegal do Pacto de São José da Costa Rica, portanto, abaixo da Constituição e acima das demais normas infraconstitucionais, no mesmo julgamento foi declarada ilícita a prisão do depositário infiel, diante do entendimento de ser a mesma inconstitucional, dando causa então a uma real incoerência que passou a reinar diante de tal entendimento contraditório. Fica claro que o posicionamento do STF no caso em questão buscou respeitar o princípio da supremacia da Constituição, uma vez que inseriu as convenções internacionais de direitos humanos em um nível hierárquico abaixo da Carta Magna, porém, acima das demais normas não constitucionais. Dessa forma o STF admitiu que os tratados internacionais de direitos humanos, diante desse status supralegal, tem o condão de retirar a eficácia de normas hierarquicamente inferiores quando estas estiverem em confronto com as normas internacionais. Fato é que a referida decisão da Suprema Corte levou a um questionamento inevitável, qual seja, se haveria base legal para que o Poder Judiciário criasse um nível hierárquico de normas não previsto no artigo 59 da Constituição Federal. 4 CONFLITO ENTRE O PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Na busca de sanar os conflitos entre norma internacional e legislação interna, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais pátrios há tempos vem travando uma longa batalha na busca de solucionar tais incompatibilidades. Sem dúvida a maior dificuldade encontrada se dá em razão do fato de que a própria Constituição não dispõe sobre o grau de hierarquia que seria atribuído aos tratados internacionais após sua internalização no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, parte dessa omissão constitucional foi sanada com a publicação da Emenda Constitucional nº 45 de 2004 que introduziu o §3º ao artigo 5º determinando que os tratados internacionais de direitos humanos que forem aprovados por três quintos dos votos dos respectivos membros em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, serão equivalentes à Emenda Constitucional. Porém observa-se que mesmo diante do esforço do legislador na busca da resolução da problemática existente em relação ao grau de hierarquia a ser adotado em relação aos tratados internacionais de direitos humanos, fixando aspecto formal e material quanto a constitucionalidade destas normas, ainda muito longe ficou de pacificar o assunto, pois a inserção no texto constitucional do §3º do artigo 5º resolveu de forma restrita sobre a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, abrangendo apenas os que forem aprovados por quórum especial, de modo que, somente esses, serão elevados a status de emenda constitucional, permanecendo sem solução o desacordo existente entre os doutrinadores sobre qual grau hierárquico deva ser atribuído aos tratados internacionais de direitos humanos que foram ratificados por quórum inferior ao especialmente previsto nos termos do artigo 5º, §3º da Constituição Federal, e principalmente com relação aqueles tratados internacionais que foram ratificados anteriormente à Emenda Constitucional nº 45 sem a exigência de quórum especial de aprovação, como é o caso do Pacto de São José da Costa Rica. Conforme já dito, Constituição Federal prevê em seu artigo 5º, inciso LXVII que não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. Entretanto, o Pacto de São José da Costa Rica estabelece de forma contrária em seu artigo 7º, item 7 que ninguém deverá ser detido por dívidas, salvo os casos oriundos de inadimplemento de obrigação alimentar. Em concordância com a Carta Maior, a legislação infraconstitucional através dos artigos 652 do Código Civil e 904 do Código de Processo Civil estabelecem o procedimento a ser adotado, determinando que o depositário que não restituir o bem quando requerido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano. Assim sendo, fica claro aos bons olhos que o Pacto de São José da Costa Rica foi ratificado pelo Brasil passando totalmente despercebida a previsão constitucional da prisão civil para o depositário infiel dentre o rol de direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição de 88, tanto que recepcionou referido tratado sem ressalva alguma. É importante ressaltar que quando um Estado soberano ratifica um tratado internacional, em especial quando se dá em sua integralidade, o mesmo Estado passa a ser parte do tratado internacional e dessa forma se compromete a zelar pela sua absoluta vigência e eficácia na ordem interna. Este entendimento sempre foi dominante nas decisões do STF, como pode-se destacar o posicionamento do Ministro Sepúlveda Pertence quando da análise dos embargos de declaração no habeas corpus nº 79.785, o Estado deve buscar não ofender o princípio do pacta sunt servanda, “onde os tratados foram feitos para serem cumpridos de boa fé. E não devem ficar ad eternum aguardando instrumentalização.” 5 CONCLUSÃO O presente estudo buscou, portanto, refletir especialmente sobre os argumentos utilizados no julgamento do recurso extraordinário nº 466.343-1/SP, com o objetivo de examinar o entendimento majoritário da Suprema Corte que muito embora tenha julgado ilícita a prisão do depositário infiel, atribuíram status de supralegalidade ao Pacto de São José da Costa Rica. Em toda a discussão sobre o assunto prevaleceu o entendimento de que o direito à liberdade é um dos direitos humanos fundamentais priorizados pela Constituição Federal e que sua privação somente pode ocorrer em casos excepcionalíssimos. E, nesse sentido, não se enquadra a prisão civil por dívida. Ora, se a prisão do depositário infiel é considerada ilícita pelo STF que inclusive criou súmula vinculante neste sentido na busca de por uma pedra sobre o assunto, deveria o mesmo Supremo Tribunal atribuir o status constitucional ao Pacto de São José da Costa Rica diante a sua ratificação e inserção no ordenamento jurídico brasileiro pós advento da Constituição de 1988 e antes da reforma provinda da Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Vale dizer que não só o Pacto de São José, mas a todos os tratados especialmente ratificados no período compreendido acima, diante da aplicação da eficácia retroativa do § 3º, do art. 5º, o que mudaria o antigo posicionamento do STF que atribuía o caráter de lei ordinária aos Tratados Internacionais, vindo a influenciar inclusive em seu atual posicionamento que atribui o caráter supralegal aos referidos Tratados, fazendo prevalecer a corrente derrotada no mesmo julgamento do recurso extraordinário nº 466.343-1/SP, liderada pelo Ministro Celso de Mello, que conforme já restou demonstrado em seu voto conferiu status de norma constitucional aos tratados celebrados pelo Brasil que versarem sobre direitos humanos, mesmo anteriores à EC 45/04, diante de entender que a Constituição Federal determina a prevalência dos direitos humanos sobre outras normas nacionais. Assim sendo, os Direitos Humanos, enquanto constitucionalmente prevalentes sobre o ordenamento jurídico brasileiro, não podem ser reconhecidos tão somente diante do aspecto formal da norma constitucional, qual seja a exigência de aprovação do Congresso Nacional por quórum especial de 3/5 para que possam os Tratados Internacionais de Direitos Humanos só assim serem equiparados às Emendas Constitucionais e por sua vez adquirem assim status constitucional. Além do reconhecimento da prevalência dos Direitos Humanos sobre as normas nacionais, reconhecidos pelo artigo 4º, inciso II da Constituição, ainda se tem que reconhecer o imperativo categórico estabelecido no §2º do artigo 5º, que antes mesmo do advento da Emenda Constitucional nº 45 já preexistiam como insertos na redação originária da Magna Carta de 88, estabelecendo de forma clara que os direitos e garantias expressos na Constituição, como é o caso da prisão civil do depositário infiel, prevista no inciso LXVII do artigo 5º da Constituição, não podem excluir outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, como é o caso do Pacto de São José da Costa Rica, tendo o Brasil como signatário desde 1992, ratificando o texto do referido Pacto sem qualquer reserva, incorporando assim o ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto Presidencial nº. 678/92. Além disso, a corrente derrotada no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343-1/SP entendeu serem os tratados internacionais de direitos humanos materialmente constitucionais por sua natureza e importância frente aos próprios direitos fundamentais que nada mais são que direitos humanos de caráter nacional. Dessa forma, se faz necessário reconhecer o status constitucional do Pacto de São José da Costa Rica, tendo em vista que o referido tratado dispõe como única forma de prisão civil cabível a do devedor de alimentos, afastando a possibilidade da prisão por dívidas, por entender que a natureza de referida prisão fere os Direitos Humanos inerentes a liberdade do ser humano. Só a partir do reconhecimento do caráter constitucional do Pacto de São José da Costa Rica, se faz possível a coexistência da ilicitude da prisão civil do depositário infiel devidamente pacificada pela Súmula Vinculante nº 25, que desde seu advento reconheceu indiretamente que o Pacto de São José da Costa Rica, sendo este integralmente ratificado pelo Brasil, não pode ser excluído em seus ditames pelos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição de 88, exatamente por tratar de direitos humanos prevalentes diante do ordenamento pátrio, devendo estar assim posicionado no mesmo patamar de tais importantes direitos constitucionais, portanto, possuindo caráter materialmente constitucional. REFERENCIAS ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. 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Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos. 2. ed. v. 1, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003. PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DO ACERTAMENTO JUDICIAL DA RELAÇÃO JURÍDICA DE PROTEÇÃO SOCIAL José Antonio Savaris97 RESUMO O presente trabalho busca formular diretriz específica para os processos que têm como objeto o direito de proteção social, noção que no texto é correspondente à de seguridade social. Identifica a fundamentalidade do direito à proteção social. Demonstra a inadequação do paradigma processual do modelo liberal-individualista para a satisfação dos direitos fundamentais sociais de proteção, que ilude o direito fundamental à adequada prestação jurisdicional quando desconsidera a eficácia vinculante dos direitos fundamentais sociais, deixando de realizá-los integralmente. Valendo-se do método indutivo, o trabalho identifica casos-problemas para demonstrar, a partir do método dedutivo, a inadequação da tradicional concepção de controle jurisdicional dos atos do Poder Público. A partir dessas bases, o artigo identifica no princípio da primazia do acertamento judicial da relação jurídica de proteção social a técnica normativa adequada à realização das exigências do direito fundamental ao processo justo e de efetivação dos direitos fundamentais de proteção social. PALAVRAS-CHAVE: Jurisdição. Proteção Social. Direitos Fundamentais. Princípio Processual. Acertamento. ABSTRACT This present work searches to formulates specific line of direction for the processes that have as object the right of social protection, notion that in the text is corresponding to the one of social security. It identifies the nature fundamental of the social protection. It shows the inadequacies of the liberal-individualist paradigm of procedural to attempt the basic rights to social protection, that deludes the basic right to adequate jurisdictional protection when it disrespects binding effectiveness of the basic social rights, leaving to carry through them integrally. Using itself the inductive method, the work identifies cases to demonstrate, from the deductive method, the error of the traditional conception of jurisdictional control of the 97 Doutor em Direito da Seguridade Social (USP). Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Univali. Juiz Federal do TRF da 4ª Região. Presidente de Honra do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário – IBDP. legitimacy of the Power Public. From theses bases, the article identifies the principle of the primacy of the judicial adjustment of the legal relation of social protection as the adjusted normative technique to the to the accomplishment of the requirements of the basic right to a fair trial and the basic rights of social protection. KEY-WORDS: Jurisdiction. Social Protection. Basic Rights. Procedure Principle. Adjustment. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 FUNÇÃO JURISDICIONAL E O DIREITO FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO SOCIAL. 3 FUNÇÃO JURISDICIONAL COMO ESTRITA REVISÃO DA LEGALIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS. 3.1 O problema do direito superveniente à tutela administrativa. 3.2 A concepção da função jurisdicional de controle do ato administrativo a partir de uma perspectiva de efetividade processual. 4 A CONCEPÇÃO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL DE ACERTAMENTO DA RELAÇÃO JURÍDICA DE PROTEÇÃO SOCIAL. 4.1 Alegações inéditas em juízo e o problema interesse de agir. 4.2 Alegações inéditas em juízo e o problema do termo inicial dos benefícios. 4.3 Princípio da primazia do acertamento e sua relação com o princípio dispositivo. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO A crescente afirmação do Poder Judiciário na concretização dos direitos fundamentais sociais passa por um olhar crítico para o paradigma processual do modelo liberal-individualista. A percepção de que na contemporaneidade importa sobremaneira a efetiva realização dos direitos coloca em questão o dever de proteção dos direitos fundamentais mediante o exercício da função jurisdicional98. Percebe-se, contudo, uma inteira diferença ao surgimento de novos ramos do direito, de direitos novos e inovadores, que são maltratados por uma concepção processual de 98 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier. 2004. p. 25. teleologia civilista99. Corolário dessa distorção, os problemas mais intrincados da tutela jurisdicional de proteção social culminam por encontrar soluções incongruentes que esvaziam, ainda que parcialmente, o conteúdo do direito material que se busca satisfazer. O direito fundamental à proteção social demanda instrumentos processuais idôneos para que seja realizado de modo adequado. Disso decorre sua íntima conexão com o direito fundamental a um processo justo, que outra coisa não é senão o processo apto a produzir resultados justos100. O presente trabalho formula diretriz específica para os processos que têm como objeto o direito de proteção social. Um estudo que guarda o propósito de revelar um princípio processual somente se faz possível por meio de constante observação do real em suas manifestações fenomenológicas101. Por tal razão, a identificação dos problemas que geralmente são apresentados nos processos concernentes ao direito de proteção social foi elaborada mediante o emprego do método indutivo. Já para a formulação do particular princípio foi utilizado o método dedutivo, pelo qual se intenta demonstrar sua pertinência ao sistema processual constitucional, seu alcance e o dever de sua aplicação. Tendo como fio condutor a vinculação da atividade judicial à efetiva tutela do direito de proteção social, esta investigação assume uma perspectiva garantista no sentido de que propõe, mediante o princípio da primazia do acertamento, técnica normativa direcionada a assegurar a máxima correspondência entre normatividade e efetividade da tutela dos direitos102. No desenvolvimento do presente estudo são analisadas, inicialmente, a fundamentalidade do direito de proteção social e as condicionantes para que sua realização judicial se opere mediante o que se considera um processo justo. Em um segundo momento, é realizado exame crítico das concepções de função jurisdicional afeta às demandas contra o Poder Público em tema de proteção social, quando se formula o princípio da primazia do acertamento judicial da relação jurídica de proteção social como o critério orientador da justiça de proteção social103. Tanto as insuficiências dos 99 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo, 6ª. Edição, São Paulo: Thompson IOB, 2005. p. 109. DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros. 2004. p. 12. 101 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 60. 102 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal, 2ª edição, Tradução de Ana Paula Zomer Sica et al. São Paulo: RT, 2006. p. 21. 103 Neste sentido, o presente esforço é apoiado em uma concepção de que supremacia da Constituição investe a 100 paradigmas criticados quanto as garantias oferecidas pelo fundamento ora proposto têm como pano de fundo a análise de casos-problemas que rotineiramente desafiam a jurisdição de proteção social. Com efeito, a incompletude da dogmática processual para a satisfação dos direitos fundamentais sociais constitui a premissa de que parte o princípio orientador da justiça de proteção social que se propõe neste texto. A parte final do texto explora o alcance do princípio da primazia do acertamento judicial, permitindo não apenas avançar em seu estudo e compreensão, mas perceber sua relação funcional com outros princípios processuais e sua potencialidade para a realização dos direitos fundamentais sociais de proteção. 2 FUNÇÃO JURISDICIONAL E O DIREITO FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO SOCIAL O conceito de proteção social pode ser compreendido a partir da distinção entre dois grandes tipos de proteção: a proteção civil e a proteção social. A primeira garante as liberdades fundamentais e assegura os bens e as pessoas no contexto de um Estado de Direito. A última oferece cobertura contra os principais riscos suscetíveis de gerar uma degradação da situação dos indivíduos. A insegurança social consiste em o indivíduo estar à mercê de eventos que comprometem sua capacidade de assegurar, por si próprio, sua independência social. Com efeito, os chamados riscos sociais - como a doença, o acidente, o desemprego, a cessação de atividade em razão da idade, a miséria daquele que não pode mais trabalhar - colocam em questão o pertencimento social do indivíduo que somente pode tirar do seu salário os meios de subsistência104. 104 ciência jurídica não apenas de uma função descritiva, senão crítica e construtiva em relação ao seu objeto: “(...) crítica em relação às antinomias e às lacunas da legislação vigente em relação aos imperativos constitucionais, e construtiva relativamente à introdução de técnicas de garantia que se exigem para superálas” (STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 8ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 46). O autor está aqui fazendo referência – e aderindo, no particular - ao pensamento garantista de Luigi Ferrajoli. CASTELL, Robert. L’insecurité sociale: Qu’est-ce qu’être protege? Paris: La République des Idées et Seuil, 2003. p. 5. A abordagem do conceito de proteção social a partir das dicotomias insegurança civil/ insegurança social e proteção civil/proteção social serve a demonstrar, desde logo, o modo distinto como se tutelam os direitos ligados às liberdades fundamentais - e à propriedade - em relação aos direitos de proteção social. Sobre outro modo de se conceber a articulação da proteção humana integral, veja-se: GONZÁLEZ, Juan Carlos Cortés. Derecho de La protección social, Bogotá: Legis, 2009. p. 2-5. Sobre os inescapáveis É justamente a vulnerabilidade dos indivíduos em face dos riscos sociais que reclama a elaboração e implementação de políticas públicas de segurança social. Essas políticas públicas consubstanciam ações coordenadas de proteção dos indivíduos frente aos diferentes estados de necessidade, assegurando-lhes condições dignas de subsistência em meio a tais adversidades105. Para o presente estudo, a noção de proteção social corresponde aos mecanismos institucionais que são articulados para reduzir e superar os riscos sociais, assegurando, de modo universal, segurança econômica contra as circunstâncias inevitáveis que afetam a subsistência e o bem-estar dos indivíduos e suas famílias. Essa noção aproxima-se, portanto, da principal política de proteção social consagrada constitucionalmente, a seguridade social (CF/88, art. 194)106. Os direitos de proteção social – que para os fins do presente artigo têm seu núcleo, portanto, nos direitos à saúde, à assistência e à previdência social – constituem direitos fundamentais por excelência107. A ideia de proteção social é intimamente vinculada aos princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana e de justiça social. Enquanto política social, isto é, política pública voltada para a concretização de direito social, a seguridade social tem como elemento constitutivo a igualdade material, guardando potencialidade de propiciar subsistência digna com desenvolvimento humano e social. Mas esse constitucionalismo social não será jamais realizado se a segurança social se operar apenas de modo parcial e, portanto, insuficiente108. A exigência de proteção adequada efeitos de insegurança social advinda da Revolução Industrial, veja-se: POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época, tradução de Fanny Wrobel, 2ª edição, Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, 14ª reimpressão. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução: Sebastião Nascimento. 1º ed. São Paulo: Ed. 34, 2010. 105 Em seu segundo relatório ao governo britânico de 1944, Beveridge definia a segurança social como o “conjunto de medidas adotadas pelo Estado para proteger os cidadãos contra aqueles riscos que se concretizam individualmente que jamais deixarão de configurar-se, por melhor que seja a situação do conjunto da sociedade em que vivam” (BEVERIDGE, Willian Henry, Full Employment in a Free Society, London: George Allen and Unwin, 1944. p. 11). 106 Além dessa vertente de proteção social, objeto central deste estudo, é de se reconhecer como proteção social a consistente na atribuição de proteções e de direitos à própria condição de trabalhador - proteções do direito do trabalho (CASTELL, Robert. L’insecurité sociale: Qu’est-ce qu’être protege?, p. 31-32). 107 Sobre a fundamentalidade dos direitos de proteção social, veja-se: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais, 9ª edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.55 e seguintes. ROCHA, Daniel Machado. O Direito Fundamental à Previdência Social na perspectiva dos princípios constitucionais diretivos do sistema previdenciário brasileiro, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 110 e seguintes. SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade Social como Direito Fundamental Material, Curitiba: Juruá Editora, 2009. p. 161 e seguintes. CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Os direitos sociais enquanto direitos fundamentais. In: CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Érica Paula Barcha; Direito Previdenciário e Constituição, São Paulo: LTr, 2004. p. 25-43. ou integral hospeda a imposição de que a função jurisdicional se desenvolva de modo a assegurar o direito material em todo o seu significado e extensão. Para tanto, deve satisfazer o direito de proteção social de modo tão célere quanto possível, fazendo coincidir a cobertura social com o imediato momento em que surge a necessidade - e o respectivo direito109. Em outras palavras, é necessário que “o resultado do processo judicial corresponda, o máximo possível, à atuação espontânea do ordenamento jurídico”, aproximando-se, deste modo, do efeito que manifestaria a satisfação espontânea (imediata) do direito110. Em razão da eficácia normativa do direito fundamental ao processo justo 111 e da fundamentalidade dos direitos de proteção social, a legitimidade da função jurisdicional encontra-se inafastavelmente vinculada à plena realização desses direitos fundamentais. Com efeito, “ou a Constituição vale como um todo, vinculando todos os poderes públicos, ou nada vale”, de modo que “não se pode conceber Constituição destituída da pretensão de efetivar-se. Esta pretensão deixa o intérprete comprometido, desde logo, com soluções interpretativas que resguardem a força normativa do comando constitucional”.112 No âmbito da atuação jurisdicional é, talvez, onde mais significativamente repercute essa força especial dos direitos fundamentais, caracterizada, basicamente, pela combinação do caráter hierarquicamente superior das normas jusfundamentais, com a sua aplicabilidade 108 Em outro trabalho expressamos que o princípio da adequada proteção social abrange as noções de imediatidade, suficiência e especificidade da proteção social (SAVARIS, José Antonio. O princípio constitucional da adequada proteção previdenciária: um novo horizonte de segurança social ao segurado aposentado. In: Revista de Doutrina do TRF 4ª Região, v. 22, p. 88-103, 2008). 109 Quando o indivíduo faz jus à proteção social em momento anterior ao ajuizamento da ação, a realização da cobertura social vinculada ao momento em que nasce o direito à proteção social somente é possível de modo retroativo. Quando o direito nasce no curso da demanda, pelo que se considera fato superveniente (cumprimento superveniente dos pressupostos legais à outorga da proteção social), a exigência de imediatidade pode ser atendida de modo aperfeiçoado (tanto quanto o é a outorga da proteção na via administrativa), pois então é possível fazer coincidir no tempo, o nascimento do direito e a sua satisfação. 110 GUERRA, Marcelo Lima. Execução Indireta. São Paulo: RT, 1999. p. 55. 111 Sobre o direito ao processo justo como direito humano e fundamental absoluto, veja-se o importante estudo de Luiz Petit Guerra (GUERRA, Luiz Alberto Petit. Estudios sobre el Debido Proceso: Uma visión global: Argumentaciones como derecho fundamental y humano, Caracas, Ediciones Paredes, 2011). Para uma visão crítica da prática jurídica e acadêmica do devido processo, veja-se: NAVAS, Julio Alberto Tarazona; PÉREZ, Jairo Henrique Herrera. Crisis Política, Jurídica, Social y Académica del Debido Proceso, Santa Fe de Bogota: Editora Jurídica Nacional, 2010. 112 MORO, Sergio Fernando. Desenvolvimento e Efetivação Judicial das Normas Constitucionais, São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 23. Neste sentido a lapidar formulação de Konrad Hesse: “Dado que a Constituição pretende ver-se atualizada e uma vez que as possibilidades e os condicionamentos históricos dessa atualização modificam-se, será preciso, na solução dos problemas, ser dada preferência àqueles pontos de vista que, sob os respectivos pressupostos, proporcionem às normas da Constituição força de efeito ótima” (HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998. p. 68). imediata, que torna legítimas todas as soluções compatíveis com elas, independentemente de texto legal (infraconstitucional)113. Pela eficácia normativa do devido processo legal (CF/88, art. 5º, LIV) e, mais especificamente, do direito fundamental a uma ordem jurídica justa (CF/88, art. 5º, XXXV), exige-se que a jurisdição de proteção social, tanto quanto seja necessário à satisfação do direito material, se opere sem a adoção absolutamente vinculante dos institutos do processo civil clássico114. É justamente a necessidade de alinhamento da função jurisdicional às particularidades da pretensão de direito material que justifica a afirmação de princípio processual que, oferecendo coerência material às decisões judiciais, propicie resposta adequada às exigências do direito fundamental ao processo justo e se preste ademais como efetivo instrumento de tutela dos direitos fundamentais de proteção social. 3 FUNÇÃO JURISDICIONAL COMO ESTRITA REVISÃO DA LEGALIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS Há uma difundida concepção de função jurisdicional de que a tutela dos direitos subjetivos em face do Poder Público passa necessária e exclusivamente pelo controle da legalidade dos atos administrativos. De um certo modo, essa tradicional maneira de visualizar a função jurisdicional deriva de uma percepção restritiva do judicial review115. Ela pressupõe que a atuação judicial se opera tão somente em uma dimensão revisora na qual o reconhecimento do direito alegado é condicionado à invalidação do ato estatal que lhe é contraposto. Segundo esse entendimento, em se tratando de pretensão judicialmente deduzida contra o Poder Público, a satisfação do direito material reivindicado está condicionada ao 113 GUERRA, Marcelo Lima. Execução Indireta, p. 52. A partir desse pensamento tivemos ocasião de sustentar que a lide previdenciária (modalidade de lide de proteção social) apresenta singular configuração e, por isso, deve orientar-se pela eficácia normativa do devido processo legal, o qual, mercê de sua dignidade constitucional, prevalece sobre as disposições processuais civis que ofereçam resposta inadequada ao processo previdenciário, tanto quanto pode suprir eventual ausência ou insuficiência de disciplina legal específica. O marco metodológico e teórico para a précompreensão do direito processual previdenciário foi sustentado originariamente em nosso Direito Processual Previdenciário, Curitiba: Juruá Editora, 2008. 115 Fundada na supremacia da Constituição, a doutrina do judicial review legitimou o controle judicial de constitucionalidade dos atos governamentais, conferindo ao Judiciário o poder de invalidar os atos normativos ou com força de lei que contrariem o sentido da Constituição. 114 reconhecimento da ilegitimidade do ato derivado da função administrativa116. Desde esse ângulo, não apenas o controle jurisdicional se operaria, necessariamente, a partir da violação de direitos por abuso ou erro administrativo na aplicação da lei, mas a satisfação dos direitos do indivíduo seria produto ou consequência da invalidação do ato administrativo117. Ora, a vinculação do direito à invalidação da ação administrativa apenas tem sentido – e isso é capital - em uma concepção de Estado de Direito exclusivamente preocupada com a liberdade jurídica, a qual “tinha uma orientação de bloqueio – interpretação de bloqueio – conforme princípios de legalidade e estrita legalidade como peças fundantes da constitucionalidade”118. Esse pensamento acarreta elevado grau de irracionalidade jurídica quando aplicado à jurisdição de proteção social, pois a emergência do constitucionalismo social faz necessário superar a “hermenêutica de bloqueio para a hermenêutica de ‘legitimação de aspirações sociais’”119. A concepção de função jurisdicional enquanto estrita revisão judicial da legalidade do ato administrativo reduz, de modo inaceitável, o dever jurisdicional de proteção e de realização dos direitos fundamentais sociais. A tutela dos direitos fundamentais, como se verá a seguir, exige mais da função jurisdicional do que o exame de submissão do ato administrativo à legalidade. Dada a força vinculante dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais, a função jurisdicional deve ser identificada fundamentalmente como modalidade de proteção jurídica assegurada pelo Estado à efetiva realização desses direitos de superior dignidade120. 116 Neste sentido: “Quando o Poder Judiciário, pela natureza da sua função, é chamado a resolver as situações contenciosas entre a Administração Pública e o indivíduo, tem lugar o controle jurisdicional das atividades administrativas. Os conflitos tomam, então, a forma de pleitos judiciais, estabelecendo-se o debate em torno da situação jurídica, de modo que seja possível esclarecer, definir e precisar com quem se acha a razão. Se com o Estado, negando direitos do administrado ou dele exigindo prestações, se com o próprio administrado, quando pede o reconhecimento de direitos, ou se revela insubmisso, alegando ilegalidade no procedimento administrativo”(FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 7ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 133) - sublinhamos. 117 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, p. 135. 118 CAMPILONGO, Celso. Os desafios do Judiciário. Um enquadramento teórico. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, direitos sociais e justiça, São Paulo: Malheiros, 1998. p. 45-46. É certo, por exemplo, que a defesa contra uma determinada penalidade administrativa pressupõe a invalidação do ato que lhe dá suporte, assim como a declaração de inexistência de relação jurídica tributária depende do reconhecimento da inconstitucionalidade ou ilegalidade da exação. 119 CAMPILONGO, Celso. Os desafios do Judiciário. Um enquadramento teórico, p. 46. 120 É necessário reconhecer os direitos fundamentais dos cidadãos como vínculos funcionais que condicionam a validade jurídica da inteira atividade do Estado (FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal, p. 833). 3.1 O problema do direito superveniente à tutela administrativa A inadequação da função jurisdicional restrita à revisão judicial da legalidade do ato administrativo pode ser observada mediante análise de problemas que diuturnamente são objeto da jurisdição de proteção social. Imagine-se hipótese em que a pessoa teve indeferido benefício previdenciário na esfera administrativa ao fundamento de ausência de incapacidade para o trabalho 121. Três anos depois, ela ingressa em juízo requerendo a concessão do benefício em questão com efeitos retroativos à data do requerimento administrativo, ao argumento de que desde então fazia jus à prestação previdenciária reivindicada.122 A prova pericial aponta para a existência da incapacidade para o trabalho, mas nega que ao tempo do requerimento administrativo a parte se encontrava nessa condição, fixando a data do início da incapacidade para seis meses após a negativa da tutela administrativa (dois anos e meio antes do ajuizamento da ação judicial, portanto). Em uma tal situação, a concepção da função jurisdicional enquanto estrita revisão judicial da legalidade do ato administrativo recomendaria a rejeição do pedido de proteção previdenciária, ao fundamento de que o ato administrativo denegatório revela-se juridicamente incensurável. Isso está a demonstrar que, se condicionada à ilegalidade do ato administrativo, a outorga judicial de proteção social oferece um resultado injusto, propiciando denegação de proteção social a pessoa necessitada, embora evidenciada a existência do direito. Essa concepção de função jurisdicional não oferece, portanto, resposta satisfatória à questão do direito de proteção social superveniente à tutela administrativa. Por conseguinte, não é adequada para assegurar o direito fundamental ao processo justo ou para a devida realização de direito fundamental social. 121 122 Seria igualmente adequado à análise um problema ligado à proteção assistencial. Embora correndo o risco de simplificar demasiadamente a temática, para fins didáticos e especialmente para o desenvolvimento da argumentação, pode-se considerar que um benefício previdenciário é geralmente devido desde a data do requerimento administrativo. É certo que a legislação regente veicula diversas disposições sobre o início do gozo da cobertura previdenciária. Mas é igualmente correto afirmar que o sistema normativo consagra uma lógica subsidiária segundo a qual os benefícios são devidos, em regra, a partir do requerimento administrativo (v.g., Lei 8.213/91, artigos 43, 49 e 60). 