Estudo Clínico e Molecular na Distrofia Muscular de Duchenne

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Internacional Journal of Cardiovascular Sciences. 2015;28(3):173-180
ARTIGO ORIGINAL
Estudo Clínico e Molecular na Distrofia Muscular de Duchenne
Clinical and Molecular Study on Duchenne Muscular Dystrophy
Gesmar Volga Haddad Herdy1, Roberta Duarte Bezerra Pinto2, Guilherme de Almeida Costa1,
Ana Flavia Malheiros Torbey1, Vivianne Galante Ramos3, Marcio Moacyr Vasconcelos1
Universidade Federal Fluminense – Serviço de Pediatria – Niterói, RJ – Brasil
Universidade Federal Fluminense – Programa de Residência em Clínica Médica – Niterói, RJ – Brasil
3
Fundação Oswaldo Cruz – Rio de Janeiro, RJ – Brasil
1
2
Resumo
Fundamentos: A forma de Duchenne é a mais comum e grave das distrofias musculares. De herança recessiva
ligada ao cromossoma X, acomete meninos e afeta os músculos estriados e o miocárdio. Origina-se de mutações
no gene da distrofina, o maior gene humano com 79 éxons.
Objetivos: Verificar as alterações cardíacas iniciais em pacientes pediátricos com distrofia muscular de Duchenne
(DMD) e realizar o estudo molecular das alterações no gene da distrofina.
Métodos: Estudo prospectivo incluindo pacientes pediátricos portadores de DMD, com avaliação clínica, medição
do nível sérico de creatinofosfoquinase, eletrocardiograma, ecoDopplercardiograma e eletrocardiografia dinâmica
e genotipagem do DNA, com amplificação dos 18 éxons mais acometidos.
Resultados: Foram estudados 11 meninos de 6-14 anos de idade. Não havia alterações importantes ao exame
clínico cardiológico. Observou-se aumento da creatinofosfoquinase em todos os pacientes. O eletrocardiograma
mostrou alterações precoces, com ondas R altas em V1 (n=7), bloqueio de ramo direito (n=2), ondas delta e
PR curto (n=1) e distúrbio da repolarização ventricular (n=1). Em 4 pacientes, o ecocardiograma evidenciou sinais
de disfunção sistólica. O eletrocardiograma dinâmico (Holter) mostrou alteração em 4 pacientes: com muitas
extrassístoles (n=3) e com síndrome de Wolff-Parkinson-White (n=1). Todas as crianças recebiam corticoterapia.
Não houve correlação significativa entre a deleção do éxon 52 e arritmias (p=0,43). O estudo molecular evidenciou
deleção do éxon 52 nos 4 pacientes com cardiomiopatia dilatada, sendo que em 2 havia deleção concomitante nos
éxons 1 e 50, respectivamente. Nos outros 7 pacientes havia deleção nos éxons 48, 51, 52 e 57.
Conclusões: O eletrocardiograma mostrou as primeiras alterações nos pacientes pediátricos com DMD. Nos casos
com cardiomiopatia dilatada e arritmia, detectou-se deleção do éxon 52.
Palavras-chave: Distrofia muscular de Duchenne; Distrofina; Criança
Abstract (Full texts in English - www.onlineijcs.org)
Background: Duchenne Dystrophy is the most common and severe form of muscular dystrophy. It has an X chromosome-linked recessive
inheritance and affects boys’ striated muscles and myocardium. It is caused by mutations in the dystrophin gene, the largest human gene,
composed of 79 exons.
Objectives: To check the early cardiac changes in pediatric patients with Duchenne muscular dystrophy (DMD) and carry out the
molecular study of changes in the dystrophin gene.
Methods: Prospective study involving pediatric patients with DMD, with clinical assessment, measurement of serum levels of creatine
phosphokinase, electrocardiogram, Doppler echocardiography and dynamic electrocardiography and DNA genotyping, with amplification
of the 18 most affected exons.
