compreender e explicar esses objetos ou fenômenos, exigindo a criação de novos modelos científicos. Por que, então, temos a ilusão de progresso e de evolução? Por dois motivos principais: 1. do lado do cientista, porque este sente que sabe mais e melhor do que antes, já que o paradigma anterior não lhe permitia conhecer certos objetos ou fenômenos. Como trabalhava com uma tradição científica e a abandonou, tem o sentimento de que o passado estava errado, era inferior ao presente aberto por seu novo trabalho. Não é ele, mas o filósofo da ciência que percebe a ruptura e a descontinuidade e, portanto, a diferença temporal. Do lado do cientista, o progresso é uma vivência subjetiva; 2. do lado dos não-cientistas, porque vivemos sob a ideologia do progresso e da evolução, do "novo" e do "fantástico". Além disso, vemos os resultados tecnológicos das ciências: naves espaciais, computadores, satélites, fornos de microondas, telefones celulares, cura de doenças julgadas incuráveis, objetos plásticos descartáveis, e esses resultados tecnológicos são apresentados pelos governos, pelas empresas e pela propaganda como "signos do progresso" e não da diferença temporal. Do lado dos não-cientistas, o progresso é uma crença ideológica. Há, porém, uma razão mais profunda para nossa crença no progresso. Desde a Antiguidade, conhecer sempre foi considerado o meio mais precioso e eficaz para combater o medo, a superstição e as crendices. Ora, no caso da modernidade, o vínculo entre ciência e aplicação pratica dos conhecimentos (tecnologias) fez surgirem objetos que não só facilitaram a vida humana (meios de transporte, de iluminação, de comunicação, de cultivo do solo, etc.), mas aumentaram a esperança de vida (remédios, cirurgias, etc.). Do ponto de vista dos resultados práticos, sentimos que estamos em melhores condições que os antigos e por isso falamos em evolução e progresso. Do ponto de vista das próprias teorias científicas, porém, a noção de progresso não possui fundamento, como explicamos acima. Falsificação x evolução Vimos que a ciência contemporânea é construtivista, julgando que fatos e fenômenos novos podem exigir a elaboração de novos métodos, novas tecnologias e novas teorias. Alguns filósofos da ciência, entre os quais Karl Popper, afirmaram que a reelaboração científica decorre do fato de ter havido uma mudança no conceito filosófico-científico da verdade. Esta, como já vimos, foi considerada durante muitos séculos como a correspondência exata entre uma idéia ou um conceito e a realidade. Vimos também que, em nosso século, foi proposta uma teoria da verdade como coerência interna entre conceitos. Na concepção anterior, o falso acontecia quando uma idéia não correspondia à coisa que deveria representar. Na nova concepção, o falso é a perda da coerência de uma teoria, a existência de contradições entre seus princípios ou entre estes e alguns de seus conceitos. Popper afirma que as mudanças científicas são uma conseqüência da concepção da verdade como coerência teórica. E propõe que uma teoria cientifica seja avaliada pela possibilidade de ser falsa ou falsificada. Uma teoria científica é boa, diz Popper, quando mais estiver aberta a fatos novos que possam tornar falsos os princípios e os conceitos em que se baseava. Assim, o valor de uma teoria não se mede por sua verdade, mais pela possibilidade de ser falsa. A falseabilidade seria o critério de avaliação das teorias cientificas e garantiria a idéia de progresso cientifico, pois é a mesma teoria que vai sendo corrigida por fatos novos que a falsificam. A maioria dos filósofos da ciência, entre os quais Khun, demonstrou o absurdo da posição de Popper. De fato, dizem eles, jamais houve um único caso em que uma teoria pudesse ser falsificada por fatos científicos. Jamais houve um único caso em que um fato novo garantisse a coerência de uma teoria, bastando impor a ela mudanças totais. Cada vez que fatos provocaram verdadeiras e grandes mudanças teóricas, essas mudanças não foram feitas no sentido de "melhorar" ou "aprimorar" uma teoria existente, mas no sentido de abandoná-la por uma outra. O papel do fato científico não é o de falsear ou falsificar uma teoria mas de provocar o surgimento de uma nova teoria verdadeira. É o verdadeiro e não o falso que guia o cientista seja a verdade entendida como correspondência entre idéia e coisa, seja entendida como coerência interna das idéias. Classificação das ciências Ciência, no singular, refere-se a um modo e a um ideal de conhecimento que examinamos até aqui. Ciências, no plural, refere-se às diferentes maneiras de realização do ideal de cientificidade, segundo os diferentes fatos investigados e os diferentes métodos e tecnologias empregados. A primeira classificação sistemática