do arquivo

Propaganda
1
A CRÍTICA À FILOSOFIA NA POESIA DE ALBERTO CAEIRO
Rafael Campos Quevedo
Professor do curso de Letras da Faculdade Atenas Maranhense.
Doutorando em Literatura pela UnB.
E-mail: [email protected]
Resumo: este breve artigo aborda a tão conhecida rejeição caeiriana ao pensamento racional apresentando tópicos dessa rejeição como alusões críticas a
importantes postulados da Metafísica ocidental, em especial àqueles contidos
em Sócrates (o “conhece-te a ti mesmo”), Platão (a bipartição dos mundos –
sensível e inteligível, aparência e essência), Aristóteles (metafísica como estudo das causas primeiras) e Descartes (o cogito ergo sum). Por fim, é apresentado o elogio caeiriano ao estágio pré-filosófico do espanto e da admiração diante do mundo.
Palavras-chave: Metafísica. Filosofia. Alberto Caeiro.
Resumé: ce court article traite de la question plus connue sur le refus caeiriana
à la pensée rationnelle
en demontrant les topiques de ce refus comme
allusions critiques aux importants postulats de la Métaphisyque occidentale, en
particulier ceux concernant Socrate (connais-toi toi-même), Platon (dualisme
entre deux mondes – sensibles et intelligibles, apparence et essence), Aristote
(métaphysique comme l’étude des causes prémières) et Descartes (le cogito
ergo sum). Enfin, est presenté l’éloge caeiriano au stage prè-philosophyque de
l’étonnement et de l’admiration devant le monde.
Mots-clés: Métaphysique. Philosophie. Alberto Caeiro.
É possível que a partir de uma primeira leitura da obra de Alberto
Caeiro resulte a compreensão de que seus poemas representam uma tentativa
de invalidação da Filosofia: “não sou filósofo nem poeta”, “pensar é estar doente dos olhos” etc. No entanto, é comum encontrar nos comentários críticos à
obra do mestre dos heterônimos e do próprio Fernando Pessoa, a afirmação de
que é possível extrair uma filosofia de sua poesia. Tal filosofia seria uma espécie de “sensacionismo”. Baseado nisso, elegemos como problema norteador
2
deste breve comentário a relação da poesia de Caeiro com a Filosofia, problema este que será desenvolvido em dois momentos. No primeiro pretendemos
mostrar o fundamento da crítica de Caeiro ao pensamento metafísico, rastreando algumas das referências depreciativas aos cânones da Metafísica ocidental (em especial Sócrates, Platão e Descartes) que o poeta apresenta ao longo
de seus poemas para, no final, nos perguntarmos sobre a possibilidade de se
extrair uma filosofia da obra de Caeiro.
Já de início, deve-se ter em mente duas indicações básicas sobre a
obra do autor de O guardador de rebanhos: 1- a intenção do poeta é a de impugnar não só a Filosofia, mas toda modalidade de discurso que tenha como
pretensão a busca pelo sentido das coisas, tais como (além da Filosofia): a Ciência, a Religião e a própria Poesia. 2- Quando ataca a Filosofia, Caeiro tem
em vista especialmente um tipo de filosofia: a Metafísica e, negando-a, assume
uma postura anti-Metafísica que, em princípio, seria indicativa, também, de
uma forma de atitude filosófica, ainda que negativa.
Na cosmovisão depreendida da poesia caeiriana, as várias modalidades de conhecimento esbarram, já de início, num engodo básico: o de buscar o “sentido das coisas”. No uso corriqueiro da expressão, dizemos que uma
coisa “faz sentido” quando encontramos uma explicação racional para ela. No
entanto, “sentido” é o particípio do verbo “sentir”, o que, no mínimo, assinala a
anterioridade da sensação sobre o pensamento, premissa essa que funciona
como eixo de toda crítica caeiriana às formas de conhecimento. Se há sentido
último das coisas, este estará sempre no ato mesmo de senti-las, reitera o poeta. Deitar-se sobre a grama, ver a árvore e sentir o vento são, em última instância, segundo os versos de Caeiro, o verdadeiro “conhecimento” da realidade. O
cotejo entre os dois fragmentos a seguir indica o deslocamento da acepção do
termo “sentido” operada pelo heterônimo de Fernando Pessoa:
“Constituição íntima das cousas”...
“Sentido íntimo do Universo”...
[...]
