MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ Procuradoria

Propaganda
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ
Procuradoria-Geral de Justiça
Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Proteção à Saúde Pública
Ofício Circular nº 2/2014-CAO-Saúde *f
Curitiba, 24 de março de 2014.
Assunto: ações de medicamentos propostas pelo Ministério Público
Colega
Nos últimos meses, tem sido recorrente, em muitas ações civis públicas
propostas pelo Ministério Público contra o Estado do Paraná em assistência farmacêutica, para fins de
cumprimento de medida liminar ou antecipação de tutela, o réu oferecer depósito em espécie de
quantia certa, a fim de que o autor promova o levantamento do numerário e providencie a compra
em favor do usuário do SUS, beneficiário da ação ministerial, o que muitas vezes tem sido acolhido
pelo Poder Judiciário, determinando ao Ministério Público a aquisição do fármaco com o dinheiro
depositado em juízo pelo Estado.
Trata-se de providência que não encontra nenhuma guarida no ordenamento
jurídico pátrio, pois a Lei n. 8080/90, em seu art. 6º, I, “d”, refere-se à “assistência terapêutica
integral”, inclusive farmacêutica. Essa expressão é conceituada no art. 19-M da mesma Lei:
Art. 19-M. A assistência terapêutica integral a que se refere a alínea d do inciso I
do art. 6o consiste em: (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011)
I - dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja
prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para
a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do protocolo, em conformidade com o
disposto no art. 19-P; (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011).
Assim, a própria lei determina que a assistência seja prestada na forma de
dispensação de medicamentos, e não mediante entrega de numerário ao usuário, para aquisição
direta do fármaco.
CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS DE JUSTIÇA DE PROTEÇÃO À SAÚDE PÚBLICA
Marechal Deodoro, 1.028, 5º andar, Centro – Curitiba/Pr
[email protected]
1
No endereço eletrônico da ANVISA na internet se encontra a definição de
dispensação: “ato de fornecimento ao consumidor de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos
e correlatos, a título remunerado ou não”.
No âmbito do Sistema Único de Saúde, pelo art. 3º da Lei n. 9787/99, toda a
aquisição e entrega de medicamentos no SUS deverá obedecer os critérios ali previstos, inclusive
prevendo o § 4º que “A entrega dos medicamentos adquiridos será acompanhada dos respectivos
laudos de qualidade.”.
Isso significa que, por força de texto legal, qualquer aquisição de medicamentos
pelo SUS deverá ser feita exclusivamente pelo poder público, com posterior dispensação ao
consumidor após as cautelas de qualidade do insumo.
Quando se procede na estranha forma algumas vezes determinada, o particular
adquire o fármaco com verba pública e o recebe sem os referidos laudos de qualidade, o que, além
de violar o texto legal, pode colocar em risco a própria saúde do paciente, já que o SUS se exclui do
dever de vigilância sobre a qualidade do fármaco adquirido e ministrado. Repita-se: a assistência
farmacêutica prevista em lei pressupõe que o poder público não só adquira o remédio, mas controle
sua qualidade e propriedade ao consumo, e, somente após essas cautelas, entregue ao paciente.
Daí a se concluir que o dever de prestar “a assistência terapêutica integral,
inclusive farmacêutica” por parte dos entes federativos está muito distante da simples oferta de
dinheiro.
O direito à saúde não pode ser confundido com mera prestação pecuniária, como
se fosse apenas obrigação civil. A integralidade na assistência, garantida no art. 198, II, da CF/88,
pressupõe a prestação de um serviço aos cidadãos, não sendo obviamente obrigações fungíveis entre
si (o depósito de numerário e a dispensação do fármaco).
Sob outro aspecto, a oferta de depósito judicial de quantia certa por parte do
Estado não configura cumprimento da decisão de tutela de urgência, já que o pleito é sempre de
obrigação de fazer, qual seja, de entregar ao usuário do SUS o medicamento prescrito no tratamento
médico, e não obrigação de pagar ou de dar. Acolhe-se judicialmente o que não foi objeto do pedido
inicial.
CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS DE JUSTIÇA DE PROTEÇÃO À SAÚDE PÚBLICA
Marechal Deodoro, 1.028, 5º andar, Centro – Curitiba/Pr
[email protected]
2
Não bastasse isso, o mero depósito de numerário sequer resolve o problema do
paciente, em aguardo da ministração de insumo indispensável para sua assistência. Em muitas
ocasiões o agrava. Isso porque, não raro, trata-se de fármacos de custo elevado que sequer são
vendidos em farmácias comerciais, somente acessíveis em distribuidoras ou importadoras, empresas
em geral sequer situadas na mesma cidade de residência do usuário, a quem caberá os custos de
contatos telefônicos, deslocamento ou encomenda, a exceder o valor do depósito “oferecido” pelo
Estado. Essas despesas excedentes para conseguir comprar o fármaco, em caráter individual, em
empresas importadoras ou distribuidoras para varejo (quer seja para encomenda ou deslocamento),
acabariam por ser suportadas pelo próprio usuário, a violar o princípio da gratuidade no SUS (art. 43
da Lei n. 8080/90).
Ademais, o critério eleito para determinação do valor pelo poder público
estadual, em sua “oferta” para depósito em juízo, será sempre compatível com o preço pago pelo
Estado – preço esse que, certamente, não será o mesmo preço que o usuário, em aquisição individual
e isolada junto a distribuidoras para o varejo, ao contrário do ente federativo estadual.