das ciências de que temos notícia foi a de Aristóteles, à qual já nos referimos no início deste livro. O filósofo grego empregou três critérios para classificar os saberes: Critério da ausência ou presença da ação humana nos seres investigados, levando à distinção entre as ciências teoréticas (conhecimento dos seres que existem e agem independentemente da ação humana) e ciências práticas (conhecimento de tudo quanto existe como efeito das ações humanas); Critério da imutabilidade ou permanência e da mutabilidade ou movimento dos seres investigados levando à distinção entre metafísica (estudo do Ser enquanto Ser, fora de qualquer mudança), física ou ciências da Natureza (estudo dos seres constituídos por matéria e forma e submetidos à mudança ou ao movimento) e matemática (estudo dos seres dotados apenas de forma, sem matéria, imutáveis, mas existindo nos seres naturais e conhecidos por abstração); Critério da modalidade prática, levando a distinção entre ciências que estudam a práxis (ação ética, política, econômica que tem o próprio agente como fim), e as técnicas ( a fabricação de objetos artificiais ou a ação que tem como fim a produção de um objeto diferente do agente). Com pequenas variações essa classificação foi mantida até o século XVII, quando, então, os conhecimentos se separaram em filosóficos científicos e técnicos. A partir dessa época, a Filosofia tende a desaparecer nas classificações científicas (é um saber diferente do cientifico), assim como delas desaparecem as técnicas. Das inúmeras classificações propostas, as mais conhecidas e utilizadas foram feitas por filósofos franceses e alemães do século XIX, baseando-se em três critérios: tipo de objeto estudado tipo de método empregado tipo de resultado obtido= Desses critérios e da simplificação feita sobre as várias classificações anteriores, resultou aquela que se costuma usar até hoje: Ciências matemáticas ou lógico-matemáticas (aritmética, geometria, álgebra, trigonometria, lógica, física pura, astronomia pura etc.); Ciências naturais (física, química, biologia,geologia, astronomia, geografia física, paleontologia, etc.); Ciências humanas ou sociais (psicologia, sociologia, antropologia, geografia humana, economia, lingüística, psicanálise, arqueologia, história, etc.); Ciências aplicadas (todas as ciências que conduzem à invenção de tecnologias para intervir na Natureza na vida humana e nas sociedades, ótimo, por exemplo, direito, engenharia, medicina, arquitetura, informática, etc.). Cada uma das ciências subdivide-se em ramos específicos, com nova delimitação do objeto e do método de investigação. Assim, por exemplo, a física subdivide-se em mecânica, acústica, óptica, etc.; a biologia em botânica zoologia , fisiologia, genética, etc.; a psicologia subdivide-se em psicologia do comportamento, do desenvolvimento, psicologia clinica psicologia social, etc. E assim sucessiva mente, para cada uma das ciências. Por sua e vez, os próprios ramos de cada ciência subdividem-se em disciplinas cada vez mais específicas, à medida que seus objetos conduzem a pesquisas cada vez mais detalhadas especializadas. A ciência exemplar: a matemática A matemática nasce de necessidades práticas: contar coisas e medir terrenos. Os primeiros a sistematizar modos de contar foram os orientais e, particularmente, os fenícios, povo comerciante que desenvolveu uma contabilidade, que posteriormente iria transformar-se em aritmética. Os primeiros a sistematizar modos de medir foram os egípcios, que precisavam, após cada cheia do rio Nilo, redistribuir as terras, medindo os terrenos. Criaram a agrimensura, de onde viria a geometria. Foram os gregos que transformaram a arte de contar e de medir em ciências: a aritmética e a geometria são as duas primeiras ciências matemáticas, definindo o campo matemático como ciência da quantidade e do espaço, tendo por objetos números, figuras, relações e proporções. Após os gregos, foram os pensadores árabes que deram o impulso à matemática, descobrindo, entre outras coisas, o zero, desconhecido dos antigos. Embora, no início, as matemáticas estivessem muito próximas da experiência sensorial os números referiam-se às coisas contadas e as figuras representavam objetos existentes, pouco a pouco afastaram-se do sensorial, rumando para a atividade pura do pensamento. Por esse motivo, Platão exigia que a formação filosófica fosse feita através das matemáticas, por serem elas puramente intelectuais, seus objetos verdadeiros sendo conhecidos por meio de princípios e demonstrações universais e necessários. Também Descartes no século XVII, afirmou que podemos duvidar de todos os nossos conhecimentos e idéias, menos da verdade dos conceitos e demonstrações matemáticos os únicos que são indubitáveis. Platão