TRABALHO E ALIENAÇÃO DOS SUJEITOS PRODUTORES DA SOCIEDADE Victor Andrade Silva Leal1 [email protected] Profª. Drª. Suzane Tosta Souza (Orientadora)2 [email protected] Resumo Neste artigo partimos do pressuposto de que o trabalho é única atividade humana produtora de valor social, sendo a categoria fundante da sociedade, pois determina em última instância a mediação entre sociedade-natureza. Porém, o modo como a sociedade organiza essa mediação tem proporcionado à classe trabalhadora um estado de alienação do seu trabalho, ou seja, um estranhamento. Este estranhamento produz um entendimento deturpado de como a sociedade se organiza, fazendo com que esses trabalhadores não se reconheçam como produtores da sociedade, não permitindo o desenvolvimento de uma consciência de classe. O objetivo deste trabalho é investigar por quê a sociedade materializa as necessidades da classe burguesa, e não dos próprios sujeitos produtores desta sociedade, enfatizando um início de pesquisa que visa estudar a reprodução desses trabalhadores na periferia da cidade de Vitória da Conquista, na Bahia. Palavras chaves: Trabalho. Alienação. Produção da Sociedade. Valor. Introdução Os sujeitos que produzem a sociedade em sua totalidade passam por um processo violento de expropriação do valor construído por eles próprios. Para entendermos como isso ocorre nos dias de hoje, pretendemos investigar a produção de valor social através do trabalho, e mostrar como este é o fundamento da sociedade, transformador do homem primitivo em ser social, assim como também é produtor da 1 Bolsista de iniciação científica (FAPESB), membro do grupo de pesquisa: Luta pelo trabalho na periferia de Conquista: mobilidade, permanência camponesa e reprodução da vida nas contradições do urbano. Pesquisa vinculada ao Laboratório de Estudos Agrários e Urbanos da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Membro dos grupos de Pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as Políticas de Reordenamentos Territoriais (GPECT/UFS-CNPq) e Trabalho, mobilidade do trabalho e relação CampoCidade (DG-UESB/CNPq). 2 Professora Adjunta do Departamento de Geografia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Doutora em Geografia Humana pela Universidade Federal de Sergipe. Membro do Grupo de Pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as Políticas de Reordenamentos Territoriais (GPECT/UFS-CNPq) e Coordenadora do Grupo de Pesquisa: Trabalho, mobilidade do trabalho e relação Campo-Cidade (DGUESB/CNPq). objetividade. Porém, veremos que a lógica do capital é imposta para controlar esta produção através da alienação do trabalho e, consequentemente, do trabalhador. Alienação esta que legitima o domínio de uma classe, neste caso a dominante, sobre a outra – a classe trabalhadora. A produção de valor de uso, consequentemente, está sujeita a essa mediação entre sociedade-natureza (a realização do trabalho), que por sua vez, produz o espaço geográfico em que vivemos. Esse espaço trás consigo diversas características históricas e sociais, como fruto do trabalho socialmente realizado. Porém, apesar de ser socialmente realizado, as classes hegemônicas do capitalismo, a burguesia e os proprietários fundiários se apropriam desse produto. O Estado moderno atua como um aparelho legitimador dessa ordem banal, dando direitos a essas classes de se apropriarem de tudo que, objetivamente, é produzido por outra classe social, a classe trabalhadora. Logo, na sua essência: [...] o Estado é o produto da sociedade num estágio específico do seu desenvolvimento; é o reconhecimento de que essa sociedade se envolveu numa autocontradição insolúvel, e está rachada em antagonismos irreconciliáveis, incapazes de ser exorcizados. No entanto, para que esses antagonismos não destruam as classes com interesses econômicos conflitantes e a sociedade, um poder, aparentemente situado acima da sociedade, tornou-se necessário para moderar o conflito e mantê-lo nos limites da “ordem”; e esse poder, nascido da sociedade, mas se colocando acima dela e, progressivamente, alienando-se dela, é o Estado (ENGELS apud HARVEY, 2006, p. 79-80). Como ponto de partida de uma pesquisa que visa estudar a reprodução da classe trabalhadora na periferia da cidade de Vitória da Conquista, esse artigo tem como principal objetivo elucidar algumas questões teóricas sobre o trabalho e a alienação desses sujeitos históricos. Assim, pretendemos entender as facetas