3.2 A concepção da função jurisdicional de controle do ato administrativo a partir de uma perspectiva de efetividade processual Se o insumo teórico adotado culmina por oferecer um resultado processual inaceitável, seja por iludir o direito fundamental à adequada prestação jurisdicional, seja por desconsiderar a eficácia vinculante do direito fundamental social, é necessário encontrar uma distinta base de partida que não deságue em uma incoerência de tal grau. Um caminho de fuga dessa irracionalidade pode ser identificado nas considerações feitas em nome de princípios como da economia e da instrumentalidade processual que culminam por reconhecer, ainda que parcialmente, a existência do direito à proteção social. Colocando ênfase sobre os resultados esperados de um processo judicial, essa perspectiva de teor pragmático considera a ação judicial, por ficção, um novo requerimento administrativo ou, mais apropriadamente, uma nova postulação em face do Estado. Trata-se de perspectiva que, ainda se movendo no paradigma da revisão da legalidade do ato administrativo, distancia-se da concepção da função jurisdicional enquanto estrita revisão judicial da legalidade do ato administrativo, na medida em que reconhece a possibilidade de convivência entre a satisfação do direito e a legalidade do ato administrativo123. Com esse artifício orientado às exigências de efetividade processual, já não mais se estaria a perquirir exclusivamente sobre a legalidade do ato administrativo que originariamente indeferiu o requerimento de benefício da seguridade social, viabilizando-se o reconhecimento de direito superveniente à tutela administrativa. Com isso torna-se possível a outorga de proteção judicial em juízo mesmo para os casos em que o ato administrativo de indeferimento é reputado legítimo. Essa saída de conveniência, contudo, não atende as exigências levantadas pela justiça de proteção social, pois, como se passa a demonstrar, ela não impede o sacrifício de parcela de direitos fundamentais, revelando-se inapta à sua a efetivação, portanto. Com efeito, para o caso exposto anteriormente, o pensamento pragmático da função jurisdicional com vistas à sua efetividade recusaria tornar inócuo ou irracional o resultado da 123 Observe-se que a concepção da função jurisdicional enquanto revisão da legalidade do ato administrativo desdobra-se nas correntes da estrita revisão judicial da legalidade e do controle do ato administrativo a partir de uma perspectiva de efetividade processual. prestação jurisdicional, a ponto de negar a satisfação de direito fundamental social a quem inegavelmente faz jus. Mas ao justificar o reconhecimento do direito fundamental social pela ficção da ação judicial como novo requerimento administrativo, esse caminho de fuga não logra realizar a proteção previdenciária em sua devida extensão, por uma singela razão: embora indicasse o reconhecimento do direito ao recebimento do benefício previdenciário, porque verificado o cumprimento dos requisitos para a proteção social pleiteada, mas fixaria o termo inicial do benefício na data do ajuizamento da ação.124 Isso implica desconsiderar, porém, a injusta privação de recursos materiais para subsistência em relação ao interregno compreendido entre o momento em que foram atendidos todos os pressupostos para a concessão do benefício e a data do ajuizamento da ação125. Esse vazio de proteção social, consistente na ausência de realização do direito à proteção em sua integral extensão, revela a incorreção desse pensamento pragmático. Essa concepção tem o mérito de oferecer alternativa às irracionalidades da concepção da função jurisdicional enquanto estrita revisão judicial da legalidade do ato administrativo, mas tampouco se presta como idôneo instrumento de concretização do direito a uma adequada tutela jurisdicional ou como princípio processual de efetivação dos direitos fundamentais sociais126. A constatada ineficácia processual para a satisfação dos direitos fundamentais sociais, tanto quanto a ausência de uma diretriz que resolva de modo congruente o problema do direito superveniente à tutela administrativa, já demonstram a importância da identificação 124 Levando em consideração a lógica de que os benefícios previdenciários são, em regra, devidos a partir do requerimento administrativo, o pensamento fundado na ficção da ação judicial como novo requerimento administrativo indicaria como solução adequada, assim, o acolhimento parcial do pedido inicial. O ajuizamento da ação seria considerado, nessa perspectiva, como novo requerimento administrativo e, portanto, um novo marco legal determinador do início da concessão do benefício. E essa lógica seria a mesma para todas as hipóteses em que o nascimento do direito de proteção social ocorrer entre o momento da resposta administrativa e o do ajuizamento da respectiva ação judicial. 125 No caso objeto de consideração, perceba-se, a fórmula pragmática da ficção da ação judicial como novo requerimento administrativo conduziria à recusa de proteção social previdenciária pelo período de dois anos e meio (período de tempo compreendido entre a data do início da incapacidade, considerada judicialmente, e a data do ajuizamento da ação judicial). 126 Essa concepção pragmática parece conferir prioridade à necessidade de resultados úteis para o processo judicial (utilidade ou efetividade do processo judicial) e não à maximização dos direitos fundamentais. Inadequadamente, confere proeminência ao instrumento de realização do direito material (processo) e não ao direito material em si. É por isso que não tolera o formalismo radical que conduz à negativa judicial de proteção social à pessoa que comprovadamente faz jus. E é também por isso que, nada obstante, considera aceitável o sacrifício de parcelas constitutivas do todo que é um determinado direito de proteção social, banalizando, portanto, violações de direito fundamental. de princípio processual que assegure o direito a um processo justo, atendendo a exigência de realização dos direitos fundamentais de proteção social127. 4 A CONCEPÇÃO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL DE ACERTAMENTO DA RELAÇÃO JURÍDICA DE PROTEÇÃO SOCIAL A limitação da função jurisdicional à revisão da estrita legalidade do ato administrativo reduz a possibilidade de realização do direito à seguridade social, pois a precedência não é posta na avaliação da existência ou não do direito material reivindicado, mas na análise da correspondência do ato administrativo à legalidade. Tampouco a pragmática ficção da ação judicial como novo requerimento administrativo atende integralmente as exigências do direito fundamental ao processo justo em sua dimensão realizadora dos direitos fundamentais sociais, pois com ela não se compromete. A presente seção destina-se a demonstrar que a resposta processual adequada aos problemas da jurisdição de proteção social repousa fundamentalmente no princípio da primazia da função jurisdicional de acertamento da relação jurídica de proteção social doravante denominado princípio da primazia do acertamento. Assumindo a premissa de que as sentenças manifestam eficácias distintas onde uma delas se mostra preponderante, alcança-se o pensamento de que qualquer que seja a eficácia preponderante da decisão, sempre se encontrará um elemento declarativo que define a existência - ou não - da relação jurídica que atribui à parte o direito discutido128. Uma determinada carga de declaração é, com efeito, elemento constitutivo de toda sentença129. Esse componente declarativo corresponde ao que Chiovenda denominava accertamento e no qual o mestre italiano via a mais “elevada função” do processo130. 127 Afinal, “A obrigação de compreender as normas processuais a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional, e, assim, considerando as várias necessidades de direito substancial, dá ao juiz o poder-dever de encontrar a técnica processual idônea à proteção (ou à tutela) do direito material” (MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo, 4ª Edição, São Paulo : RT, 2010 - Curso de Processo Civil ; v. 1 - p. 119) 128 MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações, São Paulo: RT, 1972, tomo I. §26. p. 124. 129 Nas palavras de Chiovenda, “Essa reformulação se encontra (já o vimos) também nas sentenças que ordenam ao réu realizar uma prestação a favor do autor (sentenças de condenação). São, por consequência, também e antes de tudo, sentenças declaratórias [mero accertamento], nas quais a declaração judicial do direito exerce Encontra-se na criação da certeza jurídica mediante o acertamento da relação jurídica de proteção social a primordial finalidade da função jurisdicional dos direitos fundamentais sociais – e não na revisão do controle da legalidade do ato administrativo. Por essa razão é que a função jurisdicional de acertamento ou definição da relação jurídica de proteção social tem prioridade ou precedência sobre a função jurisdicional enquanto revisão judicial da legalidade do ato administrativo. Correspondendo às exigências do direito fundamental à adequada tutela jurisdicional e constituindo idôneo instrumento de efetivação dos direitos fundamentais sociais, essa relação de precedência (do acertamento da relação jurídica sobre o controle da legalidade) revela-se como genuíno princípio processual das ações em que se busca proteção social. Segundo o princípio da primazia do acertamento, o que realmente importa é a definição da relação jurídica de proteção social. Para tanto, deve-se perquirir sobre a eventual existência de direito e determinar sua realização nos precisos termos a que a pessoa faz jus. Essa perspectiva não admite o sacrifício de direito de proteção social, daí porque considerar inaceitável sua mutilação mediante supressão de parcelas que o constituem. De acordo com a primazia do acertamento, é insustentável a recusa judicial de satisfação de direito fundamental ao argumento de que o ato administrativo indeferitório se encontra em consonância com a legalidade. Muito mais do que realizar o controle da legalidade do ato administrativo, o exercício da função jurisdicional deve comprometer-se com o acertamento da relação jurídica de proteção social e, por consequência, com a integral defesa, promoção e realização desses direitos fundamentais. Deve-se atentar que na perspectiva da efetivação dos direitos fundamentais de proteção social, as duas modalidades de tutela (administrativa e jurisdicional) não são dicotomicamente antagônicas, mas se encontram num continuum voltado à mais efetiva proteção jurídica desses direitos pelos poderes públicos131. 130 131 dupla função, a de criar a certeza jurídica e a de preparar a execução” (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, Vol. 1, Campinas : Bookseller, 1998. p. 260). Esse elemento declarativo constitui o aspecto “mais requintado de puro instrumento de integração e especialização da vontade que é expressa na lei somente em forma geral e abstrata; de facilitação da vida social mediante a eliminação das dúvidas que embaraçam o desenvolvimento normal das relações jurídicas” (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, p. 260-261). Ambas consubstanciam modalidades de garantias institucionais, isto é, mecanismos de tutela dos direitos que são confiados a instituições ou poderes públicos. As garantias institucionais podem ser distinguidas entre garantias políticas, confiadas aos poderes políticos, como o Parlamento e a Administração Pública, e as garantias jurisdicionais (ABRAMOVITCH, Victor, COURTIS, Christian. El umbral de la ciudadania: El A ênfase colocada no dever institucional de satisfação dos direitos de proteção social pelas funções estatais conduz-nos a perceber a garantia de uma dupla instância de efetivação desses direitos. A primeira instância se encontra a cargo das funções legislativa e executiva (administrativa) que, para os específicos propósitos desse texto, se encontra na tutela administrativa (análise administrativa da existência do direito). A instância administrativa tem como marca a provisoriedade, passível que é de ser revisada ou substituída pela atividade jurisdicional, que corresponde à segunda instância de efetivação, de caráter supletivo e que traz como nota fundamental a definitividade132. Mediante o fundamento da vinculação institucional aos direitos fundamentais sociais, o princípio da primazia do acertamento propõe-se a oferecer resultados aderentes às exigências dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais no caso concreto. Percebe-se, assim, a necessidade de superação da concepção consoante a qual a satisfação judicial do direito fundamental à proteção social está condicionada à ilegalidade do ato administrativo. Constituem questão de menor importância os motivos pelos quais determinado direito não foi reconhecido na esfera administrativa133. Uma vez provocada a tutela administrativa, a recusa de proteção abre espaço para que se busque o acertamento mediante intervenção jurisdicional. Em juízo, identificada a existência de direito fundamental social, o princípio da primazia do acertamento impõe sua satisfação em toda amplidão, isto é, conduz à definição da relação jurídica de proteção social, mediante a outorga da prestação significado de los derechos sociales en el Estado social constitucional, p 66). A relação jurídica de proteção social tem na esfera administrativa uma primeira arena de tutela do direito fundamental, sempre sujeita ao acertamento judicial, que é de caráter definitivo. Esclareça-se que a antecedência da tutela administrativa aqui destacada para demonstrar as premissas em que se fundamenta a perspectiva do acertamento judicial de proteção social não se relaciona com a temática da justiciabilidade dos direitos sociais e a consequente possibilidade, que se assume de modo expresso, de se buscar judicialmente a realização de direitos sociais não disciplinados satisfatoriamente pelas instâncias políticas. 132 Aproxima-se dessa concepção a diferenciação entre garantias institucionais primárias, destinadas a especificar o conteúdo dos direitos, estabelecendo as obrigações e responsabilidades pertinentes (em geral a cargo dos poderes políticos), e as garantias institucionais secundárias (em geral as garantias jurisdicionais), destinadas a operar em caso de descumprimento de quem tinha a seu cargo o respeito, proteção ou satisfação do direito (ABRAMOVITCH, Victor, COURTIS, Christian. El umbral de la ciudadania: El significado de los derechos sociales en el Estado social constitucional, p 66). 133 Com essa asserção não se pretende negar, em termos absolutos, a teoria dos motivos determinantes em matéria de seguridade social. O tema comporta interessante estudo que extrapolaria o objeto da presente investigação. O que se busca expressar, desde logo, é que em se tratando de direitos fundamentais sociais, a função jurisdicional deve voltar-se para a situação jurídica do interessado à proteção social vis a vis o direito que pretende. De todo modo, assume-se que em se tratando de direitos de proteção social, a perspectiva do acertamento não vincula o Poder Judiciário às razões que levaram a Administração Pública a recusar determinada pretensão. Assim é que, por exemplo, se administrativamente é negado o fornecimento de medicamento por não estar incluído na lista RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais), a superação desse óbice em juízo não assegura, por si só, o acolhimento judicial da pretensão, pois outros pressupostos são exigidos na análise do direito em questão, como a necessidade, a eficácia da prescrição médica e a ausência de medicamento similar incluído em lista que produza idênticos resultados. devida nos estritos termos a que a pessoa faz jus. Isso significa tratar com seriedade todas as parcelas constitutivas do direito fundamental que se encontra em discussão e, em última análise, significa levar a sério uma Constituição que consagra direitos sociais. A conclusão a que se chega a partir da primazia do acertamento é a de que o direito à proteção social, particularmente nas ações concernentes aos direitos prestacionais de conteúdo patrimonial, deve ser concedido na exata expressão a que a pessoa faz jus e com efeitos financeiros retroativos ao preciso momento em que se deu o nascimento do direito134. Já é possível deduzir, assim, que o princípio da primazia do acertamento oferece ao problema anteriormente explorado a seguinte resposta: é devida a outorga da proteção social com efeitos retroativos ao momento em que foram aperfeiçoados os pressupostos legais para sua concessão (quando se instaurou o conteúdo obrigacional), ainda que esta circunstância tenha ocorrido posteriormente ao término da tutela administrativa. No diagrama da primazia do acertamento, o reconhecimento do fato superveniente prescinde da norma extraída do art. 462 do CPC, pois o acertamento determina que a prestação jurisdicional componha a lide de proteção social como ela se apresenta no momento da sua entrega. Por outro lado, é menor o alcance dessa norma processual civil, pois faz referência a fatos supervenientes à propositura da ação - e não a fatos supervenientes ao encerramento da tutela administrativa (momento anterior). Justificada a aplicação do princípio da primazia do acertamento às questões ligadas ao direito superveniente à tutela administrativa, torna-se importante expressar, ainda quanto a essa temática, um importante desdobramento lógico: o poder/dever de acertamento da relação jurídica de proteção social levando-se em consideração fato superveniente à tutela administrativa - chamados à existência antes ou depois do ajuizamento da ação - tem espaço igualmente em relação a outras prestações da seguridade social, como as aposentadorias espontâneas (aposentadoria por idade, especial e por tempo de contribuição)135. 134 135 Guarda inteira pertinência, nesse contexto, a noção de instrumentalismo justo, segundo o qual “A instrumentalidade dá um passo para além da preocupação de dar efetividade às garantias processuais de acesso ao Judiciário. Vai interessar o próprio conteúdo material e substancial garantidos constitucionalmente ao cidadão. Só tem sentido um processo informal nas mãos de juristas preocupados com transformações radicais da sociedade. Pelo princípio da instrumentalidade, o sistema abre a porta do Estado para que, pela via do Poder Judiciário, o cidadão veja implementadas as conquistas sociais tais como previstas na Constituição”. (PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil, 7ª Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 52). Exatamente neste sentido: Turma Regional de Uniformização da 4ª Região (IUJEF 000047453.2009.404.7195). A única ressalva é a de que as aposentadorias espontâneas orientam-se pelo princípio da proteção social mais efetiva em uma perspectiva de que é direito do segurado optar pelo benefício mais vantajoso. Compreendendo-se o direito à cobertura mais benéfica como elemento constitutivo da relação de proteção, conclui-se que deve o juiz garantir ao segurado a faculdade de entrar em gozo de benefício em um determinado marco temporal (quando nascido o direito), desde quando pode ser identificado o momento que atribui a prestação mais eficaz ou vantajosa. 4.1 Alegações inéditas em juízo e o problema interesse de agir Demonstrou-se acima a insuficiência do paradigma da função jurisdicional de controle do ato administrativo – quer em sua versão radical, quer em sua versão pragmática – e de como se revela inaceitável essa concepção de função jurisdicional na medida em que constitui o insumo teórico de decisões judiciais sonegadoras de direitos fundamentais sociais. De outra parte, a formulação do princípio da primazia do acertamento foi justificada na força vinculante dos direitos fundamentais, do direito à tutela jurisdicional adequada, inclusive. Foi ainda demonstrado que a aplicação desse princípio leva à plena efetivação dos direitos de proteção social porque reverencia a especificidade da lide em que se discute a satisfação desses direitos, alcançando resultados compatíveis com a exigência de máxima proteção dos direitos fundamentais. Nesta seção pretende-se analisar outro problema da jurisdição de proteção social que apenas é adequadamente solucionado na perspectiva da função jurisdicional de acertamento da relação jurídica de proteção social – e não, definitivamente, na perspectiva da função jurisdicional de controle do ato administrativo. Resgatemos, antes, uma premissa fundamental: a função jurisdicional dos direitos fundamentais de proteção social não deve olhar com proeminência para o ato administrativo que se contrapõe ao direito pleiteado pelo particular. A ênfase não deve ser posta no controle do ato do Poder Público ou em como restou formalizada a tutela administrativa. Por uma questão de respeito aos direitos fundamentais, orientando-se por uma noção de justa medida de proteção social, as luzes devem ser direcionadas ao acertamento da relação jurídica, o que implica investigar o que realmente importa: se o direito social pretendido existe e qual sua real extensão. Coloca-se sob exame caso de natureza previdenciária que oferece à jurisdição de proteção social duas questões, ambas relacionadas à circunstância de serem apresentados, em juízo, novas alegações ou novos elementos de prova. A primeira relaciona-se ao interesse de agir em se buscar a tutela jurisdicional previdenciária, objeto de estudo específico desta seção136. A segunda corresponde ao que pode ser denominado problema da data de início dos benefícios concedidos judicialmente, que será analisado na seção seguinte137. Suponha-se pretensão judicial de concessão de benefício de aposentadoria que foi indeferido sob fundamento de insuficiência de tempo de contribuição. O conjunto probatório, enriquecido com elementos de prova que não constavam do processo administrativo, aponta para o fato de que o direito existia ao tempo em que foi pleiteado administrativamente. Suponha-se ainda que os elementos de prova apresentados apenas em juízo prestaram-se a comprovar circunstância fática (alguns anos de trabalho em condição de assalariado informal, por exemplo) que não teria sido ventilada na esfera administrativa. A ideia de que a função jurisdicional restringe-se ao controle da legalidade do ato administrativo pode conduzir ao pensamento de que em uma situação como a exposta acima não se encontra presente o interesse de agir. Seu fundamento é o de que, a rigor, a Administração Previdenciária, quando da análise do requerimento administrativo, não recusou a contagem do tempo de contribuição alegado de modo inédito em juízo138. A concepção da função jurisdicional de estrito controle da legalidade do ato administrativo pode, com efeito, hospedar o raciocínio de que a impugnação judicial de um ato administrativo – para quem ainda concebe que o que se busca em juízo é a invalidação do ato administrativo e não a tutela de direito fundamental - somente encontra lugar quando restrita aos termos em que formalizada a pretensão na via administrativa. O acesso à justiça estaria condicionado à existência de uma correlação entre as questões de fato e de direito 136 137 138 Sobre o espinhoso tema do interesse de agir em matéria previdenciária, veja-se: BIGOLIN, Giovani. O requerimento administrativo e o controle judicial dos benefícios previdenciários. In: ROCHA, Daniel Machado (Org.). Direito Previdenciário e Assistência Social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 49-72. Veja-se também nosso Direito Processual Previdenciário, 3a edição, Curitiba: Juruá Editora, item 6.2. Sobre o tema do termo inicial dos benefícios concedidos judicialmente, veja-se nosso trabalho “Algumas reflexões sobre a data de início das aposentadorias voluntárias no RGPS concedidas judicialmente”. In: Revista de Previdência Social, v. 318, p. 422-427, 2007. Em última análise, a Administração Previdenciária não considerou e nem recusou considerar esse tempo de contribuição - e talvez reconhecesse a circunstância fática caso lhe fossem apresentados os documentos. Afinal, o indeferimento da aposentadoria se deu levando em conta as informações constantes no sistema próprio da entidade previdenciária e eventuais outros documentos apresentados pelo segurado. debatidas previamente na esfera administrativa e aquelas submetidas à revisão do Judiciário139. Na perspectiva da primazia do acertamento, desde que prestada a tutela administrativa e analisado o direito previdenciário reivindicado em juízo, abre-se espaço para a atuação jurisdicional de definição da relação jurídica de proteção social. Aqui uma vez mais invoca-se a relação de precedência do acertamento da relação jurídica sobre o estrito controle da legalidade. O que importa é definir a relação jurídica de proteção social e não investigar se uma determinada circunstância fática foi ou não apreciada originariamente pela Administração Pública. Os olhos devem voltar-se para a pessoa – presumivelmente destituída de recursos para subsistência – vis a vis o direito de proteção social que reivindica, de modo a afastar-se a crise de incerteza acerca da relação jurídica140. É necessário decidir a sorte de quem busca proteção social, antes de recusar a prestação jurisdicional ao argumento formalista de supressão da instância administrativa (argumento este que se presta, por vezes, como véu do propósito de desafogar a máquina judiciária)141. Embora o princípio da primazia do acertamento constitua fundamento suficiente para a superação do óbice processual de falta de interesse de agir, deve-se reconhecer que sua conexão com outros princípios processuais fortalecem a argumentação 142. Nesse sentido, parece evidente sua vinculação com o direito de acesso à justiça, com a lógica da primazia da realidade sobre a forma143 e com os princípios da economia, instrumentalidade e efetividade processuais144. 139 Desde logo: essa exigência esvazia o direito constitucional de acesso à justiça, contrasta com o ambiente institucional dos Juizados Especiais e desconsidera a atual orientação jurisprudencial no sentido da desnecessidade de prévio requerimento administrativo (STF, AgRRE 548.676; STJ, REsp 216.468). 140 O descompasso em tese entre o direito a que o segurado faz jus e o seu estado de fato, quando persistente após a prestação da tutela administrativa, caracteriza por si só a lesão de direto que justifica o acesso à justiça. Em outras palavras, “Quando ao direito a uma prestação deixa de corresponder o estado de fato, por não se haver satisfeito a prestação, diz-se lesado o direito” (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, p. 33). 141 Não será uma postura judicial comprometida com o direito fundamental à ação para realização de direito fundamental social que chamará à realidade o pesadelo em que o Judiciário se converte em verdadeiro “balcão do INSS”. É fundamentalmente a insuficiência na prestação da tutela administrativa que faz precipitar um volume extraordinária de demandas judiciais. Essa é uma questão estrutural que vitimiza os agentes públicos e segurados da Previdência Social. Trata-se de uma conveniente limitação estrutural, orientada pela lógica do custo-benefício. Essa lógica leva à redução de despesas sociais, mediante recusa de efetiva tutela institucional, quer pela falta de informações fundamentais para o exercício dos direitos de Previdência e Assistência Social, quer pela ausência de real espaço para contraditório e ampla defesa no que se chama “processo” administrativo, quer pelo reticente posicionamento institucional em relação às orientações pretorianas. 142 Com isso se presente demonstrar a maneira pela qual a primazia do acertamento se relaciona com outros princípios processuais, destacando também por esta ótica a sua pertinência ao sistema processual. 143 Decisivamente, inexiste segurança de que o que restou formalizado no processo administrativo corresponde àquilo que realmente se passou em uma agência de atendimento da entidade previdenciária. Tampouco há Para além disso, o princípio da primazia do acertamento é confortado por outro princípio processual que rege especificamente as lides de proteção social. Trata-se do princípio que consagra o direito de proteção judicial contra lesão implícita a direito - ou contra lesão por omissão. Em face da grande complexidade dos mecanismos de proteção e respectiva legislação, os indivíduos não se encontram em situação de tomar decisões de forma informada e responsável, tendo em conta as possíveis conseqüências145. Por essa razão, a Administração guarda o dever fundamental de prestar as informações necessárias para que o cidadão possa gozar da proteção social a que faz jus146. Há também um dever fundamental de conceder, como já assinalado, a devida proteção social147. A partir dessas noções elementares pode-se sustentar que toda vez que a Administração Previdenciária deixa de orientar o segurado acerca de seus direitos e não avança para conhecer sua realidade, acarretando com tal proceder a ilusão do direito à devida certeza de que, em determinados casos, o segurado não chega a afirmar uma determinada circunstância fática ou a apresentar determinado documento que é sumariamente descartado e, por isso, sequer integrado aos autos do processo administrativo. Trata-se de conferir primazia à realidade sobre a forma. Como resta formalizado o processo administrativo é uma coisa, o que se passa na realidade, de conhecimento notório, pode ser algo distinto. Ou não constitui objeto de conhecimento generalizado, por exemplo, a ainda presente recusa administrativa em formalizar requerimentos administrativos por suposta ausência de direito do segurado? Como tomar como base para a rejeição sumária de direito fundamental um dado tão imperfeito como o processo administrativo que ainda temos? 144 Importa, com efeito, tutelar o mais adequadamente possível o direito de proteção social, “fugindo-se do retardamento de ações cujo objeto tem tamanha relevância e urgência, e dando-se primazia, em última análise, aos direitos fundamentais que estão em jogo - direitos à saúde e à prestação jurisdicional célere” (TRF 4a Região, AG 5017198-30.2011.404.0000). 145 O processo administrativo previdenciário não se desenvolve em uma dimensão onde o segurando litiga contra a Administração, deduzindo pretensão, alegando todos os fatos de seu interesse etc. Antes, deve ser compreendido como uma relação de cooperação, um concerto em que Administração deve, em diálogo com o segurado, conhecer a sua realidade, esclarecer-lhe seus direitos e outorgar-lhe a devida proteção social, isto é, a mais eficaz proteção social a que faz jus. Perceba-se, nessa perspectiva, quão impróprio é falar-se em uma necessária e estrita correlação entre as demandas administrativa e judicial. 146 Sobre o tema dos deveres fundamentais, os quais levantam exigências a que se deve vincular a atuação dos indivíduos e dos poderes públicos, veja-se: NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra: Livraria Almedina, 1998. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª edição, Coimbra: Livraria Almedina, 2001. p. 155166. Entre nós, veja-se: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais, 9ª edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 240-245. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. “Deveres Fundamentais”. In: LEITE, George Salomão et tal (coords). Direitos, Deveres e Garantias Fundamentais, Salvador: Editora JusPODIVM, 2011. p. 325-343. O direito fundamental à informação pública, associado ao dever fundamental de tornar a atividade estatal acessível ou transparente, sustenta-se no princípio do Estado Democrático de Direito e deriva dos princípios constitucionais administrativos da publicidade e da eficiência. O acesso às informações necessárias para o exercício dos direitos de proteção social constitui, a um só tempo, exigência dos princípios do respeito à pessoa - que se encontra em posição de inferioridade em relação ao Estado – e da boa-fé objetiva, que deve presidir toda relação entre a Administração Pública e o cidadão. 147 Anote-se que a circunstância de o segurado se encontrar assistido por advogado não retira da Administração o dever de orientá-lo e conceder-lhe o benefício mais vantajoso. É intuitivo que a representação por profissional não pode consubstanciar, a um só tempo, fator que desonere a Administração Pública de dever fundamental e instrumento de penalização do segurado. Em suma, a representação por advogado não pode consistir em variável que se transforme em penalização do segurado, mesmo porque, é justamente a burocracia e a ineficiência administrativas que levam o segurado a, mediante ônus próprio, contratar representante para sua participação na via administrativa. proteção social (direito à mais eficaz proteção social), ela, ainda que de modo implícito, opera, por omissão, verdadeira lesão a direito. Portanto, com fundamento no princípio da primazia do acertamento, bem como nos princípios processuais que lhe são correlatos, conclui-se que a parte detém interesse de agir para buscar a concessão do benefício pretendido, ainda que alegue em juízo circunstância fática distinta daquelas apuradas na esfera administrativa. 4.2 Alegações inéditas em juízo e o problema do termo inicial dos benefícios Coloca-se em análise a problemática concernente ao termo inicial de benefícios concedidos judicialmente a partir de elementos de prova não apresentados na esfera administrativa - o que poderia significar alegação de fato deduzida de modo inédito em juízo. Em relação ao caso objeto de consideração, a concepção da função jurisdicional de estrita revisão da legalidade do ato administrativo orientará que o ato administrativo que indeferiu a prestação previdenciária não pode ser considerado ilegal, uma vez que, diante do conjunto probatório, outra coisa não poderia fazer o agente público que não recusar a proteção social pelo não cumprimento dos requisitos legais148. De outro lado, a concepção da função jurisdicional de controle do ato administrativo a partir de uma perspectiva de efetividade processual sustentará que a não alegação de determinada circunstância fática na esfera administrativa - ou que a apresentação de documentos substanciais apenas em juízo – não prejudica o reconhecimento do direito à prestação previdenciária, mas o início do gozo será fixado na data do ajuizamento da ação e não na data do requerimento administrativo (dada a pressuposta legitimidade do ato indeferitório)149. 148 149 Em outro trabalho procuramos demonstrar que o argumento é falacioso: “É ilegal o ato administrativo que indefere o requerimento de benefício previdenciário quando o beneficiário, na realidade, preenche todos os requisitos exigidos pela legislação previdenciária” (Direito Processual Previdenciário, p. 314). De todo modo, talvez o mais formalista juiz revisor-fiscal de atos do Poder Público reconhecesse, nessas condições, o desacerto da solução judicial que recusa a concessão do benefício ao fundamento de que a comprovação do fato constitutivo do direito se deu apenas em juízo. Neste sentido: “A parte autora não apresentou administrativamente por ocasião do pedido de revisão de seu benefício (...) toda a documentação necessária ao reconhecimento da condição especial das atividades ora declaradas insalubres (...). Destarte, não se pode considerar que a autarquia estivesse em mora anteriormente à data de sua citação nos presentes autos. II - Sendo assim, o termo inicial da revisão deverá ser a data da citação (...), a teor do disposto no art. 219 do Código de Processo Civil” (TRF 3 a AC 649246). Como em última análise é confundida a ocasião do nascimento do direito com o momento em que se considera comprovado o respectivo fato constitutivo, a saída pragmática da revisão da legalidade se enreda em uma aporia: não raro o fato constitutivo do direito é comprovado apenas durante a audiência de instrução e julgamento, ou mediante novos documentos juntados com o recurso, ou ainda após a realização de diligências determinadas pela instância recursal. Não é preciso muita imaginação para se projetar que, abertas assim tantas possibilidades temporais de comprovação do fato constitutivo do direito, a saída pragmática que busca salvar a utilidade do processo antes de consagrar respeito a direito fundamental revela sua inconsistência e se abre a um decisionismo que - qualquer coisa menos o correto – vincula a data de início da proteção social ao aleatório momento em que realizado o ajuizamento da ação, ou a citação (quando a entidade requerida teria ciência da pretensão escudada em novas circunstâncias), a audiência de instrução e julgamento, a sentença (como se o ato judicial constituísse o direito), a interposição de eventual recurso, ou ainda a sessão de julgamento da instância recursal150. Essa linha de pensamento constitui fruto irreflexivo da prática judicial, manifestando inegáveis sinais de arbítrio do Poder Judiciário, próprio de um modelo que se pode considerar autoritário151. Ora, uma coisa é o cumprimento de todos os requisitos em lei para a outorga da proteção social. Outra coisa, bastante distinta, é o momento em que o titular de um direito logra demonstrar sua existência. Na perspectiva da primazia do acertamento, inexiste sentido em se definir a existência do direito ou a medida em que é devida a proteção social a partir do modo como restou formalizado o processo administrativo que culminou com resposta insatisfatória ao cidadão. O que importa é a definição de relação jurídica de proteção social e, a partir dela, entregar à parte o bem da vida nos precisos termos a que faz jus152. Saber se a parte tem o direito e desde quando tem o direito é o alvo principal da função jurisdicional. É menos 150 Perceba-se que a falta de princípio a orientar a definição dos termos em que é devida a proteção social pode levar ao equívoco de se pensar o ato decisório como constitutivo do direito: “O reconhecimento da incapacidade da autora para o labor somente se concretizou com a decisão agravada, de modo que os efeitos financeiros deveriam valer a contar da prolação desta. Todavia, com o fito de se evitar que o julgamento desbordasse dos limites da pretensão recursal, tornou-se imperativo o acolhimento da apelação do réu neste item, razão pela qual o termo inicial do benefício foi fixado a contar da data do laudo pericial” (TRF 3 a Região, 10a Turma, Processo 2011.03.99.008361-1). 151 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal, p. 44-46. 152 De outra perspectiva, mas no mesmo sentido, encontra-se a formulação chiovendiana de que “o processo deve dar, quanto for possível praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir” (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil p. 67). importante saber se o ato administrativo, ao fim e ao cabo, era legítimo. Como se desenrolou o processo administrativo ou que documentos dele constaram formalmente constituem questões laterais, de menor interesse. A resposta do princípio da primazia do acertamento à questão proposta não será outra, portanto, que não a outorga da proteção judicial na medida em que o segurado faz jus, isto é, a concessão da aposentadoria pretendida com efeitos financeiros desde a formalização do requerimento administrativo. É importante agregar, por outro lado, que também aqui o princípio da primazia do acertamento, conquanto suficiente para a solução do problema proposto, mantém relação funcional com os princípios da realidade sobre a forma153 e da proteção judicial contra lesão implícita a direito154, circunstância que corrobora a solução por ele apontada. 4.3 Princípio da primazia do acertamento e sua relação com o princípio dispositivo O princípio dispositivo consagra a ideia de que a busca pela satisfação dos direitos materiais encontram-se na esfera de disponibilidade dos indivíduos. Em decorrência dessa noção fundamental e igualmente como consequência do princípio da imparcialidade judicial, em regra não se admite o funcionamento ex officio dos órgãos jurisdicionais. Assim é que nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando invocada pela parte (CPC, art. 2º). Também como derivação do princípio dispositivo pode ser percebido o princípio da congruência ou adstrição da sentença ao pedido, segundo o qual o juiz deve decidir a lide nos termos em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas pelas partes (CPC, arts. 128 e 460). 