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum. [...] (PESSOA, 2005, p.24)
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido. [...] (PESSOA, 2005, p.34)
3
Está no cerne da Metafísica, no entanto, uma tendência a extrapolar
o âmbito do sensível rumo a uma explicação lógica e racional das coisas, como
mostra uma das prováveis explicações etimológicas do termo Metafísica: aquilo
que está “para além” da natureza (µετα [meta] = depois de/além de + Φυσις
[physis] = natureza). A questão é que, para Caeiro, para além da natureza não
há nada e quem diz que há alguma coisa ou é “louco” ou é “doente”. Sequer
há, a rigor, a “natureza”, para o poeta (como prova uma das estrofes transcritas
mais adiante). Aqui localizamos um dos mais importantes argumentos antimetafísicos do seu corpus poético: a crítica à tendência às classificações e à
redução das coisas a conceitos ou categorias cuja característica básica é o
aspecto abstrato e geral. Na visão do poeta, a tendência à generalização corresponde a um falseamento das coisas cuja realidade é marcada pela concretude e pela singularidade. Exemplo: João e Pedro são entes particulares. “Humanidade” é uma categoria universal que abrange os indivíduos João e Pedro.
Esta árvore ou aquela flor são particulares. “Natureza”, por sua vez, é uma abstração conceitual de tais seres. A Metafísica, por sua vez, é o conhecimento do
universal por excelência, como prova o seu objeto último: o Ser. Para Caeiro, a
Metafísica é uma falácia entre outras porque a passagem do particular para o
universal é uma deturpação patológica que deve ser evitada. Não há, para o
poeta, as totalidades (o geral) mas sempre cada coisa em particular:
Falaram-me em homens, em humanidade,
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade.
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si,
Cada um separado do outro por um espaço sem homens.
[...]
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas idéias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam. (PESSOA, 2005, p.150)
4
Caeiro propõe em sua poesia, portanto, algo da ordem de uma impossibilidade constitutiva que garante à sua obra um interessante estofo utópico. Essa impossibilidade diz respeito ao fato de que a sua sugestão é a de que
lidemos com a realidade como um conjunto de entes particulares (esta pedra,
esta árvore etc.) recusando a tendência inevitável de todo ato de pensamento e
linguagem à generalização. O que faz de tal intenção algo utópico é justamente
o fato de que essa é uma condição inarredável não apenas do conhecimento
conceitual da ciência e da filosofia mas, em princípio, de toda e qualquer linguagem, inclusive a poética, a mesma de que se serve Caeiro.
Em O arco e a lira Otávio Paz sublinha uma atitude de redução, comum
às ciências e à poesia, da pluralidade das coisas do mundo à unidade do conceito, no primeiro caso e à unidade da imagem1 poética, no segundo. Se atentarmos para as palavras do crítico e poeta mexicano, veremos que o procedimento em questão não é exclusivo seja da ciência seja da poesia, mas é algo
intrínseco à própria essência da linguagem, senão vejamos: a palavra pedra
evoca um conceito geral e homogêneo, redutor, portanto, das infinitas singularidades dos variadíssimos tipos de pedra existentes na realidade. Em outros
termos, não possuímos uma palavra para cada pedra individual. Contudo, e
agora entramos no ponto que nos interessa, o discurso científico tem por necessidade a preservação dessa tendência à generalização ao passo que à poesia é facultada a liberdade de trapaceá-la. Explicando: o discurso científico
exige a precisão conceitual que, por sua vez, está submetida à lógica argumentativa. O conceito, então, é um tipo de enunciado em que os termos (o A e o B
da sentença “A é B”) nele presentes exigem a generalização dos casos particulares. Em “todo homem é mortal”, tanto “homem” quanto “mortal” abarcam em
seu universo de referência uma quantidade bastante ampla de casos particulares: o conjunto de indivíduos da espécie humana, no primeiro caso, e o universo de seres que morrem, no segundo. Para o poeta e crítico mexicano, o discurso científico-racional submete as coisas reais, por exemplo, uma pedra e
1
“Convém advertir, pois, que designamos com a palavra imagem toda forma verbal, frase ou
conjunto de frases, que o poeta diz e que, unidas, compõem um poema. Essas expressões
verbais foram classificadas pela retórica e se chamam comparações, símiles, metáforas, jogos
de palavras, paranomásias, símbolos, alegorias, mitos, fábulas, etc. Quaisquer que sejam as
diferenças que as separam, todas têm em comum a preservação da pluralidade de significados
da palavra sem quebrar a unidade sintática da frase ou do conjunto de frases.” (PAZ, 1982 , p.