do mundo moderno e suas contradições. Para tanto, precisamos também adotar uma visão de mundo que oriente nossa análise do real. Seguindo essa lógica, tomamos o método científico do materialismo histórico dialético, pela razão de tentarmos buscar a essência do objeto de pesquisa através da totalidade e suas concatenações. Para isso, buscamos entender a origem e o desenvolvimento do nosso objeto através da materialidade, tentando alcançar o real através do processo histórico no qual suas determinações são formadas. O trabalho e a produção de valor A produção da objetividade social está vinculada a uma série de fatores – relações sociais, condições históricas, desenvolvimento da técnica, ideologia, etc. Porém, ao falar de produção do espaço, e consequentemente da transformação da natureza neste, é preciso também falar de uma categoria central no estudo da relação sociedadenatureza, o trabalho. O trabalho social é o que possibilita ao homem transformar, conscientemente, o meio em que vive. Diferente dos outros animais, os homens produzem valores de uso através de uma ação teleológica. Esta, por sua vez, é a capacidade de abstrair o mundo objetivo (o mundo real), transformando-o em sua subjetividade (o mundo das ideias), criando uma prévia ideação do que pretende transformar, para depois exterioriza-la no mundo real (LESSA; TONET, 2008). Projetar a realidade na consciência, e “converter em objeto uma prévia ideação é denominado por Marx de objetivação” (LESSA; TONET, 2008, p. 19). Desta forma, quando o homem transforma o mundo a sua volta, transforma também a si mesmo, já que sua consciência parte materialmente da objetividade. Isso possibilita que ele transforme o mundo real já modificado por ele, alterando também a sua consciência, num movimento dialético, histórico, infinito. Porém, não podemos cair no simplismo de afirmar que, a partir do trabalho humano, e apenas dele, que se “brota” os bens materiais. Existe uma relação dialética entre sociedade e natureza, como já posto, e a partir dessa relação, é possível se produzir esses bens. Nesse intercâmbio, o trabalho tem como função utilizar-se da matéria que a natureza possui, e transformá-la em coisas úteis. “Portanto, o trabalho não é a única fonte dos valores de uso que produz, da riqueza material. Dela o trabalho é o pai, como diz Willian Petty, e a terra é a mãe” (MARX, 1983, p. 51). Considera-se também que não existe trabalho fora da sociedade. Em primeiro lugar, toda transformação realizada por um indivíduo parte de uma construção social anterior a ele, construída por outros indivíduos da sua sociedade. Também significa que toda transformação fará parte dessa mesma construção social, de forma que as gerações futuras possam apreender o conhecimento necessário para essa transformação da natureza. Em segundo lugar, toda modificação do mundo real possibilita a transformação da consciência de todos os homens, e não apenas daquele que efetuou diretamente tal transformação. E em terceiro lugar, na medida em que o trabalho se torna mais complexo, cada vez mais é necessário que os sujeitos transformadores do meio ajam socialmente, estabelecendo relações entre si, para poder, assim, transformar a natureza. Assim, a relação homem-homem estaria intrínseca à relação homem-meio (MOREIRA, 2010). É através do trabalho social que o homem consegue sair do status de homem primitivo (o qual gastava boa parte do seu tempo de vida lutando pela sobrevivência, caçando, fugindo de predadores, procurando abrigos) para o status de homem social. Esta nova condição do homem lhe permitiu aumentar a sua produtividade dos meios de subsistência, possibilitando um tempo para ócio, onde começou a realizar outras atividades sociais, haja vista que nem todos os indivíduos estariam ligados diretamente a atividades produtivas. Entendendo dessa forma: O trabalho é o fundamento do ser social porque transforma a natureza na base material indispensável ao mundo dos homens. Ele possibilita que, ao transformarem a natureza, os homens também se transformem. E essa articulada transformação da natureza e dos indivíduos permite a constante construção de novas situações históricas, de novas relações sociais, de novos conhecimentos e habilidades, num processo de acumulação constante (LESSA; TONET, 2008, p. 26). O trabalho é o único produtor de valor social material. Nada mais produz “natureza socializada” da “natureza natural”, se não o próprio