e Descartes enfatizaram o caráter puramente intelectual e a priori das ciências matemáticas. A valorização da matemática decorre de dois aspectos que a caracterizam 1. A idealidade pura de seus objetos, que não se confundem com as coisas percebidas subjetivamente por nós; os objetos matemáticos são universais e necessários; 2. A precisão e o rigor dos princípios e demonstrações matemáticos, que seguem regra universais e necessárias, de tal modo que a demonstração de um teorema seja a mesma em qualquer época e lugar e a solução de um problema se faça pelos mesmos procedimentos em toda a época e lugar. A universalidade e a necessidade dos objetos e instrumentos teóricos matemáticos deram à ciência matemática um valor de conhecimento excepcional, fazendo com que se tornasse o modelo principal de todos os conhecimentos científicos, no ocidente; enfim, a ciência exemplar e perfeita. Os objetos matemáticos são números e relações, figuras, volumes e proporções. Quantidade, espaço, relações e proporções definem o campo da investigação matemática, cujos instrumentos são axiomas, postulados, definições, demonstrações e operações. Objetos e procedimentos matemáticos foram fixados, pela primeira vez, pelo grego Euclides, numa obra chamada Elementos. Um axioma é um princípio cuja verdade é indubitável, necessária e evidente por si mesma, não precisando de demonstração e servindo de fundamento às demonstrações. Por exemplo: o todo é maior do que as partes; duas grandezas iguais a uma terceira são iguais entre si; A menor distância entre dois pontos uma reta. O axioma é um principio regulador do raciocínio matemático e, por ser universal evidente, é a priori. Um postulado é um princípio cuja evidência depende de ser aceito por todos os que realizam uma demonstração matemática. E uma proposição necessária para o encadeamento de demonstrações, embora ela não possa ser demonstrada, mas aceita como verdadeira. Por exemplo: "Por um ponto tomado em um plano, não se pode traçar senão uma paralela a uma reta dada nesse plano". Os postulados são convenções básicas, aceitas por todos os matemáticos. Uma definição pode ser nominal ou real. A definição nominal nos dá o nome do objeto matemático, dizendo o que ele é. É analítica, pois o predicado é a explicitação do sujeito.Por exemplo: o triângulo é uma figura três lados; o circulo é uma figura cujos pontos são eqüidistantes do centro. Uma definição real nos diz o que é o objeto pelo nome, isto é, oferece a gênese ou o modo de construção do objeto. Por exemplo: o triangulo é uma figura cujos ângulos somados são iguais à sorna de dois ângulos retos; o circulo é uma figura formada pelo movimento de rotação de um semi-eixo a volta de um centro fixo. Demonstrações e operações são procedimentos, submetidos a um conjunto de regras que garantem a verdade e a necessidade do que esta sendo demonstrado, ou do resultado do calculo realizado. A matemática é, por excelência, a ciência hipotético-dedutiva, porque suas demonstrações e cálculos se apóiam sobre um sistema de axiomas e postulados, a partir dos quais se constrói a dedução coerente ou o resultado necessário do calculo. Um tema muito discutido na Filosofia das Ciências refere-se à natureza dos objetos e princípios matemáticos. São eles uma abstração e uma purificação dos dados de nossa experiência sensível? Originam-se da percepção? Ou são realidades ideais alcançadas exclusivamente pelas operações do pensamento puro? São inteiramente a priori? Existem em si e por si mesmos, de tal modo que nosso pensamento simplesmente os descobrem? Ou são construções conseguidas pelo pensamento humano estas perguntas perfeitas tornaram-se necessárias por vários motivos. Em primeiro lugar porque uma corrente filosófica, iniciada em Pitágoras e Platão, mantida por Galileu, Descartes, Newton e Leibniz, afirma que o mundo é em si mesmo matemático, isto é, a estrutura da realidade de tipo matemático. Essa concepção garantiu o surgimento da física matemática moderna. Em segundo lugar, porque o desenvolvimento da álgebra contemporânea e das chamadas geometrias não euclidianas (ou geometrias imaginárias) deram a matemática uma liberdade de criação teórica sem precedentes justamente por haver abandonado a idéia de que a estrutura da realidade é matemática. Nesse segundo caso, como já dizia Kant, a matemática é uma pura invenção do espírito humano, uma construção imaginária rigorosa e perfeita, mas sem objetos correspondentes no mundo. Em terceiro lugar, porque, em nosso século, o avanço da criação e da construção matemáticas foi decisivo para o surgimento da teoria da relatividade, na física, da teoria das valências, na química, e da teoria sobre o acido desoxirribonucléico na biologia. Em outras palavra, quanto