31o. Encontro Anual da ANPOCS de 22 a 26 de outubro de 2007 ST 22 - O Marxismo e as Ciências Sociais Marcelo Santos Masset Lacombe (UNICAMP) Os fundamentos marxistas de uma sociologia do cotidiano Caxambu – MG INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é o de examinar os fundamentos marxistas da sociologia da vida cotidiana proposta por Henri Lefebvre. Tal proposta se fundamentaria numa releitura da obra de Marx contrapondo-a ao contexto da realidade capitalista em que ela foi escrita. Nesse sentido, definindo a vida cotidiana como o modo de vida da sociedade burguesa, Henri Lefebvre introduz um novo conjunto de temas e categorias no escopo do pensamento marxista. Assim, o cotidiano, a cotidianidade e a crítica da vida cotidiana seriam aspectos distintos de um fenômeno mundial ligados ao desenvolvimento do capitalismo e significariam também um desafio ao pensamento marxista uma vez definidos como objeto de análise sociológica. Assim, tomando como referência a obra do pensador marxista francês, “La Critique de La Vie Quotidienne”, buscaremos investigar como e através de que estratégias teóricas Henri Lefebvre propõe uma sociologia marxista da vida cotidiana e em que medida esse objeto de análise sociológica significaria de fato um desafio ao pensamento marxista. Desta forma, cumpre pensar todo um trabalho intelectual no qual Lefebvre vai organizando e levando a cabo um projeto que é tanto político quanto intelectual. Isto é, a obra que devemos comentar nesse trabalho, “La Critique la Vie Quotidienne”, se marcaria não apenas como um esforço intelectual de atualização do pensamento de Marx através de novos temas, mas também por uma formulação política e militante da sociedade moderna visando fornecer uma leitura capaz de orientar uma atuação social transformadora da sociedade. Nesse sentido, repetidas vezes Lefebvre afirma que o objetivo prático, ou praxiológico, de seu trabalho seria o de transformar a vida. Nesse sentido, esta obra de Lefebvre busca atribuir ao cotidiano uma significação política mais relevante uma vez que, do ponto de vista de sua leitura sociológica da sociedade moderna, o cotidiano, enquanto modo de vida, teria se tornado central na sociedade1. Desta feita, seria preciso levar em conta todo um contexto histórico que marca a produção dessa obra e os diferentes momentos e contextos em que se dá a sua elaboração. 1 A centralidade da vida cotidiana na estruturação da sociedade moderna já era percebida por vários pensadores sociais europeus. Segundo Lefebvre, como iremos ver, esse tema já aparece no pensamento de Marx. Mas também entre pensadores não marxistas e não socialistas do século XIX, a questão do cotidiano já surge, ainda que de maneira insuficiente ou pouco evidente. Este seria o caso, por exemplo, de Aléxis de Tocqueville, cujo livro “Democracia na América” pode ser lido como uma interessante etnografia da vida cotidiana norte-americana no séc.XIX. Contudo, parece ser apenas no século XX que o tema do cotidiano aparece como uma problemática evidente e central na obra de muitos autores, marxistas ou não. Em 1946, depois do fim do nazismo e da libertação da França do jugo alemão, o pensador e então militante marxista francês, Henri Lefebvre, publica o primeiro volume de “La Critique de la Vie Quotidienne”. O texto, partindo de um exame da sociedade burguesa na França, propunha o tema do quotidiano como um problema de análise sociológica a partir de um escopo conceitual marxista. Apesar da forte dicção acadêmica embutida no texto, a análise lefebvriana se pretendia estar ligada ao contexto político e social de sua época. Nesse sentido, havia ali uma proposta de transformação social que identificava o cotidiano não apenas como uma esfera da vida social marcada por contradições e conflitos profundos, mas também como uma esfera da vida social a ser transformada por uma práxis revolucionária. Assim, a crítica da vida cotidiana seria o reconhecimento de seus conflitos e contradições marcados por um evidente desejo de transformação desta mesma vida. Constatando que o capitalismo carece de uma base submissa e cotidiana para se desenvolver e se reproduzir, o cotidiano seria então a esfera da vida social em que as relações de dominação e as contradições engendradas pelo sistema capitalista seriam vividos de forma imediata. Assim, toda revolução deveria ter como objetivo a transformação e a mudança do cotidiano e das relações sociais imediatas. Como lembraria Lefebvre em 1968, o texto de 1946 estaria ainda mergulhado no contexto de sua época e, portanto, marcado pelas ingenuidades daquele período. A época da Libertação foi marcada na França por um forte sentimento não apenas de reconstrução da sociedade francesa, mas também pelo desejo de, a partir daí, construir uma nova sociedade. Era um momento em que posições políticas e ideológicas estavam se redefinindo e se embatendo para definir os rumos da reconstrução. Nesse contexto, a obra de Lefebvre