1 Introdução A filosofia analítica tem aproximadamente cem anos de idade, e é agora a força dominante dentro da filosofia ocidental (Searle, 1996, p. 1­‑2). Ela prevaleceu por diversas décadas no mundo de fala inglesa; está em ascendência nos países germanófonos; e tem feito incursões significativas mesmo em lugares antes considerados hostis, tais como a França. Ao mesmo tempo, existem rumores contínuos sobre a “derrocada” da filosofia analítica, sobre ela estar “defunta” ou ao menos em “crise”, bem como queixas sobre seus “amplamente percebidos males” (Leiter, 2004a, p. 1, 12; Biletzki e Matar, 1998, p. xi; Preston, 2004, p. 445­‑447, 463­‑464). Um sentido de crise é palpável não só entre comentadores, mas também entre alguns dos principais protagonistas. Von Wright notou que, no caminho de se elevar de um movimento revolucionário para o status quo filosófico, a filosofia analítica também se tornou diversificada a ponto de perder seu perfil diferenciador (1993, p. 25). Essa opinião ganha eco em incontáveis observadores, que acreditam que a distinção habitual entre a filosofia analítica e a continental tornou­‑se obsoleta (p. ex., Glendinning, 2002; May, 2002; Bieri, 2005). Perda de identidade é uma preocupação geral, perda de vigor é outra. Putnam repetidamente clamou por “uma revitalização, uma renovação” da filosofia analítica (por exemplo, 1992, p. ix). E Hintikka sustentou que “a sobrevivência da filosofia analítica” depende de um novo começo, baseado na exploração das possibilidades construtivas na obra tardia de Wittgenstein (1998). Glock.indd 15 Searle é um dos advogados mais tenazes e inabaláveis da filosofia analítica. Contudo, até mesmo ele concede que, ao mudar de “um ponto de vista de minoria revolucionária” para o ponto de vista do status quo convencional, a filosofia analítica “perdeu algo da sua vitalidade” (1996, p. 23). Não é de se admirar muito que aqueles mais céticos sobre a filosofia analítica estiveram por algum tempo antecipando sua substituição por uma “filosofia pós­‑analítica” (Rajchman e West, 1985; Baggini e Stangroom, 2002, p. 6; Mulhall, 2002). Tal combinação de triunfo e crise de forma alguma deixa de ter precedentes. Mas, oferece uma oportunidade adequada para se dirigir à natureza da filosofia analítica a partir de uma nova perspectiva. Nos anos de 1970, Michael Dummett abriu um debate sobre as origens históricas da filosofia analítica com sua alegação de que ela é “filosofia pós­‑fregeana” e de que ela está baseada na convicção de que a filosofia da linguagem é o fundamento da filosofia em geral. Ao longo dos últimos 15 anos, o ritmo do debate acelerou­‑se. Em adição à obra de Dummett, Origens da filosofia analítica, surgiram diversas inspeções históricas da filosofia analítica (Skorupski, 1993; Hacker, 1996; Stroll, 2000; Baldwin, 2001; Soames, 2003), detalhados tratados sobre aspectos mais específicos (p. ex., Hylton, 1990; Stadler, 1997; Hanna, 2001) e ao menos seis coletâneas de ensaios sobre a história da filosofia analítica (Bell e Cooper, 1990; Monk e Palmer, 1996; Glock, 1997c; Tait, 1997; Biletzki e Matar, 1998; Reck, 2002). 8/6/2011 13:51:29 16 Hans-Johann Glock Se Hegel tem razão e a coruja de Minerva levanta voo somente ao crepúsculo, a filosofia analítica deve estar moribunda. Agora, morte por autoconsciência histórica pode não ser um mau caminho para se seguir. Ainda, mesmo que a empreitada analítica esteja ferida, o processo deveria ser menos unilateral. Até aqui, o debate acerca da natureza da filosofia analítica enfocou duas questões: quem deveria contar como o verdadeiro progenitor da filosofia analítica? E em que ponto emergiu a divisão analítico/continental?1 Não houve nenhuma tentativa bem sustentada em língua inglesa de combinar tais questões históricas com uma elucidação do que vem a ser presentemente a filosofia analítica, e de que maneira ela difere da assim chamada filosofia “continental”. A primeira parte da obra O diálogo da razão: uma análise da filosofia analítica, de Jonathan Cohen, cumpre a expectativa em seu subtítulo. Mas, ela se mantém somente em seu foco no presente, deixando explicitamente de lado a dimensão histórica (1986, p. 6­‑7). Além disso, ela tem pouco a dizer acerca da filosofia continental. Contudo, a filosofia ocidental contemporânea está notoriamente dividida em duas tradições, a filosofia analítica, por um lado, e a filosofia continental, por outro. Apesar de mais de 40 anos de tentativas de diálogo e síntese, essa ruptura ainda é muito real, tanto filosófica quanto sociologicamente. Portanto, uma abordagem da filosofia analítica deveria também contrastá­‑la com as principais alternativas, e não apenas no ponto de seu surgimento. A relativa desatenção ao estado atual da filosofia analítica é surpreendente, e não só por causa da reputação geral da filosofia analítica como a­‑histórica. A partir de Dummett, as questões históricas estiveram intimamente ligadas à pergunta sobre o que é a filosofia analítica, bem como a combates apaixonados pela alma e pelo futuro da filosofia analítica. A maioria dos participantes no debate tendeu a identificar a filosofia analítica com o tipo de filosofia que eles consideram próprio, e espero mostrar que essa tendência levou a várias distorções. Glock.indd 16 Minha ambição é abordar a questão de uma maneira que possa parecer ser, a uma só vez, mais analítica e mais continental. Mais analítica no sentido que escrutina o estatuto e o propósito de demarcações entre tradições filosóficas, no sentido que avalia, de uma forma desapaixonada, os prós e os contras de várias definições da filosofia analítica e no sentido que discute alguns dos problemas conceituais e metodológicos que cercam o debate. Embora eu não venha a dissimular o fato de que eu mesmo sou um filósofo analítico, quero abordar a questão sem assumir que a filosofia analítica deve, em qualquer medida, equivaler à boa filosofia. Pondo isso de um modo diferente, meu principal projeto neste livro é contribuir para uma metafilosofia descritiva em vez de prescritiva. Nesse sentido, meu projeto difere dos projetos explicitamente apologéticos de Cohen (1986, p. 1­‑2), Føllesdal (1997) e Charlton (1991). Isso não é o mesmo que dizer que me abstenho de defender a filosofia analítica contra algumas objeções. Mas, também ponho pressão em críticas que se me revelam bem fundadas e concluo sugerindo modos de como a filosofia analítica contemporânea poderia ser melhorada. De qualquer modo, minhas opiniões sobre como a filosofia analítica poderia ser perseguida serão baseadas em uma tentativa, anterior, de entender ao que ela realmente equivale. Minha abordagem àquela questão pode parecer mais “continental” no sentido de que dá atenção ao pano de fundo histórico e às implicações políticas e culturais mais amplas da filosofia analítica, bem como a seu crescente conflito com outros estilos de filosofar. Contudo, não estou interessado exclusivamente, ou mesmo primariamente, nas raízes da filosofia analítica, mas no que ela presentemente vem a ser, incluindo o estado atual da divisão analítico/continental. Minha perspectiva é continental também em um sentido literal. Como um alemão que passou a maior parte de sua vida de trabalho na Grã­‑Bretanha, dificilmente posso ser desafiado linguisticamente e tenho conhecimento de filósofos analíticos 8/6/2011 13:51:29 O que é filosofia analítica? contemporâneos fora do mundo anglófono. Como é comum em diásporas, esses filósofos mostram um elevado grau de autoconsciência, e pelos últimos 20 anos fundaram várias associações e periódicos devotados à promoção da filosofia analítica. Os “pronunciamentos de missão” desses projetos são uma fonte importante de informação sobre a atual autoimagem da filosofia analítica, e assim o são alguns escritos a favor, contra ou sobre a filosofia analítica que se encontram disponíveis apenas em línguas exóticas como o francês, o alemão e o italiano. Devido à larga escala dessa investigação, ocasionalmente serei forçado a pronunciar­ ‑me sobre questões históricas, exegéticas e substantivas sem um argumento bem sustentado. Algumas alegações controversas serão defendidas em notas de rodapé, mas outras serão cobertas simplesmente por referências à literatura relevante. Espero que fique claro, contudo, de que modo minhas opiniões sobre as perguntas gerais às quais o livro é dedicado dependem de minhas opiniões sobre esses tópicos mais específicos. 