mais avançou a invenção e a criação matemática tanto mais ela tornou-se útil para as ciências da natureza, fazendo com que, agora, tenhamos que indagar: os objetos matemáticos existem realmente (como queriam Platão, Galileu e Descartes), formando a estrutura do mundo, ou esta e uma pura construção teórica e por isso pode valer-se da construção matemática? As ciências humanas São possíveis ciências humanas? Embora seja evidente que toda e qualquer ciência é humana, porque resulta da atividade humana de conhecimento, a expressão ciências humanas refere-se àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto. A situação de tais ciências é muito especial. Em primeiro lugar, porque seu objeto é bastante recente: o homem como objeto científico é uma idéia surgida apenas no século XIX. Até então, tudo quanto se referia ao humano era estudado pela Filosofia. Em segundo lugar, porque surgiram depois que as ciências matemáticas e naturais estavam constituídas e já haviam definido a idéia de cientificidade de métodos e conhecimentos científicos, de modo que as ciências humanas foram levadas a imitar e copiar o que aquelas ciências haviam estabelecido, tratando o homem como uma coisa natural matematizáveI e experimentável. Em outras palavras, para ganhar respeitabilidade cientifica as disciplinas conhecidas como ciências humanas procuraram estudar seu objeto empregando conceitos, métodos e técnicas propostos pelas ciências da Natureza. Em terceiro lugar, por terem surgido no período em que prevalecia a concepção empirista e determinista da ciência, também procuraram tratar o objeto humano usando os modelos hipotético-indutivos e experimentos de estilo empirista, e buscavam leis causais necessárias e universais para os fenômenos humanos. Como, entretanto, não era possível realizar uma transposição integral e perfeita dos métodos, das técnicas e das teorias naturais para os estudos dos fatos humanos, as ciências humanas acabaram trabalhando por analogia com as ciências naturais e seus resultados tornaramse muito contestáveis e pouco científicos. Essa situação levou muitos cientistas e filósofos a duvidar da possibilidade de ciências que tivessem o homem como objeto. Quais as principais objeções feitas à possibilidade das ciências humanas? A ciência lida com fatos observáveis, isto é, com seres e acontecimentos que, nas condições especiais de laboratório, são objetos de experimentação. Como observar-experimentar, por exemplo, a consciência humana individual, que seria o objeto da psicologia? Ou uma sociedade, objeto da sociologia? Ou uma época passada, objeto da história? A ciência busca as leis objetivas gerais, universais e necessárias dos fatos. Como estabelecer leis objetivas para o que é essencialmente subjetivo, como o psiquismo humano? Como estabelecer leis universais para algo que é particular, como é o caso de uma sociedade humana? Como estabelecer leis necessárias para o que acontece uma única vez, como é o caso do acontecimento histórico? A ciência opera por análise (decomposição de um fato complexo em elementos simples) e síntese (recomposição do fato complexo por seleção dos elementos simples, distinguindo os essenciais dos acidentais). Como analisar e sintetizar o psiquismo humano, uma sociedade, um acontecimento histórico? A ciência lida com fatos regidos pela necessidade causal ou pelo princípio do determinismo universal. O homem é dotado de razão, vontade e liberdade, é capaz de criar fins e valores, de escolher entre várias opções possíveis. Como dar uma explicação científica necessária àquilo que, por essência, é contingente, pois é livre e age por liberdade? A ciência lida com fatos objetivos, isto é, com os fenômenos, depois que foram purificados de todos os elementos subjetivos, de todas as qualidades sensíveis, de todas as opiniões e todos os sentimentos, de todos os dados afetivos e valorativos. Ora, o humano é justamente o subjetivo, o sensível, o afetivo, o valorativo, o opinativo. Como transformá-lo em objetividade, sem destruir sua principal característica, a subjetividade? O humano como objeto de investigação Embora as ciências humanas sejam recentes, a percepção de que os seres humanos são diferentes das coisas naturais é antiga. Sob esse ponto de vista, podemos dizer que, do século XV ao início do século XX, a investigação do humano realizou-se de três maneiras diferentes: 1. Período do humanismo: inicia-se no século XV com a idéia renascentista da dignidade do homem como centro do Universo, prossegue nos séculos XVI q XVII com o estudo do homem como agente moral, político e técnico-artístico destinado a dominar e controlar a Natureza e a sociedade, chegando ao século XVIII, quando surge a idéia de civilização, isto é, do homem como razão que se aperfeiçoa e progride temporalmente através das instituições sociais e políticas e do desenvolvimento das artes, das técnicas e dos ofícios. O humanismo não separa homem e Natureza, mas considera o homem um ser natural diferente dos demais, manifestando essa diferença como ser racional e livre, agente ético, político, técnico e artístico. 