153 154 Se a realidade aponta para a existência do direito fundamental à proteção social, pouco importa o que a sinuante forma administrativa está a indicar. Para o caso em análise, é de relevo o que está diante dos olhos do juiz, isto é, que a pessoa efetivamente trabalhou, faz jus e comprovadamente já fazia jus à proteção previdenciária quando do requerimento da tutela administrativa. E tal fenômeno parece ter sido assimilado pela jurisprudência: “É altamente conveniente à Administração Previdenciária socorrer-se, em Juízo, da prova cabal de sua ineficiência e de inaceitável inadimplência na prestação do devido serviço social a seus filiados (Lei 8.213/91, art. 88), buscando convolar ilegal omissão de ativa participação no processo administrativo em locupletamento sem causa, à custa justamente do desconhecimento de seus filiados. Neste sentido, acrescente-se, tanto mais enriqueceria a Administração quanto mais simples e desconhecedor de seus direitos fosse o indivíduo. (...) Os efeitos da proteção social determinada judicialmente (fixação da DIB ou da nova RMI do benefício) vinculam-se à data do requerimento administrativo, ainda que o processo administrativo não indique que uma específica circunstância fática foi alegada pelo leigo pretendente ao benefício. 8. Pedido de Uniformização conhecido e provido” (Turma Nacional de Uniformização, PEDILEF 200872550057206, Rel. Juiz Federal José Antonio Savaris, DOU 29/04/2011) Que a jurisprudência trabalha com a relativização do princípio da adstrição da sentença em matéria de proteção social não cabem dúvidas. A título ilustrativo, encontra-se atualmente sedimentado o pensamento de que não constitui julgamento extra ou ultra petita aquele que, em razão da incapacidade laboral comprovada, concede benefício da seguridade social distinto daquele pleiteado na petição inicial155. Para além disso, a “relevância social da matéria” consubstancia o fundamento em função do qual “é lícito ao juiz, de ofício, adequar a hipótese fática ao dispositivo legal pertinente à concessão de benefício previdenciário devido em razão de acidente de trabalho” (REsp 541.695)156. De outra perspectiva, “O juiz, de acordo com os dados de que dispõe, pode enquadrar os requisitos do segurado a benefício diverso do pleiteado, com fundamento nos princípios 'Mihi factum dabo tibi ius' e 'jura novit curia'” (AgRg no AG 1.065.602)157. Outra coisa não se tem aqui senão a adoção de soluções processuais adequadas à relação jurídica de proteção social, como resposta à força vinculante do princípio constitucional do devido processo legal e dos direitos fundamentais que se buscam satisfazer judicialmente. Perceba-se que o princípio da primazia do acertamento presta-se suficientemente como matriz teórica legitimadora desse posicionamento, mesmo porque a aplicação desse princípio conduzirá o magistrado a indagar sobre fatos não suscitados originariamente pelas 155 156 157 Como há um núcleo a ligar o requisito específico dos benefícios de seguridade social por incapacidade, temse admitido uma espécie de fungibilidade dos pedidos que buscam sua concessão. Neste sentido: “Em relação ao pedido de concessão de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, não há óbice processual quanto ao seu enfrentamento, ademais quando se está diante de benefícios que possuem origem em evento de risco social comum, qual seja, a incapacitação para o trabalho decorrente de acidente, o qual pode gerar direito à concessão de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez ou auxílio-acidente, sendo que a decisão que defere qualquer deles, independentemente de haver pedido expresso, não é extra petita”. (TRF4, AC 00008928120104049999). Neste sentido: “(...) em razão do caráter social das demandas previdenciárias e acidentárias, pode o julgador conceder benefício diverso ao pedido na inicial se verificado o preenchimento das exigências necessárias para o seu recebimento” (STJ, CC 87.228). Ainda no mesmo sentido: “Cuidando-se de matéria previdenciária, o pleito contido na peça inaugural deve ser analisado com certa flexibilidade. In casu, postulada na inicial a concessão de aposentadoria por invalidez ou auxílio-doença, incensurável a decisão judicial que reconhece o preenchimento dos requisitos e concede ao autor o benefício assistencial de prestação continuada” (REsp 847.587). Com esses fundamentos, a relativização do princípio da adstrição da sentença em matéria de proteção social não se limita às hipóteses de concessão de benefícios por incapacidade. Com efeito, tal orientação jurisprudencial tem assegurado, por exemplo, a possibilidade de o juiz conceder o benefício em percentual maior do que o requerido na inicial (REsp 929.942). Para além disso, esse entendimento respalda a concessão de aposentadoria por tempo de serviço pela instância recursal quando a parte postulava revisão da renda mensal de aposentadoria por idade (REsp 1.019.569). Parte-se do pressuposto, em relação a este último caso, de que a concessão do benefício de aposentadoria por tempo de serviço seria mais benéfica do que a revisão da aposentadoria por idade. partes e a assumir seus poderes de instrução com vistas à verdade real e à justa definição da proteção social para o caso158. Desde que as medidas destinadas à definição do direito devido não impliquem tumulto processual, nada impede seja realizado o acertamento da proteção social, mediante relativização do princípio da congruência da sentença – do princípio dispositivo, em última análise159. A essência do direito fundamental ao devido processo legal consubstancia a garantia de um processo que chegue ao fim em tempo razoável, respeite o contraditório e a ampla defesa, e culmine com uma decisão justa160. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Fundada na dignidade da pessoa humana, a Constituição assume como fundamentais diversos objetivos de que somente tem sentido falar a partir de uma perspectiva que visualize a fundamentalidade dos direitos sociais, que desde sua emergência constituem objeto de intensos debates ideológicos. Embora a Constituição da República consagre como princípios fundamentais da ordem social a justiça e o bem-estar sociais, a discussão acerca do que se considera uma sociedade justa consubstancia verdadeiro campo de batalha entre diversas perspectivas analíticas da teoria política normativa. Ainda que a perspectiva individual do que se considera justo não deva resultar esvaziamento judicial dos direitos fundamentais sociais, é extremamente importante para a 158 159 160 Sobre a relação da busca da verdade real com o princípio da imparcialidade judicial, especialmente nas demandas de proteção social, veja-se nosso Direito Processual Previdenciário, item 2.8.3. E isso é plenamente justificável: “O princípio da demanda e o dispositivo têm o seu inegável valor, mas não são suficientes, em si mesmos, para infirmar as tendências que advêm da ligação do sistema processual aos fins do Estado” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, p. 165). Tem-se como justa a decisão judicial que, por um lado, realiza o Direito a partir de uma perspectiva dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais e que, por outro lado, revela-se em sintonia com a realidade dos fatos (verdade real) e com a realidade social. Na medida em que o saber ético depende do caso para alcançar uma constituição equitativa da norma para o problema concreto (exigências de justiça do caso), ainda a equidade consiste em componente indispensável à justiça das decisões judiciais. Em matéria de direitos sociais, essa proposição já era sondada quando se pensou a “solução de eqüidade com inspiração constitucional” como “peça fundamental para concretização do direito fundamental à subsistência pela proteção social e para tornar nossa realidade social menos injusta” (SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário, p. 50). efetivação da proteção social que ela seja percebida como justa, equitativa e eticamente aceitável161. É necessário compreender a justiça social na perspectiva do princípio do Estado Social e reconhecer que toda política social tem como elemento constitutivo a justiça distributiva. Os direitos sociais de proteção prestam-se à igualdade, assegurando muito mais do que o suprimento das necessidades animais de subsistência162. Para se realçar a importância do direito à segurança social não é raro o apelo ao argumento de que ela busca atender a “liberdade básica de sobreviver”, combatendo a subnutrição que pode afetar um universo de pessoas vulneráveis e prevenindo que elas passem a vida lutando contra uma doença evitável163. Mas esse argumento corresponde apenas a uma parcela do escopo da proteção social. Para além disso, há uma pretensão de se reconhecer o respeito pela dignidade humana, conferindo-lhe os recursos necessários – dinheiro, serviços de saúde, reabilitação, reeducação – para sua proteção e integração comunitária. Há um propósito genuinamente constitucional em romper a lógica da dependência e da passividade da pessoa auxiliada pelos esforços sociais164. Para isso é indispensável reconhecer na proteção social seu papel constitutivo de um desenvolvimento alcançado pela expansão de liberdades substantivas as quais incluem capacidades elementares que irão contribuir para a capacidade geral de a pessoa viver com mais liberdade, objetivo primordial do desenvolvimento e também seu principal meio165. Essas considerações são feitas com o propósito de despertar nosso senso de justiça para a necessidade de plena efetivação do direito de proteção social. 161 PARIJS, Philippe Van. Refonder la solidarité. Paris: Les Éditions du Cerf, 1999. p. 13. É sempre importante tomar em conta que as necessidades humanas não se limitam à alimentação e higiene, o que era sempre lembrado por Marx, em toda sua eloquência. “Torna-se evidente que a economia política considera o proletário, ou seja, aquele vive, sem capital ou renda, apenas do trabalho e de um trabalho unilateral, abstrato, como simples trabalhador. Por conseqüência, pode sugerir a tese de que ele, assim como um cavalo, deve receber somente o que precisa para ser capaz de trabalhar. A economia política não se ocupa dele no seu tempo livre como homem, mas deixa este aspecto para o direito penal, os médicos, a religião, as tabelas estatísticas, a política e o funcionário de manicômio” (MARX, Karl. Manuscritos econômicofilosóficos, Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 72). 163 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 29. 164 WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 124. 165 Capacidades elementares como “ter condições de evitar privações como a fome, a subnutrição, a morbidez evitável e a morte prematura, bem como as liberdades associadas a saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter participação política e liberdade de expressão etc” (SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 55-57). 162 Não é suficiente que esses direitos sejam previstos na Constituição e tampouco basta outorgar à pessoa vulnerável uma qualquer jurisdição social. É necessário prestar jurisdição com justiça, de modo vinculado à Constituição e à realização do direito fundamental de proteção social em toda sua extensão. Para isso deve-se contextualizar as coisas, compreendendo-se o ser humano necessitado em seu acumulado déficit de bem-estar e a política social em seu objetivo constitucional de fazê-lo realmente independente. O princípio da primazia do acertamento presta-se, neste sentido, como técnica normativa concretizadora do direito fundamental ao processo justo, tornando possível à função jurisdicional a realização dos direitos de proteção social em toda sua densidade e de acordo com os fundamentos axiológico-normativos de nosso constitucionalismo social. REFERÊNCIAS ABRAMOVITCH, Victor, COURTIS, Christian. El umbral de la ciudadania: El significado de los derechos sociales en el Estado social constitucional. Buenos Aires, Editores del Puerto, 2006. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª edição, Coimbra: Livraria Almedina, 2001. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução: Sebastião Nascimento. 1º ed. São Paulo: Ed. 34, 2010. BEVERIDGE, WILLIAN, Full Employment in a Free Society, London: George Allen and Unwin, 1944. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 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ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO José Antonio Marques166 Osmar Vieira da Silva167 RESUMO Este artigo de revisão bibliográfica tem como objetivo principal discutir o assédio moral no Trabalho, detalhando aspectos relacionados à compreensão geral sobre essa temática que vem encontrando espaços de discussões e debates em diversos contextos. O texto parte do conceito relacionado ao assédio moral, abordando aspectos específicos sobre o fenômeno. Destaca o assédio moral no âmbito da legislação vigente, ressaltando também os meios para a prevenção e o combate. PALAVRAS-CHAVE: Assédio Moral no Trabalho. Legislação Vigente. Prevenção e Combate ao Assédio Moral. ABSTRACT This article of bibliographical revision has as objective main to argue the moral siege in the Work, being detailed aspects related to the general understanding on this thematic one that it comes finding spaces of quarrels and debates in diverse contexts. The text has left of the concept related to the moral siege, approaching specific aspects on the phenomenon. It detaches the moral siege in the scope of the current law, also standing out half for the prevention and the combat. KEYWORDS: Moral siege in the Work. Current law. Prevention and Combat to the Moral Siege. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO E SUA CONTEXTUALIZAÇÃO. 3 TIPOS DE ASSÉDIO MORAL. 4 AS CONSEQÜÊNCIAS DO 166 167 Discente do terceiro ano do Curso de Direito do Centro Universitário Filadélfia – Unifil. E-mail: [email protected] Docente da Unifil. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito Negocial pela UEL. E-mail: [email protected] ASSÉDIO MORAL. 6 PREVENÇÃO E COMBATE AO ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO A discussão sobre assédio moral no trabalho, foco desse artigo, é contemporânea e necessária, tendo em vista que as relações de trabalho na atualidade precisam ser amplamente debatidas. O contexto vigente, marcado pelas transformações do mundo do trabalho, pelo neoliberalismo que se iniciou em meados da década de 70, pela reestruturação produtiva e a financeirização do capital em nível mundial, vem fragilizando as relações de trabalho progressivamente. A busca incessante de lucro pelo empregador acaba gerando problemas que atingem diretamente os trabalhadores. Esse contexto exige que Leis sejam aprovadas, mas também que ocorra mobilização por parte da sociedade em geral para que de fato essas sejam efetivadas. Para detalhamento da temática, o texto divide-se em três partes: a primeira contextualiza o assédio moral, discute os tipos e as conseqüências, a segunda aborda o assédio moral e a legislação vigente e a terceira apresenta os meios de prevenção e Combate. 2 ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO E SUA CONTEXTUALIZAÇÃO A revista do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Farmacêuticas, Plásticas e Similares de São Paulo e Região (2000) apresenta um conceito bastante pertinente para iniciar a compreensão sobre o assédio moral no trabalho: É o mesmo que violência moral: trata-se da exposição de trabalhadores a situações vexatórias, constrangedoras e humilhantes durante o exercício de sua função. Isto caracteriza uma atitude desumana, violenta e sem ética nas relações de trabalho praticada por um ou mais chefes contra seus subordinados, visando desqualificar e desestabilizar emocionalmente a relação da vitima com a organização e ambiente de trabalho, o que põe em risco a saúde e a própria vida da vitima. A violência moral ocasiona desordens da pessoa, altera valores, causa danos psíquicos (mentais), interfere negativamente na saúde, na qualidade de vida e pode até levar à morte. (SINDICATO DOS TRABALHADORES NAS INDÚSTRIAS QUÍMICAS, FARMACÊUTICAS, PLÁSTICAS E SIMILARES DE SÃO PAULO E REGIÃO, 2000, p.8) Barreto (2000) esclarece que o assédio moral é a exposição de trabalhadores a situações humilhantes e constrangedoras, ressaltando que só pode ser considerado assédio moral quando acontece de forma repetitiva e prolongada durante o trabalho e, sendo mais comum quando envolve relações de poder em que predominam condutas negativas, relações desumanas e sem ética, geralmente ocorrendo por longo tempo, partindo de um ou mais chefes e dirigida aos subordinados. Essa forma de relação desestabiliza a vítima no ambiente de trabalho, forçando-a a desistir do emprego. Barreto (2000) ressalta que a degradação deliberada das condições de trabalho trás conseqüências sérias aos trabalhadores, envolvendo questões práticas que atingem o trabalhador e a organização. A autora pondera que, nesse caso, a vítima escolhida automaticamente é isolada do grupo sem explicações e é atingida por atitudes negativas que a ridicularizam e fazem com que passe a ser desacreditada diante dos colegas. Assim, o medo torna-se uma constante e diante desse fato, estabelece-se o que a autora chama de pacto da tolerância e do silêncio, fazendo com que o assédio perdure por longo tempo, levando à desestabilização da vítima. Assim, considera-se que a própria organização acaba sofrendo os reflexos da hostilidade dessas relações, pois essas acabam interferindo nos resultados dos diferentes processos de trabalho em diferentes espaços institucionais. Barreto; Heloani, Freitas já na introdução do livro (2011, p. XV), afirmam que “O ambiente de trabalho tem se transformado em arena insalubre e perigosa, o que torna digna de receber da Organização Mundial do Trabalho atenção especial a ser classificada como crescentemente violenta.” Os mesmos autores contribuem ainda mais para o entendimento a respeito do assédio moral quando o contextualizam da seguinte maneira: A violência expressa no ambiente de trabalho contemporâneo pode ser uma manifestação segmentada de uma violência maior que encontra os seus fundamentos numa sociedade que vê na economia a resposta a todos os seus problemas e em uma organização do trabalho cada vez mais sem compromissos com o ser humano, pois a sua fórmula mágica é enfocada na garantia de ganhos de produtividade crescentes no curto prazo (BARRETO; HELOANI; FREITAS, 2011,p. XVI). Segundo os mesmos autores, na década de 1980, Margaret Thatcher deu inicio as grandes modificações na esfera estatal na Inglaterra através das privatizações do setor público que foram seguidos por outros países desenvolvidos e em desenvolvimento, sistema este conhecido como neoliberalismo econômico, onde as empresas privadas ressurgiram no cenário na qualidade de principal ator socioeconômico, especialmente após a queda do muro de Berlim em 1989. Os autores afirmam que este episódio exerceu forte influência na sua legitimação social como representantes genuínos do sistema econômico criado, aquele baseado no livre mercado, que flexibiliza relações de trabalho e acelera sua precariedade. Tomando por base Bourdieu (1998), Graça Druck, no XIV Congresso Brasileiro de Sociologia realizado de 28 a 31 de Julho de 2009 no Rio de Janeiro, o Grupo de Trabalho Sindicato, Trabalho e Ações Coletivas salienta que: No contexto dos últimos 20 anos, a mundialização do capital sob hegemonia do capital financeiro e as políticas neoliberais se retroalimentaram, tornando a precarização um fenômeno central que se generaliza “por toda a parte”, como uma estratégia de domínio econômico, político e cultural, produto de uma vontade política e não de uma “fatalidade econômica” determinada pelo mercado. (BOURDIEU, 1998, apud Druk, 2009, p. 3) Por outro lado, Barreto; Heloani, Freitas (2011, p. 7), apontam que: As novas formas de gestão do trabalho têm tornado os trabalhadores vulneráveis ao desemprego, à queda de salários, à precariedade, a uma competição extremamente acirrada, à deterioração do clima no ambiente de trabalho, e todas essas condições portadoras de violência. Os sindicatos que continuaram funcionando nas bases industriais anteriores mostraram-se esclerosados e perderam força política diante da natureza revolucionária da informática e da economia cada vez mais globalizada e interdependente, diante das novas estruturas ocupacionais e especializações em local flexível e em fluxo, bem como diante da entrada de novos tipos de trabalhadores até então não representados (mulheres, jovens e imigrantes). A categoria de empregos que mais cresce nas sociedades atuais é a dos trabalhos temporários e em tempo parcial, o que fomenta a clima de ameaça ao fantasma do desemprego intermitente ou prolongado (BARRETO; HELOANI; FREITAS, 2011, p. 7). Em conclusão ao tópico, é pertinente mencionar com base na Revista do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Farmacêuticas, Plásticas e Similares de São Paulo e Região (2000) que no Brasil, as discussões sobre o assédio moral no trabalho só se intensificou no século XXI, embora esse fenômeno possa ser considerado velho, socialmente falando. A intensificação do assédio moral no mundo do trabalho é de responsabilidade principalmente das políticas internacionais, que levou ao fenômeno da globalização, que tem no neoliberalismo as suas diretrizes.168 3 TIPOS DE ASSÉDIO MORAL 168 Neoliberalismo é um termo que se refere a políticas liberais adotadas por governos nacionais desde fins do século XX, inspiradas no liberalismo econômico que prevê um Estado mínimo para as polícias sociais e um Estado Máximo para o capital e a obtenção de lucros. Silva (2007) em seu Trabalho de Conclusão de Curso na Universidade de Coimbra cita Hirigoyen (2002) que classifica os vários os tipos de assédio: • Assédio vertical descendente – resultado de relações hierárquicas, que significa o poder abusivo do superior com o subordinado, levando-o a fazer suas vontades. É aquele que ocorre com maior freqüência e do qual decorrem conseqüências mais graves, quer físicas, quer psicológicas, para o assediado. Isto porque é uma situação que se desenrola entre um subordinado e um superior hierárquico, o que aponta para uma relação de desigualdade. Daqui resulta que o subordinado se sinta isolado e tenha dificuldades em encontrar recursos para resistir ao assédio. • Assédio horizontal – por parte dos próprios colegas, principalmente quando se disputa um espaço ou uma promoção. Nesse caso, as conseqüências não se apresentam tão graves porque a relação entre o assediador e o assediado é igualitária. • Assédio misto – Inicia-se com o assédio de colega para colega (horizontal) e ocorre por longo tempo sem interferência do chefe, que embora saiba do fato, acaba se tornando cúmplice com a sua omissão. No caso do assédio misto quem se acha assediado, por culpa dos colegas ou do superior hierárquico, acaba por ser culpabilizado pelo grupo de trabalho por tudo o que não está bem. • Assédio ascendente – Pode ocorrer também quando de um ou mais subordinados que de alguma forma assediam seu superior. Esse tipo de assédio pode ser tão destruidor como qualquer um dos outros tipos. Isto porque o assediado não sabe como defender-se e as queixas que fizer não são encaradas seriamente. O processo de assédio moral, além de ser de diversos tipos, passa também por diferentes etapas que têm como ponto comum e de partida uma recusa de comunicação. Hirigoyen (1999), apud Silva (2007) define as seguintes etapas: • Recusa da comunicação direta: o conflito não é direto, mas sim através de atitudes de desqualificação. Nada é dito abertamente o que torna difícil a defesa da vítima; • Desqualificar: é uma agressão feita de forma subtil, normalmente através de linguagem não verbal ou mesmo com criticas dissimuladas utilizando brincadeiras, o que não permite facilmente replicar. A vítima, por vezes, tem dificuldades em compreender ou pensa estar a dar valor exagerado aos fatos; • Desacreditar: para tal bastam ligeiras insinuações, construir mal entendidos, falsos argumentos, difamações, calúnias, etc. Isto deixa a vítima fragilizada e com dificuldades em se defender, o que facilita o assédio; • Isolar: quebrar todas as alianças possíveis. Desde, a vítima não ser convidada para as reuniões formais e informais, ser posta num espaço físico isolado e só, privada de informação, ficar sem acessos privilegiados no seu computador, etc. Tudo isto a torna mais vulnerável e debilita a sua posição no seu local de trabalho; • Vexar: atribuir à vítima tarefas inúteis ou degradantes, objetivos não concretizáveis, solicitar tarefas a executar fora do horário normal, exigir a realização urgente de tarefas que depois de realizadas não são valorizadas sendo até desprezadas, etc; • Empurrar o outro para cometer uma falta: é uma maneira habilidosa de desqualificar o outro e de seguida o criticar e justificar a sua despromoção. Isto origina na vítima sentimentos negativos. Passa a ter uma má imagem de si própria deixando mesmo de acreditar nas suas capacidades. Por vezes, estas atitudes levam a vítima a revoltar-se e a ser agressiva o que o abusador aproveita para justificar o seu comportamento abusador; • Assédio sexual: é um passo para o assédio moral. Por norma, as mulheres são as mais atingidas e muitas vezes pelos seus superiores hierárquicos. É a necessidade de afirmar o seu poder e considerar a mulher como seu objeto. Existem diferentes categorias de assédio sexual: o assédio de gênero (tratar a mulher de forma diferenciada porque é mulher), o comportamento sedutor, a chantagem sexual, a atenção sexual não desejada, a imposição sexual e o ataque sexual. Em qualquer delas o abusador não admite a recusa da mulher e se tal acontecer parte para agressões e humilhações à mulher. (HIRIGOYEN, 1999, apud SILVA , 2007 p. 13 - 14) 4 AS CONSEQÜÊNCIAS DO ASSÉDIO MORAL Conforme mencionado no primeiro tópico, o neoliberalismo que se inicia na Inglaterra, trás conseqüências para os países desenvolvidos e também os que estão em processo de desenvolvimento. A precarização nas relações de trabalho, causada principalmente pela flexibilização da mão de obra, tem suas bases na chamada reestruturação produtiva. Para compreender a reestruturação produtiva é necessário desenvolver uma noção ampliada e moderna de classe trabalhadora, que luta para sobreviver às transformações que afetam a vida dos trabalhadores e suas relações sociais. As transformações afetam a totalidade da vida de homens e mulheres que vendem sua força de trabalho, incluindo “os trabalhadores improdutivos, aqueles cujas formas de trabalho são utilizadas como serviço, seja para uso publico ou para o capitalista, e que não se constituem como elemento produtivo no processo de valorização do capital” (ANTUNES, 2005, p. 60). Vale ressaltar ainda, como base em Antunes (2005) que: A destrutividade que caracteriza a lógica do capital e de seu processo de acumulação e valorização se expressa também quando descarta e torna supérflua uma parcela enorme da força humana mundial que trabalha, da qual cerca de 1 bilhão e 200 milhões encontram-se precarizados ou desempregados, segundo dados da OIT (ANTUNES, 2005, p. 28). A nova forma de acumulação capitalista e de redistribuição produtiva que se apresenta “flexibilizada” e tem reflexos, por exemplo, na organização da empresa (que se torna enxuta) traz conseqüências substanciais ao mundo do trabalho. Algumas delas são pontuadas por Ricardo Antunes (2005): Crescente redução do proletariado fabril; Incremento do novo proletariado e do subproletariado fabril e de serviços, mundialmente precarizados. São os “terceirizados” que não tem relação direta com as empresas que os contrata; Incremento dos assalariados médios e de serviços; Exclusão dos jovens e idosos do mercado de trabalho; Inclusão precoce e criminosa de crianças no mercado de trabalho; Aumento significativo do trabalho feminimo precarizado e desregulamentado e que atinge mais de 40% da força de trabalho em diversos países; O crescimento do “terceiro setor” que decorre da retração do mercado de trabalhado industrial e também da redução que começa a sofrer o setor de serviços, em decorrência do desemprego estrutural; A expansão do trabalho em domicilio que o trabalhador desenvolve para as empresas, mas em suas casas e mescla-se com o trabalho reprodutivo doméstico, fazendo aflorar novamente o trabalho feminino. A partir dessa compreensão, é possível abordar as conseqüências causadas pelo assédio moral, pois elas não ocorrem em um vazio, mas sim, a partir do contexto sinalizado e apresentado pelos autores que vem sendo trabalhado no corpo desse artigo. Tendo como pano de fundo a discussão acima, é pertinente citar Druck (2009), que esclarece que diante desse contexto novas e mais sofisticadas formas de “maus tratos” vão se multiplicando no mercado de trabalho através do constrangimento ou “assédio moral”. A mesma autora lembra que as pesquisas sobre assédio moral iniciaram-se somente em 2000, com o trabalho de Margarida Barreto, que investigou 2072 trabalhadores adoecidos em 97 empresas químicas e farmacêuticas em São Paulo. Deste total investigado, 42% afirmaram sofrer humilhações no trabalho; 90% das mulheres e 60% dos homens foram demitidos por motivos de doenças ou acidentes de trabalho. Margarida Barreto descobriu em outra pesquisa que de um total de 4.718 trabalhadores, 33% admitiram a ocorrência de assédio moral. (Aguiar, 2006, apud Druck, 2009, p. 21). É interessante salientar ainda com base em Druck, que este contexto de precarização tem como estratégia a dominação através da “gestão pelo medo” e é bastante propenso para disseminar a propagação dos “maus tratos” incentivados por uma perversidade que destrói o ambiente de trabalho incentivando condutas que desqualificam, desvalorizam e depreciam o “outro”, causando danos, sofrimentos e adoecimento estimulados muitas vezes pela concorrência entre os próprios colegas de trabalho. Esse comportamento pode acabar se tornando a política da empresa. A revista do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Farmacêuticas, Plásticas e Similares de São Paulo e Região, apresentou resultado da pesquisa realizada por Margarida Barreto no ano de 2000 conforme já citado acima. Os resultados da pesquisa evidenciaram que os principais danos e agravos à saúde, causado por humilhações são: Dificuldades emocionais: irritação constante, falta de confiança em si, cansaço exagerado, diminuição da capacidade para enfrentar o estresse. Pensamentos repetitivos. Alteração do sono: dificuldades para dormir, pesadelos, interrupções freqüentes do sono, insônia. Alteração da capacidade de concentrar-se e memorizar (amnésia psicógena, diminuição da capacidade de recordar os acontecimentos). Anulação dos pensamentos ou sentimentos que relembrem a tortura psicológica, como forma de se proteger e resistir. Anulação de atividades ou situações que possam recordar a tortura psicológica. Diminuição da capacidade de fazer novas amizades, Morte social: redução do afeto, sentimento de isolamento ou indiferença com respeito ao sofrimento alheio. Tristeza profunda. Interesse claramente diminuído em manter atividades consideradas importantes anteriormente. Sensação negativa do futuro. Vivência depressiva. Mudança de personalidade. Passa a praticar a violência moral. Sentimento de culpa. Pensamentos suicidas. Aumento de bebida alcoólica. Diminuição da libido. Agravamento de doenças pré-existentes. Dores de cabeça. (p. 12) A discussão realizada nos tópicos anteriores contribui com a compreensão da temática, evidenciando aspectos que não são desvendados em um primeiro momento. Sem a análise de conjuntura apresentada, não seria possível entender os meandros que envolvem esse complexo fenômeno que é o assédio moral. No entanto, a sociedade contemporânea já tem mecanismos que podem coibir essa prática realizada nas instituições em que se estabelecem relações de trabalho. Em nível internacional e nacional existem Leis específicas que serão apresentadas no próximo tópico. 5 O ASSÉDIO MORAL E A LEGISLAÇÃO VIGENTE Barreto; Heloani, Freitas (2011), alertam que a maior dificuldade à penalização do assédio moral é sua “invisibilidade”, ou seja, o alto grau de subjetividade que envolve esta questão, contudo apesar desta dificuldade alguns países já têm projetos de legislação específica para o assédio moral no trabalho. É o caso de Portugal, Itália, Suíça e Bélgica (União Européia – Resolução n.º 2.339/2001), da Noruega, do Chile e do Uruguai. No Uruguai existe um projeto de lei de 12 de abril de 2000 para atos que caracterizam o assédio moral, a saber: (...) constitui falta, no âmbito trabalhista da parte empregadora da iniciativa privada, todo ato de violência, injúria, ameaça, ou maus tratos, ou qualquer outra violação ao dever de respeito à personalidade física ou moral do trabalhador, sempre que tais atos tenham características graves, assim como todo ato de assédio sexual (p.80) Barreto; Heloani, Freitas (2011), informam que além dos países acima citados a Costa Rica, Estados Unidos e Alemanha já contam com leis específicas para este tipo de abuso. No Brasil alguns Estados e Municípios já têm projeto de lei e leis específicas para o assédio moral no trabalho, o Rio de Janeiro foi o primeiro Estado a criar uma lei específica para este delito a Lei n.º 3.921. Na esfera Municipal as cidades de Iracenópolis, Americana, Campinas Guarulhos, São Carlos, Cascavel, Maringá e outros. Segundo os autores, no Brasil (esfera federal) ainda não têm legislação específica sobre assédio moral, sete projetos de lei tramitam na Câmara Federal sobre assédio moral e/ou coação moral, contudo sofrem “pressões políticas” para que esses projetos sigam adiante, pois a iniciativa privada teme pagar indenizações milionárias a seus empregados face a inexperiência do corpo gerencial para tratar deste assunto. É possível constatar que no Brasil o assédio moral no trabalho ainda não conta com uma legislação efetiva, tendo em vista que no âmbito municipal e estadual existem iniciativas, mas se contrapõem ao fato de não ter lei federal que respalde essas iniciativas, sendo que nesse caso, ainda se discute a inconstitucionalidade dessas leis que foram criadas. Além disso, existem relações de forças pelo poder exercido pelas grandes empresas que interferem no sentido de não permitirem a aprovação dessas leis federais. É possível considerar então, que é necessário avançar na luta pela direito dos trabalhadores que na relação de forças não conta com uma lei federal que de fato sustente a sua causa. 6 PREVENÇÃO E COMBATE AO ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO Barreto; Heloani, Freitas (2011) alertam que o combate ao assédio moral no trabalho parte do principio ao respeito à dignidade da pessoa humana. As organizações devem estimular a criação de uma cultura de respeito ao outro associado, ao fortalecimento da cooperação, da igualdade de oportunidades e à aplicação de uma política de igualdade de gênero e raça que elimine as distorções e os atos de intolerância. (p. 109). Segundo as autoras, outras ações podem ser criadas como prevenção para combater o assédio moral no trabalho: [...] a constituição de um Comitê Multidisciplinar formado por profissionais que gozem de credibilidade junto às pessoas da organização (médicos, psicólogos, assistentes sociais, dirigentes sindicais e sindicalistas); a disponibilidade de ferramentas para denúncias e apuração, por exemplo, as caixas de sugestões, as plataformas informatizadas que propiciem denúncias anônimas e a promoção de workshops para todos os funcionários e gestores de diversas áreas e não apenas de recursos humanos; a ampla divulgação da mensagem do presidente ou chefe principal da organização, apoiando tais medidas; a divulgação de ações e de casos exemplares; a utilização de metodologias lúdicas, como teatro para análise e popularização do tema no ambiente de trabalho; a criação de ouvidoria ou existência de ombudsman para avaliar permanentemente as ações do referido comitê multidisciplinar, com membros rotativos e eleitos, de forma que todas as unidades da organização possam participar diretamente; uso de cartilhas e da intranet para mensagens explicativas sobre o tema e as formas de procedimento, caso uma pessoa seja vítima ou testemunhe a ocorrência do fenômeno. (p.111) E por fim, as autoras afirmam: É preciso ter-se claro que os códigos de conduta e os códigos de ética não isentam a empresa de suas responsabilidades em casos de ocorrências de assédio moral, especialmente quando outras medidas não foram tomadas e/ou a organização foi conivente ou negligente. Por isso, reafirmamos que quanto maior o compromisso de todos, mais a organização poderá se orgulhar de ter feito o que é moralmente correto, economicamente mais barato e legalmente mais justo. E, finalmente, advertimos que a escuta da vítima é fundamental, pois humaniza, dá voz ao silêncio e permite o melhor entendimento do processo gerador do sofrimento psíquico (p.112). Alem disso, com base em Hirigoyen (2011) é possível afirmar que o assédio moral é um péssimo ’negocio’ para as empresas, pois não se constitui em um método eficiente na medida em que causa perda de produtividade. A autora considera que para que as pessoas trabalhem bem e produzam bastante, precisam ter boas condições e ambiente de trabalho saudável. Lembra que para se produzir bem é preciso estar bem. Ressalta ainda que as pessoas precisam ser respeitadas como seres humanos. Lembra também que a vida gira em torno de um sistema que perdeu o sentido. Segundo Hirigoyen, esse sistema desestrutura as pessoas deixando-as totalmente desmotivadas e depois reclama que não são suficientemente eficientes, que não produzem de forma satisfatória. Conclui então, que seria necessário, melhorar sempre as condições de trabalho, fazer com que as pessoas tenham vontade de trabalhar, reconhecendo e respeitando seus esforços, o que certamente, levaria a empresa a obter melhores resultados. No entanto, a autora alerta para a clareza que todos devem ter: O assédio moral existe em toda parte, em todos os países. É um problema de mundialização, em todos os países, e não se pode dizer que está ligado a tal ou tal cultura. Assim, devemos reagir no plano mundial, reagir para que haja redes de comunicação entre os diferentes países para implantar métodos que visem a prevenção e medidas também, para ajudar estas pessoas que sofrem, a encontrar soluções. Devemos rejeitar a retórica daqueles que dizem que "não é grave" que, "é só uma pessoa ou outra", que "esses indivíduos não contam". Finalmente, creio ser essencial afirmar que o assédio moral é um problema da nossa sociedade atual. Incentivo todos vocês a reagir, a não deixar que o assédio moral se instale nos ambientes de trabalho. Devemos lutar para implantar e implementar políticas de prevenção aqui e em outros países. (Hirigoyen, 2011) Antes das considerações finais, é importante ressaltar que a citação acima sugere que o tema possibilita diversas abordagens que poderão ser realizadas em momentos posteriores. Contudo, para efeito desse artigo, apresentam-se as considerações finais com base na pesquisa realizada. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em conclusão, é possível afirmar que o assédio moral no trabalho tem sido uma afronta à dignidade da pessoa humana nas organizações por toda parte do mundo. Muitos adoecem, ficam oprimidos e até podem perder a própria vida por terem sido assediados moralmente no ambiente de trabalho. Contudo, esta situação opressora vem mudando gradativamente à medida que as pessoas começam a compreender e entender melhor sobre este assunto. Nos dias atuais está se falando mais sobre o assédio moral no trabalho, embora este processo de mudança venha encontrando barreiras, pois as grandes organizações e o próprio governo não têm interesse que a sociedade em geral saiba que assediar moralmente no trabalho é crime passível de indenização. Conforme o texto demonstrou, em alguns países, por conta de indenizações milionárias, as empresas estão se reestruturando e criando normas específicas de prevenção e combate ao assédio moral. No Brasil, a discussão vem sendo realizada ainda de forma tímida, talvez por isso, constantemente são divulgados casos de trabalhadores que sofrem assédio moral. No entanto, compreende-se que o enfrentamento dessa questão passa por processo que não pode retroceder e que deverá ser tratado com seriedade por empresários, governos e trabalhadores. As iniciativas em âmbito municipal e estadual que vêm sendo implementadas são provas de que a sociedade em diferentes contextos busca se mobilizar para conquistar direitos. Essas iniciativas conseqüentemente se constituem em mecanismos de pressão para que o Governo Federal e o Congresso também se mobilizem e venham e criar leis especificas para atender esta demanda. REFERÊNCIAS ANTUNES, Ricardo L. C. O Caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boimtempo, 2005. BARRETO, M. Uma jornada de humilhações. São Paulo: Fapesp; PUC, 2000. BARRETO; Margarida: HELOANE, Roberto; FREITAS, Maria Ester de. Assédio Moral no Trabalho. 3. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2011 (coleção e debates em Administração). HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio Moral no Trabalho. Participação da Dra. MarieFrance Hirigoyen. Disponível em: http://www.assediomoral.org/spip.php?article214. Acesso em 25/07/2011. SINDICATO DOS TRABALHADORES NAS INDÚSTRIAS QUÍMICAS, FARMACÊUTICAS, PLÁSTICAS E SIMILARES DE SÃO PAULO E REGIÃO. Assédio Moral: violência psicológica que põe em risco sua vida. Coleção Saúde do Trabalhador n. 6. São Paulo – 2000. DRUCK, Graça. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado de 28 a 31 de Julho de 2009, Rio de Janeiro – RJ. Grupo de Trabalho Sindicato, Trabalho e Ações Coletivas. SILVA, Paula Cristina Carvalho, Nº 20060952, Assédio Moral no Trabalho. Universidade de Coimbra, Faculdade de Economia, Dezembro 2007. Disponível em http://www4.fe.uc.pt/fontes/trabalhos/2007003.pdf Acesso em 22/07/2011. O CONSENTIMENTO INFORMADO NOS TRATAMENTOS DE DROGADIÇÃO Lígia Martins de Toledo Leme169 Luciana Mendes Pereira170 RESUMO Aborda o consentimento informado nos tratamentos de saúde, em especial, os psiquiátricos os quais se enquadram os dependentes químicos, bem como seus aspectos constitucionais ligados aos direitos fundamentais (vida, dignidade da pessoa humana, saúde, liberdade, igualdade, direitos da personalidade e autodeterminação). Discorre sobre a autonomia da vontade dos viciados em drogas e as exceções ao consentimento informado, seguida da apresentação histórica e dos aspectos pertinentes às modalidades de internamentos existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Suscita discussões acerca dos procedimentos de interdição civil e internamentos involuntários e compulsórios, os quais usados de maneira indiscriminada seguem na “contramão” das mudanças que vêm ocorrendo desde a década de 1970 que redirecionam o modelo assistencial em saúde mental no Brasil, popularmente conhecida como desmanicomização. PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais. Consentimento informado. Internamentos de drogadição. Autonomia da vontade. ABSTRACT Talks about informed consent in health care, especially the psychiatric where they fit the drug addiction treatments and internments, as well as its constitutional aspects related to fundamental rights (life, human dignity, health, freedom, equality, rights of personality and self-determination). Furthermore, it is discoursed on freedom of choice of drug addicts and the exceptions to informed consent, followed by the presentation of historical and relevant aspects of treatments and internments allowed in the Brazilian legal system. The objective was to raise discussion about the trivialization of the involuntary and compulsory internments and civil interdiction which used indiscriminately goes against the changes that have occurred since the 70’ that redirects the mental health care model in Brazil, commonly known as 169 Advogada, graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Constitucional da Universidade Estadual de Londrina. 170 Advogada, docente na UEL e na UniFil, mestre em Direito Negocial (UEL). Especialista em Direito Empresarial e Bioética (UEL), doutoranda em Estudos da Linguagem (UEL). deinstitutionalization. KEYWORDS: Fundamental rights. Informed consent. Internments to drug addiction. Selfdetermination. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 O CONSENTIMENTO INFORMADO NOS TRATAMENTOS DE SAÚDE (PSIQUIÁTRICOS) E SEUS ASPECTOS CONSTITUCIONAIS. 2.1 A autonomia da vontade do dependente químico e as exceções ao consentimento informado. 3 INTERNAMENTOS DE DROGADIÇÃO – BREVE HISTÓRICO. 3.1 Internamento Involuntário, Compulsório e Voluntário de Drogadição. 4 DA BANALIZAÇÃO DOS INTERNAMENTOS NÃO CONSENTIDOS E DA INTERDIÇÃO CIVIL. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO Este artigo científico tem como tema a análise do Consentimento Informado nos Tratamentos de Drogadição. Um dos maiores desafios da atualidade é a difícil posição dos médicos de compatibilizar o tratamento adequado com a autonomia da vontade do paciente, principalmente nos tratamentos de cunho psiquiátrico. A dependência química tem sido cada vez mais discutida por diversos setores da sociedade. A preocupação com o tema não se restringe somente ao aspecto médico, posto se tratar de uma doença, nem à discussão em torno dos tipos de tratamentos, visto que se incluem os internamentos involuntários e compulsórios, mas também envolve aspectos criminológicos e civis, já que é possível, por meio de determinação judicial, a internação e a interdição civil dos viciados em tóxicos, justificando-se, portanto, o presente artigo científico e a opção por tal corpus. No Brasil, consideráveis avanços têm ocorrido desde a década de 70, do século XX, quando se deu início à “Reforma Psiquiátrica”. Recentemente editou-se a Lei 10.216/01 que dispõe sobre a proteção e os direitos dos doentes mentais, inclusive do dependente químico que é tratado como tal. Em 2002 com o advento do Novo Código Civil, que entrou em vigência em 2003, os viciados em tóxicos foram incluídos no rol dos relativamente incapazes, sujeitos à interdição civil. Em 2006, outro avanço na legislação brasileira se deu com a publicação da Lei de Drogas 11.343 que passou a tratar o toxicômano como um doente e não mais como um criminoso equiparado ao traficante de drogas. Destarte, tendo em vista a enorme evolução da área médica no aspecto de se respeitar os direitos individuais, bem como o chamado “Dever de Informação”, sobrepõe-se a noção de que cada vez mais a autonomia e a autodeterminação do paciente sejam respeitadas. Assim, apresenta-se um estudo sobre o consentimento informado nos tratamentos de saúde, uma vez que não há como proceder um tratamento sem que haja intervenção no corpo ou na mente do paciente e segundo a melhor doutrina, para que tal intervenção aconteça de forma legítima torna-se indispensável o consentimento do paciente. Outra vertente a ser enfocada refere-se aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, consubstanciados no estudo do Direito Constitucional, o qual prima pela vida como bem supremo e tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, fato que deve se fazer respeitar diante do conflito existente entre médicos e pacientes, em especial os toxicomaníacos, que na maioria das vezes relutam em aceitar o tratamento ambulatorial, voluntário, quanto mais o hospitalar. Outrossim, estudos e relatos efetuados em monografia acadêmica171, precedente a este artigo, concluem que não há alternativa para o restabelecimento da sanidade mental e da vida do dependente químico que não seja a submissão voluntária e consciente a um tratamento adequado, obviamente para parar de usar a droga, além de mudanças de hábitos. 2 OS ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO CONSENTIMENTO INFORMADO NOS TRATAMENTOS DE SAÚDE (PSIQUIÁTRICOS) Primeiramente importante consignar ser impossível tratar do tema consentimento informado sem antes situá-lo na órbita constitucional. Tem-se além do direito fundamental a vida, o direito à saúde, à liberdade, à igualdade entre os demais descritos no artigo 5º, caput, da Constituição Federal172, bem como todos os outros tratados na Carta Maior. 171 LEME. Lígia Martins de Toledo Leme. O internamento compulsório em razão da drogadição. Trabalho de Conclusão do Curso de Direito. Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2009. 172 “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...]”. Assim, não se pode olvidar que mesmo o drogadito (interditado ou não) é titular de direitos e deve ter sua autonomia respeitada, uma vez que possui personalidade civil173 e, aparte de ter ou não capacidade plena (capacidade de direito + capacidade de fato), o certo é que é sujeito de direitos, sendo que os primeiros que se incluem são os de ordem constitucional. Desta forma, nas palavras de Roberto (2005, p. 25) “[...] não se pode iniciar qualquer procedimento ou praticar qualquer conduta em seu paciente, se este não houver concordado”. Sabe-se, portanto, que para que um tratamento médico se torne legítimo é imprescindível que se compatibilize a intervenção médica com o consentimento informado do paciente. Sendo a vida um bem supremo, objeto de todo o interesse e proteção do Estado, nenhum outro direito subsiste sem ela e conforme Adriano De Cupis “o direito á vida é essencial (...). É um direito inato, adquirido no nascimento, portanto, intransmissível, irrenunciável e indisponível” (apud ROBERTO, 2005, p. 26). A doutrina majoritária ainda divide o direito a vida em direito de preservação da vida, ou seja, a permanecer vivo e direito à existência digna, quanto à subsistência (MORAES, 2008). Após exposição sobre o direito a vida passa-se ao estudo do fundamento da dignidade da pessoa humana, viga-mestra dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal (Art. 1º, III), sendo considerado o principal direito constitucionalmente garantido do qual todos os outros advêm (ROBERTO, 2005). Segundo os ensinamentos de André Gonçalo Dias Pereira (apud ROBERTO, 2005, p. 40): A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral, que lhe é inerente e pressupõe o respeito por parte das demais pessoas, consagrado pela manifestação da maioria dos direitos da personalidade como a própria vida, a intimidade, a honra, a imagem. O fundamento da dignidade da pessoa humana possui duas acepções na Constituição Federal: um direito individual protetivo (com relação ao próprio Estado e aos demais indivíduos) e um dever fundamental de tratamento igualitário dos semelhantes (baseado no direito romano: viver honestamente, não prejudicar ninguém e dar a cada um o que é necessário). Deste modo, importa dizer que “[...] Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado (...). Assim, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser avaliada, sob pena de inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa humana (...)” (SANTOS, 2001). 173 Artigos 1º e 2º, do Código Civil, os quais ditam respectivamente “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” e “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; (...)”. Vale dizer que a expressão ora em análise abarca diversos outros bens jurídicos protegidos objetos deste trabalho, tais quais a saúde, a liberdade e a autodeterminação para o tratamento, bem como a integridade física e moral do paciente (ROBERTO, 2005). Importante registrar as palavras de Luciana Mendes Pereira Roberto (2005, p. 42): A justificação primordial do consentimento informado encontra-se nos contornos do fundamento da dignidade da pessoa humana, que, por sua vez, necessita de vida para ocorrer. Todos os outros direitos são consequencias do respeito á dignidade: liberdade, igualdade, saúde integridade pessoal, pois é o respeito a estes direitos que se consolida uma vida digna. Ad argumentandum, tão importante quanto a vida e a dignidade da pessoa humana, estão a saúde, a liberdade e a igualdade, elementos fundamentais para a análise do consentimento informado, uma vez que o que se busca primeiramente é a saúde, física e psíquica, abalada pelo uso de substância entorpecente, aliada a norma programática (SILVA, 2004) contida na Constituição Federal, a qual deve garantir por parte do Estado os tratamentos médicos adequados. O Art. 196 da CF determina que: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. Desta forma, “[...] é por meio de políticas sociais e econômicas que o Estado trabalhará preventiva e diretamente (...), com o intuito de reduzir o risco das doenças e garantir o acesso à saúde (promoção, proteção e recuperação) de forma universal e com igualdade” (ROBERTO, 2005, p. 54). Joyceane Bezerra de Menezes (2011) afirma que: A saúde a que se refere a Constituição Federal de 1988, corresponde àquela definida pela Organização Mundial de Saúde como ‘um estado completo de bem estar físico, mental e social, o qual envolve a participação, a prevenção e a execução da medicina individual e social.’ Vê-se, pois, que a saúde, a vida e a dignidade da pessoa humana são conceitos de tal modo intrincados que uma vida sem saúde, em pouco ou nada é capaz de alcançar aquela dignidade. Outrossim, a liberdade vem consubstanciada no consentir ao tratamento de saúde, ou seja, na autodeterminação de se submeter as orientações médicas, com exceção das medidas compulsórias impostas pelo Estado, nos casos que envolvam perigo a coletividade. Assim, diante do direito a liberdade e, neste caso, a liberdade de consentir, o profissional da saúde tem o dever de respeitar a recusa do dependente em se submeter a determinado procedimento. Por fim, com relação à igualdade, revelada pelo principio da isonomia proposto na Constituição Federal, segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, cabe apenas constar que reflete no direito a autodeterminação e na troca de informações que deve existir entre o profissional da área medica e o paciente, além do acesso igualitário às ações e serviços, previstos no Título da Ordem Social. Assim, vê-se que: A consagração do consentimento informado está permeada, no ordenamento jurídico brasileiro, em diferentes fontes, seja na Constituição Federal vigente, que protege o direito à vida, à dignidade da pessoa humana, o direito á liberdade e á igualdade, o direito á saúde, os direitos de personalidade, a autodeterminação das pessoas (ROBERTO, 2005, p. 73). Tendo em vista que não há como proceder um tratamento sem que haja intervenção no corpo ou na mente do paciente o Código de Ética Médica (CEM) prevê o dever de informação no relacionamento entre médico e paciente e, o dever de respeitar o direito do paciente e seu representante legal de decidirem livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo iminente risco de morte174. Diversos são os dispositivos que permeiam a faculdade de informação e o livre convencimento do paciente no CEM. O capítulo IV intitulado ‘Direitos Humanos’ prevê em seu Art. 22 que é vedado ao médico “[...] deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.”. Já o artigo 28 do CEM veda “[...] desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em qualquer instituição na qual esteja recolhido, independentemente da própria vontade”. Deste modo, pode-se conceituar consentimento como sendo anuência, aquiescência, permissão, tolerância e sendo assim, tem-se que “[...] o consentimento do paciente para o tratamento de saúde torna lícita ou justificada a conduta do profissional que o executa, pois o tratamento pressupõe uma invasão à integridade física e/ou moral e à saúde do paciente” (ROBERTO, 2005, p. 83), ou seja, trata-se de uma manifestação de vontade. Maria Helena Diniz defende que o consentimento do paciente, depois da devida informação, advém do direito a autodeterminação do sujeito com relação a sua vida e saúde que se estende, inclusive, ao dissentimento e aduz ainda: O paciente tem direito de opor-se a uma terapia, de optar por tratamento mais adequado ou menos rigoroso, de aceitar ou não uma intervenção cirúrgica, de mudar ou não de médico ou hospital etc. O objetivo do principio do consentimento 174 Conforme disposição do artigo 31, do Código de Ética Médica. informado é aumentar, como diz Mark Hall, a autonomia pessoal das decisões que afetam o bem-estar físico e psíquico (apud ROBERTO, 2005, p. 83). Cumpre constar ainda que o consentimento informado possui três pressupostos de admissibilidade a serem observados. O primeiro requisito para que o consentimento seja válido é ser o consenciente capaz e aqui se incluem as disposições dos Arts. 3º, 4º e 5º, do Código Civil. Deve-se observar, em contrapartida ao que defende o ordenamento jurídico brasileiro, que tolhe por completo os relativamente e os absolutamente incapazes, a Declaração de Lisboa sobre os Direitos do Paciente (PORTUGAL, 2010) em que se resguarda o direito do paciente, inclusive os legalmente incapazes, de serem envolvidos na discussão acerca do melhor tratamento a ser realizado tanto mais seja permitida sua capacidade de entender. Tal fato parece poder ser diretamente aplicado aos casos de drogadição. O segundo requisito para que o consentimento seja válido é o da informação, dever, em absoluto, do médico que é o detentor dos conhecimentos específicos que devem ser transmitidos, de forma clara e fundamentada, acerca da intervenção física e, frise-se, mental, assim como os riscos e prognósticos. Segundo a melhor doutrina é com base nas informações que a autodeterminação se alicerçará para fins de submissão ou não ao tratamento indicado (ROBERTO, 2005)175. De acordo com Neri Tadeu Câmara Souza (2010): O dever de informação é uma das regras primordiais da atividade médica. O médico está proibido de omitir do paciente as condições em que vai se estabelecer o seu tratamento. Há que se contar com o consentimento do paciente para a realização dos procedimentos a serem tomados, sempre, informando convenientemente as condições em que serão realizados. Por derradeiro, o terceiro requisito é o próprio consentimento do paciente que deverá ser expresso, de preferência na forma escrita, a fim de comprovar documentalmente o dever cumprido do médico de informar acerca do diagnóstico e prognóstico. Passa-se a seguir a discorrer acerca da autonomia da vontade do dependente químico, a qual deve ser considerada em todos os seus termos, mesmo após o devido processo legal de interdição, uma vez que conforme já sustentado, em havendo um mínimo de juízo crítico, este deve ser respeitado como expressão da liberdade e dignidade da pessoa (MENEZES, 2011). 175 Não se discutirá no presente trabalho acerca de como a informação deve ser repassada ao paciente, ou seja, a maneira apropriada segundo seu entendimento e estado físico e psicológico. 2.1 A Autonomia da Vontade do Dependente Químico e as Exceções ao Consentimento Informado Não se discute a importância da autonomia da vontade na conduta do paciente dependente químico. Segundo Neri Tadeu Câmara Souza (2010) “[...] impõe-se que sejam respeitados a crença, a vontade e os valores morais de um paciente” e acrescenta mais que “as decisões do paciente têm de vir acompanhadas de um suficiente grau de reflexão”. Antonieta Barbosa (2010, p. 275) analisa que “[...] o reconhecimento pela sociedade dos direitos fundamentais das pessoas está repercutindo nas relações entre os médicos e os pacientes, levando a uma maior emancipação do paciente na escolha do tratamento”. Na mesma seara, Joyceane Bezerra de Menezes (2011) complementa que: [...] no direito brasileiro, a teoria geral da liberdade de ação sustenta a autonomia individual do sujeito que deve ser mantida, exceto em casos ultra-excepcionais, de absoluta falta de discernimento. E, mesmo nestas hipóteses, a restrição à capacidade civil não deve ser integral. Na medida do possível, há que se resguardar ao dependente, a possibilidade de praticar os atos ainda compatíveis com o seu discernimento. Isto porque, mesmo acometido de algum transtorno ou dependência, o individuo persevera no direito ao desenvolvimento de sua personalidade, consectário da dignidade da pessoa humana. Ronald Dworkin sustenta que: [...] quando as escolhas de um paciente com demência moderada forem razoavelmente estáveis e coerentes com o caráter geral de sua vida anterior e, grosso modo, incoerentes e autodestrutivas somente na medida em que também são as escolhas das pessoas plenamente competentes, pode-se considerar que ela ainda detém o controle de sua vida e que, por esse motivo, tem direito á autonomia (apud MENEZES, 2011). Assim, o diagnóstico da dependência química não pode por si só ser limitador da autodeterminação do drogadito, “[...] exceto se confirmado o comprometimento do juízo crítico em tempo ulterior ao efeito imediato da droga, mediante o devido processo legal” (MENEZES, 2011), para os casos de interdição civil e internamento compulsório. Ocorre que, em razão das drogas, a manifestação volitiva do dependente químico pode se encontrar mais ou menos comprometida. Como é sabido o dever profissional do médico encontra exceção na autonomia da vontade do paciente quando diante de iminente perigo de morte, ou seja, em situações extremas de risco de morte para si e para terceiros. Nos casos dos dependentes químicos, quando estão com a chamada síndrome da abstinência176 podem se tornar excessivamente agressivos, com risco, inclusive, de convulsão e, para livrá-los da situação de risco em que se encontram faz-se necessário, o internamento, mesmo que venham a recair nas drogas novamente. Segundo Antonieta Barbosa (2010, p. 273): O grau de risco de algum prejuízo ao paciente determinará ate onde deve ir a intervenção do médico, sem um prévio consentimento por parte deste. Mas, o risco de vida, sem dúvida, é mandatório em impor a obrigatoriedade de agir do médico, mesmo sem o consentimento do paciente, até, conforme o caso, com sua oposição. De acordo com Luciana Mendes Pereira Roberto (2005, p. 150) a doença mental é um distúrbio psíquico originada de processo patológico cerebral ou por desvio de conduta, podendo ser congênita ou adquirida (dependência química) e defende juntamente com André Gonçalo Dias Pereira que “[...] o internamento compulsivo de doentes afectados por anomalia psíquica configura claramente uma excepção à doutrina do consentimento informado” (apud ROBERTO, 2005, p. 150). Tal prerrogativa deve ser usada tão somente nos casos de o paciente dependente químico apresentar perigo para si e para terceiros e somente será legitimada tal ação diante de iminente perigo de vida, visando resguardar a coletividade. Vê-se, conforme entendimento de Menezes (2011) que diante das ‘exceções’ ao consentimento informado, a atuação profissional do médico deve prevalecer, estando o médico amparado a aplicar tratamento à revelia daquele que se encontra com a sua cognição comprometida, tudo pela preservação da vida e saúde. 3 INTERNAMENTOS DE DROGADIÇÃO – BREVE HISTÓRICO Antes de abordar o internamento de drogadição é preciso que se trace um breve relato da história recente, acerca dos tratamentos direcionados aos doentes mentais e a evolução ocorrida no Brasil até os dias atuais. Desde os tempos mais remotos da história da humanidade, o isolamento do doente 176 Entende-se como tal o "conjunto de modificações orgânicas que se dão em razão da suspensão brusca do consumo de droga geradora de dependência física e psíquica, como o álcool, a heroína, o ópio, a morfina, etc" (DINIZ, 2005). Caracteriza--se em geral por alucinações e crises convulsivas. A síndrome de abstinência apresenta sintomas como disforia, insônia, ansiedade, irritabilidade, náusea, agitação, taquicardia e hipertensão, tais sintomas podem se agravar ou serem mais brandos de acordo com a substancia usada. mental era tido como necessário, posto que essa fração da população era considerada perigosa e até mesmo demoníaca; outrossim, o isolamento era caracterizado como “[...] um ato terapêutico (tratamento moral e cura), epistemológico (ato de conhecimento) e social (louco perigoso, sujeito irracional)” (apud MEDEIROS, 2007, p. 84). Foi em 1804 com o advento do Código Civil de Napoleão Bonaparte (França), o primeiro que: [...] ao tratar da questão da proteção aos bens dos incapazes através do instituto da interdição, inovou ao prever que a decretação da incapacidade, com a consequente privação da liberdade do interditando, só se efetivaria após um julgamento, em que deveria ser garantido o interrogatório do suposto incapaz. Estabelece-se aí o direito ao contraditório, isto é, o direito de defesa em relação à decretação unilateral da incapacidade atribuída (MEDEIROS, 2007, p. 85). O século XIX na França marcou a evolução dos estudos psiquiátricos, mas foi a psiquiatria alemã com a grande colaboração de Freud177 que revolucionou não só o entendimento sobre doença mental, bem como sobre o tratamento para tal (MEDEIROS, 2007). Nas palavras de Maria Bernadete (2007, p. 86) buscava-se, naquela época uma resposta fisiológica para as doenças mentais, e não se consideravam fatores sociais ou pessoais. Atualmente a definição de dependência abrange não só a compulsão pela droga, como também os aspectos sociais, ambiente familiar, relacionamento social entre outros. No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, em 1852 foi criado o primeiro hospital público psiquiátrico, denominado D. Pedro II, inaugurando-se a política oficial de tutela e segregação do doente mental no país (MEDEIROS, 2007). Não demorou muito tempo para que começassem a aparecer críticas acerca da forma como os doentes mentais eram tratados nesses tipos de estabelecimentos, tendo Machado de Assis, em 1882, escrito o conto “O Alienista”, denunciando a situação em que estas pessoas viviam conforme se lê abaixo: A vereança da Itaguahy, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco curioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta na rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à câmara para agasalhar e tratar, no edifício que ia construir, todos os loucos de Itaguahy e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a câmara lhe daria quando a família do enfermo não o pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda vila, e absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma um sintoma de demência e não faltou quem insinuasse à própria mulher do médico (apud MEDEIROS, 2007, p. 87). A segregação dos doentes mentais era tida como uma forma de proteger a sociedade 177 Sigmund Freud (1856-1939) é considerado o pai da psicanálise. dos comportamentos inadequados destes indivíduos, priorizando-se as instituições em detrimento da pessoa (MENEZES, 2011). Ainda nos dias atuais a marca da exclusão e do preconceito continua a permear as relações da sociedade e destes enfermos. No caso dos dependentes químicos esse preconceito se agrava, pois este não é visto como um doente, mas como um ‘vagabundo’, ‘sem vergonha’, ou seja, marginalizado. O Brasil do século XX, mais precisamente meados dos anos 70, impulsionado pelo que ocorria no mundo nos movimentos em defesa da liberdade e garantia dos direitos fundamentais178, começou a preocupar-se com a situação dos doentes mentais, fato que levou a discussão do que foi chamado de “Reforma Psiquiátrica” (MEDEIROS, 2007). Segundo a Revista Época (2009), nos últimos 20 anos, cerca de 70% dos leitos psiquiátricos foram fechados. Passou a surgir no país a idéia de “comunidade terapêutica”, de forma que a eletrochoqueterapia179 e o isolamento até então indiscriminadamente utilizados, passaram a dar lugar a atividades em grupo, tratamento com medicamentos, a fim de fortalecer os aspectos sadios dos indivíduos. A idéia do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), pela Reforma Psiquiátrica, era a desativação progressiva dos hospitais psiquiátricos e manicômios judiciais (MEDEIROS, 2007). Assim, passou-se a repudiar os tratamentos asilares e em hospitais de custódia e de acordo com Menezes (2011) o tratamento em regime de internação passou a ser estruturado de forma a oferecer assistência integral ao doente mental e dependente químico acrescentando ainda: [...] não apenas os serviços médico, mas também serviços de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros. Isto porque o fim primordial da internação, mesmo enquanto medida in extremis, será a reabilitação e reinserção do paciente ao seu meio de convívio. Em 1987 foi criado em São Paulo o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do país; e, em 1989, foi apresentado à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei intitulado “Reforma Psiquiátrica” sob o n. 3.657, do deputado Paulo Delgado, em que segundo Gondin: Ao lado do Projeto de Lei n. 3.657/89 que previa a extinção gradativa dos manicômios e a regulamentação dos direitos do doente mental em relação a seu 178 Em 1948 a Assembléia Geral da ONU proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (BRASIL, 2009). 179 Tal procedimento foi amplamente denunciado pelo filme brasileiro, “Bicho de Sete Cabeças”, 2001, baseado no livro autobiográfico Canto dos Malditos, de Austregesilo Carrano Bueno que conta a história de um jovem que é internado em um hospital psiquiátrico quando os pais o descobrem com um cigarro de maconha. tratamento, o Brasil efetivava a sua reforma psiquiátrica no campo dos saberes, da cultura e no jurídico (apud MEDEIROS, 2007, p. 92). Logo em 1990 o Brasil assinou a Declaração de Caracas, marco dos processos na atenção à saúde mental nas Américas, que veio acompanhada em 1991 pela aprovação dos “Princípios para a proteção das pessoas atingidas por doenças mentais” (REVISTA ÉPOCA, 2009). Somente em 2001 foi aprovada a Lei 10.216, a mais longa tramitação de um projeto no Congresso, a qual dita os serviços de saúde pública para os usuários de drogas, elencados na área da saúde mental, cuja ementa discorre sobre “a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. Cumpre assinalar a importante mudança ocorrida com o advento do Código Civil em 2002 em que passou a relacionar os viciados em tóxicos no rol dos relativamente incapazes180 em contraposição ao Código Civil de 1916 que os incluía no rol dos absolutamente incapazes, sob a terminação “loucos de todo o gênero” (MENEZES, 2011). Em concordância com o que escreveu Raul de Mello Franco Junior (2009), famílias desesperadas estão batendo às portas do Poder Judiciário, relatando que já perderam tudo, a saúde, a paz, o patrimônio e, por estarem prestes a perder a própria vida e a vida de um ente querido, necessitam de uma intervenção do poder público. As opiniões acerca da melhor forma de tratamento, ainda são divergentes, porém claro está que alguma intervenção terapêutica é necessária. Diversas atividades de atenção e reinserção social do drogadito e seus familiares estão, pouco a pouco, sendo disponibilizadas pelo Poder Público. A Lei 11.343/06 exige a observância de princípios legais, como o respeito ao dependente de drogas ou álcool, definição de projeto terapêutico individualizado e o atendimento ao doente e a seus familiares por equipes multiprofissionais (FRANCO JUNIOR, 2009). A internação vem sendo comumente usada ante a gravidade do grau de dependência do paciente e dos transtornos que ele apresenta. O tratamento deve ser bem orientado, na seara doméstica e ambulatorial, para que se torne maneira eficaz de recuperar o indivíduo. Embora a psicologia ainda indique o internamento voluntário como melhor alternativa e sucesso na recuperação, é fato que a internação compulsória e involuntária é invocada pela família como última saída à crise gerada no seio familiar pela presença das drogas. 180 Conforme artigo 4º, inciso II, do Código Civil. Mesmo que se diga que tratamentos involuntários e compulsórios não geram resultados positivos, muitas vezes estes se tornam a última chance de um drogado e de seus familiares, sendo inclusive medida imprescindível para livrá-lo da situação de emergência, ou seja, do risco em que se encontra. Contudo, encontrar uma vaga em algum hospital psiquiátrico tornou-se uma tarefa difícil. O poeta Ferreira Gullar recentemente acendeu a polêmica dos internamentos psiquiátricos ao defendê-los em sua coluna publicada no jornal Folha de São Paulo e em entrevista à Revista Época, sustentou ser demagoga a campanha contra a internação de doentes mentais, sustentando que o internamento, para a família e para o doente mental, é um instrumento necessário nos momentos de surto (apud REVISTA ÉPOCA, 2009). O poeta, pai de dois esquizofrênicos e dependentes químicos, um deles faleceu de cirrose hepática, denunciou, ainda, que o aumento da população de rua não é somente fruto da desigualdade social, mas muitas vezes trata-se de pessoas sem assistência psiquiátricas que possuem algum transtorno mental, incluindo-se aí a adicção (apud REVISTA ÉPOCA, 2009). Os que se opõe às declarações de Gullar sustentam, em consonância com a Lei 10.216/2001, que os doentes mentais devem ser atendidos em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), já que a idéia é atendê-los sem retirá-los do convívio da família e da sociedade (REVISTA ÉPOCA, 2009). Segundo Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia “O hospital é um lugar de isolamento, funciona como uma prisão. As pessoas vão e não voltam” e mais, “Algumas famílias querem que a pessoa fique internada. É a idéia da instituição como depósito” (apud REVISTA ÉPOCA, 2009). Ferreira Gullar, entretanto, se indigna com estes tipos de declarações defendendo que: Ninguém é a favor de manicômio ou encerrar uma pessoa num hospital pelo resto da vida. Isso não existe há muito tempo. Mas as famílias precisam ter a quem pedir ajuda (apud REVISTA ÉPOCA, 2009). O fato é que o dependente químico, na esmagadora maioria das vezes recusa-se a aceitar que o vício é uma doença a ser tratada como qualquer outra e mesmo diante da aceitação de sua dependência se recusa à submissão de tratamento ambulatorial. Diante deste problema, cada vez mais recorrente na sociedade hodierna, é de se questionar a possibilidade de obrigar alguém a se submeter a um tratamento. Outrossim, é eficaz a internação compulsória para tratamento de alcoolistas e toxicômanos? Segundo Franco Júnior (2009) o Código de Ética Médica afirma que: [...] o paciente ou seu representante legal tem o direito de escolher o local onde será tratado e os profissionais que o assistirão. O paciente pode decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar. Os Conselhos de Medicina enfatizam que obrigar o paciente a se submeter, contra a sua vontade, a um regime de confinamento institucional é sinônimo de ilícito penal (cárcere privado). O paternalismo ou o autoritarismo médico é, nesses casos, capaz de inibir ou contrariar direitos elementares de cidadania, próprios da condição humana. Contudo, salienta o autor, se o doente mental não tem autonomia consciente ou estado crítico consciente, a restrição do Código de Ética Médica aplica-se somente a casos de normalidade psíquica. Portanto, diante de uma situação de risco de morte ao paciente ou, neste caso, ao dependente químico, deverá o médico intervir coercitivamente de modo a internar o paciente que esteja em crise psicótica ou até mesmo em ‘overdose’181 para resguardar, primeiramente, a vida do indivíduo. Na seara cível, Franco Júnior (2009) discorre que: O Decreto 891/38, produzido pelo Governo Vargas, continua em vigor e permite que os toxicômanos ou intoxicados habituais sejam submetidos a internação obrigatória ou facultativa, por tempo determinado ou não. A medida tem cabimento sempre que se mostre como forma de tratamento adequado ao enfermo ou conveniente à ordem pública e será efetivada em hospital oficial para psicopatas ou estabelecimento hospitalar submetido à fiscalização oficial. O pedido pode ser formulado pela autoridade policial, pelo Ministério Público ou, conforme o caso, por familiares do doente. Paralelamente, como medida de restrição a atos da vida civil, o Código Civil também prevê a possibilidade de interdição de ébrios habituais e dos viciados em tóxicos (art. 1767, inc. III, CCB). Na esfera criminal, a Lei 11.343/06 considera inimputável, por não entender, em razão da dependência, o caráter ilícito do crime, o drogadito que deverá ser encaminhado pelo juiz a tratamento médico182. O magistrado poderá também determinar ao Poder Público que coloque à disposição do infrator estabelecimento de saúde para tratamento especializado183. 