1. Por que a pergunta é importante? Como o título deixa claro, meu principal foco recai sobre “O que é a filosofia analítica?” em vez de “De onde vem a filosofia analítica?”. No entanto, a segunda questão se mostrará ampla, não só por causa dela mesma, mas também por causa de suas implicações com respeito à primeira. Mas, essas duas questões são importantes? Em um sentido, é manifestamente óbvio que elas são. Os mais profissionais filósofos têm opiniões fortes sobre elas. Muitos deles reservam o arejamento dessas opiniões à conversa cortês ou descortês. Mas também houve pronunciamentos impressos sobre o que é a filosofia analítica, não por último por aqueles que, oficialmente, declaram o tópico como “não compensador” (por exemplo, Williams, 2006, p. 155). Esses pronunciamentos oferecem um segundo motivo fundamental para envolver­‑se com a questão. Glock.indd 17 17 Enquanto a maior parte deles são instrutivos e interessantes, muitos deles são falsos. E eu não tenho conhecimento de nenhuma razão melhor para que um filósofo ponha a caneta no papel do que a necessidade de combater falsas opiniões, não importa se essas são defendidas por filósofos, cientistas, historiadores ou pessoas leigas. Mas deveríamos tentar substituir essas respostas incorretas por respostas corretas, ou deveriam as perguntas sobre o que é a filosofia analítica e de onde ela vem ser simplesmente descartadas como irrespondíveis e confusas? Naturalmente, a prova última daquele pudim é o ato de comê­‑lo. Mas, é instrutivo ponderar se alguém deveria dar uma chance para a atitude de responder a essas perguntas. Marx, famosamente, observou que “En tout cas, moi, je ne suis pas marxiste”.* Muitas pessoas, desde então, sentiram que rótulos para posições, escolas e tradições filosóficas são simplesmente palavras vazias, supérfluas, na melhor das hipóteses, desviantes e confusas, na pior. Com efeito, esse sentimento tem sido particularmente vivo entre alguns eminentes filósofos analíticos, embora por diferentes razões. Alguns dos primeiros pioneiros tinham desconfiança com respeito a escolas porque sentiram que todas as diferenças de opinião entre filósofos poderiam ser resolvidas por meio de chegada de métodos analíticos. Nesse espírito, Ayer escreveu que “não há nada na natureza da filosofia que autorize a existência de partidos filosóficos ou ‘escolas’” (1936, p. 176, ver também p. 42). Tais esperanças dissiparam­‑se. Mas mesmo filósofos analíticos contemporâneos associam escolas e –ismos com dogmatismo e procratisnação. Assim, pois, Dummett deplora a divisão analítico/continental do seguinte modo: A filosofia, não tendo nenhuma metodologia acordada e dificilmente tendo triunfos incontroversos, é peculiarmente * N. de T.: “Em todo caso, eu mesmo não sou marxista”. 8/6/2011 13:51:29 18 Hans-Johann Glock sujeita a cismas e sectarismo; mas eles só prejudicam a matéria. (1993, p. xi) O mais bem sustentado ataque analíti­co a filósofos que estipulam divisões em escolas ou posições é anterior e procede de Ryle. Não há lugar para “ismos” em filosofia. As alegadas questões partidárias não são nunca as questões filosóficas importantes, e ser afiliado a um partido reconhecível é ser o escravo de uma pré­‑concepção não filosófica em favor de um artigo de crença (normalmente não filosófico). Ser um “esse­‑ou­‑aquele­ ‑ano”* é ser filosoficamente fraco. E, embora esteja pronto para confessar ou ser acusado de tal fraqueza, eu não deveria me vangloriar disso mais do que me vangloriar de astigmatismo ou de mal de mer**. (1937, p. 153­‑154) Há uma mensagem salutar, aqui, e não apenas para aqueles que vilificam Ryle como um “behaviourista lógico” de mente estreita e teimoso. No primeiro exemplo, a professa “repugnância” de Ryle é dirigida àqueles que não somente aplicam rótulos filosóficos a si mesmos e seus adversários, mas também os empregam como armas de argumento filosófico. Tal procedimento é irritante e difundido em igual medida, especialmente quando ele emprega “frases de descarte” (Passmore, 1961, p. 2) como “materialismo crasso”, “realismo ingênuo”, “idealismo selvagem” ou “escolasticismo”. Mesmo nos casos em que um sentido claro se liga a um “ismo” filosófico e um pensador ou uma teoria particular se encaixa perfeitamente, o peso argumentativo deve ser conduzido pelas reflexões em favor da ou contra a posição em questão. Lamentavelmente, veremos que, depois da II Guerra Mundial, o próprio Ryle envolveu­‑se em alguns dos mais divisivos * N. de T.: Isto é, um “kantiano”, um “hegeliano”, etc. N. de T.: Isto é, de “maresia”. ** Glock.indd 18 “eles e nós” e, por implicação, em uma das retóricas mais formadoras de escola na história da divisão analítico/continental (Capítulo 3.1). Ainda mais importante, há também um uso menos repugnante de rótulos filosóficos. Podemos classificar pensadores, obras, posições ou argumentos sem intenção polêmica ou dialética, a saber, no intuito de clarificar qual é sua importância e o que está em jogo em quaisquer controvérsias a que eles possam dar origem. Ryle concede que para certos fins, como aquelas da biografia ou da história das culturas (ainda que não aqueles da própria filosofia), é com frequência útil e correto classificar os filósofos de acordo com certos tipos gerais de pensamento ou temperamentos. (1937, p. 157) Ele tem em vista dicotomias tais como aquelas entre os filósofos “de­‑mente­‑delicada” e os “de­‑mente­‑dura” (James 1907, p. 10­‑19, 118­‑120), entre os filósofos “inflacionistas” e “deflacionistas” (Berlin, 1950), ou entre filósofos “proféticos” e “engenheiros”. Contudo, não é desnecessário dizer que tais classificações não têm nenhum lugar na própria filosofia. Por um lado, é debatível (e será debatido no Capítulo 4) se existem divisões rígidas e rápidas entre a filosofia, a história da filosofia e a história das ideias mais ampla. Por outro lado, mesmo se existem barreiras claras e estáveis entre essas disciplinas, por que o rotulamento não deveria desempenhar um papel legítimo em todas elas? Seria errado rejeitar essa sugestão por apelo ao ponto que eu recém concedi, a saber, que rótulos filosóficos não portam nenhum peso argumentativo. Ryle, por um lado, presumivelmente concederia que argumentar não é a única atividade na qual os filósofos legitimamente se envolvem. Eles também descrevem, classificam, clarificam interpretam, glossam, parafraseiam, formalizam, ilustram, resumem, pregam, etc. Se todas essas demais atividades devem, em última análise, permanecer a serviço do argumento, é um ponto incerto. O que está 8/6/2011 13:51:29 O que é filosofia analítica? fora de controvérsia é que a filosofia não se reduz a argumento, mesmo se o último é concebido em um sentido muito geral. De fato, a rejeição, por Ryle, dos “ismos” está baseada em duas linhas de pensamento distintas. De acordo com a primeira, não pode haver