Results: A group of 11 boys aged 6-14 years was studied. Clinical cardiological examination did not reveal any major changes. An increase
in creatinine phosphokinase was detected in all patients. Electrocardiogram showed early changes, with high R waves in V1 (n=7) right bundle
branch block (n=2), delta waves and short PR interval (n=1), and signs of disturbance of ventricular repolarization (n=1). Echocardiogram
showed signs of systolic dysfunction. Dynamic electrocardiogram (Holter) showed changes in 4 patients: with many extrasystoles (n=3) and
Wolff-Parkinson-White syndrome (n=1). All children received corticosteroid therapy. There was no significant correlation between exon
52 deletion and arrhythmias (p=0.43). The molecular study revealed an exon 52 deletion in 4 patients with dilated cardiomyopathy, of which
2 had concomitant deletion of exons 1 and 50, respectively. Other 7 patients had deletions of exons 48, 51, 52 and 57.
Conclusions: Electrocardiogram showed the first changes in pediatric patients with DMD. In cases with dilated cardiomyopathy and
arrhythmia, the deletion of exon 52 was detected.
Keywords: Duchenne muscular dystrophy; Dystrophin; Child
Correspondência: Gesmar Volga Haddad Herdy
Travessa Antonio Pedro, 10 ap. 301 – Centro – 24230-030 – Niterói, RJ – Brasil
E-mail: [email protected]
DOI: 10.5935/2359-4802.20150026
Artigo recebido em 20/05/2015, aceito em 12/07/2015, revisado em 17/07/2015.
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Herdy et al.
Distrofia Muscular de Duchenne
Introdução
A distrofia muscular de Duchenne (DMD) é a forma mais
comum e grave dentre as distrofias musculares na criança
e ocorre em 1:3 500 meninos. É uma doença hereditária
recessiva, ligada ao cromossoma X, que afeta músculos
esqueléticos, coração e cérebro, com evolução progressiva
e morte em torno da segunda década, geralmente por
complicações respiratórias ou cardíacas1-3. Cerca de 30,0%
desses casos decorrem de novas mutações4. Origina-se
de uma alteração no locus Xp21.1, sede do gene da
distrofina, o maior gene humano, constituído por
79 éxons. A função da distrofina é conectar o citoesqueleto
da fibra esquelética à matriz proteica extracelular,
estabilizando a contração muscular.
Na DMD, a proteína é ausente ou
intensamente anormal, resultando em
desequilíbrio na camada lipídica da
•CPK – creatinofosfoquinase
membrana com influxo de grande
quantidade de cálcio e morte celular.
•CPK-MB – fração CPK
Isso leva à degeneração rapidamente
•DMD – distrofia muscular
de Duchenne
progressiva da musculatura esquelética e
cardíaca, com substituição fibrótica2,5. A
•IECA – inibidor da enzima
conversora da angiotensina
investigação molecular permite diferenciar
•LDH – desidrogenase
as principais formas de distrofia. O RNA
láctica
mensageiro da distrofina se expressa
•VE – ventrículo esquerdo
predominantemente nos músculos
esquelético, cardíaco e liso, com baixos
níveis no cérebro 6. As características clínicas são
variáveis, bem como as manifestações cardiovasculares1.
A maioria dos pacientes apresenta cardiomiopatia, mas
os sintomas podem estar mascarados pela fraqueza
muscular.
ABREVIATURAS E
ACRÔNIMOS
Este estudo tem por objetivo avaliar as primeiras
alterações cardíacas em pacientes pediátricos com DMD
e realizar o estudo molecular das alterações no gene da
distrofina.
Métodos
Estudo prospectivo em pacientes pediátricos portadores
de DMD, com avaliação clínica, medição do nível
sérico de creatinofosfoquinase, eletrocardiograma,
ecoDopplercardiograma e eletrocardiografia dinâmica e
genotipagem do DNA, com amplificação dos 18 éxons
mais acometidos.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Conselho de
Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal Fluminense, sob o nº CAAE0163.02.58.203/10.