3.1 Internamento Involuntário, Compulsório e Voluntário de Drogadição O internamento psiquiátrico, como ato médico, vem enfrentando duras críticas, tendo em vista o processo de reforma psiquiátrica pelo qual o Brasil vem passando. Conforme insistentemente mencionado, os serviços para as pessoas que fazem uso de drogas estão incluídos na área de saúde mental e são disciplinados na pela Lei 10.216/01. 181 Dose muito forte de uma droga que causa efeitos graves (coma, morte); superdosagem (BUENO, 2000). 182 Artigo 45 da Lei 11.343/06. 183Art. 28, § 7º, da Lei 11.343/06. A Lei supra, orienta o médico psiquiatra sobre seu procedimento legal quando necessitar realizar o internamento de algum paciente, de forma involuntária. Esta Lei redefiniu o modelo de atenção à saúde mental no Brasil, não proibindo as internações, mas estabelecendo que se deve priorizar os serviços extra-hospitalares (REVISTA ÉPOCA, 2009). Ocorre que, dos 1.290 CAPS existentes no Brasil, apenas 40 unidades, conhecidas como CAPS 3, são capazes de internar pacientes em crise. Segundo Sérgio Tamai, da Associação Brasileira de Psiquiatria, “[...] não há política de saúde mental, mas um discurso ideológico que sobrevive há duas décadas sem nenhuma discussão médica de verdade” (apud REVISTA ÉPOCA, 2009). O Art. 2º, da Lei 10.216/01, dita que “[...] nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo”. Note-se que a Lei é expressa ao mencionar “[...] atendimentos em saúde mental de qualquer natureza”, ou seja, inclui-se aí não só os doentes mentais por fatores congênitos, mas também os por fatores adquiridos, como é o caso dos toxicômanos. A partir da aprovação desta Lei voltou-se a atenção aos doentes mentais para os quais se estabeleceu um tratamento prioritariamente em regime aberto, visando à reinserção social destes. Segundo Medeiros (2007, p.93), a Lei 10.216/2001 foi “[...] a primeira a discutir e preconizar a desospitalização e desmanicomialização no Parlamento latino-americano”. Segundo Delgado, autor do projeto que resultou na Lei, trata-se de “uma lei social, talvez a mais ampla de todas as leis médicas brasileiras, e que envolve maior número de pessoas da sociedade, usuários, técnicos, aficionados, entusiastas, pessimistas” (apud MEDEIROS, 2007, p. 93). O artigo 4º da Lei supracitada dispõe que: A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. § 1o O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio. § 2o O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros. § 3o É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2o e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2o. Tal artigo vincula a forma como o tratamento psiquiátrico dos doentes mentais deve ser administrado para que o internamento não seja banalizado e seja apenas utilizado como último meio de recuperação do doente. Sendo necessário, é preciso que se respeite o paciente a fim de recuperá-lo, reintegrá-lo ao seio familiar e, em consequência à sociedade, tal qual o objetivo do internamento de acordo com a presente Lei. Outrossim, esta Lei determina ainda ser de competência do Estado a responsabilidade pelo desenvolvimento da política da saúde mental e assistência com criação de estabelecimentos apropriados a esta nova política extra-hospitalar que abrange serviços ambulatoriais, centros de convivência, hospitais-dia, residenciais terapêuticos, entre outros (MEDEIROS, 2007). Por conseguinte, o Art. 6º apresenta os diversos tipos de internação psiquiátrica, quais sejam, internação voluntária (que se dá com o consentimento do usuário); internação involuntária (é aquela sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro) e internação compulsória (a determinada pela justiça). De acordo com o Art. 9º, tal tipo de internamento é determinado pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários. Já o Art. 8º estabelece que: A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina - CRM do Estado onde se localize o estabelecimento. § 1o A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta. § 2o O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento. De acordo com Elias Abdalla Filho (2009), a pré-disposição do paciente para se tratar tem uma influência fantástica na recuperação de seu transtorno. Esse tipo de internação pode tranquilizar o paciente, sua família e até mesmo, o próprio médico, porém, nem sempre esta disposição por parte dele realmente acontece. A internação psiquiátrica involuntária, por sua vez, é aquela realizada sem o consentimento do paciente e a pedido de terceiros. Na maioria das vezes, são os familiares que solicitam a internação do paciente. Situações como doença mental com alto risco de autoagressão ou heteroagressão, bem como transtorno grave que comprometa a capacidade do paciente, dentre outras, são frequentes indicações de internamento (ABDALLA FILHO, 2009). Segundo o Art. 8º, § 2º “[...] o término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento”. O internamento compulsório, por sua vez, é aquele procedido por meio de uma determinação judicial. Embora o Brasil esteja abandonando o tratamento em hospitais, ainda não foi capaz de oferecer serviços suficientes para substituí-lo. Ocorre que há uma lacuna em relação ao atendimento a ser dado a um doente mental que procure a rede pública de saúde, uma vez que, conforme já relatado cerca de 70% dos hospitais psiquiátricos já foram fechados por uma série de portarias do Ministério da Saúde, porém a nova política de saúde atual ainda é ideológica e não tem capacidade para atender a demanda (REVISTA ÉPOCA, 2009). A crítica em torno da Lei 10.216/2001 diz respeito à falta de implementação de recursos necessários para promover o novo modelo adotado na idéia dos CAPS. Desde a promulgação da Lei supra, os recursos antes destinados aos hospitais psiquiátricos agora são destinados aos CAPS. Segundo dados do ano de 2007 divulgados pela Revista Época (2009), 63,4% da verba total destinada à saúde mental vai para os CAPS; os hospitais, que atendem 32 mil pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), ficam com 36,6% das verbas totais. Ainda segundo a revista supra “[...] cinco anos antes, a proporção era inversa: 75,2% para os hospitais e 24,7% para outros tipos de atendimento” (REVISTA ÉPOCA, 2009). É comum acontecer a confusão entre as duas últimas modalidades de internação. Embora ambas tenham a característica de inicialmente serem contra a vontade do drogado, há peculiaridades que as distinguem. A internação, ao mesmo tempo em que pode ser compulsória, também pode ser involuntária, quando o juiz determina o internamento e o paciente se recusa a ser internado, porém mediante ordem judicial o estabelecimento e o médico responsável realizam a medida. Há casos em que a internação pode ser compulsória e voluntária, ou seja, quando diante de determinação judicial o paciente consente a medida vendo-a como melhor forma de tratamento. Já na internação involuntária, mas não compulsória, o psiquiatra ante a situação de risco de morte do paciente, por exemplo, realiza a internação sem o consentimento do mesmo e comunica ao Ministério Público Estadual, no prazo de 72 (setenta e duas) horas, conforme Art. 8º, §1º da Lei 10.216/01. Pelo desenvolvimento deste artigo científico, que sucede a monografia apresentada na graduação por esta especializanda, conclui-se, juntamente com a literatura médica, que o internamento voluntário é o mais adequado ante a dificuldade de se tratar a doença da dependência química. De acordo com Oliveira, psicólogo da Universidade Federal da Bahia: Os profissionais de saúde mental ligados ao movimento antimanicomial dizem que a sociedade tem de desenvolver uma nova sensibilidade para lidar com as pessoas com transtornos mentais, rompendo a cultura de isolamento e encarceramento que predominou no passado (apud REVISTA ÉPOCA, 2009). Ainda segundo Nogueira Filho, “Uma vez toxicômano, toxicômano por toda a eternidade. E, interessantemente, passa a existir a toxicomania sem as drogas (apud PEREIRA, 2008)”. Conclui-se ser muito provável que o toxicodependente tenha uma recaída após um internamento involuntário ou compulsório. A experiência de profissionais que trabalham com adictos mostra que o sucesso só é alcançado quando o dependente se aceita como um doente e aceita voluntariamente o tratamento. 4 DA BANALIZAÇÃO DOS INTERNAMENTOS NÃO CONSENTIDOS E DA INTERDIÇÃO CIVIL Sob o manto da proteção ao dependente químico, supostamente incapaz, diversos são os interesses particulares em jogo que levam a família a buscar o Poder Judiciário com um pedido de internação compulsória ou interdição civil. Querer resguardar o patrimônio da família ou até mesmo a vida do drogadito são motivos suficientes para a internação. Ocorre que desvios dos padrões de normalidade não podem por si só serem indicadores de doença mental aptos a ensejar internamento involuntário/compulsório. Livrar-se da presença do drogadito, internando-o com sedativos não o livrará da doença do vício, tampouco livrará a família do problema. A literatura psiquiátrica é farta ao apontar tal medida como paliativa, tendo sucesso apenas quando tem o fim de desintoxicar um indivíduo que se encontra em situação grave, de risco de morte, extremamente compulsivo e transtornado, para que este não morra na rua, como ocorre com tantos outros que acabam vítimas da própria doença ou mesmo assassinados. Defende-se que: [...] na medida em que persistir, com juízo crítico, opondo-se à medida interventiva, a vontade do dependente prevalecerá sobre o interesse da família e/ou de terceiros. Isto em razão da cláusula geral de tutela, constitucionalmente consubstanciada no principio da dignidade da pessoa humana e no direito geral de liberdade, também assentados como princípio constitucional (MENEZES, 2011). Ainda nas palavras da autora supracitada “[...] a pessoa demenciada e, por semelhança, aquela privada de suas faculdades ainda que temporariamente, também pode ter reconhecida a autonomia”. Por derradeiro, oficializada a exclusão, o dependente químico ou doente mental tornar-se-ão cidadãos incompletos que mesmo sendo sujeitos de direito, capazes, serão declarados incapazes de exercer simples atos da vida cotidiana levando-os consequentemente à margem da sociedade, estigmatizados por sua doença e, além de tudo, certificadamente ‘incapazes’. Segundo Castel (apud, MEDEIROS, 2007, p. 105): Quer seja total ou parcial, definitiva ou provisória, a exclusão, no sentido próprio da palavra, é sempre o desfecho de procedimentos oficiais e representa um verdadeiro status. É uma forma de discriminação negativa que obedece a regras estritas de construção. É clara a inconstitucionalidade da prática indiscriminada dos internamentos involuntários e compulsórios. Supre-se não só o direito à liberdade destes indivíduos, como também o direito à vida e à saúde, já que estes estabelecimentos na forma histórica com que foram concebidos são depósitos humanos, que deixam os adictos abandonados sem qualquer perspectiva futura, uma violenta afronta aos direitos fundamentais, à dignidade da pessoa humana, entre outros. Ferem-se cruelmente direitos previstos pela Constituição Federal de 1988, como o direito à propriedade, à igualdade, uma vez que a interdição e a internação involuntária ou compulsória não deixam de ser uma forma de exclusão destes indivíduos da sociedade, posto que não recebem um tratamento digno, ou seja, adequado. A permanência dessas práticas reiteradas segue na contramão do que vem sendo objeto de luta desde a década de 1970, ou seja, a desinstitucionalização que segundo Medeiros (2007, p. 96) “[...] incluem transformações nas instituições que hoje prestam serviços no saber médico-psiquiátrico; nas prioridades de investimento; nas práticas sociais de atendimento e nos procedimentos jurídicos e legais”. O trabalho tem que ser conjunto entre Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário), profissionais da área da saúde e sociedade (envolvimento familiar), a fim de que prevaleça o atual entendimento de que o dependente químico conserva a sua autonomia privada, quando preservada a sua capacidade cognitiva e, por tal fato, poderá exercer seu direito a recusa de tratamento e/ou internamento (MENEZES, 2011). Importa ressaltar que a Comissão de Assuntos Sociais do Senado aprovou no dia 10 de abril de 2013, a internação compulsória de dependentes químicos e traficantes de drogas já presos que sejam viciados. A matéria ainda vai tramitar nas comissões de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). O texto aprovado, em forma de substitutivo (PLS 111/201) prevê que o juiz, com base em um laudo emitido por comissão técnica, poderá encaminhar os dependentes químicos e traficantes viciados em drogas para tratamento especializado e, se necessário, à internação compulsória. 5 CONCLUSÃO Conforme amplamente difundido neste trabalho o consentimento informado do paciente consiste na manifestação da vontade advinda das informações prestadas pelo médico ao paciente acerca do diagnóstico, prognóstico e tratamento indicado em razão da debilidade física ou psíquica em que se encontra. Assim, procurou-se demonstrar a importância da anuência aos tratamentos de drogadição, em contraposição ao que dispõe a legislação atual sobre o assunto, de forma que se deve respeitar a autonomia da vontade do dependente químico quando este estiver em condições de se autodeterminar, como meio de respeitar e preservar seus direitos fundamentais. Sabe-se que o dependente químico é equiparado ao doente mental, sendo que este, por si só, muitas vezes não tem consciência do seu estado de saúde, físico ou psicológico, e, portanto, não sente o sofrimento inerente à sua condição. Contudo, tal fato nem sempre ocorre com o drogadito, que na maioria das vezes apresenta diversos momentos de lucidez, a não ser quando está sob o efeito da droga, e embora esteja fazendo uso compulsivo de determinada substância, ele ainda apresenta, em tempo ulterior ao uso, consciência de espaço e de certa autodeterminação e desta forma, sofre com o estado de impotência em que se encontra. Assim, um internamento compulsório ou involuntário levaria o dependente químico a um “stress” traumático imensurável, e a revolta causada por uma situação como esta somente serviria para o viciado recair nas drogas, muitas das vezes ainda mais compulsivo do que a situação em que se encontrava. Uma sentença judicial de interdição ou internamento oficializa a incapacidade e a doença do adicto, fato que não garante sua cura ou ressocialização. A discussão em torno destes institutos dá-se em razão do binômio exclusão versus proteção, sendo que a proteção abrangeria não só o drogadito, como também a família deste indivíduo, que na maioria das vezes busca a determinação judicial ante à impossibilidade de convivência, além do risco de vida não só do viciado, por ‘overdose’, como também da família que eventualmente pode estar sob ameaça de traficantes e do próprio dependente químico violento ou em surto psicótico. A exclusão se configura pelo uso indiscriminado de determinações judiciais, como instrumento de proteção aos supostos incapazes, incluindo os dependentes químicos. Apesar disto, não se trata, contudo, de por fim ao instituto da interdição e curatela, nem mesmo por fim à prerrogativa de internamento compulsório e involuntário, mas de se impor limites e um rigor maior para que tais institutos apenas sejam usados para os incapazes que realmente necessitam desta tutela, sempre em respeito às suas diferenças e incapacidades para que o liame entre proteção e exclusão não esmoreça ainda mais para o lado da exclusão. Não se pode permitir o uso destas medidas, frisam-se, excepcionais como forma de solucionar problemas familiares. Os familiares de viciados em drogas juntamente com o apoio da sociedade em geral devem primeiramente, ao invés de quererem internar seus filhos a todo o custo (involuntariamente e/ou compulsoriamente), cobrar do Estado políticas públicas para efetivação e ampliação dos tratamentos ambulatoriais nas formas dos CAPS buscando, inclusive, o Poder Judiciário para que determine ao Estado o fornecimento gratuito desses serviços terapêuticos na forma como foram concebidos. Apesar dos procedimentos relativos à interdição (do dependente químico) e ao internamento compulsório estarem regularmente previstos na legislação brasileira, estes usados indiscriminadamente se revelam inconstitucionais, pois ferem direitos e garantias que deveriam ser prioritariamente preservados. Estes procedimentos se estabeleceram sob o manto da proteção dos incapazes, mas que por estarem se tornando banais, na perspectiva de que, cada vez mais, busca-se o judiciário para promover de forma ‘lícita’ a interdição ou o internamento destes cidadãos, deveriam ser reformuladas. Tendo em vista que o modelo atual é o extra-hospitalar, sendo os internamentos medidas extremas, não se pode de forma simplista privar a pessoa ainda que temporariamente de seus direitos mais genéricos e universais, consubstanciados no direito à dignidade da pessoa humana, que se sustentam nos demais direitos fundamentais aqui abordados, tais quais o direito a liberdade e a igualdade. Outrossim, não pretende este trabalho defender todos os direitos fundamentais de forma absoluta, pois como é sabido os princípios da proporcionalidade e ponderação balizam o conflito existente quando há confrontos entre normas, especialmente os direitos fundamentais. Entretanto não se pode aceitar esta abordagem ‘higienista’ de recolhimento dos dependentes químicos como forma de solucionar o problema enfrentado. REFERÊNCIAS ABDALLA FILHO, Elias./Internação Involuntária em Psiquiatria./ Disponível em: <http://www.abpbrasil.org.br/boletim/exibBoletim/?bol_id=10&boltex_id=40>. Acesso em 21 de abril de 2009. BARBOSA, Antonieta. Câncer, Direito e Cidadania: Como a lei pode beneficiar pacientes e familiares, 13. ed., São Paulo: Atlas, 2010. BRASIL. Ministério da Saúde. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/saude/>. Acesso em: 12 de maio de 2009. BRASIL. Nações Unidas do Brasil. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br>. Acesso em: 22 de abril de 2009. BUENO, Silveira. Dicionário escolar Silveira Bueno, 2.ed. ver. e ampl., São Paulo: Ediouro, 2000. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 19. ed., São Paulo: Saraiva, 2005, vol. V. 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REFLEXÕES SOBRE A ONTOLOGIA SOCIAL EM LUKÁCS Marco Antonio Rossi184 RESUMO Georg Lukács (1885-1971) foi um dos mais importantes pensadores marxistas do século XX. No curso de sua longa vida, o grande filósofo húngaro viu-se obrigado a radicais rupturas políticas e duras autocríticas teóricas. Ainda assim, sua obra é definitiva para compreender categorias centrais no entendimento do ser humano na sociabilidade capitalista. Este artigo reflete sobre a ontologia do ser social em Lukács, um dos elementos que permaneceram incompletos no monumental estudo sobre a ética ao qual se dedicou o autor de “História e Consciência de Classe”. PALAVRAS-CHAVE: Ontologia. Trabalho. Consciência. Direito. Ética. ABSTRACT Georg Lukács (1885-1971) was one of the most important marxist thinkers of the twentieth century. In the course of his long life, the great hungarian philosopher was forced to radical political ruptures and harsh self-critical theoretical. Still, his work is final categories for understanding central to the understanding of the human being in capitalist sociability. This article reflects on the ontology of social being in Lukacs, one of the elements that remained incomplete in the monumental study of ethics to which is dedicated the author of "History and Class Consciousness." KEYWORDS: Ontology. Work. Consciousness. Entitlement. Ethics. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 A ONTOLOGIA. 3 TRABALHO. 4 DIREITO E ÉTICA. 5 EPÍLOGO (SERÁ?): LIBERDADE. 1 INTRODUÇÃO 184 Sociólogo, mestre em Ciências Sociais (UEL/PR), pesquisador-assistente da IGS (International Gramsci Society) e professor da UniFil. A busca por uma definição ontológica da atividade humana deve procurar compreender, em rigor, as bases materiais em que os homens se articulam, cooperam, estabelecem relações entre si. Uma ontologia pautada na atividade empreendida pelos homens em face do mundo sensível, realidade objetiva, deve, pois, conferir ao homem um papel de ser social; deve estabelecer sob quais circunstâncias o homem supera a natureza puramente orgânica de seu ser, de sua existência, e se humaniza, quer dizer, transcende o reino das necessidades puramente biológicas e passa a adaptar-se ativamente ao meio, deixando para trás a passividade diante da realidade objetiva e dando, consequentemente, um caráter realizador, projetor, compreensivo à consciência. 2 A ONTOLOGIA No dicionário de língua portuguesa do Prof. Francisco da Silveira Bueno, um clássico no que diz respeito a acepções vernáculas e conceituais de palavras oriundas do latim, a palavra ontologia aparece como um tratado dos seres em geral; teoria ou ciência do ser enquanto ser, considerado em si mesmo, independentemente do modo pelo qual se manifesta.185 O modo pelo qual esse ser em si mesmo se manifesta é, entretanto, o elemento central da discussão que Georg Lukács, filósofo húngaro, demonstra em suas considerações de uma ontologia do ser social. Recuperando as bases da ontologia no pensamento de Marx, no intuito de desfazer os inúmeros mal-entendidos acerca das bases ontológicas da categoria trabalho, Lukács vê na consciência dos homens o momento exato em que, ao prever o produto de suas ações, o homem passa a “administrar” o meio em que vive e atua tencionando suprimir necessidades e carências que vão além de suas limitações biológicas. Com o trabalho, o homem se distancia e se diferencia da natureza, passa a criar produtos objetivados anteriormente inexistentes; tal a essência ontológica da categoria trabalho (cf. Lessa, 1996: 63). Uma adaptação ativa do homem significa dar também à consciência um papel inerentemente ativo, ou seja, segundo Lukács, o animal transformado em homem pelo trabalho, na medida em que se defronta com novas necessidades, formula perguntas sobre suas carências, dá respostas. A capacidade de fornecer respostas às perguntas que surgem da 185 SILVEIRA BUENO, Francisco da. Dicionário Módulo da Língua Portuguesa. São Paulo: Parma, 1975, p. 420 atividade trabalho posiciona o homem na perspectiva crescente de reconhecer a importância de suas atividades anteriores, o passado, a condição atual de sua vida, o presente, e os objetivos que uma nova objetivação procura contemplar, o futuro. Dessa forma, numa história cada vez mais determinada pelas ações dos homens, perguntas e respostas dos homens para os homens, o ser que age em comunhão com a natureza não apenas procura suprir carências singulares, mas, na medida em que compreende suas ações, também as generaliza, transformando uma ação singular, dada por uma situação específica, em parte de uma totalidade da vida social. Para Lukács, a ação singular - pode-se chamá-la também teleológica - é constituinte de uma realidade objetiva, dos movimentos sintetizados espontaneamente pelas respostas cotidianas que os homens dão às suas particularidades, necessidades e carências (cf. Lukács, 1978: 05, 06; Lessa, 1996: 62, 63). A noção de totalidade, sob uma perspectiva ontológica, requer, no entanto, uma conceitualização mais precisa a fim de evitar equívocos a respeito do pensamento de Lukács e, por extensão, de Marx. A história, agora compreendida como fruto de ações humanas, não pode e não deve ser considerada como consequência de eventos desarticulados, incogniscíveis entre si, razão direta de vontades singulares que se distanciam em proporção crescente do que Lukács chama de gênero humano. Em rigor, diz Lukács, é preciso ignorar as generalizações tanto orgânicas quanto inorgânicas das teleologias e compreendê-las apenas como um agir humano-social de essência singular, cuja demonstração mais evidente é o trabalho (cf. Lukács, 1979: 81). Há, portanto, no entender de Lukács, uma relação intrínseca e direta entre os atos singulares e os processos causais que eles suscitam. Mas há também uma independência do processo social global - do conjunto crescente de séries causais, da totalidade concreta do desenvolvimento histórico - que não pode ser explicada a partir de uma leitura compreensiva que dê vida absoluta às ações singulares. Tal exame revela que: [...] precisamente por causa dessa concretude, que nasce de uma ineliminável concomitância operativa entre o homem singular e as circunstâncias sociais em que atua, todo ato singular alternativo contém em si uma série de determinações sociais gerais que, depois da ação que delas decorre, têm efeitos ulteriores (independentes das intenções conscientes), ou seja, produzem alternativas de estrutura análoga e fazem surgir séries causais cuja legalidade termina por ir além das intenções contidas nas alternativas. Portanto, as legalidades objetivas do ser social são indissoluvelmente ligadas a atos individuais de caráter alternativo, mas possuem ao mesmo tempo uma coercitividade social que é independente de tais atos” (Lukács, 1979: 84). As alternativas que aos homens se apresentam, em razão das quais progressivamente esses mesmos homens formulam questões e a elas conferem respostas, são, pois, ligadas ao momento específico de um desenvolvimento histórico no qual o indivíduo singular, relacionado com seu gênero, encontra-se inserido. O elemento ontológico imprescindível ao trabalho é, no entender de Lukács, a sua natureza desde sempre contraditória, quer dizer, embora apresente um grau de homogeneidade em sociedades de relações sociais menos complexas, o desenvolvimento social do trabalho implica, cada vez mais, contradições entre o meio e a finalidade previamente objetivada, a consciência e o objeto, o indivíduo singular e a totalidade da vida social. É dessa crescente contraditoriedade, do trabalho a produzir respostas a alternativas cada vez mais complexas, que a totalidade passa a exibir aquilo a que Lukács chama de diferenciação social, o conjunto de complexos sociais iniciados pela atividade trabalho, pelo também complexo ser social (cf. Lessa, 1996: 69, 70). Ao mesmo tempo que essa diferenciação aumenta, verifica-se uma crescente complexidade das relações de trabalho. As novas e sempre crescentes alternativas produzidas pelo processo global de formação social - a síntese das ações teleológicas singulares suscitam novos e dinâmicos complexos sociais dos quais surgem a unidade chamada totalidade. Os indivíduos, para Lukács, compreendem parte desses complexos e, no desenvolvimento histórico de seu trabalho, sempre relacionado com um modo de produção que lhes confere o repertório possível de escolhas a serem feitas, referem-se com maior ou menor intensidade ao seu gênero humano. Nesses termos, é possível verificar que a intrínseca relação entre o subjetivo e o objetivo, o singular e o meio, está enraizada num modo de produção específico, ou seja, um modo pelo qual a sociedade dispõe de seus produtos objetivados e os incorpora a um determinado modelo econômico de relações sociais. Antes de buscar compreender a aproximação possível e crescente dos indivíduos em relação ao gênero, e, portanto, o modo como o trabalho pode realizar-se humanamente, tornase necessário enfatizar o que implica, no entender de Lukács, o conjunto dessas relações ao mesmo tempo indissolúveis e contraditórias entre a consciência singular - as ações teleológicas - e o real, o mundo sensível, natureza pelo trabalho objetivada, perceptível. Sobre isso escreve Lukács: Os ‘elementos’ (as categorias singulares), se considerados fora das totalidades nas quais figuram realmente, se tomados em si, não têm historicidade própria. Só quando constituem totalidades parciais, complexos que se movem de modo (relativamente) autônomo, segundo leis próprias, é que o processo de explicação do ser é também histórico. É esse o caso da vida de todo homem; ou também o da existência daquelas formações, daqueles complexos que, no interior de uma sociedade, surgem enquanto formas de ser relativamente autônomas, como, por exemplo, o desenvolvimento de uma classe, etc. Mas, dado que o automovimento aqui operante só pode se explicitar realmente em interação com o complexo ao qual pertence, essa autonomia é relativa e de tipo extremamente diverso nos variados casos estruturais e históricos” (Lukács, 1979: 117, 118). No pensamento de Lukács, o desenvolvimento social, sempre pautado na atividade trabalho, não pode ser considerado como uma fragmentação do gênero humano. Ao contrário, os complexos, vividos e criados pelas atividades das ações singulares, se expressam no ser social, em permanente interlocução com o seu gênero, o que revela que o desenvolvimento histórico de um modo econômico-social faz com que os indivíduos se articulem, criem mediações cada vez mais ricas e voltadas para o coletivo, para o trabalho ontologicamente de caráter social. Novos complexos referem-se diretamente a demandas sociais produzidas e efetuadas pelo trabalho de um ser em permanente contato, quer dizer, a autonomia crescente das partes que brotam da totalidade depende, é claro, do modo como os indivíduos percebem o crescente fluxo de diferenciação social e das escolhas por eles feitas, se são elas ou não ligadas às especificidades dos interesses meramente individuais ou aos interesses ontologicamente dados e referendados pelo gênero. Dito de outra forma, equivale demonstrar que, para Lukács, os valores - partes de complexos interligados porém bastante distintos se comparados entre si produzidos no interior de uma sociabilidade têm fundamental importância nas opções que os indivíduos e os grupos fazem. São eles, os valores, que aproximam ou distanciam o homem de sua condição humana, de seu gênero. Vale ressaltar que os valores, suas possibilidades de transformar ou manter a lógica interna de uma sociabilidade fundada pelo trabalho, são inerentemente voltados para o conjunto ideológico de uma formação econômico-social específica. Com o crescimento perene de novos complexos sociais, é possível verificar que a totalidade social não se torna mais redutível ao trabalho. Os níveis crescentes de complexidade do trabalho - que, afirmou Lukács, é a categoria que funda o ser social produzem em seu próprio interior, nas relações sociais mais amplas, valores que dão nova voz ao ser social, que o postulam em face de alternativas e subsequentes escolhas que alimentam e dão ênfase à mediação entre o trabalho - a troca orgânica homem/natureza - e a totalidade da vida social (cf. Lessa, 1996: 84, 85). Das mediações produzidas socialmente pelo desenvolvimento do trabalho escreve Sérgio Lessa: [...] para Lukács, se o trabalho é a categoria fundante da reprodução social, a reprodução é o conjunto de mediações que exerce o momento predominante no desenvolvimento historicamente determinado de cada uma das formações sociais. Isso nada mais é senão afirmar, com outras palavras, que o trabalho funda o ser social, mas que a totalidade social não é redutível ao trabalho.” (Lessa, 1996: 87). Os valores produzidos pelos homens em sociedade, conjunto de mediações necessárias entre o trabalho e o processo global que se traduz em totalidade social, têm por mérito fundamental aproximar as alternativas individuais, as escolhas postas em evidência por ações singulares, do gênero humano. Tais valores assumem maior ou menor importância, maior ou menor capacidade de representação dos interesses coletivos e sociais, conforme o nível de articulação e cooperação imposto pela atividade trabalho, pela história realizada dos homens para os homens. É na diferenciação do desenvolvimento social que se expressam as heterogeneidades dos complexos múltiplos que compõem a totalidade. Segundo Lukács, seguindo o pensamento de Marx, quanto mais desenvolvidas as relações econômico-sociais, quanto mais humana a história de um período social, mais complexa a rede de relações travadas pelos homens, maiores as possibilidades de eles se defrontarem como homens que pertencem a uma totalidade referente a um gênero que se comunica, que aumenta sua consciência em face das contradições do mundo sensível, as quais não podem ser entendidas senão a partir de séries causais, de movimentos espontâneos produzidos pelas alternativas e suas prossecuções (cf. Lukács, 1979: 128, 129). Assim, já afirmara Marx, “a sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada na produção”186. A consolidação histórica da sociedade burguesa trouxe consigo um novo mundo de relações econômico-sociais, revolucionou o universo da cultura e deu novas faces a valores que, socialmente em seu interior, foram sendo produzidos. O grande legado da burguesia foi, entretanto, no entender de Lukács, o fato de ela ter afirmado em teoria e prática, superando as concepções divinas da natureza social de modos de produção anteriores, que os homens são os produtores de sua própria história, senhores de seu destino (cf. Lessa, 1996: 119). A sociedade burguesa, também fundada sob a lógica do trabalho como atividade humana realizadora, interlocução ativa entre os homens e a natureza, conquanto tenha oferecido aos homens o papel de atores principais da história, do desenvolvimento social, submeteu a produção social aos ditames da propriedade privada dos meios pelos quais se tornaria viva a objetivação de produtos anteriormente inexistentes. A comunicação entre o indivíduo e o gênero foi adquirindo maior complexidade e, ao mesmo tempo, gerindo 186 MARX, K. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 120 conflitos sociais, imersos na base do processo de desenvolvimento da sociabilidade. Sob uma perspectiva ontológica, o trabalho gera uma tensão crescente entre o gênero e o indivíduo, o geral e o particular. Dessa característica inerente ao mundo do capital, ao elemento de base da sociabilidade burguesa, nascem os conflitos sociais, as lutas pautadas em ideologias que têm no trabalho, no processo de desenvolvimento das forças produtivas, a possibilidade de elevação à consciência do ser genérico dos homens (cf. Lessa, 1996: 95, 96; Lukács, 1978: 09). Antes de apresentar a importância que o conjunto de valores humanos socialmente produzidos têm no interior de uma sociabilidade altamente diferenciada em sua produção, crêse, aqui, que se torna imprescindível resgatar como os fundamentos ontológicos do trabalho revelam, na sociabilidade burguesa, suas caracterizações, suas particularidades. Após essa tentativa conceitual, tornar-se-á possível verificar sobre quais bases o universo capitalista se transforma num modo de produção de desenvolvimento unitário, quer dizer, uma formação econômico-social que tende a dar uma face única ao conjunto de valores sociais articulados com o trabalho crescentemente “estranhado”. Sobre o “estranhamento”, do qual fala Lukács e Marx, se falará mais adiante. 3 TRABALHO O trabalho, como categoria social central em todos os períodos da história da humanidade, apresenta-se, na sociabilidade burguesa, sustentado por um conjunto de valores que têm por base a negação do humano, quer dizer, tanto o trabalho como os valores sociais que mediatizam a interlocução entre as consciências individuais e o gênero do qual elas são apenas uma parte transformam-se em meio de realização do capital. Para a realização do capital - e não mais do homem - a sociedade burguesa cria alicerces sobre os quais se assenta o processo de socialização que procura afastar das ações singulares sua tendência ontológica a aproximar-se das necessidades humanas, genéricas. Dessa forma, as contradições inerentes à dicotomia entre o singular e o geral, o indivíduo e a sociedade, transformam-se em conflitos, aos quais novos valores sociais procuram dar respostas. É importante notar que nas sociedades de classes, em que se procura afirmar o domínio social de classe(s) sobre classe(s), os valores constituídos socialmente têm, até o estágio atual de desenvolvimento históricoeconômico-social, procurado ressaltar um conjunto de meios considerados necessários para a manutenção da lógica reinante. Na sociedade capitalista, tal lógica se equivale às construções burguesas de valores que procuram dar à existência do capital uma essência etérea, ou seja, contra o qual o agir humano não pode lutar. No processo de socialização capitalista, a reprodução social está pautada nos interesses de reprodução do próprio capital, e é no conjunto de valores, nascido de uma relação “estranhada” entre o homem e seu produto objetivado, que se encontra a sustentação do modo de produção capitalista (cf. Lessa, 1996: 110, 111). Nesses termos, torna-se possível verificar que, a partir de novas relações de trabalho, a sociedade burguesa engendra peculiares valores sociais, pelos quais procura difundir não apenas a “riqueza” que produz, mas também provar que ela está ao alcance de todo indivíduo, uma vez que o locus do desenvolvimento social passa a ser o ser isolado, naturalmente distinto dos demais, portador de necessidades que lhe são tão reveladoras quanto o fato de o gênero mudo, na acepção dos velhos materialistas românticos, mostrar-se apenas como a soma indiscriminada de consciências singulares, redimidas ao seu plano meramente natural (cf. Lukács, 1978: 11, 12). Do conjunto de valores que asseguram a reprodução social, mediatizam as relações entre os homens e a totalidade da vida social, Lukács destaca dois: o direito e a ética. 