DA INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

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Da interpretação dos contratos
Sumário: 21. O problema da interpretação. 22. Regras de caráter subjetivo. 23. Regras de caráter objetivo.
21. O problema da interpretação - Ao examinarmos o problema da interpretação da lei (v. v. 1), verificamos
que se apresentava quando surgia a necessidade de esclarecer o exato sentido de uma norma jurídica.
Através da hermenêutica procura o intérprete não apenas descobrir qual a vontade do legislador, mas a
vontade concreta da lei.
Tema paralelo se propõe, agora, pois cumpre analisar a interpretação dos contratos.
Como ato jurídico que é, o contrato tem por mola propulsora a vontade das partes, de maneira que, para
descobrir o exato sentido de uma disposição contratual, faz-se mister, em primeiro lugar, verificar qual a
intenção comum dos contratantes. Esta é, teoricamente, a finalidade da exegese. Daí a regra básica,
consagrada pela generalidade dos Códigos, entre os quais o nosso, cujo art. 112 dispõe:
Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao
sentido literal da linguagem.
A interpretação do contrato faz-se necessária quando existe divergência entre as partes sobre o efetivo
sentido de uma cláusula. Com efeito, se há concordância entre elas, não ocorre litígio e a convenção é
cumprida normalmente. Entretanto, por vezes aparece, entre os contratantes, disparidade de opiniões
acerca do alcance de uma cláusula determinada. Nesse caso instala-se um conflito, ruja solução depende
da interpretação do ajuste, a ser realizada pelo juiz.
Como aponta MESSINEO71, a interpretação dos contratos oferece dificuldades que a hermenêutica da lei
desconhece. De fato, enquanto a tarefa do intérprete da lei se circunscreve a eliminar da norma as dúvidas
e ambigüidades que a afetam, a interpretação do contrato implica não só esse mister, como também o de
esclarecer a vontade concreta das partes. Por conseguinte, no primeiro caso a análise tem um caráter
meramente objetivo (exame da lei), enquanto no segundo o intérprete exerce uma função a um tempo
objetiva (exame do contrato) e subjetiva (exame da intenção comum dos contratantes).
Alguns Códigos trazem numerosas regras de interpretação dos contratos, enquanto outros não consignam
senão uma ou outra, e o fazem esporadicamente.
Entre aqueles cumpre apontar o francês e o italiano, que consagram capítulos autônomos à matéria. Entre
os últimos, deve-se mencionar o brasileiro.
O Código Civil francês emprestou de POTHIER72 os princípios básicos, que foram transplantados para os
seus arts. 1.156 a 1.164. Aí foi inspirar-se o legislador italiano de 1865, para elaborar os arts. 1.131 a 1.139
daquela codificação, sendo certo que o Código de 1942 os transportou, com pequenas modificações, para o
capítulo sob o mesmo título e que encima os arts. 1.362 a 1.371, hoje vigentes.
Diferentemente de tal orientação, o Código Civil brasileiro de 1916 não consignava, no seu bojo, capítulo
referente à interpretação dos contratos. O mesmo ocorre com o novo Código. Aquele continha, situados em
livros diferentes, dois dispositivos de caráter interpretativo das convenções. Eram eles os arts. 85,
correspondente ao art. 112 do CC de 2002, e 1.090, o qual determinava deverem interpretar-se estritamente
os contratos benéficos.
Difícil optar pela conveniência ou inconveniência de uma ou de outra posição. Em favor do sistema francês
encontra-se o argumento de que dessa maneira se limita o arbítrio do juiz, que, assim, não pode, a pretexto
de interpretar o contrato, substituir, pela sua, a vontade das partes. Com efeito, se o próprio legislador
oferece regras de interpretação, escritas e pormenorizadas, que se impõem coativamente ao magistrado,
não pode este delas desertar, para por outros caminhos buscar a intenção dos contratantes.
Em contraposição, os sistemas que não disciplinam essa matéria partem do pressuposto de que esse
assunto não se enquadra no âmbito legislativo, mas pertence à alçada da doutrina. De sorte que, afora um
escasso número de preceitos gerais, nenhuma regra deve ser imposta pelo legislador ao juiz, para guiá-lo
na interpretação dos contratos.
Em todo caso, mesmo nos países que adotam tal orientação, não sistematizando em disposições legais as
regras interpretativas das convenções, é entendimento pacífico que aqueles preceitos constantes de outras
legislações constituem conceitos doutrinários úteis à exegese dos contratos e, por conseguinte, devem ser
objeto de estudo.
