1 VARIAÇÃO E LETRAMENTO EM ESCOLAS URBANAS Ângela

Propaganda
VARIAÇÃO E LETRAMENTO EM ESCOLAS URBANAS
Ângela Marina Bravin dos Santos (FAMA, SEE e SME)
INTRODUÇÃO
No que se refere ao ensino de Língua Portuguesa, os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs), com base em pressupostos da Sociolingüística, propõem a participação crítica do aluno diante das variedades lingüísticas inerentes a qualquer idioma. Para dar conta desse aspecto, alguns livros didáticos adotados por escolas urbanas, especialmente da cidade do Rio
de Janeiro, desenvolveram atividades relacionadas, quase sempre, às variantes estigmatizadas
sem, contudo, levar em conta a competição entre as formas lingüísticas, bem como os contextos estruturais e sociais em que elas se realizam. Além disso, não se considera a variação parte
da competência lingüística de qualquer falante. A abordagem restringe-se à necessidade de levar o aluno a conhecer e respeitar os diferentes registros sociais e regionais.
A impressão que se tem é a de que só ocorre variação lingüística na fala de pessoas de
regiões interioranas ou de indivíduos com baixo grau de letramento. Como ilustração, vejamos um tipo de atividade1 que confirma essa afirmação:
VÍCIO NA FALA
PARA DIZEREM MILHO DIZEM MIO
PARA MELHOR DIZEM MIÓ
PARA PIOR PIÓ
PARA TELHA DIZEM TEIA
PARA TELHADO DIZEM TEIADO
E VÃO FAZENDO TELHADOS.
OSWALD DE ANDRADE
Questão proposta:
O autor está censurando, isto é, criticando as pessoas a quem ele se refere ou revela respeito a elas? Justifique.
Veja que o poema serve de apoio para reflexões acerca do preconceito lingüístico em relação a variantes estigmatizadas que, nesse texto, estão representadas pela despalatalização da
lateral, como se vê em mio, teia, teiado – e pelo apagamento da vibrante em mio e pió. A resposta esperada seria a de que o poeta revela respeito por pessoas que realizam tais variantes:
1
Atividade destacada de AMARAL (2003: 334).
1
“Ao afirmar “vão fazendo telhados, ele revela respeito por esses falantes, valorizando-os pela
importância de sua função social” (Amaral, 2003: 334).
Não há preocupação em mostrar para o aluno que, no poema de Oswald, deveria estar
registrado também o alteamento2 da vogal média posterior /o/ nas palavras mio e teiado, uma
vez que o indivíduo que despalataliza a lateral, provavelmente, também eleva as vogais médias. Nesse último caso, tem-se uma variação lingüística comum a falantes não só de diferentes regiões, mas de níveis de escolaridade diversos.
Como não se considera a elevação das vogais um fenômeno estigmatizado, a variação
das médias não é discutida em sala de aula. Não se apresentam também outras estruturas menos estigmatizadas e, por isso, freqüentes na fala do aluno, como a supressão do [r] em infinitivos verbais (desenvolver>desenvolvê, nas formas do futuro do subjuntivo estiver > estivê) e
nos adjetivos, substantivos e advérbios polissilábicos (melhor> melhó; regular>regulá, amor>amo) (Cf. Bortoni-Ricardo, 2006), reforçando-se a idéia de que alunos de escolas urbanas estão livres de variação lingüística, o que, decididamente, constitui-se num equívoco com
conseqüências graves para o ensino da língua portuguesa.
VARIAÇÃO, LETRAMENTO E PCNS
Na visão estruturalista, considera-se a língua um objeto homogêneo. Isso significa que,
nesse modelo, a variação lingüística fica à margem do sistema lingüístico, domínio, por excelência, da invariância, com o qual o paradigma variacionista3 rompe ao pressupor uma concepção de língua em que a heterogeneidade é característica inerente ao sistema e, por conseqüência, parte integrante da competência lingüística do falante. È justamente nesse pressuposto que os Parâmetros Curriculares Nacionais se pautaram para a elaboração das diretrizes do
ensino de Língua Portuguesa: “...o estudo da variação cumpre papel fundamental na formação
da consciência lingüística e no desenvolvimento da competência discursiva do aluno, devendo
estar sistematicamente presente nas atividades de Língua Portuguesa”. (PCN, 1998:81-82)
Considerar, portanto, a variação como aspecto fundamental no desenvolvimento da
competência discursiva do aluno é reconhecer o fato de que sua fala e escrita são construídas
discursivamente por formas lingüísticas que competem entre si. Trata-se do que a Sociolin-
2
3
Alteamento – elevação das vogais médias em sílaba átona: o /e/ sobe a /i/ e o /o/, a /u/.