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Artigo Original
Pacientes com diagnóstico de distrofia muscular
progressiva (tipo de Duchenne) foram encaminhados ao
ambulatório de cardiologia pediátrica. A fim de detectar
as alterações cardíacas iniciais na fase pré-clínica, os
pacientes maiores de seis anos foram submetidos a
eletrocardiograma convencional (Dixtal-Biomédica,
Manaus, Brasil), ecocardiograma bidimensional com
Dopplermetria (Vivid 3-GE, New Jersey, USA) e
eletrocardiografia dinâmica de 24 horas-método Holter,
utilizando o programa Cardiosmart (Cardios, gravador
Cardiolight – São Paulo, Brasil).
O sangue foi coletado, mantido em refrigeração por
algumas horas e enviado ao Laboratório de Genética
Humana da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da
Universidade do Grande Rio (Unigranrio) para
investigação molecular, realizada por um dos
pesquisadores. A extração do DNA genômico foi
realizada pela técnica descrita por Miller et al.7, a partir
de uma camada de leucócitos de alíquota de 5 mL de
sangue periférico.
Genotipagem para mutações no gene da distrofina
A genotipagem de cada paciente foi realizada por reação
em cadeia da polimerase (PCR) Multiplex, seguindo
protocolo já estabelecido para detectar, com sondas
específicas, as diferentes mutações previamente descritas
no gene da distrofina humano8.
Investigação molecular do gene da distrofina
Para a investigação molecular do gene da distrofina
foram utilizados 18 pares de oligonucleotídeos, que
permitem a amplificação diferencial das regiões que
compreendem os 18 éxons que são os alvos mais
frequentes das mutações na DMD.
Para cada reação de amplificação é preparada uma
solução de 50 mL, contendo: 250 ng de DNA genômico;
200 mM de dNTPs; 1 mM de cada iniciador; 1X de tampão
de PCR (Perkin Elmer, Tucson, USA), 2,5 mM de MgCl2
(Perkin Elmer, Tucson, USA); e 0,3 U de AmpliTaq Gold
(Perkin Elmer, Tucson, USA). Utilizou-se o termociclador
Programmable Thermal Controller (PTC)-100 (Memphis,
USA) (Peltier-effect cycling, MJ Research, San Diego,
USA) programado para uma desnaturação inicial de 94°C
por 7 minutos, seguido de 25 ciclos de 94°C por
30 segundos, 65°C por 4 minutos, 72°C por 10 minutos e
um ciclo final de 4 minutos por 72°C. Foram misturados
10 μL dos produtos da PCR com 2 µL de corante de
corrida e, posteriormente, submetidos à eletroforese em
gel de ágar a 2,5%. A eletroforese ocorreu em cuba
horizontal, usando-se como tampão de corrida TBE 1X.
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Artigo Original
Ao término da corrida eletroforética, o gel foi retirado da
cuba e imerso em solução de brometo de etídio, por
5 minutos. Após a coloração, o gel foi colocado sob um
transluminador, que permite a visualização dos
fragmentos obtidos através da PCR. Os géis foram
fotografados pelo sistema ImageMaster VDS (Bufallo,
USA)9,10. Para detectar a deleção do éxon 57 utilizou-se o
método Multiplex Ligation-dependent Probe Amplification
(MLPA)8.
Através da amplificação foi realizada uma corrida
eletroforética para verificação dos éxons 4, 8, 12, 17, 19,
44, 45, 48 e 51 (Chamberlain et al.9) e dos éxons 1, 3, 6, 13,
43, 47, 50, 52 e 60 (Beggs et al.11).
Os pacientes foram acompanhados nos ambulatórios de
cardiologia pediátrica, com os exames cardiológicos
repetidos a cada seis meses, além dos outros ambulatórios
(neurologia, fisioterapia e ortopedia).
Foi realizado estudo estatístico para verificar a associação
entre presença de arritmias e deleção de éxon através do
teste de Fisher.