2. Período do positivismo: inicia-se no século XIX com Augusto Comte, para quem a humanidade atravessa três etapas progressivas, indo da superstição religiosa à metafísica e à teologia, para chegar, finalmente, à ciência positiva, ponto final do progresso humano Comte enfatiza a idéia do homem como um ser social e propõe o estudo científico da sociedade: assim como há uma física da Natureza, deve haver uma física do social, a sociologia, que deve estudar os fatos humanos usando procedimentos, métodos e técnicas empregados pelas ciências da Natureza. A concepção positivista não termina no século XIX com Comte, mas será uma das correntes mais poderosas e influentes nas ciências humanas em todo o século XX. Assim, por exemplo, a psicologia positivista afirma que seu objeto não é o psiquismo enquanto consciência, mas enquanto comportamento observado que pode ser tratado com o método experimental das ciências naturais. A sociologia positivista (iniciada por Comte e desenvolvida como ciência pelo francês Emile Durkheim) estuda a sociedade como fato, afirmando que o fato social deve ser tratado como uma coisa, à qual são aplicados os procedimentos de análise e síntese criados pelas ciências naturais. Os elementos ou átomos sociais são os indivíduos, obtidos por via da análise; as relações causais entre os indivíduos, recompostas por via da síntese, constituem as instituições sociais (família, trabalho, religião, Estado, etc.). 3. Período do historicismo: desenvolvido no final do século XIX e início do século XX por Dilthey, filósofo e historiador alemão. Essa concepção, herdeira do idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling, Hegel), insiste na diferença profunda entre homem e Natureza e entre ciências naturais e humanas, chamadas por Dilthey de ciências do espírito ou da cultura. Os fatos humanos são históricos, dotados de valor e de sentido, de significação e finalidade e devem ser estudados com essas características que os distinguem dos fatos naturais. As ciências do espírito ou da cultura não podem e não devem usar o método da observação-experimentação, mas devem criar o método da explicação e compreensão do sentido dos fatos humanos, encontrando a causalidade histórica que os governa. O fato humano é histórico ou temporal: surge no tempo e se transforma no tempo. Em cada época histórica, os fatos psíquicos, sociais, políticos, religiosos, econômicos, técnicos e artísticos possuem as mesmas causas gerais, o mesmo sentido e seguem os mesmos valores, devendo ser compreendidos, simultaneamente, como particularidades históricas ou "visões de mundo" específicas ou autônomas e como etapas ou fases do desenvolvimento geral da humanidade, isto é, de um processo causal universal, que é o progresso. O historicismo resultou em dois problemas que não puderam ser resolvidos por seus adeptos: o relativismo (numa época em que as ciências humanas buscavam a universalidade de seus conceitos e métodos) e a subordinação a uma filosofia da História (numa época em que as ciências humanas pretendiam separar-se da Filosofia). Relativismo: as leis científicas são válidas apenas para uma determinada época e cultura, não podendo ser universalizadas. Filosofia da História: os indivíduos humanos e as instituições socioculturais só são compreensíveis se seu estudo científico subordinar-se a uma teoria geral da História que considere cada formação sociocultural seja como "visão de mundo" particular, seja como etapa de um processo histórico universal. Para escapar dessas conseqüências, o sociólogo alemão Max Weber propôs que as ciências humanas - no caso, a sociologia e a economia - trabalhassem seus objetos como tipos ideais e não como fatos empíricos. O tipo ideal, como o nome indica, oferece construções conceituais puras, que permitem compreender e interpretar fatos particulares observáveis. Assim, por exemplo, o Estado se apresenta como uma forma de dominação social e política sob vários tipos ideais (dominação carismática, dominação pessoal burocrática, etc.), cabendo ao cientista verificar sob qual tipo encontra-se o caso particular investigado. Fenomenologia, estruturalismo e marxismo. A constituição das ciências humanas como ciências específicas consolidou- se a partir das contribuições de três correntes de pensamento, que, entre os anos 20 e 50 de nosso século, provocaram uma ruptura epistemológica e uma revolução científica no campo das