trabalho (MOREIRA, 2001). Porém, na sociedade capitalista, dois tipos de valores se mostram mediante a produção social, o valor de uso e o valor de troca. Resumidamente, valor de uso é a função social que o produto possui, é o objetivo para qual o objeto foi produzido. Ao se deparar com necessidades naturais, o sujeito social, modificador do meio, realiza o trabalho a fim de atender essas necessidades, construindo uma casa, por exemplo. Essa casa vai possuir o valor de uso de abrigar homens e mulheres, na intenção de protegêlos contra as intempéries naturais e contra predadores. Este é o uso, a função social da casa. Nesta qualidade, o trabalho é uma atividade produtora de valores-deuso, portanto transformadora de meios naturais em meios sociais de existência, e ao mesmo tempo realizadora do salto de qualidade da natureza natural (dita primeira natureza) em natureza socializada (dita segunda natureza). E confunde-se, assim, com a transformação da história natural em história social do homem, o homem atuando como sujeito dessa relação transhistórica, numa dialética de interioridadeexterioridade em que a natureza se historiciza e a sociedade se naturiza e o homem opera uma transformação em si mesmo, hominizando-se (MOREIRA, 2001, p. 11). Já o valor de troca existe no capitalismo de uma forma que possibilita a ampliação e intensificação da lógica da mercadoria sobre a função social que a produção possui. Desta forma a mercadoria adquire um valor equivalente em relação uma as outras, fazendo com que ele seja adquirido por qualquer um que possa compralo. Mas, “como medir então a grandeza de seu valor? Por meio do quantum nele contido da ‘substância constituidora de valor’, o trabalho” (MARX, 1983, p. 47). O valor de troca é o valor proporcional entre mercadorias de diferentes naturezas. Entendendo dessa forma, apenas existe valor de troca quando há pelo menos duas mercadorias em uma permuta. E esse equivalente objetivo que existe entre uma mercadoria e outra é determinado pela quantidade de tempo de trabalho social necessário para produzi-lo (MARX, 1983). Este é o valor que importa ao burguês e ao comerciante que irão lucrar com a comercialização dessa mercadoria. Por isso eles devem se preocupar com a quantia em dinheiro que determinada mercadoria vale, e não com a função social que ela cumpre para ele enquanto indivíduo. Não importa, para um agente imobiliário, que uma casa abrigue pessoas que precisam de uma moradia, ou para um dono de uma indústria de sapatos, que estes calcem as pessoas que precisam dos sapatos, o que importa pra ambos é por quanto podem vender suas mercadorias e quanto se pode lucrar, ou seja: Para o trabalhador, subordinado nas mediações do capital, as mercadorias que ele compra com seu salário são coisas necessárias à sua vida, são valores de uso; para o capitalista, os que controlam a produção da riqueza social, as mercadorias são o meio pelo qual seu lucro se realiza quando são vendidas (porque são necessárias à vida do trabalhador), são valores de troca (MENEZES, 2007, p. 94). Porém, não podemos perder de vista que: Elas só são mercadoria, entretanto, devido à sua duplicidade, objetos de uso e simultaneamente portadores de valor [de troca]. Elas aparecem, por isso, como mercadoria ou possuem a forma de mercadoria apenas na medida em que possuem forma dupla, forma natural e forma de valor (MARX, 1983, p. 53). Em outras palavras, não existe valor de troca sem valor de uso. Não se vende nada que não tenha uma utilidade, por mais supérflua que seja. A lógica do capital tenta transformar tudo que há de útil para os homens em valores de troca, sejam mercadorias, sejam relações sociais, seja o espaço geográfico, ou até mesmo a própria vida privada, como ocorre hoje. Neste caso, “o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso” (MENEZES, 2007, p. 107). A alienação Como vimos anteriormente, o trabalho social é a única coisa que pode produzir valor social a partir dos meios naturais, transformando a natureza em bens úteis. Também vimos que, no capitalismo, a lógica da produção submete o valor de uso ao valor de troca. Veremos agora que, essa submissão da realização do homem só é possível através da alienação do trabalhador à sua produção. Ao realizar o trabalho, o homem se exterioriza no espaço geográfico, externando sua subjetividade, imprimindo suas necessidades e vontades no meio em que o cerca, fazendo com que a natureza se torne cada