Resultados
Foram estudados 11 pacientes, todos do sexo masculino,
entre 6-14 anos de idade. Na primeira avaliação
cardiológica, 6 pacientes apresentavam alteração na
marcha e 5 já eram cadeirantes. A história familiar
mostrou que 5 tinham parentes com a mesma doença
(irmão, tio e primos) e 6 desconheciam parentes
acometidos. Todos relataram o início dos sintomas com
fraqueza muscular entre 4-6 anos de idade. O sinal de
Gowers estava presente desde os 6 anos de idade. Os
principais dados do exame neurológico foram: diminuição
ou abolição dos reflexos tendíneos profundos e
dificuldade de marcha, que geralmente se iniciava como
marcha anserina, evoluindo progressivamente para
dificuldade em subir degraus até a fraqueza muscular
acentuada com confinamento a cadeira de rodas.
O exame clínico cardiovascular inicial não mostrava
sinais importantes. Em todos os pacientes a pressão
arterial, os pulsos e a palpação do precórdio eram
normais. Em 2 pacientes auscultou-se um sopro sistólico
no bordo esternal esquerdo, com características de sopro
inocente. Em um paciente, o sopro sistólico era rude, com
irradiação para o lado direito e a segunda bulha mais
intensa sem desdobramento alterado. Não foi observada
alteração de ritmo, clinicamente, em nenhum caso.
Herdy et al.
Distrofia Muscular de Duchenne
Em todos os pacientes os marcadores enzimáticos,
principalmente a creatinofosfoquinase (CPK), estavam
muito aumentados, assim como a fração CPK-MB e a
desidrogenase láctica (LDH).
O eletrocardiograma mostrava em 7 pacientes sinais de
ondas R altas em V1, ondas Q estreitas em precordiais
esquerdas (Quadro 1; Figura 1); 2 pacientes apresentavam
hipertrofia ventricular direita, em 1 paciente exibia
distúrbio difuso de repolarização ventricular. Uma
criança que teve crise de taquicardia paroxística
apresentava PR curto com onda delta.
Pelo ecocardiograma, havia sinais de diminuição da
função sistólica em 4 pacientes: casos 1, 5, 10 e 11
(Quadro 1). Nestes, a fração de ejeção era <46% e havia
dilatação discreta da cavidade ventricular esquerda. Em
1 paciente havia pequena comunicação interventricular
(caso 2), e o exame foi normal em 6.
O eletrocardiograma dinâmico foi considerado normal em
6 crianças, com idade entre 6-13 anos. Em 3 foram
encontradas extrassístoles supra e ventriculares bimórficas.
O caso 4, criança de 8 anos, mostrava espaço PR curto,
QRS alargado e ondas delta, cujo eletrocardiograma basal
já evidenciava características da síndrome de WolffParkinson-White. O caso 5, de 14 anos, apresentava
importantes alterações no traçado (Quadro 1; Figura 2):
taquicardia com bigeminismo e trigeminismo, além de
mais de 190 extrassístoles ventriculares.
Quanto ao tratamento, além da fisioterapia, todos
estavam em uso de corticosteroides. Os quatro pacientes
que apresentaram disfunção ventricular receberam
enalapril, e o que apresentava arritmias ao
eletrocardiograma (Holter) também recebeu carvedilol.
O paciente com síndrome de Wolff-Parkinson-White foi
medicado com propafenona.
Nas reavaliações subsequentes, o caso mais grave
apresentou melhora tanto da função sistólica de VE,
quanto do registro da arritmia com diminuição da
extrassistolia supra e ventricular durante as 24 horas,
após a associação dos medicamentos. Em 2 pacientes
houve melhora da função sistólica após o tratamento
com vasodilatadores. Os outros pacientes não
apresentaram até o presente, maior gravidade nas
alterações cardíacas.
Nos casos 10 e 11, havia a história do irmão mais velho
que foi a óbito dois anos antes e com insuficiência
cardíaca, cujo diagnóstico da doença foi muito tardio.
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Herdy et al.