Não bastasse a situação dramática enfrentada pelo cidadão adoentado, com seu
tratamento paralisado pela falta do medicamento prescrito e indispensável para sua saúde, ainda
deverá enfrentar esses entraves, a postergar ainda mais seu acesso ao fármaco, pois implicará em
buscas por insumo de custo excepcional, em geral não vendidos pelas farmácias comerciais de
varejo, a tornar a situação ainda mais dramática quando se trata de pacientes hipossuficientes ou
sem instrução. Imaginem-se os danos à saúde ou à própria vida do usuário, decorrentes da mora
implícita no calvário adicional que se lhe cabe.
A experiência prática demonstra que o cidadão usuário da assistência à saúde
do SUS (ou seus familiares) quando não consegue obter o medicamento que lhe é devido em
tratamento promovido no sistema público, peregrina por uma série de repartições públicas,
enfrentando várias negativas de fornecimento, até chegar ao Ministério Público. São pacientes e
familiares, quer sejam carentes ou não, fragilizados pela ausência ou interrupção de um tratamento
pela falta de insumo indispensável. O recurso, em geral insuficiente, posto “à sua disposição” pelo
ente público, desconsidera os riscos inerentes à sua falta de informação técnica, que podem, inclusive
ocasionar aquisições equivocadas.
CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS DE JUSTIÇA DE PROTEÇÃO À SAÚDE PÚBLICA
Marechal Deodoro, 1.028, 5º andar, Centro – Curitiba/Pr
[email protected]
3
Isso
está
muito
longe
da
“assistência
terapêutica
integral,
inclusive
farmacêutica”, prevista na Lei n. 8080/90, muito menos dos fins sociais e das exigências do bem
comum aos quais o art. 5º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (antigamente denominada Lei de
Introdução ao Código Civil) se reporta.
É relevante ponderar que, na hipótese de ser, de fato, depositado em juízo o
numerário “oferecido” pelo Estado do Paraná, maior dificuldade ainda advirá porque os membros do
Ministério Público, no exercício das funções inerentes ao cargo de Promotor de Justiça, não detêm
atribuições legais para levantamento de dinheiro em depósito judicial, nem para entregá-lo a
particulares (ao contrário dos advogados, para cujo ofício há previsão legal para tanto), muito menos
para proceder aquisições de bens de qualquer natureza com verbas públicas. Nem mesmo os
servidores das Promotorias de Justiça podem exercer essas funções, pela igual inexistência de
previsão na legislação criadora dos respectivos cargos.
Isso implicaria em acabar o Poder Judiciário autorizando o próprio usuário do
SUS, beneficiário da ação proposta pelo parquet, a proceder ao levantamento do numerário
depositado em juízo, sem nenhum controle por parte de quaisquer entes públicos da destinação
conferida a verbas públicas.
De mais a mais, esse proceder violaria o ordenamento jurídico que regulamenta
o processamento de despesas com recursos públicos, na medida em que a ordenação de despesas
públicas, regida pela Lei n. 4320/64, prevê licitação (ou procedimento de dispensa/inexigibilidade),
contrato, liquidação e empenho, para que se chegue pagamento, de sorte que assim o Poder
Judiciário estaria a legitimar um ilícito processamento de despesa pública.
Enfim, quer seja sob o aspecto legal, financeiro, prático ou ético, não é razoável
que o Ministério Público concorde com esse proceder do Estado do Paraná, que se demite ilicitamente
de seus deveres em face a direito de relevância pública. Distancia-se dos princípios de legalidade e
eficiência do caput do art. 37 da CF/88, mormente porque se pretende que particular tenha acesso
direto a verbas públicas para aquisição de bem para fins particulares, não cabendo ao parquet anuir
ou contribuir para essas práticas ilegais na ordenação de despesas públicas, que, ao cabo, postergam
ou mesmo negam o devido acesso à assistência farmacêutica, quer pelo valor insuficiente, quer pelas
dificuldades práticas de compra pelo particular, ora mencionadas.
CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS DE JUSTIÇA DE PROTEÇÃO À SAÚDE PÚBLICA
Marechal Deodoro, 1.028, 5º andar, Centro – Curitiba/Pr
[email protected]
4
Diante dessas situações, o CAO das Promotorias de Proteção à Saúde sugere que
a Promotoria de Justiça de Proteção à Saúde Publica, ao enfrentar tais situações em processos de
ações por si propostas, adote as providências necessárias para afastar tal proceder, inclusive indagar,
nos autos, se a Secretaria de Estado da Saúde, como órgão gestor e responsável pela saúde do
paciente, concorda com tal prática, e, se necessário for, solicitando a reconsideração da decisão ou
interpondo os recursos cabíveis, se úteis, utilizando os argumentos aqui deduzidos.
Na oportunidade, ratificamos ao (à) eminente Colega nossa manifestação da
mais elevada consideração.
MARCO ANTONIO TEIXEIRA
Procurador de Justiça
FERNANDA NAGL GARCEZ
Promotora de Justiça
CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS DE JUSTIÇA DE PROTEÇÃO À SAÚDE PÚBLICA
Marechal Deodoro, 1.028, 5º andar, Centro – Curitiba/Pr
[email protected]
5
Download