4 DIREITO E ÉTICA O direito burguês é o direito do indivíduo burguês, do homem limitado a si mesmo, distante dos processos sociais que procuram colocá-lo em relação aos outros homens. E a construção desse direito é nada mais que uma ação teleológica burguesa, um formalismo jurídico que, ao superestimar o papel realizador e imprescindível dos indivíduos isolados na sociedade, busca suprimir os conflitos de classe. Na sociabilidade burguesa, a igualdade é a não-diferenciação política entre os homens, ou seja, os homens tornam-se iguais sob circunstâncias sociais que, em essência, os tornam materialmente diferentes, limitados aos interesses de reprodução de uma formação social que se pauta na negação do homem e na afirmação de uma existência autônoma do capital, da economia pautada na dicotomia capital privado x trabalho assalariado. Do direito como valor constituído para a reprodução social do capital escreve Lukács: [...] o direito é ainda mais nitidamente uma posição (um ato de pôr) do que a esfera e os atos da economia, já que só surge numa sociedade relativamente evoluída, com o objetivo de consolidar de modo consciente, sistemático, as relações de dominação, de regular as relações econômicas entre os homens etc. Basta isso para ver que o ponto de partida de tal posição teleológica tem um caráter radicalmente heterogêneo em relação à economia. Ao contrário da economia, não visa absolutamente a produzir algo novo no âmbito material; ao contrário, a teleologia jurídica pressupõe o inteiro mundo material como existente e busca introduzir nele princípios ordenadores obrigatórios, que esse mundo não poderia extrair de sua própria espontaneidade imanente (...) Isso significa que, para a regulamentação jurídica do intercâmbio social dos homens, há necessidade de um específico sistema ideal, homogeneizado juridicamente, feito de prescrições etc., cujos princípios construtivos se apoiam na ‘incongruência’ desse mundo de representações em face da realidade econômica, tal como foi indicado por Marx” (Lukács, 1979: 129-131). Assim como o direito, uma série de outros valores sociais tem o objetivo de atuar no interior da tensão existente entre o singular e o geral. A tradição, a moral, os costumes etc. são construtos sociais que não eliminam a dicotomia entre as consciências singulares e as prerrogativas de natureza humano-genéricas, ou seja, não atuam para superar os conflitos e contraditoriedades do homem em relação ao homem. No entender de Lukács, a ética constituise como único valor que tenciona suprimir a dicotomia entre indivíduos e sociedade (cf. Lessa, 1996: 98). Refletindo sobre o papel que Lukács credita à ética na mediação social entre o indivíduo e o gênero ao qual pertence, Sérgio Lessa afirma: [...] essa nova sociabilidade [a burguesa] funda uma nova necessidade, qual seja: a superação da dicotomia indivíduo/gênero, a superação da cisão, tipicamente burguesa, do humano em citoyen e bourgeois. Tal superação requer, por um lado, que a práxis construa complexos sociais mediadores que permitam a explicitação e o reconhecimento coletivo das necessidades postas pelo desenvolvimento humanogenérico. E, por outro lado, que, nos atos teleologicamente postos pelos indivíduos, predominem valores que encarnem as necessidades do desenvolvimento da generalidade humana. A superação da dicotomia bourgeois/citoyen apenas pode se dar, primeiro, pela compreensão por parte do gênero do seu em-si, do que de fato ele é, o que implica necessariamente, também, a compreensão pelas individualidades do que de fato elas são, do seu ineliminável caráter genérico-social. Em segundo lugar, pela objetivação de valores predominantemente genéricos, ou seja, a superação desta dicotomia apenas é possível com a elevação do gênero e da individualidade ao seu para-si (Lessa, 1996: 99). Enquanto os demais valores sociais atuam no intuito de fazer com que os indivíduos refiram-se cada vez mais a si mesmos, a ética consolida a necessidade de os indivíduos voltarem-se para as necessidades de seu ser social, ontologicamente criado pela atividade trabalho. Na lógica burguesa, que contrapõe a reprodução social do capital à afirmação humana do ser social, o papel da ética torna-se efetivamente ligado à superação dos “estranhamentos” que se difundem, via valores sociais burgueses (como o direito e a democracia representativa), em toda a sociedade. “O pensamento único de hegemonia do capital”, a tentativa inerente de mercantilizar e dar uma face unitária ao desenvolvimento histórico-social em todo o mundo, tem como alicerce o “estranhamento” com o qual os homens se defrontam na produção econômica da sociedade capitalista, a qual, segundo Lukács, abre para os povos de todo o mundo os mais baixos interesses e os meios mais depuradores (vulgaridade, avidez, avareza, egoísmo, violência, traição, segregação etc.) (cf. Lukács, 1978: 13; 1979: 91). É nas relações de produção que o “estranhamento” tem seu ponto de partida. No trabalho regido pela lógica do capital, o homem não se identifica com o produto de sua consciência, algo objetivado pela sua ação, nem com os demais homens que atuam na produção de um mesmo produto, no interior de um local onde se dão as relações de trabalho. A reprodução do capital, um crescente número de valores de troca em escala produtiva, não logra êxito na reprodução humana de seus idealizadores e produtores. O produto objetivado distancia-se da consciência que o concebeu à proporção que se tornam maiores os números dos bens produzidos e da acumulação privada do capital, dos donos do meio de produção, alheios ao homem tanto quanto o seu gênero, em nome do qual o trabalho deveria se realizar. O “estranhamento” do homem nas relações de trabalho se intensifica, no interior do processo de socialização burguês, em todos os complexos da vida social, sempre balizados pelos valores de que, aqui, anteriormente se falou. Dessa forma, torna-se cada vez mais evidente a separação do indivíduo em relação ao seu gênero, à coletividade que produz, efetivamente, as transformações sociais. Baseados nos valores sociais engendrados pela concepção burguesa de sociedade - o direito, a moral, os costumes e, sobretudo, a necessidade de acumular “riqueza” - os indivíduos buscam cada vez mais se diferenciar qualitativamente dos outros homens, não veem mais o outro como alguém que tem a mesma natureza fundante: o trabalho social. É uma luta contra tudo e todos pela sobrevivência, o que, no entender de Lukács, torna inviável a construção de uma sociabilidade humana sob a égide do capital, da lógica destrutiva de acumulação de bens materiais por indivíduos que se transformam, de modo totalmente egoísta, em “lobos”, que conduzem à miséria e à exclusão social um número cada vez maior de seres humanos (cf. Lessa, 1996: 111). O jovem Marx, em seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos, de 1844, refletindo sobre o “estranhamento” nas relações de produção capitalista, escreve: O estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa, segundo as leis econômicas, da seguinte forma: quanto mais produz o trabalhador, tanto menos há de consumir; quanto mais valores cria, mais sem valor se torna, tanto mais indigno ele é; quanto mais elaborado seu produto, tanto mais deformado o trabalhador; quanto mais civilizado seu produto, tanto mais bárbaro é o trabalhador; quanto mais rico espiritualmente se torna o trabalho, tanto mais desespiritualizado e ligado a natureza torna-se o trabalhador (...) O trabalhador, pois, se relaciona com o produto do seu trabalho, com seu trabalho objetivado, como com um objeto poderoso, independente dele, hostil, estranho, de modo que outro homem independente dele, poderoso, hostil, estranho a ele, é o senhor deste objeto. O trabalhador se relaciona com a sua atividade como com uma atividade livre, como com uma atividade a serviço de outro, sob as ordens, a compulsão e o jugo de outro (Marx, 1985: 107, 115). Tanto para Marx quanto para Lukács, o “estranhamento” produzido pelo capital só pode ser vencido, superado, se rompida a lógica de reprodução social da burguesia. No transcurso que vai dos valores sociais que normatizam a sociabilidade burguesa ao “estranhamento” no universo do trabalho, a construção de um gênero para-si, constituído pelo que Lukács chama de autênticas individualidades sociais, a ética assume a única função mediadora. A supressão do indivíduo burguês como locus do desenvolvimento social e econômico passa necessariamente pela aproximação, em escala cada vez mais social, dos homens, das necessidades de uns e de outros como prerrogativas de um gênero humano articulado e vivo em função do trabalho efetivamente social (cf. Lessa, 1996: 110, 111). 5 EPÍLOGO (SERÁ?): LIBERDADE A superação da ordem social burguesa, na qual em escala crescente os homens limitam-se às suas necessidades meramente biológicas, à sua sobrevivência física, abre as possibilidades para a criação de um reino da liberdade, o qual só se torna real sobre a concretização do reino das necessidades a todo o gênero humano. O “reino da liberdade”, para Lukács, refletindo sob as bases de essência ontológica do pensamento de Marx, seria, enfim, o início da construção da história alicerçada sobre realizações realmente humanas. As possibilidades dessa história são compromissos de uma análise ontológica do ser social e de uma crítica perene e crescente da consciência dos homens em face das claras distinções que existem entre os conceitos de necessidade e liberdade. Para Lukács, a liberdade consiste em demonstrar que a sua própria realização é intrinsecamente ligada à atividade humana, à construção social de um espaço em que os homens se articulem e produzam de modo socializado, livres de forças que os desvinculem de sua prática social, humana, rica, ontológica. É, pois, a liberdade uma possibilidade, uma necessidade humana; porém, por depender exclusivamente da atividade dos homens, de seus processos de interlocução, não é um processo inevitável (cf. Lukács, 1978: 14, 15; 1979: 164). No entender de Lukács, uma ontologia do ser social deve compreender o sentido da afirmação de Marx segundo a qual o “reino da liberdade” é um fim em si mesmo, resultado do desenvolvimento progressivo da atividade humana, do homem em função do homem. Se tal afirmação é sustentada por uma análise ontológica do devir humano, pode-se concluir ressaltando aquilo que, para Lukács, diz respeito direto à compreensão do homem pelo que ele realmente é, e não por aquilo que, ao longo do desenvolvimento histórico que culminou no modo de produção capitalista, ele vem aparentando ser: Tarefa de uma ontologia materialista tornada histórica é (...) descobrir a gênese, o crescimento, as contradições no interior do desenvolvimento unitário; é mostrar que o homem, como simultaneamente produtor e produto da sociedade, realiza em seu ser-homem algo mais elevado que ser simplesmente exemplar de um gênero abstrato, que o gênero - nesse nível ontológico, no nível do ser social desenvolvido não é mais uma mera generalização à qual os vários exemplares se ligam ‘mudamente’; é mostrar que esses, ao contrário, elevam-se até o ponto de adquirirem uma voz cada vez mais claramente articulada, até alcançarem a síntese ontológicosocial de sua singularidade, convertida em individualidade, com o gênero humano, convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si. (Lukács, 1978: 14). REFERÊNCIAS FREDERICO, Celso. Lukács: um clássico do século XX. São Paulo: Moderna, 1997. KONDER, Leandro. Em torno de Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. LESSA, Sérgio. A Ontologia de Lukács. Alagoas: Edufal, 1996. LUKÁCS, Georg. As Bases Ontológicas do Pensamento e da Atividade do Homem. In: Revista Temas. n. 2. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978. _______. História e consciência de classe: estudos sobre dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _______. Historicidade e Universalidade Teórica. In: Ontologia do Ser Social (Marx). São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. MARX, K. H. Manuscritos Economia y Filosofia (Primer Manuscrito). Madrid: Alianza Editorial, 1985. PINASSI, Maria Orlando; LESSA, Sérgio (orgs.). Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE NA FIGURA DO AMICUS CURIAE Sérgio Aziz Ferrareto Neme187 RESUMO O presente artigo pretende demonstrar de que forma os estudos do Constitucionalista alemão Peter Häberle influenciaram o instituto do Amicus Curiae, figura presente em vários ramos do direito. O artigo tem como principal foco o instituto do amicus curiae no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade. Inicialmente apresenta-se breve perfil da obra de Peter Häberle, concentrando-se primordialmente na sua obra mais conhecida Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para uma interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Em seguida apresenta-se a figura do amicus curiae, com sua previsão legal e os contornos delineados pela doutrina e jurisprudência. Por fim conclui-se com alguns apontamentos. PALAVRAS-CHAVE: Hermenêutica Constitucional. Sociedade Aberta. Pluralismo. Amicus Curiae. Controle concentrado de constitucionalidade. ABSTRACT This article seeks to demonstrate how studies of German constitutionalist Peter Häberle influenced the Institute's Amicus Curiae, present in various areas of law. The article's main focus is the institution of amicus curiae in the concentrated control of constitutionality. Initially presents brief profile of the work of Peter Häberle, focusing primarily on his most famous work Constitutional Hermeneutics - Open society of interpreters of the Constitution: a contribution to a pluralist interpretation and "procedural" of the Constitution. Then it presents the figure of amicus curiae with its legal provisions and the contours defined by doctrine and jurisprudence. Finally concludes with some notations. KEYWORDS: Constitutional hermeneutics. Open society. Pluralism. Amicus Curiae. Concentrated control of constitutionality. 187 Mestrando em Sistema Constitucional de Garantias de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino. E-mail para contato: [email protected]. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 A OBRA DE PETER HÄBERLE. 3 AMICUS CURIAE. 4 PONTOS DE APROXIMAÇÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO É inegável que no Brasil nos últimos anos o Poder Judiciário tem se destacado na mídia. Os recorrentes escândalos que envolvem a classe política culminaram em uma crescente desconfiança do Poder Executivo e uma total desmoralização do Legislativo, o que tem permitido ao Judiciário ampliar sua atuação. Considerando o axioma cunhado por Rousseau de que um poder só se limita diante de outro poder, o Judiciário brasileiro, de maneira evidente, vem ganhando espaço frente aos demais. Rousseau também afirmava que todo aquele que tem um poder, como o passar do tempo, tende a dele abusar. Assim como o primeiro, esse segundo axioma parece se aplicar perfeitamente ao Brasil. Com a crescente judicialização dos conflitos, o sistema tem demonstrado certas “anomalias” no campo da atuação judicial. Sobre o manto do ativismo judicial, juízes e tribunais, a pretexto de romper com o “juiz boca-da-lei” de Montesquieu, vêm prolatando decisões desconexas de qualquer precedente, não raramente contrárias à própria Constituição. Sempre que isso ocorre reanima-se o velho debate sobre o déficit de legitimidade do Poder Judiciário no Brasil. Nesse contexto, o presente trabalho trará breves reflexões sobre dois ingredientes que podem incrementar esse debate. Primeiramente a obra do constitucionalista alemão Peter Häberle, que sem dúvida, tem muito a contribuir quando se fala em legitimação de processos. Sobretudo no pertinente à abertura do círculo de intérpretes da Constituição, onde Häberle prega a convocação de todas as potências públicas para participar da hermenêutica constitucional. Em um segundo momento, será apresentada a figura do amicus curiae, que a algum tempo aparece em procedimentos judiciais brasileiros, e que desde 1999 esta institucionalizado no controle concentrado de constitucionalidade. Por fim, pretende-se apontar como o amicus curiae representa uma recepção da doutrina de Häberle no ordenamento jurídico brasileiro, ainda que de maneira limitada. 2 A OBRA DE PETER HÄBERLE Peter Häberle, professor da Universidade de Bayreuth, é atualmente um dos mais influentes constitucionalistas no mundo. No Brasil, sua obra começou a ser difundia em meados da década de 90, tornando-se atualmente leitura obrigatória no campo da hermenêutica constitucional. Na abertura de seu principal livro Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição, o autor inicia afirmando que a teoria da interpretação constitucional, até aquele momento (primeira publicação no ano de 1975), só tem considerado duas questões, quais sejam: a) Questionamentos acerca das tarefas e objetivos da interpretação da Constituição; b) Questionamentos sobre os métodos de interpretação; Segundo entendimento do autor, até então, não havia a doutrina abalizada voltado os olhos para uma questão essencial, definido como o "terceiro problema", relativo aos participantes do processo hermenêutico. As breves colocações iniciais já denunciam que a dogmática jurídica, sempre tão preocupada com as duas questões iniciais, deverá enfrentar essa nova problemática relativa à ampliação dos participes do círculo hermenêutico, da seguinte forma: Não se conferiu até aqui maior significado à questão relativa ao contexto sistemático em que se coloca um terceiro (novo) problema relativo aos participantes da interpretação, questão que, cumpre ressaltar, provoca a práxis em geral. Uma análise genérica demonstra que existe um círculo muito amplo de participantes do processo de interpretação pluralista, processo este que se mostra muitas vezes difuso. Isto já seria razão suficiente para a doutrina tratar de maneira destacada esse tema, tendo em vista, especialmente, uma concepção teórica, científica e democrática. A teoria da interpretação constitucional esteve muito vinculada a um modelo de interpretação de uma ‘sociedade fechada’. Ela reduz, ainda seu âmbito de investigação na medida que se concentra, primariamente, na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados. Se se considera que uma teoria da interpretação constitucional deve encarar seriamente o tema ‘Constituição e realidade constituciona’ - aqui se pensa na exigência de incorporação das ciências sociais e também nas teorias jurídico-fundamentais, bem como nos métodos de interpretação voltados para atendimento do interesse público e do bem-estar geral -, então há de se perguntar, de forma mais decidida, sobre os agentes conformadores da ‘realidade constitucional’188. Essa provocação à dogmática encontra-se já nas duas primeiras páginas do texto, evidenciando o seu potencial como obra paradigmática na discussão de um processo objetivo plural e democrático. Diante desta questão posta, sugere Häberle que seja realizada a transição de uma "sociedade fechada dos intérpretes da constituição" para uma "sociedade aberta dos intérpretes da constituição". Na elaboração de sua tese, Häberle foi fortemente influenciado pela filosofia de Karl Raimund Popper, sobretudo quanto ao conceito de Sociedade Aberta apresentado no Livro “A sociedade aberta e seus inimigos”189. No contexto de uma sociedade fechada somente é possibilitada a participação no processo de interpretação constitucional das pessoas formalmente envolvidas, como as partes (no controle difuso), o autor da ação (controle concentrado) e intérpretes jurídicos "vinculados às corporações" (Juízes, Desembargadores, Ministros, Advocacia Geral da União, Ministério Público Federal, Procuradores do Estado, Procuradores do Município, etc.). Assim, os demais membros da sociedade, que não estão formalmente vinculados ao processo são tolhidos de participar desse processo de hermenêutica constitucional. A seu turno, quando trata da "sociedade aberta de intérpretes" Häberle propõe que todas as "potências públicas" sejam envolvidas nesse processo. Se não como intérpretes propriamente ditos, ao menos como co-intérpretes. Fundamento primeiro apresentado pelo autor a justificar essa abertura é questão da interpretação das normas jurídicas: O conceito de interpretação reclama um esclarecimento que pode ser assim formulado: quem vive a norma acabar por interpretá-la ou pelo menos co-interpretála (Wer die Norm 'lebt', interpretier sie auch (mit)).Toda atualização da Constituição, por meio da atuação de qualquer indivíduo constitui, ainda que parcialmente, uma interpretação constitucional antecipada190. 188 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional - A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para uma interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002. pag. 11/12. 189 POPPER, Karl R. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. São Paulo: EDUSP, 1974. 190 HÄBERLE, Peter. Op. cit. p. 13 Nesse sentido, enfatiza a ideia de que todo aquele que vive uma realidade constitucional, mesmo que informalmente (informalidade esta entendida como a não participação em um procedimento estatuído em lei para debater e interpretar uma norma constitucional) interpreta a Constituição de seu país. Mesmo que para os órgãos formais seja desprezada esta “interpretação”, ainda assim ela existe e tem sua relevância no contexto social. Nesse ponto, parece haver por parte do autor uma provocação quanto à necessidade de revisão do conceito formal de hermenêutica. Um segundo fundamento, e, sobretudo o mais importante para esta abertura do processo é a latente carência de legitimação do processo. Do ponto de vista teorético-costitucional, a legitimação fundamental das forças pluralistas de uma sociedade para participar da interpretação constitucional reside no fato de que essas forças representam um pedaço da publicidade e da realidade da Constituição (ein Strück Öffentlichkeit und Wirklichkeit der Verfassung). 191 Considerando, a Constituição como espelho da realidade a qual representa e também estrutura, continua o autor: Uma Constituição, que estrutura não apenas o Estado em sentido estrito, mas também a própria esfera pública (Öffentlichkeit), dispondo sobre a organização da própria sociedade e, diretamente, sobre setores da vida privada, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos. Ela deve integrá-las ativamente enquanto sujeitos192 Estas afirmações tomam ainda maior relevo quando considerados no contexto constitucional brasileiro, onde a Carta política do Brasil é muito mais pródiga no abrigo de direitos sociais e disciplina da “vida privada”. Com isso, a necessidade da convocação de todas as potências públicas a participar do processo hermenêutico tem se difundido cada vez mais âmbito doutrinário. Tentando melhor sistematizar sua tese Peter Häberle, valendo-se do contexto da Alemanha Ocidental da década de 1970, estabeleceu um rol, não taxativo, dos possíveis préintérpretes que poderiam ser chamados a participar da abertura do círculo hermenêutico, da seguinte forma: A tentativa de se fazer uma apresentação sistemática dos participantes da interpretação sugere o seguinte catálogo provisório: 191 192 HÄBERLE, Peter. Op. cit. p.33 Idem. 1 – as funções estatais: a) Na decisão vinculante (da Corte Constitucional): decisão vinculante que é relativizada mediante a figura do voto vencido; b) Nos órgãos estatais com poder de decisão vinculante, submetidos, todavia, a um processo de revisão: jurisdição, órgão legislativo (submetido a controle em consonância com objeto de atividade): órgão do Executivo, especialmente na (pré) formulação do interesse público; 2 – os participantes do processo de decisão nos casos 1ª e 1b, que não são, necessariamente, órgãos do Estado, isto é: a) O requerente ou recorrente e o requerido ou recorrido no recurso constitucional (Verfassungsbeschewerde), autor e réu, em suma, aqueles que justificam a sua pretensão e obrigam o Tribunal a tomar uma posição ou a assumir um ‘dialogo jurídico’ (‘Rechtsgespräch); b) Outros participantes do processo, ou seja, aqueles que têm direito de manifestação ou de integração à lide, nos termos da Lei Orgânica da Corte Constitucional (v.g., §§ 77, 85, n°2, 94, n°1 a 4, §§ 65, 82, n°2, 83, n°2, 94, n°5), ou que são, eventualmente, convocados pela própria Corte Constitucional (v.g., § 82, n°4, da Lei do Bundesverfassungsgericht); c) Pareceristas ou experts, tal como se verifica nas Comissões Especiais de Estudos ou de Investigação (§ 73, do Regimento Interno do Parlamento Federal); d) Peritos e representantes de interesses nas audiências públicas do parlamento (§73, n°3, do Regimento Interno do Parlamento Federal alemão), peritos nos Tribunais, associações, partidos políticos (frações parlamentares), que atuam sobretudo, mediante a ‘longa manus’ da eleição de juízes; e) Os grupos de pressão organizados (§10, do Regimento Interno do Governo Federal); f) Os requerentes ou as partes nos procedimentos administrativos de caráter participativo; 3 – A opinião pública democrática e pluralista e o processo político como grandes estimuladores: media (imprensa, rádio, televisão, que, em sentido estrito, não são participantes do processo, o jornalismo profissional, de um lado, a expectativa de leitores, as cartas de leitores, de outro, as iniciativas dos cidadãos, as associações, os partidos políticos fora do seu âmbito de atuação organizada. Igrejas, teatros, editoras, as escolas da comunidade, os pedagogos, as associações de pais; 4 – cumpre esclarecer, ainda, o papel da doutrina constitucional nos n°s 1,2 e 3; ela tem um papel especial por tematizar a participação de outras forças e, ao memso tempo, participar dos diversos níveis. 193 Interessantes apontamentos podem ser feitos quanto ao tópico intitulado de “Consequências para a conformação e utilização do direito processual constitucional”. Afirma o autor que o acatamento de sua tese trará positivas consequências ao processo constitucional, principalmente no elastecimento das possibilidades interpretativas, na medida em que um maior número de pontos de vista deverão ser considerados pelos julgadores. Vale ressaltar que Häberle não afasta a importância da Corte Constitucional como última e suprema intérprete da Carta Política, conforme afirma o autor: 193 HÄBERLE, Peter. Op. cit. p.21/23. Subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação (com ressalva da força normatizadora do voto minoritário).”194 Para melhor exprimir a ideia apresentada, sugere Häberle a metáfora de um funil, onde as mais variadas interpretações são realizadas na parte superior, mais larga, ampla e difusa. Com o decorrer do processo, culminando todas na interpretação final. Esta, realizada pelo Tribunal Constitucional, mais restrita e objetiva, já na parte inferior do objeto. Quanto à importância desta obra são vastas as referências. Primeiramente Inocêncio Mártires Coelho, um dos maiores estudiosos da obra de Häberle no Brasil: [...] cuidou Peter Häberle de abrir as janelas hermenêuticas para os agentes conformadores da realidade constitucional, as forças vivas do país, a que se referia Lassalle, pudessem entrar no processo formal, e, por essa via, viessem a participar do específico jogo-de-linguegem no qual se decide – com eficácia contra todos e efeito vinculante – qual o verdadeiro sentido da Constituição. Estrategicamente apresentados como simples pré-intérpretes da Constituição ou, no máximo, como seus intérpretes coadjuvantes, pelas mãos de Häberle esses agentes transformadores da realidade constitucional, ao fim e ao cabo, desempenham o papel de co-autores da Constituição integral – Law in action e Law in books, daquela constituição que, que na concretude da sua aplicação, se mostra vigente, eficaz e legítima.”195 Em seguida Paulo Bonavides enfatiza como a tese de Häberle se tornou um marco teórico no campo da interpretação constitucional: Distingue Häberle a interpretação da Constituição em sentido estrito e em sentido lato. A interpretação em sentido estrito é a interpretação que usa os métodos tradicionais enunciados por Savigny, de procedência civilista. A interpretação lata é a que oferece um largo terreno ao debate e à renovação, tendo sido habitualmente ignorada ou desprezada pelos preconceitos do jurista técnico, de visão formalista, que fica assim tolhido de conhecer a verdade constitucional em sua essência e fundamento. [...] Unidas as duas interpretações, podem então os direitos fundamentais e a democracia pluralista, tanto na prática como na teoria, ser levados a sério. Os intérpretes da Constituição, em sentido largo, são, segundo Häberle, os legítimos intérpretes democráticos, já do Estado de Direito, já da ‘democracia de cidadãos’. [...] A hermenêutica constitucional contemporânea, diante da nova metodologia concretista, poderia resumir-se, do ponto de vista daqueles que tomam parte na operação interpretativa, como uma passagem da sociedade fechada dos intérpretes da Constituição a uma interpretação constitucional por via da sociedade aberta e a esta destinada.”196 194 Idem. p.14. COELHO, Inocência Mártires. Konrad Hesse/Peter Häberle: um retorno aos fatores reais de poder. Revista de Informação Legislativa. Brasília, n. 138, p.185-191, abr./jun. 1998. 195 196 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26ª ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 3 A FIGURA DO AMICUS CURIAE O termo amicus curiae, de maneira superficial, significa “amigo da corte”, designando figura comum em alguns procedimentos judiciais brasileiros. O glossário jurídico disponível no sitio do Supremo Tribunal Federal apresenta interessante definição: Amicus Curiae - Descrição do Verbete: ‘Amigo da Corte’. Intervenção assistencial em processos de controle de constitucionalidade por parte de entidades que tenham representatividade adequada para se manifestar nos autos sobre questão de direito pertinente à controvérsia constitucional. Não são partes dos processos; atuam apenas como interessados na causa. Plural: Amici curiae (amigos da Corte). 197 Convém anotar, inicialmente, que a presença deste instituto não é privilégio do ordenamento jurídico pátrio, apresentando-se nos mais variados sistemas. Por exemplo, no âmbito do Tribunal Constitucional Alemão (BVG), é possível que qualquer pessoa ou entidade, na qualidade de amigo da corte, apresentar argumentos (escritos) perante o Tribunal. Já no contexto do controle de constitucionalidade norte-americano, quando do julgamento dos stare decisis (precedentes vinculantes), existe de maneira institucionalizada um lobby que é realizado perante os Ministros da Suprema Corte, onde entidades interessadas apresentavam argumentos relevantes para o julgamento de tais precedentes. No ordenamento jurídico brasileiro, a primeira aparição do amicus curiae foi com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que por conta de sua função regulatória no mercado de valores era chamada a se manifestar independentemente de demonstração de interesse processual. em processos individuais, 198 510/512. 197 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Glossário Jurídico do STF. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=A&id=533. Acesso em: 10/02/2013. 198 Lei n˚ 6.385/76: Art. 31 - Nos processos judiciários que tenham por objetivo matéria incluída na competência da Comissão de Valores Mobiliários, será esta sempre intimada para, querendo, oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, no prazo de quinze dias a contar da intimação. § 1º - A intimação far-se-á, logo após a contestação, por mandado ou por carta com aviso de recebimento, conforme a Comissão tenha, ou não, sede ou representação na comarca em que tenha sido proposta a ação. § 2º - Se a Comissão oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, será intimada de todos os atos processuais subseqüentes, pelo jornal oficial que publica expedientes forense ou por carta com aviso de recebimento, nos termos do parágrafo anterior. § 3º - A comissão é atribuída legitimidade para interpor recursos, quando as partes não o fizeram. Já na década de 1990, com a lei 8.884/94, instituidora do Conselho Administrativa de Defesa Econômica (CADE), aparece a possibilidade de este órgão intervir em processos, e assim como ocorre com a CVM, sem a necessidade de demonstrar seu interesse na causa.199 Posteriormente surgiram outras previsões para a intervenção do amicus curiae, como a do artigo 14, § 7˚ da Lei n˚ 10/259/01 (Lei dos Juizados Especiais Federais), no próprio Código de Processo Civil (artigo 482, § 3˚), e especialmente nas leis n˚s 9.868/99 e 9.882/99 (lei que regulamenta a ADI e ADC e lei que regulamenta a ADPF, respectivamente), que serão tratadas mais adiante. Neste momento, para melhor apresentação do tema, se faz pertinente um corte metodológico. Ante as mais variadas manifestações deste instituto no sistema jurídico brasileiro, e visando demonstrar sua aproximação com a doutrina de Peter Häberle, a partir desse ponto somente se tratará da figura do amicus curiae na seara do controle concentrado de constitucionalidade. No ano de 1999, com a introdução no sistema jurídico brasileiro de duas normas, começaram a aparecer os contornos iniciais do que viria a ser o amicus curiae. Afirma-se que tais normas somente acrescentaram parte do instituto, pois, conforme se apresentará mais adiante, ao longo da última década a jurisprudência do STF veio, paulatinamente, incrementando os poderes dessa modalidade de terceiro interveniente. A primeira delas foi a lei n˚ 9.868/99 que veio disciplinar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) e as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC), que em seu artigo 7˚ apresenta a seguinte redação: Lei n˚ 9.868/99: Art. 7˚ Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade. § 2˚ O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades. De uma breve análise do presente dispositivo, observa-se a intenção inicial de afastar a possibilidade de manifestação de terceiros no processo. Mas o parágrafo segundo, mediante § 4º - O prazo para os efeitos do parágrafo anterior começará a correr, independentemente de nova intimação, no dia imediato aquele em que findar o das partes. 199 Lei n˚ 8.884/94: Art. 89. Nos processos judiciais em que se discuta a aplicação desta lei, o CADE deverá ser intimado para, querendo, intervir no feito na qualidade de assistente. duas condições (relevância da matéria e representatividade dos postulantes), faculta ao relator admitir ou não a manifestação do “amigo da corte”. Nota-se, outrossim, que o legislador fez questão de enfatizar a irrecorribilidade da decisão que aceita ou não a manifestação do amigo da corte. Ficando assim evidente que a participação do amicus curiae esta totalmente sujeita à discricionariedade do ministro relator. Em um segundo momento, com a edição da Lei n˚ 9.882/99, que regulamentou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), surge uma nova previsão dessa figura no controle concentrado de constitucionalidade, da seguinte forma: Lei n˚ 9.882/99: Art. 6˚ Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias. § 2˚ Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo. Nota-se que na redação deste artigo o legislador foi mais brando quanto aos critérios de admissão do amicus curiae, persistindo, todavia, a discricionariedade do relator da ação. Tal dispositivo da Lei da ADPF também deixou mais clara as faculdades do interventor no processo, afirmando que além da juntada de memoriais, seria lícito ao interveniente realizar sustentação oral. Ao contrário da Lei da ADI, que somente dizia “manifestação de outros órgãos”, sem, contudo explicitar de que forma tal manifestação se daria. Entretanto, conforme anteriormente dito, essas duas leis somente introduziram parte do que viria a ser a figura do amicus curiae, posto que, coube à jurisprudência ir acrescentando outros ingredientes a esta fórmula. Tendo por base uma interpretação restritiva do instituto, durante algum tempo a jurisprudência do STF sedimentou-se no sentido de que, por ausência de previsão legal, não seria facultado ao amicus curiae realizar sustentação oral em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ou Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). Somente com o julgamento da ADI 2.675/PE (Rel. Min. Carlos Velloso) e ADI 2.777/SP (Rel. Min. Cezar Peluso), talvez por compreender a importância do instituto, o Supremo passou a admitir a sustentação oral por parte do amicus curiae, em sede de ADI e ADC. Em breve excerto, o Professor Walter Claudius Rothenburg apresenta alguns das faculdades do amigo da corte atualmente admitidas pelo STF e apresenta algumas críticas: Quanto à forma, essa intervenção tanto pode ser escrita quanto oral. 200 Quanto ao momento, o STF entende que a manifestação de terceiro na qualidade de amicus curiae é apenas ‘para efeito de instrução, não sendo possível admiti-la quando em curso o julgamento’ (no caso, o pedido de admissão fora formulado ‘depois de já iniciado o julgamento da medida liminar’)201, e que a manifestação deve ser requerida até quando o relator encaminha o processo para pauta de julgamento (numa interpretação restritiva demais pois podem surgir, posteriormente, razões que justifiquem a intervenção)202. Na linha da interpretação restritiva, o STF entendeu – a meu ver equivocadamente – que o amicus curiae nunca tem legitimidade para recorrer.203 204 4 PONTOS DE APROXIMAÇÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS Feitas as sumárias apresentações da tese de Peter Häberle e do instituto do amicus curiae, cabe demonstrar de que forma tais ideias se encontram. Quando se considera o sistema brasileiro de controle concentrado de constitucionalidade, a figura que mais se aproxima das ideias de Peter Häberle, em absoluto é o amicus curiae. É difícil dizer se a obra do constitucionalista alemão de fato influenciou o legislador brasileiro, ou buscou-se apenas criar uma espécie de intervenção de terceiros no contexto da ADI, ADC e ADPF. Todavia, parece inegável a valiosa contribuição que o amicus curiae representa para a abertura da hermenêutica constitucional. Quando um terceiro interessado passa a intervir no processo de controle concentrado de constitucionalidade, há uma oxigenação dos pontos de vista apresentados. Interessante notar que Häberle, na justificativa de sua tese, busca sempre enfatizar a necessidade de uma jurisdição plural e aberta aos intérpretes da constituição, que de algum modo, ainda que limitado, acaba se concretizado com o chamamento ao processo do amicus curiae. 