diferentes escolas filosóficas A e B que se opõem uma à outra sobre questões muito fundamentais de princípio ou método, pois os defensores de A teriam de apresentar os proponentes de B como nem se envolvendo em um tipo diferente de filosofia, e tampouco como se envolvendo em má filosofia, mas, antes, como simplesmente não fazendo filosofia (e vice­‑versa). Assim, o abismo seria um entre filósofos e não filósofos, e não entre um conjunto de filósofos e outro (astrônomos não ostentam um partido de antiastrólogos)... Os membros da escola oponente, defendendo com vigor, como fazem, uma filosofia que tem a corrente geral equivocada, são as vítimas de um equívoco em princípio, não importa que grande talento eles possam exercitar em questões de detalhe. De acordo com isso, toda escola de pensamento que é consciente de si mesma deve como tal manter e com efeito mantém que a escola ou as escolas de pensamento oponente(s) são de, alguma maneira, filosoficamente inescrupulosas. Afinal, elas são cegas àqueles princípios que fazem sua filosofia uma filosofia e a filosofia. (1937, p. 158, 161) A propósito, esse argumento repousa em uma suposição que não é simplesmente questionável, mas errada. Ryle toma por garantido que a filosofia está casada com as ciências especiais no aspecto de que uma discordância suficientemente fundamental, notadamente uma sobre princípios, tarefas e métodos, simplesmente desqualifica um dos disputantes de ser um praticante da matéria. Diferentemente das ciências especiais, contudo, fazer filosofia carece de qualquer estrutura metodológica aceita de maneira geral. A natureza da filosofia é ela mesma Glock.indd 19 19 uma questão filosófica contestada, e as opiniões sobre essa questão são filosoficamente controversas. Muito embora a investigação dos objetivos e métodos próprios da filosofia seja hoje conhecida como “metafilosofia”, ela não é uma disciplina distinta de ordem superior, mas uma parte integral da própria filosofia (Tugendhat, 1976, p. 17­‑18; Cohen, 1986, p. 1). As ciências naturais têm de estabelecer seus próprios campos e métodos não menos do que a filosofia. Contudo, pelo menos desde a revolução científica do século XVII, elas têm feito isso de maneiras que têm sido crescentemente menos controversas, com o resultado de que disputas sobre a natureza do assunto não mais desempenham um papel significativo. Mesmo em tempos de revoluções científicas, os debates científicos normalmente não dizem respeito a questões como o que é a astronomia. E uma introdução àquele assunto não será um panorama de escolas em guerra sobre essa questão – como poderia muito bem ser em filosofia. Há duas razões interligadas para essa tendência rumo ao consenso. Alguém que tem diferentes opiniões sobre o objeto de uma ciência particular simplesmente não está envolvido naquele campo particular. E, embora haja debate metodológico durante as revoluções científicas, alguém com métodos radicalmente desviantes, que, por exemplo, desconsidera totalmente observação e experimento em favor de considerações estéticas, simplesmente cessa de ser um cientista. Em contraste, atividades intelectuais disparatadas, enfrentando diferentes problemas por métodos incompatíveis e com diferentes objetivos, ainda são chamadas de filosofia. Existem, por exemplo, filósofos que manteriam que a filosofia não deveria se esforçar nem por conhecimento nem por cogência de argumento, mas por beleza e inspiração espiritual. Se alguém que consistentemente evita argumentos de qualquer tipo ainda se qualifica como um filósofo, esse é um outro ponto controverso. Mas existem filósofos, incluindo filósofos analíticos, que negariam a alegação de Ryle de que os princípios de “qualquer ‘ismo’ reputável são estabelecidos, 8/6/2011 13:51:29 20 Hans-Johann Glock e somente estabelecidos, por argumento filosófico” (1937, p. 162; ver Capítulo 6.5). Isso nos leva ao segundo argumento de Ryle contra a existência de escolas e tradições genuinamente distintas e genuinamente filosóficas. A verdadeira raiz de minha objeção é, creio, a visão que assumo sobre a natureza da investigação filosófica. Não irei expô­‑la em detalhes, mas uma parte da visão é que ela é uma espécie de descoberta. E parece absurdo para descobridores dividir­‑se em whigs e tories.* Poderia haver um partido pró­‑Tibete e um partido anti­‑Tibete na esfera da geografia? Existem adeptos do Capitão Cook** e nansenistas? (1937, p. 156) Bem, existem sim, tal como acontece. Existem defensores de Alfred Cook e defensores de Richard Peary no que diz respeito à questão de quem primeiramente atingiu o Polo Norte – “cookistas” e “pearinistas”, se você quiser. E existem aqueles que * N. de T.: Os whigs ou “Partido Whig”, na origem conhecidos também como o “Partido do Interior”, foram um partido de tendências liberais do Parlamento Inglês que rivalizou com o partido dos tories – “Partido Tory” –, de linha conservadora e, na origem, conhecidos como o “Partido da Corte”, aproximadamente de 1680 a 1850. Os whigs tinham base no monarquismo constitucional, ao passo que os tories sustentaram o regime absoluto. Em tese, ambos eram compostos por políticos de elite. Mostrando ao longo do século XVIII tendências diferentes, os whigs deram apoio às grandes famílias aristocráticas, à suceção hannoveriana protestante e pregaram tolerância com respeito a protestantes dissidentes (tinham nos presbiterianos uma base de sua sustentação), ao passo que alguns tories defenderam as reivindicações da exilada família real Stuart pelo trono (jacobitismo), e praticamente todos os tories tinham ligação com a Igreja da Inglaterra. Os whigs ganhavam apoio dos interesses industriais emergentes e dos comerciantes ricos, ao passo que os tories ganhavam suporte dos proprietários de terras e da Coroa Britânica. ** N. de T.: No original, “Captain Cook-ites”. Glock.indd 20 aceitaram e aqueles que rejeitaram a ideia de que há uma grande massa de terra em torno do Polo Norte, que El Dorado existe ou que há um grande continente no Oceano Pacífico. Há espaço para visões fundamentalmente opostas dentro de qualquer área de investigação, seja o quão fatual ou científica ela possa ser. Nas ciências especiais, tais disputas estão eventualmente estabelecidas. Aqueles que ainda acreditam que a terra é plana ou que π é racional serão desbancados pela astronomia ou matemática séria, respectivamente. Mas, mesmo nas ciências, essa demarcação nem sempre é explícita. Eu, por um lado, hesito em decidir se, por exemplo, lysenkoísmo* ou teorias de desígnio inteligente são simplesmente não científicas, ou se, em vez disso, são má ciência, ciência ideologicamente motivada. Não hesito em afirmar que nenhuma catarse desse tipo teve lugar na filosofia. Literalmente, não há posição alguma sobre questões vagamente filosóficas que não tenha sido adotada por alguém que, em geral, é considerado um filósofo. Os argumentos de Ryle a favor da futilidade dos rótulos filosóficos falham, portanto. Isso deixa uma preocupação mais geral. Por certo, o que importa não é como um filósofo ou uma obra particular deveriam ser rotulados. Quem se importa se alguém é um entusiástico hegeliano, um bradleiano moderado, um positivista lógico em derradeiro esforço, um pragmatista inabalável, * N. de T.: Dito de forma simples, “lysenkoísmo” ou “lysenkismo” é o termo usado para descrever a manipulação do processo científico, no intuito de atingir uma conclusão pré-determinada, em função de preconceito ideológico, relativo a objetivos sociais ou políticos. A expressão também significa o princípio de herança biológica a que Trofim Lysenko subscreveu e se deriva de teorias da transmissão hereditária de características adquiridas. O sentido ideológico da expressão se relaciona a campanhas políticas e sociais em ciência e agricultura lideradas por Lysenko, em seus cargos diretivos na Academia Soviética de Ciências Agriculturais, entre os anos de 1920 e 1964. 