Convido o leitor a buscar mais informações sobre Sociolingüística Variacionista em Mollica e Braga (2004).
2
güística chama de variantes lingüísticas, ou seja: as “diversas maneiras de se dizer a mesma
coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade” (Tarallo, 1985: 8).
À medida que o indivíduo alcança um grau de letramento mais avançado, aumenta seu
conhecimento lingüístico, levando-o a optar por uma ou outra variante a depender da sua necessidade discursiva. Logo, não constitui nenhuma impropriedade teórica pressupor que o sujeito mais letrado possui mais variação lingüística, o que deveria nos levar a desfazer o equívoco de considerar os eventos orais e escritos produzidos na escola, principalmente nas urbanas, isentos de variação.
Mas constitui um equívoco classificar dicotomicamente oralidade e escrita, admitindose a demarcação de limites entre uma e outra modalidade como se construções do oral não estivessem presentes nos textos escritos. Para explicar essa interpenetração da fala na escrita, ou
vice-versa, Bortoni-Ricardo (2006) propõe uma linha imaginária a que chama de contínuo oralidade – letramento, ao longo do qual dispõe eventos de letramento e eventos de oralidade.
A diferença é a de que, nos primeiros, há o apoio do texto escrito, como em uma aula, por exemplo, onde também podem ocorrer mini-eventos de oralidade em que não se tem um roteiro
escrito previamente.
A autora defende a idéia de que não existem fronteiras bem marcadas entre esses eventos, mas sobreposições. A próxima seção mostrará, em relação Português Brasileiro (PB), um
estudo que revela esse contínuo.
O CONTÍNUO ORALIDADE-LETRAMENTO NO PB
Vieira (2007) atesta, em contextos com lexias verbais simples, que a variação na ordem
dos clíticos pronominais ocorre tanto na escrita quanto na fala, a depender de elementos favorecedores diferentes, conforme se vê no quadro a seguir, reproduzido na íntegra de Vieira
(2007: 137).
Síntese da concretização das variantes da ordem do clítico pronominal
em lexias verbais simples no português do Brasil segundo Vieira (2002)
Próclise
Ênclise
MODALIDADE ORAL
Ordem não-marcada (geral)
MODALIDADE ESCRITA
Ordem não-marcada
(com nítidas restrições)
Realização reduzida e
Início absoluto
especialmente com os pronomes o / a Após locuções adverbiais,
(s) e se.
Conjunções coordenativas e
SNs sujeito (de forma menos expressiva)
3
A conclusão a que a autora chega é a de que a próclise predomina até mesmo na escrita,
inclusive em contextos prescritos pela gramática normativa como lugar de ênclise: O menino
se referiu ao fato (Vieira, 2007:137). Note que, nesse caso, depois de um SN sujeito, a ênclise
seria a forma adequada. Mas isso não significa que a colocação depois do verbo não figure na
fala ou na escrita do brasileiro. Vieira (2007) encontrou ênclise na oralidade até mesmo em
formas do futuro (estudaria-se a questão). Para ela, fica claro que, no tocante à ordem dos clíticos pronominais no PB, a suposição de que “se usa a ênclise no PB exclusivamente na modalidade escrita” (Vieira, 2007:138) não se sustenta mais. Na verdade, a ordem dos clíticos é
um caso de variação contínua na linha imaginária oralidade-letramento.