propunha uma reinterpretação da obra de Marx marcada pela rejeição daquilo que o autor definia como filosofismo e economismo. Assim, a herança marxista não poderia ser reduzida nem a um sistema filosófico e nem a uma teoria de economia política. Buscava-se voltar às fontes, ás obras de juventude de Marx sem deixar de lado “O Capital”. Dessa releitura o conceito de produção emerge como um conceito amplo e vigoroso como afirma o autor. Não se trata apenas da fabricação de produtos, mas também da criação de obras, produção “espiritual” e da própria produção do ser humano por si mesmo. Isto é, produção de relações sociais e a própria reprodução dessas mesmas relações na esfera do cotidiano. Assim, um dos temas da sociologia da vida cotidiana proposta por Henri Lefebvre seria o da reprodução da vida social. Em 1958, Henri Lefebvre publica a segunda edição do primeiro volume de “La Critique de la Vie Quotidienne”. A novidade dessa segunda edição não é apenas a retomada do projeto iniciado em 1946, que já vinha na época intitulado como “introduction”, mas também um longo prefácio do próprio autor que, com mais de 100 páginas, ocupa pouco menos da metade do livro da segunda edição. Tal prefácio não só atualiza o projeto, nem apenas se limita à longa e profunda reelaboração do proposta inicial, já levando em conta as mudanças e transformações que tiveram curso ao longo de mais de 10 anos que separam a primeira edição da segunda. Esse texto de 1958 já anuncia um projeto de pesquisa e de elaboração profunda das categorias e conceitos que sustentariam a análise do cotidiano. Esse trabalho seria o objetivo do segundo volume dessa obra que foi publicado em 1961 trazendo como subtítulo “Fondementes d´une Sociologie du Quotidien”. O prefácio de 1958 continua todo um aprofundamento teórico e aperfeiçoa toda a reflexão já contidas no texto 1946, ambos os textos partindo de uma análise crítica e aprofundada da teoria da alienação de Marx. Por isso o tema do cotidiano se direciona para as formas de consciência possíveis sobre a cotidianidade, sendo a crítica da vida cotidiana a sua consciência crítica. Assim, ao longo do texto, Lefebvre parece sugerir, tanto pelas suas análise escoradas na política e na filosofia, quanto nos comentários e análises literárias e artísticas sobre Brecht, Chaplin, entre outros, formas distintas de consciência crítica do cotidiano, pela arte, pela filosfia e pela política2. Cada uma delas possuindo o seu próprio estilo cognitivo e sua própria alienação e desalienação. Se a consciência artística seria capaz de identificar o cotidiano como esfera de contradições e conflitos, a consciência filosófica operaria uma “époche” em relação às formas de consciência cotidianas, estas últimas definidas como produtos de uma alienação. A consciência política, como crítica da vida cotidiana, seria aquela capaz de engendrar uma práxis e, portanto, operar como força transformadora do cotidiano. Por isso Lefebvre privilegia a crítica da vida cotidiana pela consciência política, mas sem deixar de lado a consciência artística como modalidade dessa mesma crítica. O longo e denso segundo volume dessa obra busca sistematizar e discutir as categorias fundamentais de uma sociologia do cotidiano. Se o primeiro volume cumpria 2 Daí que podemos considerar a crítica da vida cotidiano não apenas como uma modalidade específica da consciência, mas sendo isso, ela pode, como de fato ocorre, se expressar e se realizar através de formas distintas e variadas, cada uma contendo as suas limitações e insuficiências específicas. Embora não se posso considerar as análises e os comentários literários de Lefebvre como uma sociologia da cultura ou da a função de formular um projeto e justificar a relevância política e intelectual do tema do cotidiano, é somente no segundo volume que podemos encontrar de fato uma teoria da cotidianidade. Dentre tais categorias, a ambigüidade e o “vivido” que a ela se liga são as que serão retomadas pelo autor em outros escritos com mais freqüência. A ambigüidade como categoria fundamental do cotidiano estaria ligada á constatação do autor da existência de uma dupla ambigüidade. Em primeiro lugar porque a consciência cotidiana seria uma consciência ambígua, isto é contraditória sem consciência da contradição. Em segundo lugar, por que as próprias práticas sociais cotidianas seriam profundamente marcadas por essa ambigüidade, sendo estas práticas também ambíguas e contraditórias. Daí a noção de que o cotidiano também é definido pelo desencontro entre o pensar e o agir. O vivido, definido como o conjunto de experiências sociais práticas e imediatas dadas no real e na realidade cotidianas, não poderia escapar e nem ser compreendido fora dos marcos de uma realidade contraditória que marca a ambigüidade da vida cotidiana, mesmo porque a ambigüidade, segundo o autor, exclui qualquer possibilidade de consciência de si própria enquanto tal. Assim, o pensar e o agir se definem também