8/6/2011 13:51:29 O que é filosofia analítica? um externalista quitado, um consequencialista inexperiente ou um eliminativista incompassivo? O que conta, com certeza, é o conteúdo da obra, o que o filósofo em realidade escreveu e se os argumentos são convincentes e as conclusões verdadeiras! Há um claro perigo em colocar peso excessivo na taxonomia ou doxografia filosófica. Ao mesmo tempo, classificações são indispensáveis ao pensamento humano. No intuito de dar sentido às coisas, sejam elas fenômenos materiais ou produções intelectuais, precisamos distingui­‑las por seus traços relevantes. E fazemos isso aplicando rótulos de acordo com certos princípios. Investigações históricas, exegéticas e metafilosóficas não são nenhuma exceção a essa regra. Contrastes como filosofia oriental versus ocidental, filosofia antiga versus medieval versus moderna, empirismo versus racionalismo, filosofia analítica versus continental, ou rótulos como “tomismo”, “neokantismo” ou “pós­‑modernismo” podem ser simplistas, potencialmente errô­ neos e profundamente feios. Todavia, alguns contrastes e alguns rótulos são essenciais se queremos detectar importantes semelhanças e diferenças entre vários pensadores e posições, e se devemos fazer uma narrativa coerente sobre o de­senvolvimento de nosso assunto. Dificilmente alguém pode se envolver em uma avaliação do desenvolvimento histórico e dos méritos da filosofia analítica sem alguma concepção daquilo que ela vem a significar. Precisamos, portanto, não de uma evitação puritana ante classificações, mas de classificações que sejam escrupulosas e iluminadoras. Naturalmente, alguns rótulos podem ter adquirido usos e conotações tão diferentes que seu uso lança mais escuridão do que luz. Lamentando as explicações radicalmente disparatadas do termo “deflacionismo”, Wolfgang Künne aconselha: Em vista do caos terminológico, proponho pôr o termo “deflacionismo” naquilo que Otto Neurath uma vez chamou, de brincadeira, de Index Verborum Prohibitorum. (2003, p. 20) Glock.indd 21 21 Se esse é ou não o caminho para frente no caso do “deflacionismo”, não é, contudo, uma opção atrativa com respeito à “filosofia analítica”. O termo é usado muito mais amplamente do que “deflacionismo”. Além do mais, aquele uso tornou­‑se ele mesmo uma parte importante da história da filosofia no século XX. Em terceiro lugar, enquanto “deflacionismo” é com frequência empregado com um significado específico introduzido a novo,* “filosofia analítica” é, em sua maior parte, usada conscientemente como um rótulo com um significado estabelecido, muito embora um significado que pode ser vago. Em quarto lugar, não obstante essa vagueza, há uma concordância geral sobre o modo como aplicar o termo a uma classe aberta de casos. Por fim, enquanto existem alternati­vas potencialmente mais claras para o rótulo “deflacionismo”, não existem quaisquer alternativas desse tipo no caso de “filosofia analítica”. Por essas razões, clarificação em vez de eliminação deveria ser a ordem do dia. 2. De que modo a pergunta deveria ser abordada? Permanece um motivo prima facie forte a favor da ideia de que a filosofia analítica constitui um fenômeno filosófico distinto, seja ela uma escola, um movimento, uma tradição ou um estilo. Peter Bieri propôs recentemente o seguinte experimento árduo. Durante um mês inteiro, leia o Journal of Philosophy pela manhã e, depois, Sêneca, Montaigne, Nietzsche, Cesare Pavese e Fernando Pessoa à tarde. Alterando levemente o conjunto de Bieri, e tornando­‑o até mesmo mais sádico, devote as sessões da tarde a Plotino, Vico, Hamann, Schelling e Hegel, ou a Heidegger, Derrida, Irigaray, Deleuze e Kristeva. Creio que o experimento de pensamento feito por Bieri é iluminador. Todavia, ele aponta para a direção radicalmente oposta da conclusão que ele favorece. De acordo com Bieri, a distinção entre * N. de T.: Ou seja, “de maneira nova”. 8/6/2011 13:51:29 22 Hans-Johann Glock filosofia analítica e continental é “simplesmente um aborrecimento” que não pode ser tolerado (2005, p. 15). Em contraste, creio que três coisas surgem a partir das justaposições propostas: primeiramente, há pelo menos alguma sobreposição no que concerne aos problemas endereçados; em segundo lugar, pelo menos alguns desses problemas são filosóficos segundo padrões comumente aceitos; em terceiro lugar, o que se passa nas páginas do Journal of Philosophy é uma atividade intelectual distinta, uma atividade que difere das atividades (elas mesmas diversas) com que as outras figuras se ocupam. Não admira muito, pois, que os rótulos “filosofia analítica” e “filosofia continental” continuem a ser amplamente utilizados. Isso é válido mesmo quando é sugerido que a distinção não é uma distinção rígida e apertada. Em resenhas, por exemplo, é lugar comum ler não só que um livro ou um autor é típico do movimento analítico ou do continental, mas também que X é incomumente sensível ou de mente aberta “para um filósofo analítico” ou que Y é, de forma não característica, claro ou cogente “para um pensador continental”. A distinção analítico/continental dá cores à percepção filosófica mesmo entre aqueles que não a consideram absoluta. De maneira mais geral, não há como negar o fato de que a ideia de uma filosofia analítica distinta continua a dar forma à prática institucional da filosofia, seja isso por meio de periódicos distintos, sociedades, anúncios de emprego ou institutos (ver Preston, 2007, Capítulo 1). Por exemplo, é comum e perfeitamente auxiliar explicar a estudantes que um departamento particular ou um curso possui orientação analítica. À época em que o contraste analítico/ continental estava surgindo, R. M. Hare sustentou que há “dois modos diferentes” em que a filosofia é agora estudada, modos que, “poderia­‑se ser perdoado por pensar... são realmente dois assuntos bastante diferentes” (1960, p. 107). E, muito embora Dummett busque fazer uma ponte entre a divisão analítico/continental, essa ambição é predicada na observação de que “um abismo absurdo Glock.indd 22 abriu­‑se antigamente entre filosofia ‘anglo­ ‑americana’ e ‘filosofia continental’”; com efeito, “atingimos um ponto no qual é como se estivéssemos trabalhando em assuntos diferentes” (1993, p. xi, 193). Esse status quo não pode ser nem desejável nem estável. Pode ocorrer que tanto a filosofia analítica como a continental estejam perseguindo o caminho do justo, caso em que seguidores do outro lado deveriam simplesmente seguir conformemente. De forma alternativa, pode transparecer que há um prêmio em filosofia, constituindo um empreendimento unificado, tal como a filosofia ocidental fez até pelo menos o começo do século XX (ver Quinton 1995b, p. 161). Se a filosofia opera do melhor modo como uma disciplina coesa ou pelo menos como uma área singular de discurso, impedindo facções e barreiras comunicativas, nesse caso, cabeças deveriam trabalhar em conjunto, independentemente se um lado tem um monopólio em sabedoria filosófica. Mas, mesmo que a divisão analítico/ continental seja lamentável por motivos filosóficos ou de outra natureza, ela permanece real. Deve ser um ponto de partida para qualquer tentativa de ganhar clareza sobre o fenômeno da filosofia analítica, mesmo se apenas para o propósito de superá­‑la ou de descontruí­‑la. A questão, pois, não é nem se é legítimo e frutífero investigar em que consiste a filosofia analítica, mas de que modo isso deveria ser feito. Algumas caracterizações da filosofia analítica são claramente pretendidas como definições de algum tipo, no sentido de que ipso facto aqueles incluídos se qualificam e aqueles excluídos não se qualificam como filósofos analíticos (por exemplo, Cohen, 1986, Capítulo 2; Dummett, 1993, Capítulo 2; Hacker, 1996, p. 195; Føllesdal, 1997). Outras são formuladas superficialmente e sem qualificação – “Filosofia analítica é...”, “Filósofos analíticos fazem...”, “Um filósofo analítico jamais...”