humanidades. A contribuição da fenomenologia Como vimos em vários momentos deste livro, a fenomenologia introduziu a noção de essência ou significação como um conceito que permite diferenciar internamente uma realidade de outras, encontrando seu sentido, sua forma, suas propriedades e sua origem. Dessa maneira, a fenomenologia começou por permitir que fosse feita a diferença rigorosa entre a esfera ou região da essência "Natureza" e a esfera ou região da essência "homem". A seguir, permitiu que a esfera ou região "homem" fosse internamente diferenciada em essências diversas: o psíquico, o social, o histórico, o cultural. Com essa diferenciação, garantia às ciências humanas a validade de seus projetos e campos científicos de investigação: psicologia, sociologia, história, antropologia, lingüística, economia. Qual a diferença entre a perspectiva positivista e a fenomenológica? Dois exemplos podem ajudar-nos a compreendê-la. Recusando a perspectiva metafísica, que se referia ao psíquico em termos de alma e de interioridade, a psicologia volta-se para o estudo dos fatos psíquicos diretamente observáveis. Ao radicalizar essa concepção, a psicologia positivista fazia do psiquismo uma soma de elementos físico-químicos, anatômicos e fisiológicos, de sorte que não havia, propriamente falando, um objeto cientifico denominado "o psíquico", mas efeitos psíquicos de causas não-psiquicas (físicas, químicas, fisiológicas, anatômicas). Por isso, a psicologia considerava-se uma ciência natural próxima da biologia, tendo como objeto o comportamento como um fato esterno, observável e experimental. Ao contrário, a psicologia como ciência humana do psiquismo tornou-se possível a partir do momento em que um conjunto de fatos internos e externos ligados à consciência (sensação, percepção, motricidade, linguagem, etc.) puderam ser definidos como dotados de significação objetiva própria. Recusando a perspectiva da filosofia da História, que considerava as sociedades etapas culturais e civilizatórias de um processo histórico universal, a sociologia volta-se para o estudo dos fatos sociais observáveis. Inspirando-se nas ciências naturais, a sociologia positivista fazia da sociedade uma soma de ações individuais e tomava o indivíduo como elemento observável e causa do social, de sorte que não havia a sociedade como um objeto ou uma realidade propriamente dita, mas um efeito de ações psicológicas dos indivíduos. Somente a definição do social como algo essencialmente diferente do psíquico e como não sendo a mera soma de ações individuais permitiu o surgimento da sociologia como ciência propriamente dita em resumo, antes da fenomenologia, cada uma das ciências humanas desfazia seu objeto num agregado de elementos de natureza diversa do todo, estudava as relações causais externas entre esses elementos e as apresentava como explicação e lei de seu objeto de investigação. A fenomenologia garantiu às ciências humanas a existência e a especificidade de seus objetos. A contribuição do estruturalismo O estruturalismo permitiu que as ciências humanas criassem métodos específicos para o estudo de seus objetos, livrando-as das explicações mecânicas de causa e efeito, sem que por isso tivessem que abandonar a idéia de lei científica. A concepção estruturalista veio mostrar que os fatos humanos assumem a forma de estruturas, isto é, de sistemas que criam seus próprios elementos, dando a este sentido pela posição e pela função que ocupam no todo. As estruturas são totalidades organizadas segundo princípios internos que lhes são próprios e que comandam seus elementos ou partes, seu modo de funcionamento e suas possibilidades de transformação temporal ou histórica. Nelas, o todo não é a soma das partes, nem um conjunto de relações causais entre elementos isoláveis, mas é um princípio ordenador, diferenciador e transformador. Uma estrutura é uma totalidade dotada de sentido. Já vimos a noção de estrutura quando, nos capítulos dedicados à teoria do conhecimento, nos referimos à teoria da percepção, formulada pela psicologia da Gestalt ou da forma, bem como quando nos referimos à teoria da linguagem, elaborada pela lingüística contemporânea. Após a psicologia e a lingüística, a primeira das ciências humanas a se transformar profundamente, graças à idéia de estrutura e ao método estrutural, foi à antropologia social. Esta pôde mostrar que, ao contrário do que pensava a antropologia positivista, as chamadas "sociedades primitivas" não são uma etapa atrasada da evolução da história social da humanidade, mas uma forma objetiva de organizar as relações sociais de modo diferente do nosso, constituindo culturais. O antropólogo Claude Lévi-Strauss, por exemplo, mostrou que as estruturas dessas sociedades são baseadas no