vez mais humana. É desta forma que o homem, enquanto sujeito social, também transforma a si mesmo, num processo dialético de interação entre sociedade e natureza, entre objetividade e subjetividade. Esse processo é denominado por Marx de exteriorização (Entäuserung). Porém, com o surgimento da sociedade de classes, o trabalho não é mais realizado para atender diretamente as necessidades e vontades daqueles que o realizam, mas com o intuito de privilegiar as classes dominantes, as quais detém a posse os meios de produção. Desta forma, o trabalhador se sente estranhado da sua produção, não se reconhece em sua criação, como se esta não o pertencesse. Esse processo é antagônico ao primeiro, sendo ele a alienação (Entfrendung) (MÉSZÁROS, 2006). Não obstante, se o trabalhador produz um espaço geográfico alienado, também produzirá uma consciência alienada, já que a objetividade rege a subjetividade no processo de formação da consciência. Assim, podemos chegar a “uma grande ideia sintetizadora: ‘a alienação do trabalho’ como raiz causal de todo complexo de alienações” (MÉSZÁROS, 2006, p. 21). Esse “complexo de alienações” Mészáros resume em quatro características: a) o homem está alienado da natureza; b) está alienado de si mesmo (de sua própria atividade); c) de seu ‘ser genérico’ (de seu ser como membro da espécie humana); d) o homem está alienado do homem (dos outros homens) (MÉSZÁROS, 2006, p. 20). A primeira se remete ao que tratamos anteriormente, o estranhamento à sua produção, ao seu trabalho. A segunda característica é a alienação ao trabalho como realizador do seu mundo subjetivo, já que no capitalismo o homem realiza trabalho para vendê-lo por dinheiro (seu salário), e não para se satisfazer. Desconhece, desta forma, que é o seu trabalho o produtor da sociedade. O terceiro aspecto representa a alienação do mundo objetivo (já alienado, pelos dois pontos anteriores) à sua consciência, fazendo com que o trabalhador não o compreenda, estranhado assim à essência do homem. A quarta característica se relaciona com a terceira, mas está direcionada aos outros homens. O trabalho social, como vimos anteriormente, só é possível com a associação de diferentes indivíduos, devido ao grau de complexidade do seu objetivo. Desta forma, o homem não entende que seu trabalho só é possível graças ao trabalho dos outros homens, e sua realização está intrinsecamente ligado a essas relações sociais. Para entender o “complexo da alienação” de toda a sociedade, é preciso antes compreender a alienação do trabalho. Segundo Mészáros (2006, p. 21): O conceito de alienação de Marx compreende as manifestações do ‘estranhamento do homem em relação à natureza e a si mesmo’, de um lado, e as expressões desse processo entre homem-humanidade e homem e homem, de outro. Porém, antes de alienar o produto do trabalho humano, deve-se alienar a própria “pessoa viva” (MÉSZÁROS, 2006, p. 38). Para isso, o homem deve ser transformado em coisa, ou seja, deve ser reificado. Na relação de assalariamento, ele é vendido como mercadoria, mais especificamente, força de trabalho, mercadoria esta que o trabalhador pensa ser livre para vendê-la para quem quiser. A reificação de uma pessoa, e portanto, a aceitação ‘livremente escolhida’ de uma nova servidão – em lugar da velha forma feudal, politicamente estabelecida e regulada de servidão – pôde avançar com base numa ‘sociedade civil’ caracterizada pelo domínio do dinheiro, que abriu as comportas para a universal ‘servidão à necessidade egoísta’ (Knechtschaft dês egoistischen Bedürfnisses) (MÉSZÁROS, 2006, p. 39). Com essa relação social da venda de força de trabalho reificada, o homem não mais atribui um significado à sua produção referente à criação de si mesmo como homem. Agora, ela vai significar apenas o que, na prática, vale seu trabalho, o dinheiro. É na venda, que se faz a alienação, ou em outras palavras, “A venda é a prática da alienação” (MARX apud MÉSZÁROS, 2006, p. 39). É alienando o produto do seu trabalho que o homem torna toda a sociedade alienada, estranha a si, atribuindo a ela outros signos. E é a aparência do fenômeno da troca de tal mercadoria viva como algo justo e equivalente, o fetiche de que o trabalho não vale mais do que se paga em dinheiro, que faz com que o trabalhador não perceba a grandeza da sua realização perante a sociedade. O resultado disso é essa nova servidão que, aparentemente, se mostra como livre. Até agora, tratamos