. Todavia, elas podem ser pretendidas como generalizações não analíticas que não necessariamente se aplicam a todos e somente a filósofos analíticos. Em outras palavras, elas especificam traços 8/6/2011 13:51:29 O que é filosofia analítica? característicos da filosofia analítica que não precisam ser traços essenciais ou constitutivos. Finalmente, há caracterizações que são explicitamente qualificadas em escopo, e tomam formas como “Em sua maior parte, a filosofia analítica é...”, “A maioria dos filósofos analíticos fazem...”, etc. Mas tais caracterizações, sejam elas restritas ou irrestritas, repousam em um certo entendimento do que é a filosofia analítica. De outro modo, elas carecem de uma amostra demarcada sobre a qual poderiam estar baseadas. Precisamos saber em virtude do que alguém se qualifica como um filósofo analítico e, portanto, o que determina o escopo dos termos “filosofia analítica” ou “filósofos analíticos”. Por essa razão, meras generalizações não são substituto para uma explicação do que, se algum, constitui a filosofia analítica ou um filósofo analítico. É tal relato que deveríamos buscar em primeiro lugar. De fato, a maioria das caracterizações irrestritas têm o propósito de oferecer esse relato. E mesmo com respeito a caracterizações restritas, é proveitoso perguntar se elas poderiam ser utilizadas para definir a filosofia analítica. Alguns filósofos, influenciados pelo ataque de Quine à distinção entre enunciados analíticos e sintéticos, têm escrúpulos gerais sobre a distinção entre traços constitutivos, definitórios ou essenciais de um fenômeno X, por um lado, e traços acidentais, por outro. Em outro lugar, argumentei que esses escrúpulos são injustificados (Glock, 2003a, Capítulo 3). De todo modo, seria inapropriado excluir definições de filosofia analítica ab initio sob essas bases. Se a filosofia analítica não pode ser definida, seja por razões gerais ou específicas, isso é algo que deveria surgir no curso de nossa exploração. Isso deixa inteiramente em aberto a questão sobre qual tipo de definição ou de explicação é apropriado. Uma distinção importante, aqui, é aquela entre definições nominais, que especificam o significado linguístico das palavras, e definições reais, que especificam a essência das coisas denotadas por elas. Alguns filósofos, incluindo Wittgenstein e Quine, rejeitam a ideia de essências reais. Glock.indd 23 23 Mas, mesmo que esse repúdio geral do essencialismo seja injustificado, há motivos para duvidar que a filosofia analítica seja a matéria própria de uma definição real. Não pode haver nenhuma questão sobre o rótulo “filosofia analítica” ter um único significado correto ou intrínseco, independentemente de como o explicamos e utlizamos. Como Wittgenstein sabiamente nos lembra: uma palavra não obteve um significado dado a ela, por assim dizer, por um poder independente de nós, de modo que poderia haver um tipo de investigação científica sobre o que a palavra realmente significa. Uma palavra tem o significado que alguém deu a ela. (1958, p. 28) De forma semelhante, Davidson escreve: “Não é como se as palavras tivessem alguma coisa maravilhosa chamada de significado, ao qual aquelas palavras se tornaram de algum modo anexadas” (1999, p. 41). Tal como está, isso não significa mais do que a observação superficial, se incontroversa, de que o significado é convencional no sentido em que é arbitrário que utilizemos um padrão de som ou um padrão de inscrição particular para significar alguma coisa específica. Em vez de “filosofia analítica”, poderíamos ter feito uso de qualquer número de outros sinais. Uma variação trivial – “filosofia analisadora”* – é empregada por Dummett, entre outros. Mais significativamente, em alemão, um rótulo com diferentes conotações costumava predominar, ou seja, a sprachanalytische Philosophie.** * N. de T.: “analytical philosophy”, no original. A expressão corrente, em inglês, é “analytic philosophy”. Em verdade, as expressões significam rigorosamente o mesmo, apenas permitindo-se em um e outro caso diferentes formas de terminações adjetivas. Nos dois casos, “analytic” ou “analytical” significa “o que procede por meio de análise”. ** N. de T.: Ou seja, “filosofia analítico-linguística” ou “filosofia analítica da linguagem”. 8/6/2011 13:51:30 24 Hans-Johann Glock Esse ponto trivial deixa em aberto a possibilidade de que a filosofia analítica seja um fenômeno distintivo robusto, um fenômeno que tem uma essência a ser capturada por uma definição real. Nesse caso, qualquer esquema de classificação que seja fiel à realidade teria de incluir um rótulo ou outro para a filosofia analítica. Mas não é fácil ver de que modo tal reivindicação poderia ganhar sustentação. Caso se deva confiar na abordagem corrente mais popular sobre essências reais e definições, a filosofia analítica é um candidato pouco auspicioso. De acordo com a influente “semântica realista” de Kripke (1980) e de Putnam (1975, Capítulo 12), a referência de termos de espécie natural como “água” ou “tigre” não é determinada pelos critérios para sua aplicação – os traços fenomenais pelos quais as pessoas leigas distinguem as coisas como pertencendo àquelas espécies (tal como o modo como alguma coisa se parece ou o gosto que tem). Antes, ela é dada por uma “relação de igualdade” exemplar paradigmática e apropriada que todos os membros da espécie devem ter com esse exemplar. “Água”, por exemplo, refere­‑se a toda matéria que é relevantemente parecida com uma amostra paradigmática, ou seja, qualquer substância que tem a mesma microestrutura que aquele paradigma. De acordo com isso, espécies naturais não possuem simplesmente uma “essência nominal”, mas também uma “essência real”, na terminologia de Locke (Ensaio III.3), a qual, em nosso caso, é consistir em H2O. Se essa abordagem é adequada a termos de espécie natural para os quais existem paradigmas concretos que podem ser investigados pela ciência, isso é um tópico a debater (Hanfling, 2000, Capítulo 12; Jackson, 1998, Capítulo 2). De todo modo, rótulos para escolas filosóficas não são termos de espécie natural. Um relato essencialista de termos taxonômicos em filosofia está totalmente em inconsistência com seu papel real. Ninguém poderia seriamente sugerir que o termo “filósofo analítico” se aplica a todas e somente àquelas criaturas com a mesma microestrutura ou com o Glock.indd 24 mesmo código genético que Rudolf Carnap ou Elizabeth Anscombe, digamos, por mais que eles sejam filósofos analíticos. Muito embora os rótulos e as distinções de ciência natural possam ser capazes de “esculpir a natureza em suas juntas”, para fazer uso da notável frase de Platão (Fedro, 265d–266a), isso não pode razoavelmente ser esperado de rótulos e de distinções históricas. Mesmo se uma definição de filosofia analítica é nominal em vez de real, contudo, ela não é livre para todos. Definições nominais se dividem em definições estipulativas, por um lado, e reportadas ou lexicais, por outro lado. Definições estipulativas simplesmente estabelecem a novo o que uma expressão deve significar em um contexto particular, em