200 Nas ADI 2.675/PE (rel. Min. Carlos Velloso) e 2.777/SP (rel. p/ acórdão Min. Sepúlveda Pertence), o STF, em 26 e 27/11/2003, “admitiu, excepcionalmente, a possibilidade de realização de sustentação oral por terceiros admitidos no processo abstrato de constitucionalidade, na qualidade de amicus curiae”. 201 ADIMC 2.238-DF, rel Min. Ilmar Galvão, 09/05/2002. 202 ADI 4.071 AgR/DF, rel. Min. Menezes Direito, 22/04/2009. 203 ADI 2.591 ED/DF, rel. Min. Eros Grau, 14/12/2006; ADI 3.615 ED/PB, rel. Min. Cármen Lúcia, 17/03/2008. 204 ROTHENBURG, Walter Claudius. Direito Constitucional. 1ª Ed. São Paulo: Editora Verbatim, 2010, p. 122. Infelizmente, ainda persistem, conforme alerta o Professor Walter Claudius Rothenburg, algumas limitações da atuação desta figura, como por exemplo, a restrição ao poder de recorrer das decisões. Essa limitação, sem dúvida reflete uma jurisprudência pautada numa interpretação restritiva do instituto. Fundamentos para a ampliação da atividade do amicus curiae não faltam, conforme apontam André Pires Gontijo e Cristine Oliveira Peter da Silva, em relevante trabalho publicado na Revista do XIX encontro nacional do CONPEDI: Os fundamentos constitucionais do Amicus Curiae podem ser observados em relevantes preceitos normativos da Constituição, como a cidadania (CF, art. 1˚, II), o pluralismo político (CF, art. 1˚, V), o exercício dos poderes constitucionais diretamente pelo povo CF, art. 1˚, parágrafo único), a livre manifestação do pensamento (CF, art. 5˚, IV), o direito a livre convicção política e/ou filosófica (CF, art. 5˚, VIII), ao acesso à informação (CF, art. 5˚, XIV), ao divido processo legal (CF, art. 5˚, LIV), e a representação da legitimidade ativa na propositura de ações constitucionais (CF, art. 1˚, parágrafo único, c/c art. 103), todos com os sentidos concatenados por meio do princípio da Unidade da Constituição. 205 Por fim, pode-se dizer que ainda há esperança de que o amicus curiae venha a ser mais valorizado e de que a obra de Peter Häberle continue a influenciar o sistema brasileiro de controle concentrado de constitucionalidade. Isto por que alguns ministros do STF mostramse atentos à importância do instituto. Quando do julgamento da ADI 2.130 MC/SC, o Ministro Celso de Mello, então relator da ação, proferiu magnífico voto em que ressalta a importância do amicus curiae na democratização da hermenêutica constitucional. a admissão de terceiros, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sobre uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e instituições que efetivamente representemos interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. Em suma: a regra inscrita no art. 7°, § 2°, da Lei 9.868/99 – que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae – tem por precípua finalidade pluralizar o debate constitucional. [...] Não só garantirá maior efetividade e atribuirá maior legitimidade às suas decisões, mas, sobretudo, valorizará, sob uma perspectiva eminentemente pluralística, o 205 GONTIJO, André Pires; PETER DA SILVA, Cristine Oliveira. O papel do amicus curiae no estado constitucional. Trabalho publicado nos Anais do XIX encontro nacional do CONPEDI em Fortaleza-CE. 2010. sentido essencialmente democrático dessa participação processual, enriquecida pelos elementos de informação e pelo acervo de experiências que o amicus curiae poderá transmitir à Corte Constitucional, notadamente em um processo – como o de controle abstrato de constitucionalidade – cujas implicações políticas, sociais, econômicas, jurídicas e culturais são de irrecusável importância e de inquestionável significação.206 Já em abril de 2009, o Ministro Gilmar Mendes publicou na revista eletrônica CONJUR207, artigo em que reforça a importância das obras do constitucionalista alemão na atuação do Supremo Tribunal Federal, afirmando: O Supremo Tribunal Federal tem aperfeiçoado os mecanismos de abertura do processo constitucional a uma cada vez maior pluralidade de sujeitos. A Lei 9.868/99, em seu artigo 7º, parágrafo 2º, permite que a Corte Constitucional admita a intervenção no processo de órgãos ou entidades, denominados amici curiae, para que estes possam se manifestar sobre a questão constitucional em debate. Esse modelo pressupõe não só a possibilidade de o tribunal se valer de todos os elementos técnicos disponíveis para a apreciação da legitimidade do ato questionado, mas também um amplo direito de participação por parte de terceiros interessados. Os denominados amici curiae possuem, atualmente, ampla participação nas ações do controle abstrato de constitucionalidade e constituem peças fundamentais do processo de interpretação da Constituição por parte do Supremo Tribunal Federal. Assim, é possível afirmar que a Jurisdição Constitucional no Brasil adota, hoje, um modelo procedimental que oferece alternativas e condições as quais tornam possível, de modo cada vez mais intenso, a interferência de uma pluralidade de sujeitos, argumentos e visões no processo constitucional.208 Considerando que ambos fazem parte da atual composição da Suprema Corte, espera-se que o STF futuramente venha a reconsiderar sua jurisprudência restritiva quanto à atuação do amicus curiae. Igualmente, também se espera que o legislador, com fundamento na relevante obra de Peter Häberle, venha a produzir novos instrumentos normativos que permitam a abertura do círculo dos intérpretes da Constituição. REFERÊNCIAS 206 207 208 Voto do Ministro Celso de Mello na ADI 2.130 MC/SC, apud LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 13 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 230. Artigo denominado “A Influência do pensamento de Peter Häberle no STF”, de autoria de Gilmar Ferreira Mendes e André Rufino do Vale. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-abr-10/pensamento-peterhaberle-jurisprudencia-supremo-tribunal-federal. MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. A influência do pensamento de Peter Häberle no STF. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-abr-10/pensamento-peter-haberle-jurisprudencia-supremotribunal-federal. Acesso em: 10/02/2013. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26ª ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1993. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva Publicações, 1999. COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 3 ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007. COELHO, Inocência Mártires. Konrad Hesse/Peter Häberle: um retorno aos fatores reais de poder. Revista de Informação Legislativa. Brasília, n. 138, p.185-191, abr./jun. 1998. GOMES, Sérgio Alves. Hermenêutica Constitucional: Um contributo à construção do Estado Democrático de Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2008. GONTIJO, André Pires; PETER DA SILVA, Cristine Oliveira. O papel do amicus curiae no estado constitucional. Trabalho publicado nos Anais do XIX encontro nacional do CONPEDI em Fortaleza-CE. 2010. HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Tradución de Hector Fix-Fierro. Ciudad del Mexico: Universidad Nacional Atónoma de Mexico, 2001. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional - A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para uma interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002. LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 13 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. A influência do pensamento de Peter Häberle no STF. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-abr-10/pensamento-peterhaberle-jurisprudencia-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 10/02/2013. POPPER, Karl R. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. São Paulo: EDUSP, 1974. ROTHENBURG, Walter Claudius. Direito Constitucional. 1ª Ed. São Paulo: Editora Verbatim, 2010. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídca e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 5 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2004. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Glossário Jurídico do STF. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=A&id=533. Acesso em: 10/02/2013. DIREITO ADQUIRIDO E APOSENTADORIA DE MAGISTRADOS. PARECER I A CONSULTA Visando a dirimir dúvidas, encaminhou-me ilustre advogado consulta acerca da possibilidade de emitir parecer sobre a seguinte questão de direito que, por escrito, me formulou: Magistrado que, antes do advento de lei que alterou o regime de aposentadoria, preencheu todos os seus pressupostos na conformidade da lei anterior, ainda que não exercitado o seu direito, pode ser alcançado pelo novo regime de aposentadoria, inclusive mais gravoso? II O DIREITO APLICÁVEL Entre nós, desde os primórdios do regime republicano, a aposentadoria dos juízes, no dizer de Castro Nunes, constitui um desdobramento do conceito mesmo da vitaliciedade, motivo pelo qual mereceu, no plano da União, tratamento especial, inclusive com disciplina legislativa própria (In Teoria e Prática do Poder Judiciário, Forense, Rio, 1943, pp. 100 e 131, nota 16). Com propriedade, sublinhou o eminente Ministro Castro Nunes, verbis: Foi dêsse ponto de vista que examinei no Tribunal de Contas as aposentadorias dos ministros Jesuíno Cardoso e Thompson Flores, para lhes aplicar a lei especial de 1924 sôbre aposentadoria dos ministros do Supremo Tribunal Federal. E assim decidimos, porque, dada a equiparação, no tocante às garantias da função, dos ministros da Côrte de Contas aos da Côrte Suprema, tal equiparação se estenderia ao tratamento legal da aposentação, considerada esta como desdobramento da vitaliciedade, nos têrmos expostos (v. meu voto na Rev. Forense, v. 76, p. 595). (In Op. Cit., p. 100, nota 21) É o que, da mesma forma, se extrai da lição do Ministro Mário Guimarães, em sua obra já clássica, O Juiz e a Função Jurisdicional, Forense, Rio, 1958, p. 152, verbis: 87. O art. 95, da Constituição Federal, depois de enumerar e definir as diversas garantias asseguradas, por lei, aos magistrados, consigna: 1º) A aposentadoria será compulsória aos 70 anos de idade ou por invalidez comprovada, e facultativa após 30 anos de serviço público, contados na forma da lei. 2º) A aposentadoria, em qualquer dêsses casos, será decretada com vencimentos integrais”. Aí se regulamentam, como se vê, as duas formas de aposentadoria – a compulsória e a facultativa. A compulsória não é garantia. É limitação imposta à garantia de vitaliciedade. Dela tratamos no nº 84. São garantias a aposentadoria facultativa e o direito a vencimentos integrais, comum a ambas, conferido no § 2º. E neste ponto, favoreceu a Constituição à classe dos magistrados, pois que os funcionários, quando aposentados compulsoriamente, somente gozam de vencimentos integrais se contam mais de 30 anos de serviços públicos (art. 191, nº II, § 2º). O Professor Burke Shartel, em alentado estudo doutrinário, intitulado "Pensions for Judges", publicado na Michigan Law Review, v. XXVII, 1928-1929, p. 134 e seguintes, relata os hodiernos princípios adotados pelos diversos Estados-membros da Nação Americana, merecendo, também naquele país, a aposentadoria dos juízes disciplina legislativa específica, embora diverso o modelo que adota. No Brasil, desde 1979, a Lei Orgânica da Magistratura, por força do mandamento constitucional, regula as garantias e prerrogativas da magistratura, inclusive a aposentadoria, complementando, no que couber, a Constituição. A propósito, em julgado antigo, datado de 18.01.1955, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a lei não pode limitar a magistrados que se aposentarem em certo exercício o aumento de seus proventos, pois o benefício há de ser proveitoso a todos os juízes que estiverem na situação dos que foram com ele contemplados (RE nº 23.053, rel. Ministro Hahnemann Guimarães, in Archivo Judiciário, v. 116/141). A matéria, como visto, é palpitante e convém fiquem, de logo, dirimidas as dúvidas que se apresentam, notadamente o exame da jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal Federal, sobretudo o exato sentido do enunciado na Súmula 359. De fato. Um dos problemas mais delicados no campo do Direito é, sem dúvida, o da eficácia da lei no tempo. Acentuam os doutrinadores e afirmam os julgados, sobretudo do Egrégio Supremo Tribunal Federal, que, se na vigência da lei anterior, o servidor público preenchera todos os requisitos exigidos, o fato de, na sua vigência, não haver requerido a aposentadoria, não o faz perder o seu direito, que já havia sido incorporado ao seu patrimônio. Assim o reconheceu o Egrégio Supremo Tribunal Federal ao julgar o Recurso em Mandado de Segurança nº 11.395-PR, em 18.03.1965, do qual foi relator o saudoso Ministro Luiz Gallotti. Sua ementa é expressiva. Dispõe, verbis: Direito adquirido. Aposentadoria. Se, na vigência da lei anterior, o impetrante preenchera todos os requisitos exigidos, o fato de, na sua vigência, não haver requerido a aposentadoria, não o fêz perder o seu direito, que já estava adquirido. Um direito já adquirido não se pode transmudar em expectativa de direito, só porque o titular preferiu continuar trabalhando e não requerer a aposentadoria antes de revogada a lei em cuja vigência ocorrera a aquisição do direito. Expectativa de direito é algo que antecede à sua aquisição; e não pode ser posterior a esta. Uma coisa é a aquisição do direito; outra, diversa, é o seu uso ou exercício. Não devem as duas ser confundidas. E convém ao interêsse público que não o seja, porque, assim, quando pioradas pela lei as condições de aposentadoria, se permitirá que aquêles eventualmente atingidos por ela mas já então com os requisitos para se aposentarem de acôrdo com a lei anterior, em vez de o fazerem imediatamente, em massa, como costuma ocorrer, com grave ônus para os cofres públicos, continuem trabalhando, sem que o Tesouro tenha de pagar, em cada caso, a dois: ao nôvo servidor em atividade e ao inativo. Recurso provido para conceder a segurança. (In RTJ 33/255). No mesmo sentido, o julgado proferido no RE nº 72.509, também relatado pelo Ministro Luiz Gallotti, na sessão de 14.02.1973 (In Ementário da Seção de Jurisprudência, nº 904/1). Por ocasião do julgamento do RE nº 67.689-DF, de que fui relator, deliberou a Colenda 2ª Turma do Pretório Excelso, na sessão de 14.11.1969, verbis: Magistrado. Aposentadoria com 25 anos. Direito a ela adquirido pela satisfação de todos os seus pressupostos, antes da lei que os alterasse, ainda que exercitado após seu advento. Motivação. Precedentes. Recurso conhecido, mas não provido.” (In RTJ 54/486). Nessa oportunidade, ponderei, verbis: Conheço do recurso, negando-lhe, porém, provimento. 2. Assentou êle no art. 114, III, a e d, da Constituição Federal. Deduz que o aresto recorrido negou vigência ao art. 150, § 3.°, da Constituição Federal, além de dissentir de julgados de outros tribunais, indicados a f. 120-121, arrolado, ademais, o enunciado na Súmula, cujo verbete mencionou como n.° 389, quando quis, certamente, fazê-lo o de n.° 359. 3. A divergência está evidenciada, especialmente com os julgados que se inserem na R.D.A. 34/209-212; e 40/93-95, ambos do eg. Tribunal Federal de Recursos, justificando, dessarte, o conhecimento do apêlo extremo. 4. Entanto, descabe provê-lo. O recorrido satisfêz, ao tempo em que vigorava a L. est. 6.861-62, todos os requisitos exigidos para inativar-se, com os proventos integrais do cargo. Certo, ao requerer sua aposentadoria, em vigor já se encontrava a L. 9.125, de 1965, que exigia tempo maior de serviço, 30 anos em lugar de 25. Irrelevante tal invocação, porque não poderia afetar ao direito já adquirido pelo recorrido, o qual, embora não exercitado, já se incorporara a seu patrimônio, e dele não poderia ser distraído, sob pena de comprometer a garantia individual, respeitada pela Constituição, art. 150, § 3.°. A propósito assinalou, com propriedade, o plenário desta Corte, ao julgar o RMS 11.395, em 18.3.65, consignando em sua ementa: "Uma coisa é a aquisição do direito; outra, diversa, é o seu uso ou exercício. Não devem as duas ser confundidas. E convém ao interêsse público que não o seja, porque, assim, quando pioradas pela lei as condições de aposentadoria, se permitirá que aquêles eventualmente atingidos por ela mas já então com os requisitos para se aposentarem de acôrdo com a lei anterior, em vez de o fazerem imediatamente, em massa, como costuma ocorrer, com grave ônus para os cofres públicos, continuem trabalhando, sem que o Tesouro tenha de pagar, em cada caso, a dois: ao nôvo servidor em atividade e ao inativo. Recurso provido para conceder a segurança.” E assim, deu o exato sentido do enunciado na Súmula 359. Esta, de resto, é a lição dos melhores tratadistas que versaram tema de direito intertemporal — Roubier, Gabba e outros; e entre nós Francisco Campos (Dir. Adm., II, p. 129 e seguintes). No mesmo prol. julgados outros desta Corte (R.T.J., 47/553-555; 48/392-393; R.D.A. 55/192; Arq. Jud., 113/82). Dêles não discrepa o que se insere na R.T.J. 34/233-235, porque oriundo de pressupostos diversos, especialmente de fato. 5. Assim sendo, não se verificou negativa de vigência do preceito constitucional invocado – art. 150, § 3º, da Constituição Federal. Antes, sua correta aplicação, tudo levando, pois, a que se mantenha o aresto recorrido, de sólida fundamentação. É o meu voto.” (In RTJ 54/488-9) Na mesma linha de pensamento, o voto proferido pelo eminente Ministro Eloy da Rocha no RE nº 74.540-SP, perante a 1ª Turma, em 30.09.1975, verbis: Decidiu o Supremo Tribunal Federal, nos ERE 72.509. de 14.2.73, como resumido na ementa do acórdão (RTJ 64/408-414): "Aposentadoria. Direito adquirido. Se, na vigência da lei anterior, o funcionário preenchera todos os requisitos exigidos, o fato de, na sua vigência, não haver requerido a aposentadoria não o faz perder o seu direito, que já havia adquirido. Embargos recebidos. Alteração da Súmula 359, para se suprimirem as palavras "inclusive a apresentação do requerimento, quando a inatividade for voluntária." Por outro lado, assentou a jurisprudência desta Corte que direito adquirido, resultante da regra transitória do art. 177, § 1º, da Constituição de 1967, não se extinguiu com a Emenda Constitucional nº 1, de 17.10.69 — RE 74.284, de 28.3.73 (RTJ 66/211-221), RE 74.534, de 28.3.73 (Ementário da Seção de Jurisprudência, nº 915-2), RE 73.189, de 29.3.73 (RTJ 65/435-439), todos do Pleno. Não conheço do recurso.” (In RTJ 75/481) Essa orientação foi reiterada no julgado proferido no RE nº 74.541-SP, pela Colenda 1ª Turma, em 26.05.1981, relator para o acórdão o eminente Ministro Soares Muñoz. Diz a ementa do decisório em questão, verbis: Magistrado. Aposentadoria. Magistrado que, antes do advento da Constituição Federal de 1967, ja reunira o direito de inativar-se de conformidade com a legislação anterior, inclusive com os acréscimos estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.533, de 30.12.64, do Estado de São Paulo, vale dizer, com os proventos calculados com base nos vencimentos e vantagens do cargo de padrão imediatamente superior ao de que fosse ocupante e, se Desembargador, com o acréscimo de 20%. A circunstância de a aposentadoria não ter sido requerida na vigência do § 1º do art. 177 da Carta de 1967, dispositivo esse não reproduzido na Emenda Constitucional nº 1, de 1969, não afasta o direito pretérito à aposentadoria, como também não o afasta o fato de o postulante ter sido promovido a Desembargador em 1969. Recurso extraordinário conhecido e provido em parte.” (In RTJ 103/167) Conforme teve oportunidade de acentuar o Ministro Soares Muñoz, em seu erudito voto, com admirável rigor lógico-jurídico, neste expressivo fragmento, verbis: Não há dúvida, portanto, de que, antes do advento da Constituição Federal de 1967, já reunira o direito de inativar-se de conformidade com a legislação anterior, inclusive com os acréscimos estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.533, de 30.12.64, do Estado de São Paulo, vale dizer, com os proventos calculados com base nos vencimentos e vantagens do cargo de padrão imediatamente superior ao de que fosse ocupante e, se desembargador, com o acréscimo de 20%. A circunstância de o recorrido não ter requerido sua aposentadoria na vigência do § 1º do art. 177 da Constituição de 1967, dispositivo esse não reproduzido na Emenda Constitucional nº l, de 1969, não afastou o direito pretérito à aposentadoria, como também não o afasta o fato de o postulante ter sido promovido a Desembargador em 1969. (In RTJ 103/176) Essa é, de resto, a melhor doutrina dos autores que versaram o direito intertemporal: M. Duranton, in Cours de Droit Civil, Société Belge de Librairie, Bruxelles, 1841, t. 1º, p. 16, nº 75; Gaetano Pace, in Il Diritto Transitorio, Casa Editrice Ambrosiana, Milano, 1944, pp. 333/6; Paul Roubier, in Le Droit Transitoire, 2ª Ed., Dalloz, Paris, 1960, p. 185, nº 41; C.F. Gabba, in Teoria Della Retroativittá, 2ª Ed., Unione Tipografico Editore, Torino, 1884, v. 2, pp. 130/1; Nicola Coviello, in Manuale di Diritto Civile Italiano – Parte Generale, Società Editrice Libraria, Milano, 1924, pp. 99/100; Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, in Princípios Gerais de Direito Administrativo, 1ª edição, Forense, Rio, 1974, v. II, p. 448; Francisco Campos, in Direito Administrativo, Freitas Bastos, 1958, v. 2, pp. 130/1; Limongi França, in Direito Intertemporal Brasileiro, 2ª edição, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1968, p. 468 e seguintes; Vicente Ráo, in O Direito e a Vida dos Direitos, Max Limond, São Paulo, 1960, v. 1, t. II, pp. 444/5, nº 288; Carlos Maximiliano, in Direito Intertemporal, 2ª edição, Freitas Bastos, 1955, p. 43 e seguintes; Bento de Faria, in Aplicação e Retroatividade da Lei, A. Coelho Branco Fº Editor, Rio, 1934, p. 25; Reynaldo Porchat, in Da Retroatividade das Leis Civis, São Paulo, 1909, pp. 15/22. Francisco Campos, um dos juristas brasileiros que mais se tem dedicado ao estudo do direito intertemporal, invocando autorizada doutrina, afirmou, verbis: O direito à aposentadoria e, por conseguinte, o direito aos proventos da inatividade, se adquire no momento em que se integram os elementos exigidos por lei para que o funcionário faça jus à sua concessão. Decorrido o lapso de tempo de exercício no cargo, verificada a invalidez do funcionário ou contra qualquer condição a que esteja sujeito o benefício da aposentadoria, o funcionário adquire o direito à sua concessão nos têrmos e com as vantagens constantes da lei então em vigor. O direito à aposentadoria, e, em conseqüência, o direito às vantagens ou aos proventos dela decorrentes, transita do estado eventual, ou de expectativa de direito, a direito atual ou adquirido. No momento em que o funcionário reúne os requisitos exigidos pela lei para que êle possa desfrutar do benefício da inatividade remunerada, estabelece-se entre êle e o Estado uma relação jurídica, de conteúdo concreto e definido, ou se origina em seu favor um direito de crédito contra o Estado, ou o de haver dêste, sem o correspectivo da prestação de serviço, a continuação do pagamento das vantagens da atividade, se a lei em vigor naquele momento não estipula à inatividade vantagens inferiores às da atividade. Quando se cumprem tôdas as condições para que o funcionário possa aposentar-se, configura-se para êle o direito adquirido à aposentadoria; não importa que êle não exerça desde logo êsse direito. O exercício do direito não cria o direito; êste, ao contrário, é que autoriza, legitima e torna possível o seu exercício.” (In Op. cit., v. 2, pp. 130/1) Dessarte, desde o momento em que nascido o direito de conformidade com a lei do tempo, incorpora-se, imediata e permanentemente, ao patrimônio do seu titular, não podendo ser alcançado pela norma jurídica superveniente. É que a lei nova não pode atingir uma situação jurídica constituída, de forma definitiva, sob a vigência da lei anterior. Leges et constitutiones futuris certum est dare formam negotiis, non ad facta praeterita revocari, nisi nominatim et de praeterito tempore et adhuc pendentibus negotiis cautum sit (Codex, 1, 14, 7). A explicitação de Léon Duguit é, a respeito, peremptória, verbis: Une loi nouvelle ne peut modifier une situation juridique subjective; si elle le faisait elle aurait un effet rétroactive et la loi qui le déciderait serait contraire au droit supérieur. Une loi nouvelle modifie toujours une situation juridique objective existant au moment de sa promulgation et en cela elle n'a point d'effet rétroactif. Il faut montrer les applications de cette double proposition. Une situation juridique subjetive existant, une loi nouvelle ne peut y toucher. J'ai expliqué au tome I, p. 307 et s., qu'une situation juridique subjective est une situation spéciale, individuelle et temporaire. Son étendue et sa portée sont déterminées par un acte étranger à la loi; elles se rattachent directement à un acte individuel supposé légal au moment où il est intervenu. Si la loi nouvelle pouvait modifier une situation juridique subjective préexistante, elle toucherait par voie de conséquence l'acte juridique duquel elle dérive et qui était conforme à la loi au moment où il a été fait. La loi nouvelle ne peut donc toucher une situation juridique subjective parce qu'elle ne peut toucher les actes individuels antérieurs à elle. Si elle le faisait elle serait rétroactive et par conséquent contraire à un principe de droit supérieur.” (In Traité de Droit Constitutionnel, 3ª Ed., E. de Boccard, Paris, 1928, t. 2º, pp. 238/9, § 21a) Com efeito. Considero, pois, que o magistrado que satisfez, ao tempo em que vigorava a legislação anterior que disciplinava o regime de aposentadoria, todos os requisitos para inativar-se, não pode ser alcançado pela legislação posterior sem comprometer o direito já adquirido, sob pena de violação à garantia individual protegida pelo art. 153, §3º, da Carta Magna. Essa, ademais, como tantas vezes reiterado, é a jurisprudência velha e revelha do Egrégio Supremo Tribunal Federal, insculpida na Súmula, verbete 359. Para encerrar o assunto, não me posso furtar de transcrever a lição do eminente Professor Caio Mário da Silva Pereira, por sua perfeita adequação, verbis: A situação jurídica, já inteiramente constituída nos termos da lei velha, é alcançada pela lei nova, que cogita precisamente dos seus efeitos. Se estes também se tinham produzido inteiramente, não há, na verdade, problema de direito transitório. Mas, se os efeitos se prolongam no tempo, e a lei nova os encontra já em parte produzidos sob a lei velha, e em parte a produzir ainda, a regra geral é esta: A lei que governa os efeitos de uma situação jurídica não pode, sem retroatividade, atingir os efeitos já produzidos sob a lei anterior.” (In Instituições de Direito Civil, 5ª edição, 2ª tiragem, Forense, Rio de Janeiro, 1978, v. I, p. 149) III CONCLUSÃO Ante o que acaba de ser exposto, resta, simplesmente, responder, objetiva e concretamente, à única questão proposta. A resposta é: Não. Preenchido pelo magistrado todos os pressupostos para aposentarse, antes da entrada em vigor de lei que os alterasse, ainda que exercitado após o seu advento, permanece íntegro o direito pretérito nos termos de reiterada jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal Federal. É o parecer. Porto Alegre, outubro de 1984. CARLOS THOMPSON FLORES Ministro aposentado e ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal PA R E C E R TEMÁRIO: DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INADMISSIBILIDADE AUSÊNCIA DE REQUISITOS DEVEDORA TITULAR DE PATRIMÔNIO SUFICIENTE FRAUDE INEXISTENTE CITAÇÃO INDISPENSÁVEL E NECESSÁRIO CONTRADITÓRIO CONSULENTE: O SÓCIO NAS DUAS EMPRESAS SUMÁRIO − PARTE I: O CASO, A CONSULTA, OS TEMAS − 1. antecedentes − as empresas e o sócio majoritário − 2. uma surpreendente desconsideração da personalidade jurídica − bloqueio de contas bancárias − 3. a consulta e os temas − PARTE II: A DESCONSIDERÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NÃO OBSERVADOS − PRESSUPOSTOS − 4. a teoria da desconsideração da personalidade jurídica − sua excepcionalidade na dinâmica da responsabilidade executiva − 5. sem insuficiência patrimonial não há razão para desconsiderar − ausência de interesse à desconsideração − 6. tornando ao caso – a Empresa 1 tem patrimônio suficiente − 7. sanção à fraude − também sem uma fraude demonstrada não se desconsidera − 8. tornando mais uma vez ao caso − completa ausência de fraude − 9. conclusão: uma desconsideração duplamente contrária à lei − PROVA − PARTE III: GRAVÍSSIMAS INFRAÇÕES PROCESSUAIS O CONTRADITÓRIO − O ÔNUS DA − 10. a fraude, a prova e o onus probandi − 11. a prova da fraude e o devido processo legal − 12. também indispensável uma instrução em contraditório − 13. é imperioso desfazer o mal causado − necessária consciência do caráter excepcional da desconsideração PARTE I O CASO, A CONSULTA, OS TEMAS 1 ANTECEDENTES AS EMPRESAS E O SÓCIO MAJORITÁRIO O consulente é sócio majoritário da Empresa 1, instalada em uma pequena cidade do Estado do Mato Grosso do Sul, bem próxima à fronteira com o Paraguai. Em virtude de graves divergências com os sócios, esteve afastado do comando dessa empresa durante vários anos, sendo inclusive impedido por eles de adentrar o estabelecimento por todo um longo período. Só reassumiu suas atividades quando uma R. decisão judiciária, já passada em julgado, julgou improcedente o pedido de sua exclusão da sociedade, deduzido em juízo pelos sócios, e procedente sua reconvenção, excluindo estes. Tal decisão ocorreu em junho de 2009 e a apelação interposta pelos sócios não progrediu porque deserta. Quando finalmente pôde reassumir suas funções na Empresa, em outubro de 2010, o ora consulente encontrou-a em completo abandono, ali nada existindo senão um prédio com suas atividades completamente paralisadas. Antes dessa retomada, em setembro de 2010 o consulente constituiu, juntamente com outro sócio, nova pessoa jurídica empresarial, também aplicada ao segmento do comércio de carnes, que é a ora denominada Empresa 2. Tal empresa veio a ser instalada naquele prédio onde antes funcionava a Empresa 1, que então estava abandonado. Para iniciar suas novas atividades ali, o Consulente enfrentou uma dificuldade adicional, representada pelo corte de energia elétrica, imposto pela fornecedora ENERSUL porque os sócios não pagaram pelo fornecimento realizado durante sua gestão. Foi necessária uma decisão judicial para que seu sistema elétrico voltasse a ser reativado. Para viabilizar a exploração do prédio e a ativação de seu giro empresarial na recém-criada Empresa 2, o Consulente locou a esta o prédio de propriedade da executada (Empresa 2) pelo aluguel mensal de 50 mil reais. Pretendeu com isso deixar clara a separação patrimonial entre as duas empresas, tendo em vista a previsível apuração de haveres a ser debatida com os ex-sócios. 2 UMA SURPREENDENTE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA BLOQUEIO DE CONTAS BANCÁRIAS Estando as coisas assim, eis que em agosto de 2012 todos os ativos bancários do Consulente e da Empresa 2 vieram ser bloqueados em suas contas por determinação do MM. Juízo de uma Vara Cível da comarca de São Paulo. Tal constrição foi efetivada na fase executiva de um processo monitório promovido pelo BANCO SANTOS S.A., em razão de um débito contraído no ano de 2004 em nome da Empresa 1 pelos sócios que então estavam à sua frente − o que foi feito sem a mais mínima participação do ora Consulente, o qual sequer tinha conhecimento de tal operação bancária. Nessa época, como já se registrou, ele estava afastado da empresa e proibido de ingressar em suas instalações. O MM. Juízo que ordenou tais bloqueios fê-lo sem qualquer cautela prévia, não chamando os ora consulentes a pagar, não se esclarecendo sobre a situação patrimonial da Empresa 1 (devedora), não recolhendo prova alguma sobre uma possível e eventual fraude (que simplesmente presumiu) e, sobretudo, sem realizar a citação dos supostos responsáveis. A desconsideração da personalidade jurídica de ambos foi feita assim abruptamente, como se essa fosse uma providência ordinária na dinâmica dos direitos e na vida dos processos. Atingidos por essa R. decisão, o ora Consulente e a Empresa 2 interpuseram um agravo de instrumento com o objetivo de obter a sua reforma pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, levantando os pontos jurídicos de que a seguir se falará e solicitandome parecer. 3 A CONSULTA E OS TEMAS A consulta que me formulam concentra-se na irresignação dos consulentes em face da desconsideração da personalidade jurídica que lhes foi imposta, questionando não só a sua admissibilidade no caso, que contestam, mas também o modo processual de sua imposição. Sustentam especificamente: a) que, sendo a disregard of legal entity uma medida extraordinária destinada a efetivar a responsabilidade patrimonial com vista à satisfação de obrigações, ela só tem razão de ser no sistema quando o patrimônio do obrigado não dispuser de bens suficientes para tanto − sendo que no presente caso a Empresa 1 e devedora é titular de bens mais que suficientes; b) que, sempre a partir desse caráter extraordinário, a fraude do obrigado e do terceiro é também um elemento indispensável para desconsiderar, porque a própria disregard doctrine tem nessas condutas fraudulentas o seu indispensável substrato ético-jurídico; c) que, para a efetividade das superiores garantias constitucionais do contraditório e due process of law, a imposição de medidas truculentas como essa deve obrigatoriamente ser precedida de razoáveis cautelas, mediante a prévia citação do terceiro, supostamente fraudador, e oferta de um mínimo de oportunidades para a verificação dos pressupostos da desconsideração. Sobre esses temas discorrerá o parecer nos capítulos que a seguir se lêem, adiantando-se desde logo a convicção de que a R. decisão agravada não esteve atenta a tais severos mandamentos, merecendo pois provimento o agravo interposto pelos ora consulentes. PARTE II A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PRESSUPOSTOS NÃO OBSERVADOS 4 A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA SUA EXCEPCIONALIDADE NA DINÂMICA DA RESPONSABILIDADE EXECUTIVA A mais ampla das premissas indispensáveis à boa compreensão da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é a sua excepcionalidade no sistema. Os nobres objetivos motivadores dessa sadia teoria não têm o poder de aniquilar uma das mais tradicionais e arraigadas categorias jurídicas do mundo ocidental, que é a personalidade dos entes corporativos e sua distinção da personalidade das pessoas físicas que os compõem. Essa distinção, que era ditada de modo direto no Código Civil de 1916 (“as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”), continua sendo observada no estatuto agora vigente: seu art. 50, ao estabelecer que os bens dos sócios poderão vir a responder por obrigações da sociedade sempre que houver abuso da personalidade jurídica desta ou confusão patrimonial, está claramente dispondo, a contrario sensu, que sem esse mau uso será sempre respeitada a autonomia patrimonial de cada um. Essa excepcionalidade é um verdadeiro dogma, ou um dos fundamentos basilares da personalidade jurídica dos entes coletivos, sem cuja observância sequer haveria como pensar nessa personalidade. São arbitrárias e assistemáticas as desconsiderações impostas sem a presença desses requisitos, e notadamente sem a verificação da insuficiência patrimonial do obrigado e de uma fraude concertada entre ele e o terceiro a dano dos credores. Essa excepcionalidade apóia-se firmemente na observação de que a concepção e o prestígio da disregard doctrine tiveram origem e motivação no inconformismo do jurista e do juiz modernos, fartos de assistir passivos ao manuseio da personalidade jurídica como instrumento para lesar. Como venho destacando, houve no passado e vêem-se ainda no presente (como neste caso) arroubos de obcecada radicalização dessa proposta, mas a nobreza do Durchgriff paira acima desses fatores de banalização e, encarada equilibradamente pelo prisma de seus generosos objetivos, constitui fator mais que legítimo de busca de realização da promessa constitucional de uma tutela jurisdicional adequada e sobretudo efetiva. Sem pôr abaixo a sólida estrutura da distinção entre a personalidade jurídica dos entes coletivos e a dos sócios, repudiemos seu uso fraudulento a dano de terceiros inocentes. Estou a falar do dualismo regra-exceção proposto pela vanguardeiro ROLF SERICK, ao qual todos reconhecem o rigor científico e o pioneirismo de seu arrojado trabalho (LAMARTINE CORRÊA, RUBENS REQUIÃO, COMPARATO-SALOMÃO etc.). 