tangencialmente de temas fundamentais para o entendimento da produção da atual sociedade que vivemos. Aprofundaremos, a partir deste momento, o caso específico da produção desta, compreendendo sua realização alienada dos trabalhadores que a produzem. A produção da sociedade Mas ele desconhecia Esse fato extraordinário: Que o operário faz a coisa E a coisa faz o operário. (O Operário em Construção – Vinícius de Moraes) O processo de produção da sociedade tem sua gênese com o surgimento do trabalho. Sobre isso, não podemos perder de vista que o mesmo é um processo histórico e está sempre em movimento, numa sincronia de tempo e espaço que dita o ritmo das relações sociais numa composição de elementos culturais, políticos e econômicos, que constrói, desconstrói e torna a reconstruir os espaços para atender as dinâmicas sociais. Citando, como exemplo, a produção do espaço urbano, podemos ver que: [...] o espaço é história e nesta perspectiva, a cidade de hoje, é o resultado cumulativo de todas as outras cidades de antes, transformadas, destruídas, reconstruídas, enfim produzidas pelas transformações sociais ocorridas através dos tempos, engendradas pelas relações que promovem estas transformações (SPOSITO, 1996, p. 11). O espaço urbano, assim como toda a sociedade (como vimos anteriormente), é produzido pelo trabalho social. Não só a objetividade, mas também a subjetividade. O espaço geográfico, como nos mostra Moreira (2010), é histórico, produzido socialmente pela interação homem-natureza mediada pelo trabalho. Podemos considerar a produção da sociedade – que é determinada, em última instância, pelas relações econômicas – não só como objetivação do concreto, mas também das relações sociais. 3 Partindo deste princípio, consideramos que a classe trabalhadora é o sujeito que produz a sociedade. É a partir do trabalho dessa classe que se constrói os prédios, casas, ruas, escolas, alimentos, roupas, etc. e produzindo diretamente, também, as relações de determinação da consciência e as relações sociais frutos dessa concretude. A periferia de Vitória da Conquista, lócus dessa pesquisa que se mostra em sua fase inicial, da mesma forma, é construída historicamente pelo processo de trabalho, mediador da relação sociedade-natureza4. Através da transformação da natureza pela classe trabalhadora, o espaço urbano da cidade se expande de forma desenfreada, tanto horizontalmente, na expansão da periferia, quanto verticalmente, na intensificação atual da construção civil nos bairros centrais, que passam a sofrer mais diretamente, na última década, a atuação do capital imobiliário, valorizando da terra e concentrando investimentos públicos necessários à reprodução do capital. Mesmo sendo essa classe do labor a real produtora de valor, e dessa forma, da sociedade, essas construções vem sendo objetivadas para interesses alheios a ela, com o fim de se realizar como mercadoria. Nem mesmo o direito ao uso da sua produção os trabalhadores detém, muitas vezes morando nas periferias sociais, onde o capital os condiciona a se agregar juntos a outros indivíduos pertencentes à classe trabalhadora. 3 “[...] De acordo com a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu jamais afirmamos mais do que isto. Se alguém o tergiversa, fazendo do fator econômico o único determinante, converte essa tese numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos fatores da superestrutura que se erguem sobre ela [...] exercem também sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam, em muitos casos predominantemente, a sua forma” (ENGELS, 2010, p. 103-4). 4 Vale frisar que os conceitos de centro e de periferia utilizados nesse trabalho não fazem nenhuma menção à periferia geométrica da cidade de Vitória da Conquista. Quando falarmos sobre essa relação de segregação urbana, nos remeteremos à periferia social como o espaço urbano que fica às margens da produção da estrutura urbana, e ao centro social, onde se aglutina essas estruturas, serviços e outros “privilégios”. Figura 1: Trabalhador em meio a esgoto no bairro Henriqueta Prates, na cidade de Vitória da Conquista - Bahia, no ano de 2010. Fonte: PIRES, Natan Pereira. Aula de Campo, Maio de 2010. Mesmo sendo esta classe a real produtora de valor, é fácil observar o conflito territorial que há entre o centro e a periferia de Vitória da Conquista. A construção dos mesmos se dá de forma diferenciada, gerando condições também diferenciadas