Como nossa lei não consigna sistematicamente esses princípios de hermenêutica, é mister analisá-los
alhures. Para facilitar a tarefa, examinarei a matéria na forma tratada pelo Código Civil italiano, que é dos
mais modernos e que, embora fiel à velha fonte onde se inspirou, traz algumas inovações e apresenta a
matéria ordenada de maneira científica.
MESSINEO, analisando o conteúdo do capítulo sobre a interpretação dos contratos do Código italiano (arts.
1.362 a 1.371), divide em dois grupos as normas aí constantes. O primeiro abrange os princípios de caráter
subjetivo, isto é, os que dizem respeito à análise da intenção das partes; o segundo, as regras de caráter
objetivo, ou seja, as referentes ao exame das cláusulas em si mesmas. O estudo sucinto de uns e de outros
preceitos ajudará a compreender o problema da exegese do contrato.
22. Regras de caráter subjetivo - Como disse, estas referem-se à verificação da efetiva vontade das partes.
O preceito fundamental, já apontado, é o que determina a prevalência da intenção dos contratantes sobre o
sentido literal da linguagem.
Cumpre ao juiz, no caso de divergência entre os contratantes e obscuridade do texto, procurar o que estes
efetivamente quiseram. Para tanto, deve examinar o comportamento dos contratantes, tanto anterior como
posterior ao contrato (Cód. italiano, art. 1.362, 2a. al.), pois é provável que a atitude de cada qual revele seu
intento.
Todavia, a interpretação do contrato não pode jamais colidir com o seu conteúdo quando a cláusula
combatida for de tal clareza que não permita dúvida. Pois, caso contrário, a interpretação poderia constituir
um elemento capaz de infirmar o contrato, semeando um elemento de insegurança, funesto às relações
contratuais.
Outros princípios, derivados desse primeiro, têm igualmente por escopo apurar a intenção dos contratantes,
apresentando, por conseguinte, o mesmo caráter subjetivo. Assim o preceito que cuida da exegese,
sistemática do contrato, determinando:
" ...deve-se interpretar uma cláusula pelas outras contidas no ato, quer elas a precedam, quer a sigam"74.
Pois, sendo o contrato um todo, a razão de uma cláusula encontra, no geral, justificativa na anterior, ou na
subseqüente. Vale dizer que um dispositivo não deve ser analisado isoladamente, mas como parte de um
todo75.
Outra regra: por mais gerais que sejam as expressões usadas no contrato, ele só compreende coisas que
as partes tinham em vista contratar, e não aquelas que não foram objeto de sua cogitação.
Assim, se um legatário negocia com o herdeiro seus direitos resultantes do testamento do de cujus, a
transação não o afasta de outro legado, deferido por codicilo descoberto após a transação (o exemplo é de
POTHIER, ilustrando a regra acima citada)76.
Finalmente, o último preceito de caráter subjetivo: quando, em determinado contrato, há referência a um
caso a título de esclarecimento, não se presumem excluídos os casos não expressos, os quais podem ser
abrangidos pela convenção77. POTHIER apresenta ilustrativo exemplo da hipótese. Se em pacto
antenupcial os nubentes adotam o regime da comunhão e esclarecem que ela abrangerá os bens móveis
que vierem a receber a título hereditário, tal cláusula não afasta da comunhão os bens imóveis, havidos
causa mortis, pois entende-se que a cláusula em questão derivou da ignorância dos contraentes, que a
acreditaram necessária, quando era supérflua.
23. Regras de caráter objetivo - Agora o problema da análise da vontade dos participantes em determinada
convenção já foi, de certo modo, superado. Mas dúvidas e ambigüidades remanescem, possibilitando
conflito entre os contratantes. Outras regras são editadas pelo legislador, ou preconizadas pela doutrina,
para dirimir tais dificuldades. Apenas estas, diferentemente daquelas, tomam o contrato como produto
objetivo de uma declaração volitiva, e ordenam como procederá o juiz em face delas. Aqui, como explica
MESSINEO, o juiz examinará o contrato in abstracto, verificando as decorrências ordinárias de cláusulas
avençadas naquelas condições78. Examinemos as principais regras:
a) quando um contrato ou uma cláusula apresenta duplo sentido, deve-se interpretá-Io de maneira que
possa gerar algum efeito, e não de modo que não produza nenhum79;
b) as cláusulas ambíguas se interpretam de acordo com o costume do lugar em que foram estipuladas (Cód.
italiano, art. 1.368);
c) as expressões com mais de um sentido devem, em caso de dúvida, ser entendidas da maneira mais
conforme à natureza e ao objeto do contrato (Cód. italiano, art. 1.369);
d) as cláusulas inscritas nas condições gerais do contrato, impressas ou formuladas por um dos
contratantes, interpretam-se, na dúvida, em favor do outro.