completa desconsideração de qualquer uso estabelecido que ela possa ter. Tais definições não podem ser corretas ou incorretas. Mas podem ser mais ou menos frutíferas, no sentido que pode ser mais ou menos auxiliar especificar um fenômeno particular por meio de um rótulo separado. Todavia, com respeito a termos estabelecidos, a estipulação irrestrita é raramente aconselhável. Por um lado, ela convida à confusão em troca de nenhum ganho visível. Por outro, termos existentes, como empregados em realidade, têm relações com outros termos que teriam de ser redefinidos também. Mesmo se ela deliberadamente diverge de seu uso estabelecido, uma explicação de “filosofia analítica” pode entrar em conflito com os empregos dos termos constituintes. Assim, pois, esperar­‑se­‑ia ao menos que “analítico” indicasse uma analogia com análise química ou matemática e um contraste com síntese. E certamente seria inaceitável se a filosofia analítica fosse definida como qualquer coisa outra que um tipo de filosofia. De forma não surpreendente, a maioria das definições ou explicações de filosofia analítica fazem reivindicação a algum tipo de exatidão reportadora. Por essa razão, elas podem ser julgadas pelo grau no qual são verdadeiras para o uso estabelecido e para a prática institucional. Ao avaliar essas explicações/definições, dever­‑se­‑ia, portanto, 8/6/2011 13:51:30 O que é filosofia analítica? tomar nota do uso costumeiro de “filosofia analítica”, de seus cognatos e antônimos. A propósito, alguns contemporâneos podem achar qualquer apelo ao uso costumeiro algo datado e radicalmente ofensivo. Mas eles deveriam ser relembrados de alguns pontos. Aristóteles, o primeiro a embarcar em uma busca sistemática por uma concepção de filosofia, deu início a partir do modo como as pessoas costumavam fazer uso do termo sophia (Metafísica I 2; ver Tugendhat, 1976, Capítulo 2). Semelhantemente, o apelo ao uso costumeiro de “filosofia analítica” tem sido um traço padrão de debates contemporâneos sobre a natureza da filosofia analítica, especialmente quando se trata de criticar concepções alternativas. Além do mais, Aristóteles e metafilósofos contemporâneos estão corretos em dar importância ao uso costumeiro de seus definienda respectivos. Ao perseguir qualquer pergunta da forma “O que é X?”, inevitavelmente nos basearemos em uma noção preliminar de X, uma ideia do que constitui o tópico de nossa investigação. Em nosso caso, pressupomos um entendimento preliminar de filosofia analítica. Essa não é uma concepção plenamente articulada, a qual teria de surgir a partir do debate subsequente sobre o que é a filosofia analítica, mas simplesmente uma ideia inicial de sobre o que trata aquele debate. Tal entendimento pré­‑teórico está incorporado no uso estabelecido do termo “filosofia analítica”. Posto diferentemente, o modo como utilizamos e entendemos um termo não é só um ponto de partida inócuo para elucidar seu significado, ele é a única deixa que temos de início para nossa investigação. Esse tanto seria subscrito não só pelos assim chamados filósofos da linguagem ordinária, mas também por alguns de seus oponentes, destacadamente Quine (1953, p. 106­‑107). No espírito de Quine, poder­‑se­‑ia insistir, contudo, que precisamos nos elevar de nosso uso costumeiro para um uso mais especializado, baseado em escrutínio mais exigente dos fenômenos. Mas essa não é uma objeção a meu procedimento. O termo Glock.indd 25 25 “uso costumeiro”* é ambíguo. Ele pode se referir tanto ao uso padrão de um termo enquanto oposto a seu uso irregular, em qualquer área em que ele for empregado, como a seu uso do dia a dia enquanto oposto a seu uso especializado ou técnico (Ryle, 1953, p. 301­‑304). Diferentemente de “filosofia”, “filosofia analítica” é um termo técnico utili­ zado principalmente por acadêmicos profissionais, estudantes e intelectuais. E por certo não pode haver nada de errado em fazer com que definições sugeridas sejam testadas contra o uso estabelecido ou padrão dos especialistas no campo relevante, desde que apenas com o intuito de estabelecer se esse uso exemplifica de fato um padrão coerente. Mesmo que alguém aceite minhas reivindicações gerais (semântico­‑metafilo­ sóficas), pode­‑se levantar dúvidas sobre esse caso particular. Ninguém fez mais para defender o apelo ao uso costumeiro contra as críticas contemporâneas do que Peter Hacker. Todavia, ele nega que o termo “filosofia analítica” tenha um uso estabelecido (1998, p. 14). Hacker está certo em indicar que a “filosofia analítica” é um termo de arte e bastante recente nesse sentido. Não se segue, contudo, que ele não tenha nenhum uso estabelecido. Um uso estabelecido não precisa ser um uso do dia a dia. De fato, o que Grice e Strawson (1956) apontaram sobre os termos “analítico” e “sintético” vale igualmente ao termo “filosofia analítica”. Embora possamos prescindir de uma expli­cação clara e convincente, concordamos am­plamente em nossa aplicação desses termos. A propósito, mesmo as taxonomias filosóficas mais estabelecidas e claramente circunscritas estão sujeitas ao abuso. Brian Magee, por exemplo, refere­‑se a Fichte, Schelling e Hegel como neokantianos (1983, Apêndice 1). Com neokantianos desse tipo, quem precisa de idealistas alemães? “Filosofia analítica” não está em situação pior do que rótulos mais veneráveis. Ainda que existam abusos ocasionais, eles são * N. de T.: No original, “ordinary use”. 8/6/2011 13:51:30 26 Hans-Johann Glock em geral reconhecidos. Considere a questão seguinte, presumivelmente retórica, de uma circular do Continuum International Publishing Group* (21 Outubro de 2003): Você está interessado na filosofia continental de Gilles Deleuze ou Theodor Adorno, ou na filosofia da tradição analítica, tais como a de Friedrich Nietzsche ou de Mary Warnock? Sem prêmios para localizar o engano. Por esse mecanismo, obviamente contaria contra uma definição de filosofia analítica, se ela implicasse que Heidegger e Lacan são filósofos analíticos, enquanto Carnap e Austin não são. Contaria também contra uma definição, se ela implicasse que Russell e Quine são filósofos analíticos, enquanto Frege e Hempel não o são. Além disso, concordamos não só sobre o que são os casos claros, mas também sobre o que conta como casos limite por várias razões, por exemplo, Bolzano, Whitehead, o último Wittgenstein, Popper, Feyerabend, neurofilósofos. Finalmente, a concordância não é com uma lista, mas pode ser estendida a uma classe aberta de novos casos. Por exemplo, exame de currículos porá a maioria dos profissionais em uma posição de identificar filósofos explicitamente analíticos e continentais dentre uma lista de candidatos a emprego. Embora não haja nenhuma pretensão de estipulação completa, pode haver boas razões para modificar explanações geralmente aceitas de “filosofia analítica”. Ao avaliar tais sugestões, precisamos encontrar suas consequências. Definições revisionárias podem ser mais ou menos iluminadoras para os propósitos de historiografia e de taxonomia. Assim, pois, contaria contra uma definição se implicasse ou que nenhum filósofo se classifica como analítico ou que todos os filósofos se classificam dessa forma. Pois, nesse caso, o rótulo não funciona, * N. de T.: Ou seja, Grupo de Publicação Internacional Continuum. Glock.indd 26 tendo se tornado um mecanismo inútil. Caracterizações distintas da filosofia analítica têm outras consequências menos imediatas, não só para o autoentendimento da filosofia analítica, o modo em que ela concebe sua história, seus objetivos, métodos e resultados, mas também para o contraste com outros movimentos filosóficos, tais como a