O CONTÍNUO ORALIDADE-LETRAMENTO
NA PRODUÇÂO DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO
O contínuo oralidade-letramento pôde ser constatado em alguns fenômenos realizados
por alunos do Ensino Médio em diferentes situações discursivas. Tomemos inicialmente as
formas da concordância nominal, que são apresentadas pela tradição gramatical como se sua
realização fosse invariável, ou seja: como se a combinação entre os elementos em acordo ocorresse sempre diante da presença fonética da flexão e em todos os contextos. Ora, a concordância nominal, no PB, constitui um fenômeno variável em que competem realização e nãorealização da regra. A escola, na avaliação dos textos dos alunos, valoriza apenas a primeira
variante, estigmatizando a segunda, especialmente nos contextos em que o determinante figura bem próximo ao elemento determinado. Assim, dificilmente, encontraremos na escrita dos
alunos uma estrutura como em (1):
(1) Aqueles menino bonito
Por outro lado, o monitoramento escolar não atua tão ferozmente quando se trata de
contextos menos marcados, conforme se vê em (2) e (3)4:
(2) Foi descartada as possibilidades de entendimento entre o Governo e os professores, ficando os alunos a se sentirem perdidos.
(3) Foram retirado das letras musicais sete palavras, aleatoriamente.
4
Os exemplos (2), (3) e (4) foram produzidos em situação de escrita espontânea, sem a atuação do professor. Os
textos onde figuram fazem parte de documentos do Grêmio Estudantil de uma escola do Ensino Médio da Zona
Oeste- RJ.
4
Ocorrendo um adjetivo em construções predicativas/passivas, numa posição anteposta
ao sujeito, a ausência da flexão não é tão estigmatizada quanto em (1). Entretanto, tais estruturas competem com formas como as que aparecem em (4):
(4) Foram percebidas as piadas que o Prefeito fez.
A ausência da concordância ocorre, portanto, na escrita, ainda que em contextos específicos. Para verificar se, na fala, os alunos realizam a competição entre as variantes (realização
ou apagamento da concordância), participei de alguns eventos de oralidade promovidos por
eles. Reuni uma amostra com 15 exemplos de adjetivos em passivas, dos quais sete concordavam com o núcleo do sujeito. Logo, quanto ao fenômeno da concordância nominal, confirmase o contínuo oralidade-letramento. A pergunta que se põe é: de que forma a variação ausência / realização da concordância nominal poderia estar sistematicamente presente nas atividades de Língua Portuguesa?
Brandão (2007:80-81) apresenta uma proposta consoante com os Parâmetros. Segundo a
autora, devemos:
(a) chamar a atenção do aluno para o fato de haver, em português, pelo menos dois
padrões básicos e opostos de aplicação da categoria de número plural no âmbito
do SN:
I) um, redundante, em que se usa a marca em todos os constituintes flexionáveis do
SN;
II) outro, simplificado, em que se utiliza a marca no primeiro constituinte, ou nos
constituintes pré-nucleares…
(b) enfatizar que todos esses padrões são funcionais, isto é, atingem os mesmos objetivos comunicativos e, por isso, são igualmente válidos;
(....)
(e) levar o aluno a selecionar SNs de textos orais/escritos tipologicamente diversos,
mas, a princípio, próximos de sua realidade social, de modo que ele identifique os
mecanismos predominantes nas diferentes variedades e modalidades da língua e,
assim, introjete a noção de norma e, sobretudo, a de pluralidade de normas; (...)
Outro fenômeno que revela o contínuo oralidade-letramento consiste na indeterminação
do sujeito. Cunha e Cintra (1985: 125) prescrevem duas estratégias:
5
a) verbo na 3ª pessoa do plural:
– Contaram-me, quando eu era pequenina, a história dos náufragos, como nós. (A.