Tal preceito, tradicional na teoria da interpretação dos contratos80, ganhou nova importância com a difusão
dos contratos de adesão, pois, como estes são impostos por uma das partes à outra, é em favor desta que,
em caso de dúvida, se interpreta.
Se há conflito entre duas cláusulas, uma impressa, outra digitada, esta prefere àquela, pois supõe-se que o
contratante alheio à redação do contrato atentou mais para a última do que para a primeira, concordando
com aquela, sem tomar conhecimento desta;
e) finalmente, o Código italiano consagra importante regra sobre a hipótese de se não haver conseguido,
malgrado recurso aos expedientes acima referidos, esclarecer o exato sentido do contrato. Para tanto,
distingue os contratos gratuitos dos onerosos. Nos contratos gratuitos a interpretação deve proceder-se no
sentido de fazê-lo o menos pesado possível para o devedor; e nos onerosos, no de se alcançar um
equilíbrio eqüitativo entre os interesses das partes (art. 1.371).
Essas são as principais regras de interpretação dos contratos. Outras haverá que devem orientar o julgador
na análise de uma convenção, destacando-se, entre elas, a que impõe o dever de interpretá-la segundo a
boa-fé.
Todas elas, com exceção das já apontadas, constituem, na sistemática do direito brasileiro, não preceitos
legais, mas princípios de natureza doutrinária.
NOTAS
71. Doutrina..., cit., t. II, p .88.
72. Traité des obligations, cit., n. 91 e s.
73. O Código Comercial de 1850, em seu art. 131, consigna cinco regras interpretativas dos contratos.
“Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as
seguintes bases:
1. A inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre
prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras;
2. As cláusulas duvidosas serão entendidas pelas que não o forem, e que as partes tiverem admitido; e as antecedentes e
subseqüentes, que estiverem em harmonia, explicarão as ambíguas;
3. O fato dos contraentes posterior ao contrato, que tiver relação com o objeto principal, será a melhor explicação da vontade que as
partes tiverem no ato de celebração do mesmo contrato;
4. O uso e prática geralmente observada no comércio dos casos da mesma natureza, e especialmente o costume do lugar onde o
contrato deva ter execução, prevalecerá a qualquer inteligência em contrário que se pretenda dar às palavras;
5. Nos casos duvidosos, que não possam resolver-se segundo as bases estabelecidas, decidir-se-á em favor do devedor”.
74. Cf. POTHIER, Traité des obligations, cit., n. 96.
75. Dispõe o Código Civil italiano:
"Art. 1.363 As cláusulas do contrato se interpretam uma por meio das outras, atribuindo a cada qual o sentido que resulta do conjunto
do ato".
76. POTHIER, Traité des obligations, cit., n. 98.
77. Cf. POTHIER, Traité des obligations..., cit., n. 100; Código Civil italiano, art. 1.355; Código Civil francês, art. 1.164.
78. Transcrevo MESSINEO, pois sua explicação é cristalina:
"Aqui não está em jogo a vontade contratual (i.e., a intenção) em concreto... mas a vontade contratual in abstracto; na realidade não se
considera o que determinados contratantes pensaram e quiseram, mas qual pode ser a presumível vontade das partes (sejam quais
forem), tendo em conta o id quod plerumque accidit" (Doctrina..., cit., p. 88).
79. Cf. POTHIER:
“Lorsqu’une clause est susceptible de deus sens, on doit plutôt l’entendre dans celui dans lequel elle peut avoir quelque effet, que dans
celui dans lequel elle n’en pourrait avoir aucun” Traité des obligations, cit., n. 92).
Cf. o art. 1.367 do Código italiano.
POTHIER exemplifica: se numa partilha se dá direito de passagem a uma das partes sobre seu quinhão, tem-se de interpretar no
sentido de que a referência é ao quinhão do outro contratante, pois, caso contrário, a cláusula ficaria sem efeito, já que para transitar
sobre o seus próprio domínio, não precisavam os contratantes fazer qualquer estipulação.
80. Cf POTHIER:
"Dans le doute, une clause s'interprète contre celui qui a stipulé quelque chose, et à Ia décharge de celui qui a contracté I'obligation"
(Traité des obligations, cit., n. 97).
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