filosofia tradicional ou continental. Como eu indiquei anteriormente, ao avaliar essas consequências precisamos nos basear em uma ideia preliminar do que os filósofos geralmente contam como analítico, e por que motivos. Por essa razão, serei guiado pela pergunta se as definições sugeridas incluem todas as instâncias geralmente reconhecidas de filósofos analíticos e excluem todas as instâncias geralmente reconhecidas de filósofos não analíticos. Em outras palavras, medirei concepções de filosofia analítica no primeiro caso contra a extensão comumente reconhecida do termo. De fato, mesmo se uma definição genuína de filosofia analítica fosse uma divagação, seria proveitoso assegurar se e em que medida as incontáveis reivindicações gerais sobre ela de fato se mantêm. Ao testar essas reinvidicações por sua adequabilidade como definições, também as testamos por sua exatidão como generalizações. Embora paradigmas reconhecidos da filosofia analítica sejam especialmente importantes, tambem considerarei, contudo, de que modo definições propostas lidam com casos que, por diversas razões, poderiam ser considerados limite ou controversos. Esses casos problemáticos podem oferecer um importante teste do limite para definições sugeridas, especialmente se for possível identificar os traços que os tornam problemáticos. Pela mesma razão, menciono movimentos como o racionalismo crítico de Popper, que se distanciaram da filosofia analítica, mas que, não obstante isso, parecem pertencer à tradição analítica. Nesse contexto, eu deveria enfatizar que autodescrições não são confiáveis. Os filósofos investigaram e promoveram o autoconhecimento, mas eles não se sobressaíram uniformemente nisso. Tratar declarações 8/6/2011 13:51:30 O que é filosofia analítica? abertas como uma pedra de toque significaria, por exemplo, incluir Derrida entre os filósofos analíticos e excluir Fodor (ver Capítulo 8.1). Nenhuma explicação frutífera poderia ser forjada para adequar­‑se a tal extensão de “filosofia analítica”. 3.A estrutura e o conteúdo do livro Embora meu foco último seja no presente, não me confinarei a concepções de “filosofia analítica” que são correntemente existentes. Como qualquer tradição intelectual, a filosofia analítica é um fenômeno intrinsecamente histórico, mesmo que esse fato sozinho não possa fornecer uma concepção adequada dele. E o mesmo vale para o rótulo “filosofia analítica”, para seus cognatos e antônimos. Sem algum entendimento de desenvolvimentos relevantes na história da filosofia, não se pode apreciar o ponto da noção de filosofia analítica e as diversas razões para concebê­‑la de diferentes modos. Tal entendimento também facilitará minha discussão de questões metodológicas e conceituais, que surgem na busca de uma explanação da filosofia analítica. Por essas razões, inicio o Capítulo 2 com um “Panorama histórico” da filosofia analítica, um esboço do surgimento e do desenvolvimento do movimento ao qual o rótulo “filosofia analítica” é geralmente aplicado. Diferentemente de especialistas precedentes, examinarei tanto as raízes anglófonas como as germanófonas, ao passo que também mantenho em vista desenvolvimentos relevantes para além da filosofia analítica. Na base desse panorama histórico, os capítulos seguintes discutem diversos modos de como a filosofia analítica foi definida ou concebida, em algum momento ou outro de seu curso. Organizei­‑os não de acordo com explanações específicas da filosofia analítica, das quais existem demasiados modos, mas de acordo com tipos de explicações. Com efeito, cada capítulo é destinado a um parâmetro segundo o qual a filosofia analítica, Glock.indd 27 27 ou qualquer outro movimento filosófico para aquele propósito, poderia ser definida. Os primeiros cinco desses parâmetros revelam­‑se inapropriados. O Capítulo 3, “Geografia e linguagem”, lida com definições geolinguísticas. A imagem da filosofia analítica como um fenômeno anglófono é ainda surpreendentemente comum e incorporada no contraste analítico/continental. Mas o próprio rótulo “filosofia continental” é um termo impróprio, especialmente em vista das raízes centro­‑europeias da filosofia analítica. No entanto, argumentarei, o contraste entre a filosofia analítica e a continental aperta­‑se com e é reforçado por diferenças estereotípicas entre a filosofia e a cultura acadêmica anglófona, por um lado, e suas contrapartes continentais, por outro. No curso do século XIX, um conflito entre o empirismo britânico e o racionalismo continental foi gradualmente substituído por divisões geográfica e intelectualmente mais complexas. Também exploro o modo como desdobramentos políticos, tais como o surgimento do nazismo, e os desenvolvimentos filosóficos, tais como a reabilitação da metafísica a partir dos anos de 1960, transformaram o agora impropriamente negligenciado contraste entre filosofia analítica e continental na divisão analítico versus continental como agora a conhecemos. Ainda, a concepção anglocêntrica da filosofia analítica é indefensável, e assim o é também sua prima mais sofisticada, a concepção anglo­‑austríaca. No presente, a filosofia analítica floresce em muitas partes do continente, enquanto a filosofia continental é extremamente popular na América do Norte. A filosofia analítica não é nem uma categoria geográfica nem uma categoria linguística. Finalmente, o rótulo “filosofia continental” falha em distinguir entre os movimentos vanguardistas do século XX, inspirados por Nietzsche e Heidegger, e a filosofia tradicional ou tradicionalista, que, em realidade, domina a filosofia acadêmica no continente da Europa. O Capítulo 4, “História e historiografia”, debate se a filosofia analítica difere da continental e, em especial, da filosofia 8/6/2011 13:51:30 28 Hans-Johann Glock tradicionalista, em sua falta de consciência histórica. Em anos recentes, mesmo alguns praticantes acusaram a filosofia analítica de ser impropriamente a­‑histórica. Tenho o propósito de mostrar, con­tudo, que a filosofia analítica em geral não é caracterizada por uma atitude de desconsi­deração com respeito ao passado. Com efeito, tem havido uma virada recente em direção à história. Além do mais, defenderei a filosofia analítica contra criticismos historicistas que, até aqui, não têm sido desafiados. Contra a objeção de que os filósofos analíticos ignoram o passado, argumento que, em sua maior parte, eles só têm resistência à alegação infundada de que um entendimento da história é essencial em vez de meramente vantajoso à filosofia. Contra a objeção de que as histórias analíticas da filosofia são anacrônicas, argumento que abordar o passado em um espírito analítico fez, em realidade, um bem maior à historiografia. No Capítulo 5, “Doutrinas e tópicos”, dirijo­‑me à ideia de que a filosofia analítica destaca­‑se em virtude de um espectro particular de problemas e/ou de respostas a esses problemas. As definições por referência a doutrinas específicas tendem a ser demasiadamente restritas. A rejeição da metafísica jamais foi universal entre filósofos analíticos e desapareceu quase completamente. Dummett define a filosofia analítica como baseada na concepção de que uma análise do pensamento pode e deve ser dada por uma análise da linguagem. Mas ter uma concepção linguística do pensamento e de sua análise não é nem necessária nem suficiente para se ser um filósofo analítico. A definição de Dummett ignora a diferença entre a emergência da análise lógica e conceitual, por um lado, e a virada linguística, por outro. Semelhantemente, a filosofia analítica não é caracterizada nem por uma insistência de que a filosofia é distinta da ciência nem pela