princípio do valor ou da equivalência, que permite a troca e a circulação de certos seres, de maneira a constituir o todo da sociedade, organizando todas as relações sociais: a troca ou circulação das mulheres (estrutura do parentesco como sis-tema social de alianças), a troca ou circulação de objetos especiais (estrutura do dom como sistema social da guerra e da paz) e troca e circulação da palavra (estrutura da iinguagem como sistema do poder religioso e político). O modo como cada um desses sistemas ou estruturas parciais se organiza e se relaciona com os outros define a estrutura gerai e específica de uma sociedade "primitiva", que pode, assim, ser compreendida e explicada cientificamente. A contribuição do marxismo O marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são instituições sociais e históricas produzidas não peio espírito e pela vontade livre dos indivíduos, mas pelas condições objetivas nas quais a ação e o pensamento humanos devem realizar-se. Levou a compreender que os fatos humanos mais originários ou primários são as relações dos homens com a Natureza na luta pela sobrevivência e que tais relações são as de trabalho, dando origem às primeiras instituições sociais: família (divisão sexual do trabalho), pastoreio e agricultura (divisão social do trabalho), troca e comércio (distribuição social dos produtos do trabalho). Assim, as primeiras instituições sociais são econômicas. Para mantêlas, o grupo social cria idéias e sentimentos, valores e símbolos aceitos por todos e que justificam ou legitimam as instituições assim criadas. Também para conservá-las, o grupo social cria instituições de poder que sustentem (pela força, pelas armas ou pelas leis) as relações sociais e as idéias - valores símbolos produzidos. Dessa maneira, o marxismo permitiu às ciências humanas compreender as articulações necessárias entre o plano psicológico e o social da existência humana; entre o piano econômico e o das instituições sociais e políticas; entre todas elas e o conjunto de idéias e de práticas que uma sociedade produz. Graças ao marxismo, as ciências humanas puderam compreender que as mudanças históricas não resultam de ações súbitas e espetaculares de alguns indivíduos ou grupos de indivíduos, mas de lentos processos sociais, econômicos e políticos, baseados na forma assumida pela propriedade dos meios de produção e pelas relações de trabalho. A materialidade da existência econômica comanda as outras esferas da vida social e da espiritualidade e os processos históricos abrangem todas elas. Enfim, o marxismo trouxe como grande contribuição à sociologia, à ciência política e à história a interpretação dos fenômenos humanos como expressão e resultado de contradições sociais, de lutas e conflitos sociopolíticos determinados pelas relações econômicas baseadas na exploração do trabalho da maioria pela minoria de uma sociedade. Em resumo, a fenomenologia permitiu a definição e a delimitação dos objetos das ciências humanas; o estruturalismo permitiu uma metodologia que chega às leis dos fatos humanos, sem que seja necessário imitar ou copiar os procedimentos das ciências naturais; o marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são historicamente determinados e que a historicidade, longe de impedir que sejam conhecidos, garante a interpretação racional deles e o conhecimento de suas leis. Com essas contribuições, que foram incorporadas de maneiras muito diferenciadas pelas várias ciências humanas, os obstáculos epistemológicos foram ultrapassados e foi possível demonstrar que os fenômenos humanos são dotados de sentido e significação, são históricos, possuem leis próprias, são diferentes dos fenômenos naturais e podem ser tratados cientificamente. Os campos de estudo das ciências humanas Se tomarmos as ciências humanas de acordo com seus campos de investigação, podemos distribuí-las da seguinte maneira: Psicologia estudo das estruturas, do desenvolvimento das operações da mente humana (consciência, vontade, percepção, linguagem, memória, imaginação, emoções); .estudo das estruturas e do desenvolvimento dos comportamentos humanos e animais; estudo das relações intersubjetivas dos indivíduos em grupo e em sociedade; estudo das perturbações (patologias) da mente humana e dos comportamentos humanos e animais. Sociologia estudo das estruturas sociais: origem e forma das sociedades, tipos de organizações sociais, econômicas e políticas; estudo das relações sociais e de suas transformações; estudo das instituições sociais (origem, forma, sentido); Economia estudo das condições materiais (naturais e sociais) de produção e reprodução da riqueza, de suas formas de distribuição, circulação e consumo; .estudo das estruturas produtivas – relações de produção e forças