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Quadro 1
Aspectos clínicos de 11 pacientes com distrofia muscular de Duchenne
Caso Início História
idade familiar de
(anos)
DMD
Exame físico
ECO
ECG
Holter
Déficit da função
sistólica e diastólica
de VE; (FE=42%)
R em V1. T
negativa em
derivações
anterosseptais
Normal
Enzimas
Medicação
1
6
1 primo
Deambula com
dificuldade
2
6
ND
Marcha
digitígrada,
lordose lombar
3
4
1 tio e
3 primos
Marcha
levemente
anserina
Normal
Sugestivo de
hipertrofia septal
4
6
ND
Dificuldade na
marcha
Normal
PR curto; Onda
delta
PR↓ QRS alargado
com onda delta
CK=4 783;
CKMB=148;
LDH
Deflazacort,
Propafenona
5
6
ND
Cadeirante
Disfunção contrátil
de VE moderada
(FE=44%)
Alteração
inespecífica da
repolarização
ventricular
Taquicardia
Bigeminismo e
trigeminismo,1903
XT vent
CK=3 643;
CKMB=119;
LDH
Deflazacort,
Carvedilol,
Enalapril
6
5
Vários
primos
RTP↓↓, Aquileu
abolido. Marcha
anserina
Normal
Taquicardia
sinusal Rsr’ em
V1, R em V2, Q
em D1, V4, V5, V6
Normal
CK=22 554
Deflazacort
7
4
ND
cadeirante
desde 10 anos
Normal
rSR’ em V1, RS
em V2 e V3,
BRD
XT supra, XT vent
raras bimórficas
CPK=6 482
Prednisona
8
4
ND
Hipertrofia das
panturrilhas,
sinal de Gowers,
cadeirante
Normal
Normal
Normal
CPK=18 200
Prednisona
9
1
ND
Cadeirante
desde 9 anos
Normal
Normal
Normal
CPK=22 240
Homeopático
10
6
2 irmãos
(1 óbito)
Cadeirante
XT isoladas
CPK=13 250
Prednisona,
Enalapril
11
8
2 irmãos
(1 óbito)
Cadeirante
desde 8 anos
Normal
CPK=3 314,
CKMB=177,
LDH=915
Prednisona,
Enalapril
CIV perimembranoso rsR’ em V1, ondas
P apiculadas, SVD
Disfunção de VE leve rsR’ em V1, ondas
e dilatação do VE
P apiculadas, SVD
Disfunção leve VE
e dilatação do VE
BRD
Normal
CK total=15 400; Prednisona,
CKMB=805;
Enalapril
LDH
CK=13 205
CKMB=609
Prednisona
XT raras XTSV, CK total=15 811; Deflazacort
Ritmo idioatrial
CKMB=415,1
BRD – bloqueio de ramo direito; CIV – comunicação interventricular; CKMB – fração da enzima CPK oriunda do miocárdio; CPK – creatinofosfoquinase;
DMD – distrofia muscular de Duchenne; ECG – eletrocardiograma; ECO – ecocardiograma; LDH – desidrogenase láctica; ND – não disponível;
RTP – reflexos tendíneos profundos; VD – ventrículo direito; VE – ventrículo esquerdo; XT – extrassístoles; FE – fração de ejeção
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Figura 1
Eletrocardiograma do caso 1 mostrando ondas R altas em V1 e ondas q estreitas em V5 e V6.
Figura 2
Traçado de um eletrocardiograma dinâmico (Holter) mostrando período de taquicardia ventricular
Herdy et al.
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O estudo molecular mostrou deleção nos seguintes éxons:
48 (n=2), 51 (n=1), 57 (n=2), 52 (n=6); os quatro casos com
alterações da função sistólica de VE apresentavam
deleção no éxon 52. Os casos 1 e 3 também mostraram
deleção no éxon 1, além do 52; e nos pacientes 10 e 11 o
defeito era nos éxons 50-52. Portanto, houve deleção do
éxon 52 em 6 (54,5%) pacientes, sendo que em 2 deles
havia também deleção de outro éxon (Quadro 2).
Foi realizado teste exato de Fisher para avaliar uma
possível associação dessa deleção com arritmia no
eletrocardiograma, o que não se confirmou (p=0,43).