119)
5
uma pluma, a “reduções racionais” em “unidades homogêneas” como a unidade de peso: quilo. “A operação unificadora da ciência mutila-as [as palavras] e
empobrece-as. O mesmo não ocorre com a poesia. O poeta nomeia as coisas:
estas são plumas, aquelas são pedras. E de súbito afirma: as pedras são plumas, isto é aquilo. Os elementos da imagem não perdem seu caráter concreto
e singular.” (PAZ, 1982, p. 120).
Ainda com relação ao exemplo de Paz, é interessante destacar um
trecho da referida obra em que o autor fala do pasmo da criança2 diante da
descoberta de que um quilo de plumas equivale a um quilo de pedras: “Custalhes muito reduzir pedras e plumas à abstração quilo” (PAZ, 1982, p. 120). Temos aí o mecanismo sem o qual a ciência não poderia se mover: a abstração,
processo que se caracteriza pela generalização dos fenômenos a um enunciado universal, o conceito.
Outro alvo da contestação do autor de O guardador de rebanhos é a
clássica dicotomia metafísica entre aparência e essência. Tal cisão remonta a
Platão para quem o mundo sensível (mundo das coisas) seria uma cópia imperfeita (e enganosa) do mundo das ideias arquetípicas (mundo das essências). Nesse sentido, a verdade estaria como que “por detrás” das aparências
(no sentido de serem transcendentes a elas) e o acesso ao real dependeria do
ultrapassamento do conhecimento que é dado pelos sentidos.
O postulado da bipartição dos mundos, tratado alegoricamente por
Platão no livro VII da República, pressupõe não apenas uma apreciação teórica
da realidade (ou seja, não é apenas uma teoria do conhecimento e uma metafísica) mas admite, em seu bojo, uma valoração das coisas em termos de verdade e engano. Somos, segundo Platão, como prisioneiros vivendo no interior
de uma caverna a julgar que as imagens que enxergamos são coisas reais
quando, na verdade, elas não passam de sombras, projeções imperfeitas de
coisas que existem fora da morada subterrânea. Sobre esse mundo exterior
não temos nenhum conhecimento, exceto aquele que nos é dado pelos espectros que nos habituamos a ver no fundo da caverna. É somente por meio de um
aprendizado árduo e longo, dirá o filósofo grego, que será possível a superação
do engano e a jornada rumo à verdade do mundo. Ao contrário, em Caeiro:
2
A esse “pasmo” infantil de olhar o mundo como novidade irá Caeiro se referir em O guardador
de rebanhos em trecho citado mais adiante.
6
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos?
Se ver e ouvir são ver e ouvir? (PESSOA, 2005, p. 49)
Para o mestre dos heterônimos de Pessoa o mundo das coisas sensíveis, ou seja, das coisas que podem ser apreendidas pelos órgãos do sentido, passa a ser revalorizado como o lugar por excelência da verdade. Não há,
jamais, o “por detrás” das coisas nem, por conseguinte, o pressuposto de que
“este” mundo é o reino da escuridão e do equívoco e que, por esse motivo, deve ser negado. Se há alguma essência, dirá Caeiro, esta coincide integralmente com a aparência, impedindo qualquer forma de hiato que deva ser transposto. Dessa forma, o real é todo superfície, desprovido de profundidade. É, por
assim dizer, exterioridade pura:
Sim, talvez tenham razão.
Talvez em cada coisa uma coisa oculta more,
Mas essa coisa oculta é a mesma
Que a coisa sem ser oculta. [...] (PESSOA, 2005, p.170)
Não só a natureza é exterioridade pura como também o homem carece de interioridade. Não há um “dentro de si”. Logo, um dos objetos da reflexão Metafísica também cai por terra, a saber, a noção de Alma. Por extensão
dessa invalidação, podemos perceber no poema a seguir uma oposição ao
pensamento socrático:
Não sei o que é conhecer-me. Não vejo para dentro.