para ambas as classes que neles habitam. Nos bairros periféricos da cidade é possível encontrar maior quantidade e qualidade de formas de trabalho precarizado, e uma classe trabalhadora que se reproduz em meio a condições mínimas de estrutura urbana e social, como é possível observar na Figura 1. Já nos bairros ditos centrais, a mesma classe que, em meio à sua habitação, produz um espaço geográfico com estruturas precarizadas, produz agora uma realidade diferenciada, marcada pelas paisagens de grandes estruturas e habitações, ruas pavimentadas, saneamento básico, etc., como se pode perceber na Figura 2. Há, então, uma perceptível diferença entre centro e periferia como territórios distintos, nos quais se instalam classes sociais também diferentes, portanto, expressão dessa realidade desigual. O capital faz com que os trabalhadores mais pauperizados que vivem em centros se desloquem para as periferias na medida em que esses centros começam a crescer e exigir um custo de vida mais elevado, criando assim, um espaço desigual e segregado. Figura 2: Ao centro, trabalhadores da construção civil; à esquerda, outro edifício em construção; à direita, um edifício recentemente construído; bairro Candeias, em Vitória da Conquista, Bahia, no ano de 2012. Fonte: LEAL, Victor. Acervo pessoal, Setembro de 2012. Percebemos, assim, que o trabalho no sistema capitalista é realizado de forma alienada5. Produz-se, então, uma realidade alienada, onde tudo que é construído socialmente seja apropriado privadamente. Assim, fruto da relação sociedade-natureza, mediada pelo trabalho, não é realizado para atender as necessidades e vontades daqueles que estão envolvidos diretamente no processo produtivo, e sim para atender as necessidades e vontades que lhes são alheias, no caso, as da burguesia, classe que detêm os meios de produção. A partir daí, podemos entender que a produção social, apesar de ser realizada pela classe trabalhadora, imprime vontades de outros sujeitos sociais, que buscam suprir as suas necessidades que são antagônicas às dos trabalhadores. Desta forma, a (re)produção da sociedade é determinada pelo sistema econômico vigente, pois este decide como, por que e para quem a produção do espaço é realizada. Em outras palavras: “o modo como a sociedade vive hoje é determinado pelo modo como o capital se reproduz, em seu estágio de desenvolvimento” (CARLOS, 1999, p. 77). Essa união de diferentes facções da sociedade é denominada por Harvey (2006) de aliança de classes. Essas alianças seriam grupos dos mais diversos indivíduos 5 Não apenas no capitalismo o trabalho pode ser realizado de forma alienada. Entretanto, é nele que, através da subsunção real, a alienação se torna fundamento do domínio da classe trabalhadora pela burguesia (ROMERO, 2005). de classes diferentes – e consequentemente, de funções sociais diferentes – buscando desenvolver o espaço geográfico onde vivem. Como no capitalismo a consciência é alienada da realidade, a classe trabalhadora – junto a outras facções como os agentes imobiliários, proprietários de terras, burgueses e até o próprio Estado – busca produzir no espaço urbano uma coerência estruturada 6 , mesmo que essa estrutura não tenha como objetivo a reprodução da classe, e sim do capital. Sem entender sua condição, a classe trabalhadora não consegue enxergar que é o poder do capital, poder este criado por ele mesmo, que o explora e tira o que lhe é seu, a sua produção. Desta forma, a burguesia, utilizando-se do aparelho do Estado (o qual defende os interesses desta) e mais outras diversas “facções do capital”, se unem em alianças de classes para reproduzir a sociedade desigual típica do capitalismo. Porém, essas alianças são completamente instáveis, como coloca o próprio Harvey (2006). Por defender interesses distintos, de classes antagônicas, na medida em que a sociedade se aproxima de períodos de crise econômica, as necessidades dessas facções vão também, se antagonizando ainda mais. Sendo o interesse principal das facções do capital estabelecer uma coerência regional estruturada, a classe trabalhadora deve se ver na necessidade de lutar pela sua liberdade da exploração de classes (não pelas vias estatais, e sim pelo fim destas). Produzida pelos interesses do capital, a sociedade se torna desigual, segregada. Isso ocorre porque o desenvolvimento no capitalismo acontece de forma desigual e combinada, resultado da exploração de uma classe sobre