assimilação naturalista da filosofia à ciência. Finalmente, os filósofos analíticos nem sequer concordam acerca dos tópicos sobre os quais discordam. Embora uma preocupação com tópicos teóricos não Glock.indd 28 tenha sido acidental à emergência da filosofia analítica, ela certamente não mais reduz o gênero. Os resultados de abordagens doutrinais encorajam definições metodológicas ou estilísticas. O Capítulo 6, “Método e estilo”, argumenta que mesmo tais definições são inadequadas. Prima facie, é atrativo ligar a filosofia analítica ao método de análise. Infelizmente, essa abordagem encara um dilema. Se a análise é entendida literalmente, a saber, como a decomposição de fenômenos complexos em constituintes mais simples, ela exclui o último Wittgenstein e a filosofia linguística de Oxford, entre outros. Mas, se ela é entendida de forma ampla o bastante para acomodar tais casos, ela também capturará figuras que se estendem de Platão a filósofos continentais como Husserl. Dificuldades semelhantes surgem para a ideia de que a filosofia analítica é “centrada na ciência” em oposição a “centrada em artes”, no sentido que ela está uniformemente interessada na ciência e infundida de um espírito científico. Poderia ser tolerável que tal definição ex­ cluí­sse um caso exótico como Wittgenstein. Mas, que ela também excluiria Moore, Ryle e Strawson, conta como uma objeção de­ cisiva. Se a filosofia analítica não tem nenhum método distinto, talvez ela ao menos apresente um estilo particular. Nesse sentido, Bernard Williams sugeriu que a filosofia analítica difere da variedade continental no sentido que evita a obscuridade ao fazer uso de “linguagem moderadamente simples” ou, quando necessário, de idiomas técnicos. Mas a noção de clareza se encontra ela mesma em necessidade urgente de clarificação. Já que ela é uma questão direta de prosa e de apresentação, ela não é nem universal entre os filósofos analíticos nem confinada a eles. Se uma característica estilística separa a filosofia continental e a analítica no presente, trata­‑se, antes, de tipos diferentes de obscurantismo – esteticismo, de um lado, escolasticismo, do outro. Isso deixa uma sugestão final, a saber, que a filosofia analítica ao menos aspira clareza de pensamento e 8/6/2011 13:51:30 O que é filosofia analítica? rigor argumentativo. Concepções racionalistas definem a filosofia analítica como uma atitude geral com respeito a problemas filo­ sóficos, uma atitude geral que enfatiza a necessidade de argumento e justificação. Mas isso tornaria analítico o grosso da filosofia. Desde Sócrates, a tentativa de abordar questões fundamentais a modo de argumento bem refletido tem sido uma característica distintiva da filosofia como tal, por exemplo, vis­‑à­‑vis à religião ou à retórica política, e não o selo de um movimento filosófico particular. O capítulo seguinte, “Ética e política”, tem início com a demonstração de que a tradição analítica não é caracterizada pela exclusão da filosofia moral e da teoria política. Logo em seguida, desminto dois rumores conflitantes, a saber, que a filosofia analítica é inerentemente apolítica ou conservadora e que encoraja uma atitude progressiva ou liberal, tornando seus praticantes resistentes ao extremismo político. Também atento para o que o caso de Singer mostra sobre atitudes analíticas e continentais com respeito à liberdade de expressão e à capacidade da filosofia de prescrever cursos específicos de ação. Finalmente, considero se a filosofia analítica tem uma margem sobre suas rivais por meio da recusa em fazer da reflexão filosófica serva de ideais políticos e morais pré­‑concebidos. No Capítulo 8, “Conceitos contestados, semelhanças de família e tradição”, volto­ ‑me a explanações da filosofia analítica que não tomam a forma de definições em termos de condições necessárias e suficientes. Uma explanação desse tipo surge a partir da concepção racionalista, que faz da filosofia analítica um “conceito essencialmente contestado”. Em resposta, defendo que há um uso honorífico de “filosofia analítica”. Mas, argumentarei, ele é menos arraigado do que o uso descritivo e inferior para propósitos de taxonomia e de debate filosófico. No res­ tante, defendo minha própria concepção de filosofia analítica, parcialmente por combinar duas abordagens. A primeira abordagem é a ideia de que a filosofia analítica Glock.indd 29 29 deveria ser explicada em termos de semelhanças de família. O que mantém juntos os filósofos analíticos não é um conjunto único de condições suficientes e necessárias, mas uma linha de semelhanças que se justapõem (doutrinais, metodológicas e estilísticas). Assim, pois, filósofos analíticos atuais podem ser associados a Frege e Russell em seus métodos lógicos, ou ao positivismo lógico e a Quine em seu respeito pela ciência, ou a Wittgenstein e à filosofia linguística em sua preocupação com o a priori, significado e conceitos, etc. Rebaterei críticas à ideia mesma de semelhança de família. Ao mesmo tempo, uma concepção de filosofia analítica a modo de semelhança de família uma vez mais vai além da extensão reconhecida do termo. Esse resultado é evitado ao combinar uma semelhança de família com uma concepção genética ou histórica. De acordo com a última, a filosofia analítica é primeiramente e acima de tudo uma sequência histórica de indivíduos e escolas que se influenciaram e se engajaram em debate uns com os outros, sem partilhar qualquer doutrina, problema, método ou estilo particular. Essa concepção histórica se conforma com a prática comum. Mas ela requer suplementação, em particular porque permanece obscuro de que modo a adesão a essa tradição é determinada. Contar como um filósofo analítico não é o bastante para ficar em relações, até mesmo de mútua influência, com os membros dessa lista; de outro modo, ter­‑se­‑ia de incluir, por exemplo, Husserl e Habermas. Além do mais, uma concepção puramente histórica ignora o fato de que filósofos podem ser mais ou menos analíticos por razões outras que ligações históricas. Essas preocupações podem ser deixadas de molho se reconhecermos que a filosofia analítica é uma tradição agrupada não somente por relações de influência, mas também por semelhanças que se justapõem. Na seção final, delineio os contornos da tradição analítica e me pronuncio sobre a questão de quem a fundou e quando ela rompeu com as filosofias tradicional e continental. 8/6/2011 13:51:30 30 Hans-Johann Glock Tendo respondido à questão que dá título ao livro, o capítulo final, “Presente e futuro”, volta­‑se ao estado atual da filosofia analítica e da divisão analítico/continental.­ Espero mostrar que a divisão desempenha­ um papel importante em três áreas de rele­ vância contemporânea mais ampla: a “cultura” e “guerras da ciência”; temores europeus de “imperialismo cultural” anglo­‑americano; e a crescente insularidade da cultura anglo­ ‑americana vis­‑à­‑vis à Europa continental. Também considero algumas fraquezas reais ou alegadas do cenário ­analítico atual. Na Seção Final, considero o futuro da filosofia analítica e seu contraste com o pensamento continental. Concluo que as barreiras entre Glock.indd 30 as duas ainda existem no presente, e que a superação delas não é um fim primordial em si mesmo. A filosofia ­analítica precisa aperfeiçoar seu jogo em diversos aspectos; todavia, o objetivo último não deveria ser um cenário filosófico unificado, mas simplesmente uma melhor filosofia. Nota 1. Dummett, 1993: especialmente capítulos 2 a 4. Hacker (1996, caps. 1-2; 1997) e Monk (1997) se aliaram a Dummett na primeira pergunta, Friedmann (2000) implicitamente o contradiz na segunda. 8/6/2011 13:51:30