Quadro 2
Mutações observadas em 11 pacientes com distrofia
muscular de Duchenne
Caso
Estudo molecular do gene
da distrofina
Método de detecção
da mutação
1
Deleção nos éxons1 e 52
Beggs
2
Deleção no éxon 48
Chamberlain
3
Deleção nos éxons1 e 52
Beggs
4
Deleção no éxon 51
Chamberlain
5
Deleção no éxon 52
Beggs
6
Deleção em éxon 52
Beggs
7
Deleção no éxon 48
Chamberlain
8
Deleção no éxon 57
MLPA
9
Deleção no éxon 57
MLPA
10
Deleção nos éxons 50 a 52
PCR
11
Deleção nos éxons 50 a 52
PCR
PCR – reação em cadeia da polimerase; MLPA – Multiplex
ligation-dependent probe amplification
Discussão
Em 5 pacientes havia história familiar de DMD em
irmãos, tios ou primos. Os outros 6 que desconheciam
parentes acometidos provavelmente sofreram mutações
novas, as quais poderão estar presentes em 30,0% dos
casos4.
O eletrocardiograma detectou as alterações descritas na
DMD em 7 pacientes, principalmente ondas R em V1-V3
e ondas Q em D1, AVL e V6. A proporção de 64,0%
de anormalidades eletrocardiográficas observada
é a mesma de uma série de casos estudados em
universidade brasileira e se aproxima das taxas descritas
na literatura12,13. Essas anormalidades representam perda
das forças dirigidas posteriormente devido ao tecido
cicatricial da porção posterior do VE, às vezes se
estendendo lateralmente, comum no miocárdio
distrófico14. Um dos casos apresentou crise de taquicardia
e, na investigação, havia sinais eletrocardiográficos
da síndrome de Wolff-Parkinson-White, ainda sem
alterações ao ecocardiograma.
Fayssoil et al. 15 também descreveram um caso da
síndrome de Wolff-Parkinson-White associada à distrofia
muscular de Duchenne em paciente adulto. Essa
associação em geral ocorre quando já há cardiomiopatia
e é mais frequente na doença de Becker15. Conforme
descrito13,16, as alterações eletrocardiográficas ocorreram
mais precocemente que as ecocardiográficas e podem ser
a única manifestação cardíaca.
Na avaliação ecocardiográfica, encontraram-se apenas
4 pacientes com diminuição da função ventricular. O
envolvimento cardíaco assintomático ocorre em torno
dos 6 anos (25,0% dos casos) com alterações
eletrocardiográficas; os sinais ecocardiográficos de
cardiomiopatia podem aparecer já aos 10 anos, podendo
levar progressivamente à insuficiência cardíaca. O
acometimento cardíaco se faz presente nas duas formas.
Na distrofia de Becker, é lentamente progressivo, com
início após os 5 anos, e na de Duchenne a insuficiência
cardíaca é rapidamente progressiva17,18.
Todos os pacientes apresentavam dificuldade de andar
ou já estavam confinados a uma cadeira de rodas. A
doença se manifesta mais seriamente nos membros
inferiores, levando à dificuldade de deambular, correr e
subir escadas e a quedas frequentes. A perda da
deambulação ocorreu por volta dos 10 anos nos casos
descritos por Herdy et al.19
No estágio pré-clínico, os músculos afetados já apresentam
achados histológicos anormais, o que tem sido verificado
em tecidos musculares de fetos portadores da DMD. Os
níveis de CPK podem estar aumentados logo após o
nascimento, até 10-100 vezes o normal 2, embora os
sintomas clínicos apareçam mais tarde. Essas doenças
levam a alternância de áreas com hipertrofia de miócitos,
com necrose, fibrose ou substituição do miocárdio por
tecido conjuntivo e gordura. Há adelgaçamento do
epicárdio posterior, provocando dilatação da cavidade
do ventrículo esquerdo (VE). Concomitantemente, há
fraqueza muscular generalizada20.
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A gravidade e o início da cardiomiopatia não estão
diretamente relacionados com a deficiência muscular.