a outra. “A lei do desenvolvimento desigual e combinado expressa particularmente uma das leis da dialética, a da interpenetração dos contrários” (CORRÊA, 1995, p. 42). Por isso, no atual modo de produção, pra se lucrar, precisa também explorar, para acumular, é necessário concentrar a riqueza produzida por outros, aumentando cada vez mais a discrepância socioeconômica entre classes. A materialização dessas relações desiguais entre classes é visível, na medida 6 A produção da coerência estruturada é uma tentativa do capital de facilitar sua circulação com a diminuição das barreiras geográficas, na construção de infra-estruturas físicas e sociais que supram essas necessidades. Estas podem estar materializadas em rodovias, ferrovias, galpões, indústrias, vias de comunicação, etc., ou até em isenções fiscais, opressão militar, criação de leis com esse interesse, produção de uma ideologia burguesa e sua disseminação através da mídia, da educação, da religião e etc. (HARVEY, 2006). em que são produzidas diferentes realidades em um mesmo país, estado federativo, região, ou até mesmo em uma mesma cidade. Para melhor pontuar, temos a clássica discrepância entre infra-estruturas de bairros centrais e de bairros periféricos. Carlos (1999), de forma clara, expõe a realidade dessa diferenciação dentro da cidade, que é produto de sua apropriação privada. Os “cidadãos”, como ela os chama, se apropriam do espaço urbano de forma diferenciada, precarizada, aumentando a desigualdade social entre classes. Mostra também o desenvolvimento do espaço urbano frente à imposição do capital, que constrange o trabalhador a morar apenas onde lhe é “permitido”, onde sua condição econômica seja capaz de sustentá-lo. Apesar de concordar com grande parte da análise de Carlos (1999) sobre a segregação espacial, fazemos apenas uma crítica ao conceito de “cidadão” utilizado por ela “onde o indivíduo é antes de mais nada um cidadão com todos os direitos que o termo implica” (p. 81). Preferimos não tratar o indivíduo apenas enquanto cidadão, muito menos “com todos os direitos que o termo implica”, pois este nos remete aos direitos e deveres individuais para com o Estado e a “sociedade civil”. Em nosso ponto de vista, a razão de ser do Estado não é garantir direitos aos cidadãos, como diz a retórica burguesa, e desde sua origem ele está atrelado à separação de uma classe dominante à outra explorada, mantendo os direitos legitimados, e as classes exploradas subjugadas ao domínio7. Segundo Harvey (2006), a lógica do valor de troca dentro da sociedade capitalista atua com certos pressupostos que são materializados na esfera formal. Uma delas é justamente a aceitação de um indivíduo reconhecido pelo Estado – onde apenas pode ter uma representação formal e legal a partir de um vínculo com o próprio órgão social que o domina – onde, no discurso, tenha tantos direitos como qualquer outro, independente da função social que se ocupe. Isso acontece por que: No modo capitalista de produção, as relações de troca originam, portanto, noções específicas a respeito do “indivíduo”, da “liberdade”, 7 “O Estado que se origina da necessidade de manter os antagonismos de classe sob controle, mas que também se origina no meio da luta entre as classes, é, normalmente, o Estado da classe economicamente dirigente, que, por seus recursos, torna-se também a classe politicamente dirigente, e, assim, obtém novos meios de controlar e explorar as classes oprimidas. O Estado antigo era, antes de mais nada, o Estado dos senhores de escravos para controlar os escravos, assim como o Estado feudal era o órgão da nobreza para oprimir os servos camponeses, e o Estado representativo moderno é o instrumento para explorar a mãode-obra assalariada pelo capital” (ENGELS apud HARVEY, 2006, p. 80). da “igualdade”, dos “direitos”, da “justiça” etc. Marx observou que tais conceitos normalmente proporcionavam os brados ideológicos nos comícios de todas as revoluções burguesas. Ele foi um crítico implacável daqueles que buscavam formular uma política revolucionária da classe trabalhadora em ternos de “justiça eterna” e “direitos iguais”, pois esses eram os conceitos refletivos das relações sociais burguesas de troca [...] Porém, os conceitos desse tipo são mais do que meras ferramentas ideológicas. Eles se ligam ao Estado, incrustando-se formalmente no sistema legal burguês. O Estado capitalista deve, necessariamente, amparar e aplicar um