Não acredito que eu exista por detrás de mim. (PESSOA, 2005,
p.147)
Segundo a tradição, Sócrates teria recebido como instrução do oráculo de Delfos a famosa máxima “conhece-te a ti mesmo”, que se tornou emblemática por sintetizar o método da introspecção como caminho possível para
o entendimento de si mesmo e do mundo circundante. Negando a interioridade,
Caeiro invalida a introspecção e define a realidade humana como um ser a
mais no mundo dos seres:
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
7
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso? (PESSOA, 2005,
p.65)
No entanto, talvez a oposição mais definitiva que possa haver entre a
postura de Caeiro e a dos representantes da Metafísica ocidental esteja nas
diferenças que separam o poeta da filosofia cartesiana. Grosso modo, o argumento do autor do Discurso do método parte do fato de que se podemos duvidar da existência das coisas sensíveis, a única coisa efetivamente indubitável,
segundo o pensador francês, é o fato de que sou eu a duvidar e, se duvido, é
porque penso e, se penso, logo existo (cogito ergo sum):
[...] como desejava dedicar-me então somente à pesquisa da verdade, julguei que era necessário que [...] rejeitasse como completamente falso tudo aquilo em que eu pudesse imaginar a menor dúvida, a
fim de ver se, depois disso, não restaria alguma cousa na minha
crença que fosse inteiramente indubitável. [...] Mas logo após percebi
que, quando pensava que tudo era falso, necessário se tornava que
eu - eu que pensava – era alguma cousa. E notando que esta verdade – penso logo existo – era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que procurava. (DESCARTES, 1960, 88-90pp.)
Percebe-se que o itinerário de Descartes pressupõe o pensamento como critério para a afirmação da existência do eu. Para Caeiro, a coisa se
passa de maneira diversa. A única evidência da qual não se pode duvidar é
aquela que me é dada pelas sensações3. O “salto” para o pensamento é que é
fonte de engano, uma vez que não passa pelo crivo do “sentido”. Todo pensamento é projeção sobre o real, ficção mistificadora. É, em suma, “fechar os
olhos”. Dessa forma, é justamente o espaço “interno” da subjetividade enquanto reverberação da experiência que é rejeitado na poesia de Caeiro. Em outras
palavras, o que a poesia caeiriana repele é uma dada compreensão de sujeito
constituído por um “dentro”, a morada profunda da alma no interior da qual o
mundo vivido amalgama-se com conteúdos afetivos gerando a expressão poética.
Embora possamos ainda apontar outras referências aos representantes da filosofia ocidental, é possível que os exemplos arrolados até o momento
3
As sensações foram postas em xeque por Descartes no Discurso sob o argumento de que, ao
sonhar, também sou tomado por sensações e, no entanto, elas não procedem de uma experiência real. Logo, ter sensações não é nenhuma garantia da verdade de que algo existe.
8
já sejam suficientes para o primeiro momento da discussão proposta. Até aqui,
portanto, sublinhamos pontualmente a oposição de Caeiro a algumas premissas norteadoras da tradição filosófica ocidental. Contudo, a leitura do poeta em
questão confirma que sua rejeição estende-se à própria faculdade que distingue o homem dos demais seres, que é a faculdade do pensamento. Dito dessa
maneira, podemos ser induzidos, equivocadamente, a concluir que Caeiro prega uma concepção de negação do humano em seus atributos mais fundamentais. Ocorre que, para o mestre de Fernando Pessoa, o critério de afirmação da
essência humana não passa, como em Descartes, por exemplo, pelo eu pensante. Muito embora tenha por vezes nivelado a existência humana à dos demais seres (“E eu, que não sou mais do que eles [o rio e a árvore], que sei disso?”), Caeiro não tem como impugnar a definição do homem enquanto ser
consciente, ainda que essa consciência seja uma consciência da sensação.
Por mais que seus versos, aqui e ali, queiram mostrar o contrário, a visão de
mundo que preside sua poesia manifesta a afirmação de uma dignidade humana que garante ao homem um status de superioridade com relação aos demais
seres vivos. Isso ocorre porque, embora a capacidade de ter sensações possa
ser comum aos animais, o homem é o único ser capaz de ter consciência plena
dessa sensação como sendo uma sensação. Caeiro pode renunciar à busca
pelo sentido das sensações, sobre suas causas, sobre os porquês do que vê,
ouve e pega; ou seja, pode renunciar ao “pensar” (considerando o verbo na sua
acepção filosófica). Mas o fato mesmo de afirmar a sensação como critério de
realidade coloca-o na condição de alguém consciente dessa realidade. Mutatis
mutandis (o ser consciente das sensações no lugar do pensar) pode-se aplicar
a Caeiro a seguinte reflexão de Pascal:
O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um
caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para
esmagá-lo: um vapor, uma gota de água, são suficientes para matálo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda
mais nobre do que o que o mata, porque ele sabe que morre e conhece a vantagem que o universo tem sobre ele, e disso o universo
nada sabe. (PASCAL, apud, BORNHEIM, 1986, p. 25)
Isso posto, a questão seguinte sobre a qual nos deteremos será, portanto, o ensejo para o segundo momento do trabalho, a saber, o fato de o comportamento de Caeiro coincidir com a do filósofo, em princípio, naquilo que o
9
prof. Gerd Bornhein denomina como uma das “atitudes originantes do filosofar”.