Na distrofia de Becker, devida à perda parcial da
distrofina, a cardiomiopatia pode ser a manifestação
inicial a despeito de poucas alterações dos músculos
esqueléticos21.
Dentre os casos que relatavam história familiar de óbitos
com a DMD, os dois últimos pacientes (Quadro 1) tiveram
um irmão afetado, falecido por cardiomiopatia e
insuficiência cardíaca. São frequentes os distúrbios de
condução, arritmias ventriculares e morte súbita,
portanto as alterações cardíacas constituem uma
importante causa de óbito1,21.
O estudo molecular realizado nesta série de casos
(Quadro 2) demonstrou que todos os pacientes com
cardiomiopatia apresentavam deleção no éxon 52.
Entretanto, Jefferies et al.22 mostraram que pacientes com
distrofias de Duchenne e Becker com deleção nos éxons
51 e 52 apresentam menor risco de desenvolver
cardiomiopatia21. Nigro et al.23 mostraram associação da
cardiomiopatia à deleção nos éxons 48-49. Outros autores
relataram que pacientes com deleção nos éxons 2-9
apresentaram essa manifestação mais precocemente24.
Portanto, não está definida a associação do tipo de
deleção com o início ou a gravidade da cardiomiopatia,
o que seria útil para possíveis intervenções ou terapias
futuras20. Em concordância com a literatura, 9 (82,0%)
dos 11 casos descritos tiveram deleções detectadas na
chamada região hotspot da DMD, entre os éxons 45 e 53,
que sofrem a maioria das deleções relatadas25.
Para o tratamento da cardiomiopatia são usados
inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA),
quando há sinais de disfunção sistólica do VE. Foi
observado que a associação de IECA com inibidor da
aldosterona (espironolactona) atenua a fibrose da
musculatura esquelética e do miocárdio. Em estudo
experimental com ratos, foi usada precocemente
associação do lisinopril e espironolactona e verificou-se
que houve melhor evolução com menor desgaste dos
músculos em geral26.
Spurney et al.27 revisaram 174 casos de distrofia de
Duchenne, avaliando a função cardíaca; destes, 27,0%
Herdy et al.
Distrofia Muscular de Duchenne
apresentaram sinais de cardiomiopatia. Para alguns
autores é válido iniciar IECA mesmo antes de aparecerem
sinais de cardiomiopatia, o que ainda não está
preconizado nas diretrizes 28. Em 2 pacientes aqui
estudados houve melhora da função cardíaca com uso
do enalapril, e no caso de arritmia mais grave houve
diminuição das extrassístoles supra e ventriculares com
associação de enalapril e carvedilol. Parece que os
corticosteroides também têm efeito protetor ao
miocárdio27.
Em análise recente, revisando os últimos estudos
randomizados, Angelini28 citou que a monoterapia com
piridopril pode retardar a disfunção cardíaca, bem como
outro estudo mostrou que a associação de esplerone com
os medicamentos cardioprotetores levam à diminuição
da circunferência do VE28.
Durante a evolução, esses pacientes são submetidos a
vários procedimentos multidisciplinares (fisioterapia,
neurologia, ortopedia, cardiologia, psicologia) com
prejuízo no aprendizado formal. Essas deficiências são
descritas por alguns autores, mas pouco se conhece sobre
as bases etiopatogênicas dessas manifestações29,30. Em
alguns dos pacientes descritos, as avaliações cognitivas
ainda estão em curso.
Conclui-se que o eletrocardiograma mostrou as
primeiras alterações na maioria das crianças afetadas.
Algumas apresentaram sinais de arritmia e de
cardiomiopatia dilatadas ao ecocardiograma, nas quais
o estudo molecular mostrou principalmente deleção do
éxon 52. Não houve correlação estatisticamente
significativa entre a deleção do éxon 52 e presença de
arritmias.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.
Fontes de Financiamento
O presente estudo foi parcialmente financiado pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Vinculação Acadêmica
O presente estudo não está vinculado a qualquer programa de
pós-graduação.
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Herdy et al.
Distrofia Muscular de Duchenne
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Artigo Original
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