209 Nessa perspectiva de combate à fraude, a aplicação das novas idéias trouxe em si, desde o início, a marca da excepcionalidade: "a jurisprudência há de enfrentar-se continuamente com os casos extremos em que resulta necessário averiguar quando pode prescindir-se da estrutura formal da pessoa jurídica para que a decisão penetre até o seu próprio substrato e afete especialmente os seus membros". 210 Também por essa excepcionalidade foi o entendimento sumulado na histórica Jornada de direito civil promovida pelo Col. Superior Tribunal de Justiça no ano de 2003, onde se concluiu que “só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e limitadamente aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido” (enunciado n. 7). Estabelecida essa fórmula de equilíbrio estaremos aptos a examinar com serenidade os pontos vitais das polêmicas que vêm surgindo a propósito dessa teoria, assim equacionados: a) a exigência da insuficiência patrimonial e da fraude como motivos para desconsiderar a pessoa jurídica; b) a necessidade de comprovar essa fraude, a qual não se presume; c) a atribuição do ônus probatório ao credor, porque é ele o interessado no reconhecimento desse fato extraordinário na vida dos negócios, que é a fraude; d) a ilicitude 209 . Cfr. JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA, A dupla crise da pessoa jurídica, S.Paulo, Saraiva, 1979; RUBENS REQUIÃO, “Abuso e direito e fraude através da personalidade jurídica”, in RT n. 410, p. 13; COMPARATO-SALOMÃO, O poder de controle na sociedade anônima, 4ª ed., Rio, Forense, 2005, p. 320. 210 . Foi o que disse o pioneiro ROLF SERICK, apud REQUIÃO, “Abuso e direito e fraude através da personalidade jurídica” cit., n. 410, p. 13. da imposição de constrições executivas sobre o patrimônio do sócio sem que antes houvesse ele sido parte em um contraditório estabelecido com vista a apurar sua responsabilidade. 5 SEM INSUFICIÊNCIA PATRIMONIAL NÃO HÁ RAZÃO PARA DESCONSIDERAR AUSÊNCIA DE INTERESSE À DESCONSIDERAÇÃO “Como conceito geral, interesse é utilidade.” Consiste em uma relação de complementariedade entre a pessoa e o bem, tendo aquela a necessidade deste para a satisfação de uma necessidade e sendo o bem capaz de satisfazer a necessidade da pessoa (CARNELUTTI). Há o interesse de agir quando o provimento jurisdicional postulado for capaz de efetivamente ser útil ao demandante, operando uma melhora em sua situação na vida comum – ou seja, quando for capaz de trazer-lhe uma verdadeira tutela, a tutela jurisdicional. “O interesse de agir constitui o núcleo fundamental do direito de ação, por isso que só se legitima o acesso ao processo e só é lícito exigir do Estado o provimento pedido, na medida em que ele tenha essa utilidade e essa aptidão”. Essas palavras minhas, escritas em sede doutrinária,211 são abertamente inspiradas em superiores lições de FRANCESCO CARNELUTTI, de perene atualidade na teoria processual.212 É muito natural que o Estado-juiz só se disponha a desencadear atividades em torno da pretensão de uma pessoa quando for razoavelmente previsível que a medida jurisdicional preparada por essas atividades será apta a produzir o resultado prático desejado e autorizado pelo direito. Antevendo-se a inexistência dessa utilidade, não há por que oferecer ou produzir medidas jurisdicionais e não há por que percorrer todos os caminhos de um processo ou de um específico incidente processual. E agora, aviventados esses conceitos, tornemos à desconsideração da personalidade jurídica, podendo-se afirmar desde logo e com fundamento neles, que também essa medida de tutela ao credor depende de um especial interesse deste − ou seja, da utilidade que essa medida seja apta a lhe proporcionar. Essa utilidade reside na captação de novos bens, além daqueles insuficientes encontrados no patrimônio do devedor, para satisfazer o direito do credor. Daí por que, conforme anunciado ao início do presente tópico, sem insuficiência de bens no patrimônio da sociedade não é legítimo desconsiderar a personalidade desta para captar alhures outros bens. Sempre tendo em mente o caráter excepcional e extraordinário da 211 . Cfr. minhas Instituições de direito processual civil, II, 6ª ed., S.Paulo, Malheiros, 2009, n. 544, pp. 509 ss. 212 . Cfr. Teoria generale del diritto, Roma, Foro it., 1940, § 35, pp. 58-61). desconsideração, é imperioso reconhecer que só estará presente o interesse processual a esta quando o patrimônio do devedor for nulo ou insuficiente, a saber, quando ocorrer a insuficiência patrimonial a que chamamos insolvência. A insolvência constitui pois, nesse quadro sistemático, um indispensável requisito para desconsiderar − porque, o devedor não sendo insolvente, essa medida excepcional não será apta a acrescer vantagem alguma à esfera de direitos do credor. “Somente portanto se a pessoa jurídica (ou o sócio, na desconsideração inversa) não tiver quantidade de patrimônio suficiente disponível é que haverá interesse na desconsideração” (PEDRO HENRIQUE TORRES BIANQUI).213 A esse propósito é conveniente enfatizar que é subsidiária a responsabilidade executiva do patrimônio de terceiro, decorrente da desconsideração da personalidade jurídica − e esse é o motivo pelo qual só é possível reconhecê-la à falta de bens do devedor. Essa técnica destinada à satisfação do crédito, por meio da qual bens de terceiro são atingidos pela execução, não tem o condão de vinculá-lo à obrigação. Ele não participou da relação de direito material e não se torna devedor em razão da desconsideração. O instituto está relacionado exclusivamente com a responsabilidade patrimonial secundária, não primária e não suscetível de confusão com a obrigação, que é um fenômeno de direito material − e tal é a conhecida distinção entre Schuld e Haftung, muito frequente em doutrina. Em consequência, “havendo bens da sociedade suficientes para honrar a execução, faltará ao exequente interesse na desconsideração, porque ele está chamando ao processo mais uma parte para satisfazer seu crédito, mesmo sendo desnecessário”. 214 6 TORNANDO AO CASO A EMPRESA 1 (DEVEDORA) TEM PATRIMÔNIO SUFICIENTE Chega a ser intuitivo que, sendo a insuficiência patrimonial um elemento indispensável sem o qual sequer haverá qualquer interesse jurídico ou prático para desconsiderar personalidades jurídicas, esse fato condicionante do direito a desconsiderar precisa estar provado, sob pena de não poder ser desconsiderado. Sem pôr ainda em discussão a vexata quæstio da pertinência desse ônus probatório, se ao credor, se ao terceiro, o 213 . Cfr. Desconsideração judicial da personalidade jurídica no processo civil, S.Paulo, Saraiva, 2011, n. 46, pp. 115-116. 214 . Cfr. PEDRO HENRIQUE TORRES BIANCHI, op. cit., n. 67, esp. p. 172 fato é que o BANCO fez ao MM. Juízo uma afirmação falaciosa, dizendo que "determinada a busca de bens de declarações de imposto de renda existentes em nome dos executados, a exeqüente não logrou êxito na localização de quaisquer bens passíveis de constrição, sendo que somente foi enviada a declaração referente aos anos de 2004 e 2006 da empresa executada". Nesse momento não estavam na relação processual as pessoas a quem o BANCO pretendia estender a responsabilidade patrimonial, a saber, a pessoa jurídica Empresa 2 e seu sócio, ora Consulente − os quais, justamente por não estarem inseridos na relação processual, não tiveram a mais mínima oportunidade de contrariar tal alegação. O fato é que, conforme agora alegam os consulentes em seu agravo, (a) não só constava a existência de bens nas declarações de bens da Empresa 1 à Receita Federal, referentes aos anos de 2004 e 2006, como também (b) o cartório de registro de imóveis da comarca de Iguatemi, onde se localiza aquela empresa, atesta o registro de nada menos que cinco imóveis em nome desta. Um desses imóveis, ao qual se referem duas das matrículas indicadas, é aquele “onde está construído o prédio da Empresa 1 e avaliado em cerca de R$15.000.000,00 (quinze milhões de reais)”. Daí a falácia da afirmação de insuficiência de bens, feita pelo BANCO. Daí a clara evidência de que o MM. Juízo a quo deveria ao menos determinar diligências junto à Receita e ao Cartório antes de deferir assim sumariamente a extensão da responsabilidade. E daí, conseqüentemente, a conclusão de que, existindo bens penhoráveis no patrimônio da devedora Empresa 1, a desconsideração da personalidade jurídica, deferida na R. decisão ora agravada, foi uma arbitrariedade porque realizada sem um mínimo de instrução probatória e sem contraditório algum; e também foi uma ilegalidade porque, como já se disse e é notório, havendo bens no patrimônio do devedor, é ilícita e rigorosamente desnecessária a desconsideração. Claramente, ou o credor falseou a verdade ao afirmar que não havia bens suficientes à penhora, ou ao menos deixou de esgotar os meios legais disponíveis para fazer tal verificação. Mostra-se, pois, inadmissível a constrição determinada em primeiro grau. Em suma, à míngua de uma concreta insuficiência patrimonial social não há motivo para a desconsideração no presente caso.215 Trata-se de solução excepcionalíssima, admissível apenas se configurada a utilização da pessoa jurídica para prejudicar terceiros216 − e isso será 215 Cfr. ARNOLDO WALD e LUIZA RANGEL DE MORAES, “Da desconsideração da personalidade jurídica e seus efeitos tributários”, in Desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária (obra coletiva), S.Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 244. 216 FÁBIO SIEBENEICHLER ANDRADE, Anotações sobre a desconsideração da personalidade jurídica no Código Civil e na Lei de Defesa do Consumidor, in Desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária, faticamente impossível se porque a pessoa jurídica devedora tem patrimônio suficiente para pagamento de suas dívidas. 7 SANÇÃO À FRAUDE TAMBÉM SEM UMA FRAUDE DEMONSTRADA NÃO SE DESCONSIDERA Conforme lição incontrastada dos próprios arautos da disregard doctrine, ela foi concebida e legitima-se no objetivo de afastar a fraude que por meio da personalidade jurídica se perpetra contra terceiros. Quem primeiro discorreu sobre o tema no direito brasileiro, transportando a tese vinda de plagas germânicas e da common law e cuidando de demonstrar sua compatibilidade com nosso direito positivo, advertiu desde logo: "a doutrina desenvolvida pelos tribunais norte-americanos [...] visa a impedir a fraude ou algum abuso através do uso da personalidade jurídica". Relata que já em 1912, em uma das primeiras exposições da doutrina nos Estados Unidos, ficara dito: "quando o conceito de pessoa jurídica (corporate entity) se emprega para defraudar os credores, para subtrair-se a uma obrigação existente, para desviar a aplicação de uma lei, para constituir ou conservar um monopólio ou para proteger velhacos ou delinqüentes, os tribunais poderão prescindir da personalidade jurídica e considerar que a sociedade é um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e farão justiça entre as pessoas reais" (RUBENS REQUIÃO).217 Também em sede pretoriana, na aplicação da disregard of legal entity desde o começo foi sempre a identificação de alguma fraude, ou intenção de lesar, que levou a doutrina e os tribunais brasileiros, caso a caso, a afastar os óbices que às vezes a personalidade jurídica poderia opor ao cumprimento dos desígnios do direito material e efetiva realização e PEDRO HENRIQUE da justiça. TORRES Como BIANQUI, informam a primeira SIMONE decisão LAHOURGUE brasileira NUNES que tratou da desconsideração da personalidade jurídica data do mesmo ano em que SERICK concluía seu doutoramento, em 1955. Trata-se de acórdão da lavra do notável magistrado EDGARD MOURA BITTENCOURT, proferido nos seguintes termos: a assertiva de que a pessoa da sociedade não se confunde com a pessoa dos sócios é obra coletiva, São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 538. 217 . Op. cit., nn. 2-3, pp. 13-14). O autor norte-americano referido é Wormser. Na doutrina subseqüente, cfr. ainda JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA, A dupla crise da pessoa jurídica cit. cap. VI, n. 3, pp. 608-609. um princípio jurídico mas não pode ser um tabu a entravar a própria ação do Estado, na realização de perfeita e boa justiça, que outra não é a atitude do juiz procurando esclarecer os fatos para ajustá-los ao direito.218 Ainda em sede pretoriana e em tempos mais recentes, na aplicação da disregard of legal entity é sempre a identificação de alguma fraude, ou intenção de lesar, que levou e tem levado os tribunais brasileiros, caso por caso, a afastar os óbices que às vezes a personalidade jurídica poderia opor ao cumprimento dos desígnios do direito material e efetiva realização da justiça. Disse o Col. Superior Tribunal de Justiça: “o juiz pode julgar ineficaz a personificação societária, sempre que for usada com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar terceiros”.219 No mesmo sentido, dissera o conceituado Min. RUY ROSADO DE AGUIAR que “é possível desconsiderar a pessoa jurídica usada para fraudar credores”.220 E também JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA, associa a desconsideração da personalidade jurídica à “necessidade de maior atenção ao elemento ético na análise e interpretação do direito”.221 Resta pois a rigorosa certeza de que o pilar fundamental da teoria da desconsideração consiste no combate à fraude e portanto sua imposição só será legitima quando houver uma concreta atitude fraudulenta cujos efeitos clamem por neutralização. Como vem observando a doutrina mais moderna, o fundamento dessa teoria está na função social da propriedade, de que a personalidade das sociedades constitui manifestação. Daí o “poder-dever do titular do controle de dirigir a empresa para a realização dos interesses coletivos.”222 Por isso é que sem fraude não se desconsidera personalidade jurídica alguma, sendo extraordinários na ordem jurídica os casos de desconsideração precisamente porque a fraude e a má-fé não são fatos ordinários na vida das pessoas e no giro de seus negócios. 8 TORNANDO MAIS UMA VEZ AO CASO 218 . Direito Societário Contemporâneo I, A Desconsideração da Personalidade Jurídica: considerações sobre a origem do princípio, sua positivação e aplicação no Brasil, Quartier Latin, 2009, n. 5, p. 315. 219 . Cfr. STJ, 4a T., REsp 63.652, j. 13.6.00, rel. BARROS MONTEIRO, v.u., DJU 28.8.00, p. 134. V. ainda STJ, 2a Seção, AEREsp n. 86.502, j. 30.6.97, rel. MENEZES DIREITO, v.u., DJU 30.6.97, p. 30.508. 220 . Cfr. STJ, 4a T., REsp 86.502, j. 21.5.96, rel. RUY ROSADO DE AGUIAR, v.u., DJU 26.8.96, p. 29.693 (RISTJ 90/280). 221 . Cfr. A dupla crise da pessoa jurídica cit., cap. VI, n. 3, pp. 608-609. 222 FÁBIO KONDER COMPARATO, “Função social da propriedade de bens de produção”, in Direito empresarial, S.Paulo, Saraiva, 1995, p. 34. No mesmo sentido, FLÁVIA LEFÈVRE GUIMARÃES, A desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor – aspectos processuais, S.Paulo, Max Limonad, 1998, p. 24. COMPLETA AUSÊNCIA DE FRAUDE Também o indispensável requisito da fraude legitimadora do disregard of legal entity é inteiramente estranho ao presente caso, no qual o sócio Consulente ficara afastado durante anos do comando da empresa devedora (Empresa 1) por truculenta iniciativa dos minoritários. Como registrei de início, eles não só lhe moveram uma demanda em juízo com vista a excluí-lo da sociedade, como ainda o impediram fisicamente de sequer adentrar o estabelecimento da Empresa e o alijaram por completo de qualquer decisão. Durante esse período, o Consulente (a) não celebrou contratos, (b) não contraiu obrigação alguma, (c) não negociou com fornecedores ou distribuidores, (d) não comprou pela Empresa 1, (e) nada pagou, (f) nada recebeu e (g) sequer pôde estar presente no estabelecimento desta, porque disso o impediram os sócios. E, mais particularmente, o Consulente não teve participação alguma na captação do mútuo pelo qual o MM. Juízo a quo o responsabiliza. Depois, quando criou a outra empresa que aqui também é parte (Empresa 2), agiu com toda lisura possível, não resguardando bens, não se valendo de presta-nomes, ou laranjas, mas simplesmente apresentando-se com toda transparência como sócio majoritário e líder dessa nova empresa. Inclusive, para bem caracterizar a separação patrimonial entre as duas empresas, na qualidade de diretor da Empresa 1 o Consulente realizou um contrato de locação entre esta e a Empresa 2, referente ao imóvel pertencente àquela. Esse contrato foi formalizado com toda transparência e os aluguéis mensais de 50 mil reais foram devidamente contabilizados na escrita de ambas. Sua conduta sempre foi, pois, radicalmente oposta a de um abuso da personalidade jurídica e não revela traço algum de um fraudulento desvio de finalidade. Nenhuma confusão patrimonial foi estabelecida. Ora, o “abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial”, é o quadro fático posto pelo art. 50 do Código Civil como motivo para o juiz desconsiderar a personalidade jurídica. Sem distorções como essas, desconsiderar personalidades é uma arbitrariedade. Como fato constitutivo de eventual direito do credor a essa desconsideração, tal abuso só pode ser reconhecido quando apoiado em fatos concretos e referendado por prova suficiente. No caso, o único liame entre as duas empresas é o fato do Consulente figurar como sócio em ambas. Nenhum outro fato foi alegado a esse respeito e muito menos provado. Sequer se alegou um desvio de finalidade e inexiste a mais mínima confusão patrimonial entre as duas empresas, até porque o ora Consulente, quando fundou a Empresa 2, sequer exercia a gestão da Empresa 1. Em síntese, a desconsideração da personalidade jurídica não se justifica na situação ora examinada. Não foi apontado, sequer em tese, qualquer ato praticado pelo Consulente, destinado a desviar bens da antiga empresa. Não houve, por parte dele, abuso da personalidade dessa pessoa jurídica. Toda a doutrina, reitere-se, é assente quanto à necessidade desse comportamento para tornar possível a desconsideração: “os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica só poderão incidir sobre os sócios e administradores que efetivamente praticarem abuso ou fraude na utilização da pessoa jurídica (CC, art. 50).223 Não se pode desconsiderar a função da disregard doctrine, a saber, a de afastar a fraude cometida pelo sócio de pessoa jurídica em detrimento de terceiro. Essa teoria não visa simplesmente a ignorar a autonomia da pessoa jurídica nem a responsabilidade limitada do sócio. É aplicada em caráter excepcional, apenas e tãosomente para coibir a fraude.224 9 CONCLUSÃO UMA DESCONSIDERAÇÃO DUPLAMENTE CONTRÁRIA À LEI Tornemos aos dois fundamentais pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica enunciados acima, a saber, (a) o pressuposto da necessária insuficiência patrimonial e (b) o da fraude perpetrada mediante abuso da personalidade jurídica. Ausente a indispensável insuficiência patrimonial. Sendo o patrimônio do devedor suficiente para responder por suas dívidas não há sequer interesse jurídico em desconsiderar a personalidade jurídica, simplesmente porque o que se busca mediante esta é a oferta, ao credor, de bens aptos a suportar uma execução proveitosa. A desconsideração é uma medida extraordinária no sistema e, se não for para produzir tal fortalecimento patrimonial, a prática desse severíssimo mecanismo não será uma medida capaz de suprir eventuais deficiências do patrimônio do devedor. Se ali já existe o suficiente, por que desconsiderar? O direito e o Poder Judiciário não devem estar à disposição de meros caprichos do credor. Mas o MM. Juízo a quo, louvando-se em afirmações falaciosas como essa, deu como certa e provada a insuficiência patrimonial deste, açodando-se em uma arbitrária desconsideração jurídica. Esse é o primeiro dos motivos pelos quais tal desconsideração deve ser desfeita pelo E. Tribunal, mediante o provimento do agravo de instrumento interposto pelos ora consulentes. 223 Cfr. MANOEL QUEIROZ PEREIRA CALÇAS, Sociedade limitada no novo Código Civil, S.Paulo, Atlas 2003, pp. 158-160. 224 DINAMARCO, “Desconsideração da personalidade jurídica, fraude, ônus da prova e contraditório” cit., n. 263, pp. 534 ss. Como ficou demonstrado e o parecer já registrou, a Empresa 1 é titular de ao menos cinco imóveis na cidade em que atua, todos regularmente matriculados (supra, n. 6). A massa credora limitou-se a afirmar, sem provar, que fizera buscas imobiliárias e nada encontrara registrado em nome do devedor. Sem a prática de qualquer fraude. Ainda quando houvesse no presente caso aquele interesse jurídico do credor à desconsideração (e não há), ainda assim o credor não teria qualquer direito a esta, porque aqui não existe o mais mínimo sinal de fraude alguma, perpetrada pela devedora Empresa 1, pelo sócio Consulente ou pela Empresa 2. Como ficou enfatizado de modo minucioso em tópico mais acima, não houve qualquer abuso da personalidade jurídica da Empresa 1 devedora nem há qualquer confusão patrimonial entre esta e a Empresa 2. A desconsideração concedida pelo MM. Juízo a quo passou ao largo do art. 50 do Código Civil, ao desconsiderar uma personalidade jurídica sem lançar qualquer atenção aos requisitos postos por este. Essa é mais uma imperiosa razão para que sua R. decisão seja reformada pela Col. Turma Julgadora mediante o provimento do agravo interposto pelos ora consulentes. Para dar uma consistência mais concreta a essa conclusão tomo a liberdade de repisar certos pontos, já enunciados acima, dos quais emerge a mais firme certeza de que o Consulente não agiu com fraude alguma e não exerceu qualquer abuso da personalidade da devedora (supra, n. 9). Estando totalmente ausente da Companhia e alijado por completo de sua administração, (a) ele não celebrou contratos em nome desta, (b) não contraiu obrigação alguma, (c) não negociou com fornecedores ou distribuidores, (d) não comprou pela Empresa 1, (e) nada vendeu, (f) nada pagou, (g) nada recebeu e (h) sequer pôde estar presente no estabelecimento desta, porque disso o impediram os sócios. E, mais particularmente ainda, o Consulente não teve participação alguma na captação do mútuo pelo qual o MM. Juízo a quo o responsabiliza. Reitera-se ainda: eventual responsabilidade patrimonial de terceiros, com fundamento na desconsideração da personalidade jurídica, dependeria de outros elementos. Como bem observado pela doutrina, a aplicação da teoria por nossos tribunais tem sido bastante cautelosa, exigindo se a presença de pressupostos bem explícitos, evidenciadores da fraude contra credores, do abuso do direito e do desvio de finalidade, para sua incidência.225 Todas as hipóteses de desconsideração aventadas pela doutrina referem-se a manipulações fraudulentas feitas pelos sócios ou administradores de pessoas jurídicas, com o objetivo de lesar os credores226− e nada existe nos autos que comprove eventual desvio de finalidade, 225 MANOEL QUEIROZ PEREIRA CALÇAS, Sociedade limitada no novo Código Civil cit., pp. 163-164. 226 Cfr. FÁBIO ULHOA COELHO, Curso de direito comercial, II, S.Paulo, Saraiva, 2000, pp. 31-34. confusão patrimonial ou negócios simulados realizados em detrimento dos bens pertencentes à Empresa 1. PARTE III GRAVÍSSIMAS INFRAÇÕES PROCESSUAIS O ÔNUS DA PROVA − O CONTRADITÓRIO 10 A FRAUDE, A PROVA E O ONUS PROBANDI Aceito que o fato constitutivo do direito de alguém à desconsideração de uma personalidade jurídica é a fraude, segue-se que esta há de ser alegada por quem pede a desconsideração, pesquisada na instrução processual e reconhecida pelo juiz em decisão motivada. Assim é a vida comum das causas, das demandas em geral e de seu julgamento. Prosseguindo-se nesse raciocínio elementar, vê-se também que, por ser excepcional na experiência do convívio em sociedade, a fraude não se presume. O ordinário se presume NICOLÒ FRAMARINO DEI e o extraordinário se prova, há muitos séculos ensinou MALATESTA; é corrente a oposição entre a boa-fé, que se presume, e a má-fé, que não pode ser presumida. No direito positivo manda o art. 335 do Código de Processo Civil que, na apreciação dos fatos pertinentes às causas em julgamento, o juiz raciocine inteligentemente, levando em conta o que ordinariamente acontece (quod plerumque accidit), para aceitar com mais facilidade fatos de ocorrência mais freqüente na vida comum das pessoas e exigindo mais severamente a prova de fatos extraordinários. Na busca do que é ordinário, em confronto com o que não o é, ele deve levar em conta as máximas de experiência, que constituem significativos dados culturais a serem considerados na apreciação do material fático das causas em julgamento. Continuando nesse elementar raciocínio sistemático, vemos em seguida que há um ônus de provar esse fato constitutivo do direito à desconsideração da personalidade jurídica, que é a fraude, porque allegatio et non probatio quasi non allegatio recaindo esse ônus no sujeito interessado em que a fraude seja reconhecida. Como é notório, o ônus da prova de um fato pertence sempre a quem tem interesse em seu reconhecimento. O ônus de provar a fraude é da parte interessada em obter o reconhecimento da ocorrência desta, com vista à desconsideração da pessoa jurídica, porque, como dito, a fraude é o fato constitutivo do eventual direito à desconsideração (CPC, art. 333, inc. I). 11 A PROVA DA FRAUDE E O DEVIDO PROCESSO LEGAL Recolhidos os elementos comezinhos de técnica processual alinhados logo acima, ver-se-á também que, se a fraude deve ser provada sob pena de não se desconsiderar a personalidade jurídica, sua prova deve ser feita mediante alguma instrução prévia à medida judicial que impõe a desconsideração. Também a necessidade de prévio pronunciamento judicial sobre a fraude tem sido objeto de minhas afirmações em sede doutrinária, como se vê de ensaio publicado em meus Fundamentos do processo civil moderno.227 Nesse sentido, disse o E. Primeiro Tribunal de Alçada Civil paulista, pela voz de respeitadíssimo magistrado (des. JOSÉ ROBERTO BEDRAN): a recorrente não comprovou a dissolução da sociedade. Fez meras conjecturas a respeito. Mas, caso positivada a circunstância, o chamamento à responsabilidade direta dos sócios só se justificaria se, em ação distinta e com esse propósito, ficasse demonstrado que a dissolução, sem o devido cumprimento das obrigações sociais, deu-se fraudulentamente e com o indisfarçável propósito de prejudicar terceiros, vale dizer, em flagrante violação da lei.228 Disse também o estudioso LAURO LIMBORÇO: “quem pretende atingir aquele que se serve de uma empresa para negociação pessoal, com prejuízo para terceiros, terá de utilizar o processo de cognição previsto nos arts. 282 e ss. do CPC, a fim de que, apurado o dolo, a simulação ou a fraude, possa responsabilizar pessoalmente o fraudador. E, certamente, se não dispuser de prova robusta, esbarrará na interpretação que tem sido dada ao caput do art. 20 do CC”.229 O contrário seria ultraje à garantia constitucional do due process of law porque implicaria submeter o patrimônio de uma pessoa diferente do devedor a constrições executivas destinadas à satisfação de obrigações deste, sem ouvir previamente o titular do patrimônio a ser constrito. “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, diz a Constituição da República (art. 5o, inc. LIV). Como sistema de 227 . Cfr. “Desconsideração da personalidade jurídica, fraude, ônus da prova e contraditório”, in Fundamentos do processo civil moderno, I, 6ª ed., S.Paulo, 2009, n. 266, p. 541. 228 . 4a C., agr. instr. n. 368.700-8, j. 5.3.87, rel. JOSÉ BEDRAN, RT 621/126. 229 . Cfr. “Disregard of legal entity”, RT 579, p. 25. freios e limitações ao exercício do poder, essa cláusula impede que o juiz ceda a ímpetos ou que ele se permitisse chegar a resultados sobre a vida ou patrimônio das pessoas, sem antes ouvir os interessados e oferecer-lhe as reais oportunidades de defesa inerentes a uma outra seríssima garantia constitucional, que é a do contraditório (art. 5o, inc. LV). Tudo que o juiz pode e deve fazer no exercício do poder em sede jurisdicional, ele só pode fazê-lo mediante prévia observância do contraditório e ampla defesa, sob pena de transgredir a garantia que a Constituição oferece a esses valores e, indiretamente, sob pena de transgredir também a garantia do devido processo legal. 12 TAMBÉM INDISPENSÁVEL UMA INSTRUÇÃO EM CONTRADITÓRIO Toda vez que se fala em onus probandi é obviamente necessário pensar também na existência de um processo ou ao menos de um incidente processual adequado para a realização da prova. É indispensável colocar em um prévio processo ou fase de conhecimento, ou ao menos em un incidente idôneo do processo ou fase executiva, os fatos que o credor afirme serem caracterizadores de abuso da personalidade jurídica. Nesse processo ou incidente o juiz, em decisão preparada por regular contraditório, declarará se realmente houve a fraude e conseqüentemente os bens do sócio responderão ou se, ao contrário, fraude alguma houve e nenhuma personalidade há a ser desconsiderada. A esse propósito foi dito, no mais elevado patamar de controle judicial das decisões em matéria infraconstitucional (STJ, Min. ELIANA CALMON): resulta das garantias constitucionais do processo que, para desconsiderar personalidades jurídicas e atingir o patrimônio do responsável não-devedor, é indispensável oferecer a este prévia oportunidade para se defender em contraditório. Se a execução já foi instaurada, quer por título judicial ou extrajudicial, é indispensável citá-lo, como ordinariamente exige o Superior Tribunal de Justiça ao autorizar o redirecionamento da execução em caso de não serem encontrados bens da pessoa jurídica indicada no título”. 230 E também disse eu próprio em sede doutrinária: “não basta a citação porque, sem um mínimo de oportunidade de defesa antes da captação de bens do sujeito, essa citação 230 . Cfr. STJ, 2ª T., REsp n. 278.744, j. 19.3.02, rel. ELIANA CALMON, v.u., DJU 29.4.02, p. 220, apud NEGRÃO ET ALII, Código de Processo Civil e legislação processual em vigor,44ª ed., S.Paulo, Saraiva, 2012, nota 4 ao art. 4º LEF, p. 1.420. não valeria mais que um convite a assistir ao próprio velório”.231 Deve portanto ser oferecida ao credor a oportunidade de provar os fatos caracterizadores da fraude, sob pena de não poderem ser reconhecidos pelo juiz e, conseqüentemente, de não poder ser desconsiderada a personalidade jurídica. E é de igual modo indispensável oferecer idênticas oportunidades ao suposto responsável, antes da decisão que desconsidera, sob pena de a desconsideração ser nula por infringência à garantia constitucional do contraditório e também à cláusula, igualmente constitucional, do due process of law. Isso poderá ser feito já na fase de conhecimento, na qual a condenação do responsável terá o efeito de uma desconsideração da personalidade jurídica. Não feito isso, ou sempre que o título executivo for extrajudicial, é no procedimento executivo que se fará o acertamento da situação capaz de conduzir àquela desconsideração. Positivando-se que a sociedade não disponha de suficiente patrimônio responsável, a pedido do exeqüente citar-se-á o sócio supostamente responsável pela obrigação, abrindo-se em seguida uma instrução destinada a apurar sua responsabilidade patrimonial. As disposições legais referentes aos procedimentos executivos não oferecem abertamente dilações dessa ordem mas é imperioso instituir um incidente inicial na execução, ainda que sem lei expressa a respeito, porque do contrário não se poderia chegar legitimamente à responsabilidade daquele cujo patrimônio o exeqüente pretende captar pela penhora. Como venho insistente e enfaticamente frisando, é preciso dar-lhe oportunidade para uma discussão acerca da alegada responsabilidade, procedendo-se a uma instrução, ainda que sumária, e concluindo-se com uma decisão no sentido de, se for o caso, incluir seus bens na execução. Feita a citação, realizado o contraditório, colhidas eventuais provas e afinal decidindo-se, aí então o sócio estará incluído no título executivo e, daí por diante, terá legitimidade para figurar no pólo passivo da execução (CPC, art. 568, inc. I). Reiteradas manifestações do Superior Tribunal de Justiça proclamam a desnecessidade de propor uma ação, ou seja, a desnecessidade de um processo de conhecimento no qual se declarasse a extensão da obrigação ou responsabilidade ao sócio pelas obrigações da sociedade. Votos da Min. NANCY ANDRIGHI e do Min. EDUARDO RIBEIRO, no entanto, ao assim decidirem falam da suficiência de uma 231 . Cfr. DINAMARCO, “Desconsideração da personalidade jurídica, fraude, ônus da prova e contraditório” cit., n. 266, esp. p. 542. decisão incidente ao processo, com legitimidade do terceiro atingido a recorrer e, em um sentido mais largo, defender seus interesses − com o que, obviamente, provocarão nova ou novas decisões do Poder Judiciário sobre a desconsideração inicialmente imposta.232 Mais adequado, diante das garantias do contraditório e due process, será provocar a manifestação do terceiro antes decidir pela desconsideração ou ao menos antes que o patrimônio deste seja atingido por uma constrição dela decorrente. Disse também o Col. Superior Tribunal de Justiça: “a desconsideração da pessoa jurídica é medida excepcional que só pode ser decretada após o devido processo legal, o que torna a sua ocorrência em sede liminar, mesmo de forma implícita, passível de anulação” (Min. JOSÉ DELGADO).233 E, em doutrina, o monografista FÁBIO ULHOA COELHO: “simples despachos, em processos de execução movidos contra a sociedade, determinando a penhora de bens dos sócios importam flagrante desobediência ao direito constitucional e ao devido processo legal”.234 Mais recentemente a imperiosidade da observância do due process levou a Comissão de Juristas encarregada da elaboração do Projeto de Novo Código de Processo Civil a propor a instituição de um “incidente de desconsideração da personalidade jurídica”, para que essa desconsideração possa ser imposta (arts. 62-65 c/c art. 719, § 4º). Esse incidente, que principia por iniciativa do credor ou do Ministério Público (art. 62), incluirá a intimação do sócio ou terceiro e da pessoa jurídica a “se manifestar e requerer as provas cabíveis” (art. 64) e terá fim mediante uma “decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento” (art. 65). Tais disposições, que atendem aos clamores da doutrina e das propostas surgidas no seio do próprio Superior Tribunal de Justiça confirmam que, mesmo de lege lata, aquela garantia constitucional é por si só suficiente para impor as exigências ali contidas. A Comissão nada mais fez do que trazer ao plano do direito positivo infraconstitucional preceitos que emanam daquela superior garantia constitucional. 13 É IMPERIOSO DESFAZER O MAL CAUSADO NECESSÁRIA CONSCIÊNCIA DO CARÁTER EXCEPCIONAL DA DESCONSIDERAÇÃO Não desconheço que, no afã de satisfazer créditos a todo custo, a jurisprudência mais atual vem desconsiderando tais exigências óbvias da ordem constitucional, preferindo penhorar bens de terceiro, especialmente de sócios em sede de execuções fiscais, independentemente de qualquer instrução e até mesmo sem a prévia citação do suposto 232 . Cfr. STJ, 3ª T., RMS n. 16.105, j. 19.8.03, rel. NANCY ANDRIGHI, v.u., DJU 22.9.03, p. 314. 233 . STJ, AgRg no RESP n. 422583-PR, rel. JOSÉ DELGADO, 1ª T., v.u., j. 20.6.02, in RSTJ 161/54. 234 . FÁBIO ULHOA COELHO, A teoria da desconsideração da personalidade jurídica e o devido processo legal, Repertório de Jurisprudência – RJ 3, n. 2, 2000, pp. 48 ss. responsável. Animo-me no entanto a insistir na tese, chamando os srs. juízes à realidade e conclamando-os a atuar equilibradamente, buscando sim a satisfação de créditos, mas não a todo custo. De todo modo, neste caso em que nenhuma cautela dessa ordem se tomou e a desconsideração foi feita literalmente a toque de caixa, é indispensável que o E. Tribunal se disponha a desfazer o mal causado aos consulentes, tomando consciência daquelas indiscutíveis colocações sistemáticas. É indispensável, como premissa geral de raciocínio, tratar o disregard of legal entity como algo extraordinário no sistema, com a convicção de que a possível responsabilidade de patrimônio alheio, justamente por ser extraordinária, é sempre uma responsabilidade subsidiária. Vistas as coisas assim, é também imperioso analisar todos os casos em que um credor postula a desconsideração, em vista do dúplice pressuposto legal da insuficiência patrimonial e da fraude. Sem aquela não há sequer interesse em desconsiderar e o pleito de desconsideração não é mais que um capricho, uma ato de ganância ou uma estratégia espúria destinada a haurir proveitos ilícitos(supra, n. 5). Sem esta a desconsideração é um ultraje ao due process e ao disposto no art. 50 do Código Civil, e também uma insuportável agressão arbitrária ao patrimônio do terceiro. A sede natural e adequada para esse corretivo que alvitro é obviamente o próprio agravo de instrumento já interposto pelos ora consulentes e pendente de julgamento pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, do qual se espera o total provimento desse recurso. São Paulo, 8 de outubro de 2012. Prof. Dr. Candido Rangel Dinamarco