No caso em questão, trata-se da “admiração” diante do mundo, condição inaugural de todo pensar filosófico.
O sentimento de admiração marca o ponto de partida da atitude filosofante. Ele precede as próprias perguntas que conduzem o sujeito ao ato reflexivo: “por que o mundo existe?”, “qual a origem das coisas?”. Caeiro, por sua
vez, nega o passo que se sucederia ao sentimento inicial da admiração e interdita o surgimento da pergunta, o advento do problema, este sim específico do
pensamento filosófico. Ou seja, essa abertura para o pensar (seja a “admiração”, o “espanto” ou outra forma de pathos) não é, ainda, o pensar, pelo menos
no sentido como a tradição filosófica compreende essa noção identificando-a
com a especulação racional por meio de conceitos.
[...] Sei ter o pasmo comigo [essencial]
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo... (PESSOA, 2005, p.19)
Recusando o passo que vai além da perplexidade da “novidade do
mundo”, ou seja, rejeitando a busca do conhecimento daquilo que se manifestou aos sentidos como “novidade”, Caeiro defende a estagnação em um tipo de
atitude ingênua e primitiva, embora não haja aqui nenhum sentido pejorativo
nesses dois adjetivos. Somos inclinados a identificar o “pasmo” a que se refere
o eu poético da estrofe citada acima com a atitude da admiração ingênua a que
se refere Bornheim em sua Introdução ao filosofar4. Um pouco extensa para os
limites deste texto é a análise de Bornheim acerca das características da admiração ingênua. Devido a esse fato, optamos por reproduzir aquela que nos parece ser a que melhor promove o elo desse conceito com a postura do eu poético da obra de Caeiro:
4
Bornheim distingue o pasmo da atitude admirativa, valendo-se de Ferrater Mora, nos seguintes termos: “A admiração ingênua não se identifica com a experiência do pasmo. Este é mais
primitivo, implicando num certo sentimento de confusão diante do real; [...]E embora esse sentimento não deva ser desprezado, o ‘pasmo [...] está mais próximo ao puro apetite – que se
sacia com a confusão – do que ao respeito – que se contenta com o distanciamento.’ Pode,
portanto, haver algo de pasmo na atitude admirativa, mas esta se verifica em plano mais elevado.” (BORNHEIM, 1986, 29-30 pp.). Entendemos que a precisão conceitual não tem, aqui, o
peso de critério determinante. Ou seja: uma coisa é o conceito de pasmo (Mora/Bornheim)
outra é o significado da palavra dentro do contexto poético da obra de Caeiro. Foi levando esse
segundo critério em consideração que propusemos a identificação do pasmo caeiriano com a
admiração ingênua tal como a desenvolve Bornheim.
10
Na admiração, verifica-se um simpatizar, no sentido etimológico da
palavra, um sentir unido ao real, e esta disponibilidade apreende o
real como uma presença insofismável, porque, longe de impor-lhe o
que quer que seja, o deixa ser em toda a sua dimensão, como plenitude de presença. Já neste sentido podemos compreender as palavras de Heidegger: ‘semelhante deixar-ser significa que nós nos expomos ao ente como tal e que nos transportamos ao aberto todo nosso comportamento’. (BORNHEIM, 1986, p. 22)
O leitor de O guardador de rebanhos e outros poemas facilmente
saberá identificar em inúmeras passagens esse “simpatizar-se” com o real e
essa “plenitude de presença” que se estabelece na relação do eu poético com
o real na poesia de Alberto Caeiro. O trecho transcrito abaixo foi extraído de O
pastor amoroso e possui, a nosso ver, forte teor ilustrativo com relação ao argumento em questão:
Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja esse o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de ‘interpretar’ a erva verde sobre
minha
[sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural. (PESSOA, 2005, p.