produtivas - segundo o critério da divisão social do trabalho, da for. ma da propriedade, das regras do mercado e dos ciclos econômicos; estudo da origem, do desenvolvimento, das crises, das transformações e da reprodução das formas econômicas ou modos de produção. Antropologia estudo das estruturas ou formas cultural sem sua singularidade ou particularidade, isto é, como diferentes entre si por seus princípios internos de funcionamento e transformação. A cultura é entendida como modo de vida global de uma sociedade, incluindo: religião, formas de poder, formas do parentesco, formas de comunicação, organização da vida econômica, artes, técnicas, costumes, crenças, formas de pensamento e de comportamento, etc.; .estudo das comunidades ditas "primitivas", isto é, tanto das que desconhecem a divisão social em classes e recusam organizar-se sob a forma do mercado e do poder estatal, quanto daquelas que já iniciaram o processo de divisão social e política. História estudo da gênese e do desenvolvimento das formações sociais em seus aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais; estudo das transformações das sociedades e comunidades como resultado e expressão de conflitos, lutas, contradições internas ás formações sociais; .estudo das transformações das sociedades e comunidades sob o impacto de acontecimentos políticos (revoluções, guerras civis, conquistas territoriais), econômicos (crises, inovações técnicas, descobertas de novas formas de exploração da riqueza ou procedimentos de produção, mudanças na divisão social do trabalho), sociais (movimentos sociais, movimentos populares, mudanças na estrutura e organização da família, da educação, da moralidade social, etc.) e culturais (mudanças científicas, tecnológicas, artísticas, filosóficas, éticas, religiosas, etc.). estudo dos acontecimentos que, em cada caso, determinaram ou determinam a preservação ou a mudança de uma formação social em seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais; .estudo dos diferentes suportes da memória coletiva (documentos, monumentos, pinturas, fotografias, filmes, moedas, lápides funerárias, testemunhos e relatos orais e escritos, etc.). Lingüística estudo das estruturas da linguagem como sistema dotado de princípios internos de funcionamento e transformação; estudo das relações entre língua (a estrutura) e fala ou palavra (o uso da língua pelos falantes); estudo das relações entre a linguagem e os outros sistemas de signos e símbolos ou outros sistemas de comunicação. Psicanálise .estudo da estrutura e do funcionamento do inconsciente e de suas relações com o consciente; estudo das patologias ou perturbações inconscientes e suas expressões conscientes (neuroses e psicoses). Devemos observar que: cada uma das ciências humanas subdivide-se em vários ramos, definidos pela especificidade crescente de seus objetos e métodos. Assim, podemos falar em psicologia social, clinica, do desenvolvimento, da aprendizagem, da criança, do adolescente, etc. Ou em sociologia política, do trabalho, rural, urbana, econômica, etc. Também podemos falar em história econômica, política, oral, social, etc. Ou levar em consideração que a antropologia depende de investigações feitas pela etnografia e pela etnologia ou pela arqueologia, assim como a lingüística trabalha com a fonologia, a fonética, a gramática, a semântica, a sintaxe, etc. .embora com campos e métodos específicos, as ciências humanas tendem a apresentar resultados mais completos e satisfatórios quando trabalham interdisciplinarmente, de modo a abranger os múltiplos aspectos simultâneos e sucessivos dos fenômenos estudados; os desenvolvimentos da lingüística da antropologia e da psicanálise suscitaram o aparecimento de uma nova disciplina ou interdisciplinar cientifica: a semiologia, que estuda os diferentes sistemas de signos e símbolos que constituem as múltiplas e diferentes formas de comunicação. O desenvolvimento da semiologia conduziu à idéia de que signos e símbolos são ações e praticas sócio-históricas, isto é, estão referidos às relações sociais e às suas condições históricas, cada sociedade e cada cultura constituindo-se como um sistema que integra e totaliza vários subsistemas de signos e símbolos (linguagem, arte, religião, instituições sociais e políticas, costumes, etc.). Vários estudiosos propuseram que o método das ciências humanas fosse capaz de descrever e interpretar esses subsistemas e o sistema geral que os unifica. Esse método é a semiótica, tomada como metodologia própria às ciências humanas e capaz de unificá-las. As ciências humanas São possíveis ciências humanas? Embora seja evidente que toda e qualquer ciência é humana, porque resulta da atividade humana de conhecimento, a expressão ciências humanas