sistema legal que abrange conceitos de propriedade, indivíduo, igualdade, liberdade e direito, correspondente às relações sociais de troca sob o capitalismo (HARVEY, 2006, p. 83). Portanto, ao falar de “cidadãos”, entende-se todos os indivíduos da sociedade, formalmente igualados perante o direito e a justiça, ou seja, ao Estado, inclusive aqueles que detêm os meios de produção e exploram a mão-de-obra. Trata-se de todos esses como pessoas iguais perante a lei. Além disso, consideramos a cidadania uma abstração que, se não for entendida em sua relação com a totalidade social, leva a um entendimento aparente da população, que na realidade é dividida em classes sociais, com funções sociais diferentes, antagônicas no processo de desenvolvimento histórico da sociedade. Ao invés disso, preferimos tratar a parcela explorada da sociedade como classe trabalhadora, categoria marxista que aborda de forma mais fiel à realidade os fundamentos dos sujeitos produtores da sociedade. Considerações finais Entendemos que o espaço geográfico, dentro de sua dinâmica dialética, está sempre num processo de constante transformação. Isso torna o entendimento da produção da sociedade uma tarefa árdua. A sociedade se encontra nesse constante movimento, onde é desconstruída e construída a todo tempo dentro de um processo histórico constante, através dos vários sujeitos sociais que a produzem, dentro da lógica de acumulação capitalista ou de outra organização social. Na produção da sociedade capitalista, podemos ver que a classe burguesa controla, ao seu próprio deleite, a relação sociedade-natureza, mediada pelo trabalho. Essa mediação, como podemos perceber, está a favor somente do capital. Desta forma, entendemos que os sujeitos produtores da sociedade não se apropriam do seu trabalho, que lhe é alienado, não se realizando no ato da transformação da natureza pelo trabalho e não se compreendendo como produtor deste espaço. Para além dos signos do capital, esses sujeitos devem clamar unidade do movimento operário internacional. A transformação dessa lógica só se dará através da mudança estrutural do processo produtivo, destruindo assim as determinações econômicas que regem a sociedade capitalista. Com isso, o trabalho assalariado deve ser substituído pelo trabalho associado, no qual a classe produtora deva tomar o controle da produção social, tendo o poder deliberativo sobre a produção de valor social através do trabalho. Sobre o trabalho associado, Tonet (2010) nos mostra que este deve ser livre, consciente, coletivo e universal, para que toda a sociedade se torne livre do capitalismo impositivo e de sua lógica do trabalho assalariado, na qual o trabalhador é impedido de controlar a produção em todos os aspectos, se tornando alienado da sua produção, que é apropriada pela classe dominante. Para livrar a sociedade da alienação de si, da sociedade, e dos homens, deve-se primeiro tomar o problema em sua raiz, combatendo a expropriação do trabalhador à sua produção social, já que, como vimos anteriormente, esta é a forma de alienação de onde parte todas as outras. Deve-se buscar formas de acabar com a relação social que explora força de trabalho em sua forma assalariada, para que haja o trabalho associado, onde a mediação entre sociedade-natureza aconteça com o objetivo de construir valores de uso, e não valores de troca. A produção social do espaço precisa se voltar para atender as necessidades biológicas e sociais do homem, e não para a acumulação de capital. Por fim, a sociedade deve existir para os homens, e não para o capital. Referências CARLOS, Ana Fani. A Cidade. São Paulo: Contexto, 1999. CORRÊA, Roberto Lobato. Região: um conceito complexo. In: Região e organização espacial. São Paulo: Ática. 1995. P. 22-50. ENGELS, Frederich. Cartas de Engels Contra a Vulgarização do Materialismo Histórico. In: Cultura, Arte e Literatura: Textos Escolhidos / Karl Marx e Frederich Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2010. HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo: Annablume, 2006. LESSA, Sérgio; TONET, Ivo. Introdução à Filosofia de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2008. MARX, Karl. A Mercadoria. In: O Capital: Crítica da Economia Política. Volume I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. MENEZES, Sócrates Oliveira. De “Supérfluos” a Sujeitos Históricos na Contramão do Capital. 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