Ribeiro, SBAM,265)
b) ou na 3ª pessoa do singular:
Ainda se vivia num mundo de incertezas (A . Bessa Luís, OM, 296)
Trabalhos sociolingüísticos (DUARTE, 1995 e BRAVIN DOS SANTOS, 2000), entretanto, têm demonstrado que, tanto na fala quanto na escrita, aparecem outras formas de indeterminação não contempladas pela Gramática Tradicional. Bravin dos Santos (2000) verificou, em diferentes tipos de textos de alunos do Ensino Médio, 5 estratégias de indeterminação, as mesmas constatadas para a fala em Duarte (1995): uso da 1ª pessoa do plural (nós), 3ª
pessoa do plural (eles), a gente, você, se e zero. Vejamos, primeiramente, no gráfico a seguir,
como ficou a distribuição das estratégias:
Estratégias de indeterminação na escrita de alunos do Ensino Médio
4%1%
8%
Nós
Eles
Se
28%
59%
Você
A gente
Observando o gráfico, podemos notar que a estratégia de indeterminação preferida é o
uso da 1ª pessoa do plural (59%):
(5) Nós tentamos deixar o nosso país ou, pelo menos, o nosso bairro limpo. Nós deixamos tudo bem limpo. (Dissertação)
Isso revela, por um lado, a utilização de uma forma não prescrita pela norma gramatical
e, por outro, a escolha de uma estratégia que não apresenta a formalidade do uso do se (surpreendentemente atingindo apenas 8%):
6
(6) .por mais dinheiro que se ganhe, uma coisa não se deve vender: a dignidade. (Dissertação)
É interessante notar que o percentual aqui obtido para a indeterminação com nós é semelhante aos resultados verificados por Cavalcante (1999) em editoriais de jornais cariocas
escritos na primeira metade do século XIX. Com 28%, aparece a 3ª pessoa do plural (aqui representada por (eles):
(7) Às vezes penso por que eles não aproveitaram os colégios tradicionais?(Carta/jornal)
Finalmente, temos a 2ª pessoa (você) (4%), estratégia preferida na fala (conforme verificou Duarte, 1995):
(8) Dinheiro, você pode tê-lo facilmente... (Dissertação)
e a gente (1%), que apresentou apenas 2 ocorrências com referência arbitrária:
(9) Eu sei que nós não devemos viver a vida que a gente tem... (Descrição)
Esse resultado revela a rejeição a essa estratégia na escrita e o reconhecimento, por parte do aluno, da sua informalidade. De qualquer modo, embora os percentuais sejam muitíssimo reduzidos, já podemos verificar a lenta infiltração nos textos escritos de você e a gente
como formas de indeterminação.
No tocante às construções sem o clítico se, registramos apenas 1 ocorrência, ilustrada
em (10), construção com o auxiliar aspectual “precisar”, já muito freqüente na língua oral. O
índice abaixo de 1% impossibilitou a visualização no gráfico.
(10) Para ser artista, ø precisa estudar durante anos. (Dissertação)
Restringir o estudo da indeterminação do sujeito às duas estratégias descritas pela norma gramatical seria negar o contínuo oralidade-letramento, uma vez que essa descrição lingüística se baseia em eventos de escrita. Para ampliar as possibilidades de análise das estruturas de sujeito indeterminado, propomos que o professor:
a) relacione a produção de texto à discussão dos tipos de sujeito, enfatizando a estreita ligação entre forma do sujeito indeterminado e o discurso dissertativo argumentativo;
b) apresente estruturas com as diferentes estratégias de indeterminação para que o aluno as
empregue em um texto argumentativo, atribuindo-lhe a opção de escolha;
c) discuta, a partir do texto do aluno, as diferentes estratégias utilizadas, comparando-as ao
que propõe a prescrição gramatical.
7
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quanto à escrita dos estudantes, nas amostras analisadas, o que se observa é a atuação
do letramento na apropriação de formas em desuso na fala, mas isso não significa que a oralidade esteja no pólo contrário ao da escrita. Na verdade, tanto a modalidade falada quanto a
escrita apresentam fenômenos variáveis distribuídos num contínuo oralidade-letramento, resultando numa diferença de grau muito mais do que de natureza entre fala e escrita.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Emília e outros. Novas palavras. São Paulo: FTD, 2003, p.334.
BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.
BRANDÃO,S.F.Concordância nominal In: Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo:Contexto, 2007 p. 56-83.
BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÂO FUNDAMENTAL/MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa – 5a a 8a série do Ensino
Fundamental. Brasília/DF:SEF/MEC.1998.
BRAVIN DOS SANTOS, Ângela Marina. O sujeito pronominal em contexto de mudança paramétrica: a escrita de alunos do Ensino Médio. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras. 2000.
CUNHA, C. e CINTRA, L. Nova Gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
DUARTE, M.E.L. A perda do princípio “evite pronome” no português brasileiro. Tese de
Doutorado em Lingüística. Campinas: Unicamp. 1995.
MOLLICA, M.C e BRAGA Maria Luiza (orgs.). Fundamentação teórica:conceituação e delimitação. In: Introdução à sociolingüística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto,
2004, p. 9-15.
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. São Paulo: Ática. 1985.
VIEIRA, S.R. Colocação pronominal. In: Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo:
Contexto, 2007, p. 121-146.
8
Download