100)
Isso posto, convém ressaltar que a história da Metafísica revela que
a prática filosófica tem como “espírito” fundador uma espécie de insatisfação
com o fato de as coisas meramente existirem, daí a busca incessante pelos
fundamentos “últimos” e constitutivos da realidade. Tais fundamentos ganharam denominações distintas em cada pensador ou escola filosófica: “causa
primeira”, “absoluto”, “Deus”5 etc.
À primeira atitude (a filosófica) que indaga, problematiza e forja soluções racionais para os problemas levantados chamamos “atitude crítica”, à qual
se contrapõe a “atitude ingênua”, que se caracteriza pela recusa à problematização e pela aceitação apaziguada do real como algo que está dado e sobre o
qual nada se pode dizer, sob pena de projetar sobre ele algo que lhe é estranho.
A recusa ao pensamento (e, por conseguinte, a permanência na admiração ingênua) é o cerne da postura antifilosófica de Caeiro. Porém, para
5
Sobre este último, vejamos o que diz o heterônimo de Pessoa: Não acredito em Deus porque
nunca o vi./Se ele quisesse que eu acreditasse nele,/Sem dúvida que viria falar comigo/E entraria pela minha porta dentro/Dizendo-me, Aqui estou! (PESSOA, 2005, p.24)
11
expô-la, o poeta passa em revista e põe em xeque alguns dos principais pilares
da tradição Metafísica e, embora sem se valer do mesmo de tipo de discurso,
exerce uma inegável atitude crítica de questionamento do edifício que é o pensamento ocidental. Neste pequeno artigo, indicamos alguns desses pilares
básicos postos em questão por Caeiro. Foram eles: 1- a ideia de fundamento
último da realidade como a preocupação metafísica por excelência; 2- a discussão entre o particular e o universal; 3- a dicotomia entre aparência e essência (Platão); 4- o pensar como autoconhecimento (Sócrates) e a definição do
eu pensante como critério de existência (Descartes). Sobre essa “desconstrução” caeiriana, vale citar o seguinte poema:
Passar a limpo a Matéria
Repor no seu lugar as coisas que os homens desarrumaram
Por não perceberem para que serviam
Endireitar, como uma boa dona de casa da Realidade,
As cortinas nas janelas da Sensação
E os capachos às portas da Percepção
Varrer os quartos da observação
E limpar o pó das idéias simples...
Eis a minha vida, verso a verso. (PESSOA, 2005, p.89)
Em Caeiro quase poderíamos dizer que seus meios contradizem
seus fins, uma vez que foi “pensando” que o poeta pregou, do começo ao fim
de sua obra, que o essencial é não pensar. Contudo, e isso parece ser importante: a rejeição do pensar não implica a negação da consciência de saber-se
humano, condição inarredável para a valoração das sensações que atravessa
toda a obra do autor. Dessa forma, Caeiro opõe-se, na verdade, a um tipo de
pensamento, o pensamento perscrutador das causas últimas da realidade e do
homem, a reflexão sobre as origens e o ser das coisas, sobre o sentido do universo e da realidade. Em suma: Caeiro nega as formas de conhecimento de
maneira geral e essa inclinação inata ao homem de extrapolar o campo sensorial em busca de um sentido alhures.
Além disso, as intenções do poeta estão fundadas em bases inegavelmente utópicas. O que se entende por “sensacionismo”, pelo menos na versão matricial (e mais radical) caeiriana é a absoluta imbricação entre homem e
realidade. Porém (e aí reside o estofo utópico de seu projeto): quem “se admira
não se dissolve na realidade admirada” (BORNHEIM, 1986, p. 23). A consciência põe-nos, sempre, à distância do mundo. Essa é a condição irremediável do
humano. A irrealização utópica parece ser, no entanto, a riqueza maior da poe-
12
sia de Caeiro, pois, segundo um de seus “discípulos” com quem estamos, nesse momento, de inteiro acordo: “O que eu adoro nos seus versos não é o sistema filosófico que me dizem que se pode tirar de lá. É o sistema filosófico que
não se pode tirar de lá”. (Álvaro de Campos, in Teresa Rita Lopes, Pessoa por
conhecer, II)
REFERÊNCIAS:
BORNHEIM, Gerd. Introdução ao filosofar. O pensamento filosófico em
bases existenciais. São Paulo: Editora Globo, 1986.
DESCARTES, René. Discurso do método. Rio de Janeiro: José Olympio,
1960.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Trad. Roberto Leal Ferreira
e Álvaro Cabral. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad.: de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982.
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
PLATÃO. República. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002.
Download