na sua profunda ambigüidade de onde emergem os erros, os equívocos e os mal entendidos que tornam a realidade cotidiana obscura e confusa. Assim, a sociologia do cotidiano de Lefebvre não será apenas uma sociologia da reprodução e uma sociologia da consciência, mas será também uma sociologia das práticas sociais na sociedade moderna. Em 1968, sete anos depois da publicação do segundo volume de “La Critique de la Vie Quotidienne”, Lefebvre publica “La Vie Quotidienne dans le Monde Moderne”. Um texto que poderia se constituir num terceiro volume da obra inicial aparece separado do seu projeto original. Além de apresentar no primeiro capítulo suas investigações sobre o tema do cotidiano e as discussões com a obra de Marx que estava implicada nessas investigações, o autor apresenta também novos temas e questões na problemática do cotidiano. Entre eles se destaca a noção de sociedade burocrática de consumo dirigido como forma de designar a sociedade contemporânea. O tema do consumo aparece num diálogo crítico com outras correntes do pensamento sociológico numa argumentação que traz as evidentes marcas e influências da época. Esse é o texto que marca de forma mais candente o momento de militância de Lefebvre no movimento situacionista e a colaboração com Guy Debord se mostra evidente nesse texto. Nesse literatura, fica evidente que o autor francês supõe a possibilidade de um estudo aprofundado sobre a crítica da vida cotidiana pela arte. sentido, trata-se muito mais de um texto de militância profundamente engajado no seu contexto como indica o título de seu último capítulo: “Rumo á Revolução Cultural Permanente”. O terceiro volume de “La Critique de la Vie Quotidienne” foi publicado em 1981. Lefebvre justifica isso constatando o crescente interesse de outras correntes de pensamento sociológico e/ou filosófico pelo tema do cotidiano. O objetivo deste texto não é apenas o de diferenciar a sua proposta das outras colocadas em pauta pelo pensamento social da década de 70, mas também o de renovar a sua própria reflexão dentro de um novo contexto trazendo a baila no corpo da obra uma maior ênfase ao tema da modernidade. O diálogo e a estrutura deste texto de 1981 é também marcado pelos dilemas e problemas do contexto da década de 70 e começo da de 80. Por isso Lefebvre faz nesse momento uma profunda revisão crítica de seu projeto inicial e de suas intenções tanto políticas (militantes) como intelectuais. Assim, Lefebvre constata que a década de 80 se abre como um período de crise, crise de valores, de ideologias, de pensamento e de referências, ou seja, crise da modernidade. Isso não quer dizer que o autor estivesse naquele momento vivendo uma guinada pós-moderna. Pelo contrário, para ele o pensamento pós-moderno seria apenas mais um sintoma de uma crise que é característica da modernidade. No meio dessa crise, como afirma Lefebvre, o projeto de 1946 de “mudar a vida” não se figuraria mais como possível nos termos em que se propunha na época. Revendo toda a trajetória de sua reflexão, tanto em relação aos seus objetivos político, quanto aos objetivos teóricos e intelectuais, Lefebvre considera que a sociologia do cotidiano ainda se justificaria como um forma de conhecer e de enfrentar a chamada crise da modernidade recusando tanto os diagnósticos apocalípticos da crise quanto o discurso otimista que negaria qualquer existência de crise. Nem do lado otimista estabelecido e nem do lado nostálgico apocalíptico que faz o diagnóstico da crise da modernidade, Lefebvre também propõe uma sociologia do cotidiano como uma forma de superar as duas alternativas dadas acima, buscando encontrar na própria realidade da crise as possibilidades e as virtualidades de sua superação. Nesse sentido, também há uma mudança de direcionamento de sua proposta, pois não se trata mais de falar apenas de uma sociologia do cotidiano, mas também de uma metafilosofia da cotidianidade e da modernidade. Todo o trajeto de formulações teóricas de Lefebvre sobre o tema do cotidiano, que vai de 1946 a 1981, é marcado por longos intervalos. O que se percebe aí são constantes renovações de sua reflexão sobre o pensamento de Marx num diálogo que se desenvolve em sintonia com os vários debates contemporâneos em torno do pensamento marxista. Apresentaremos a agora, em mais detalhes, a evolução desse pensamento que começa com o fim da segunda guerra mundial e vai até a década de 80. É preciso, assim, analisar como, nesse processo, o mundo, a obra e o objeto da obra vão mudando de forma e de sentido numa relação sintonizada. Assim, é desse movimento de diálogo em reflexão sobre o real e o contexto histórico, que emerge uma proposta de sociologia do cotidiano. Desta feita, apresentaremos a seguir uma análise dos momentos dessa evolução tentando acompanhar os momentos de cada texto que nos referimos aqui. A crítica da vida cotidiana: o fim da guerra e a proposta de uma nova vida O volume I de “La Critique de la Vie Quotidienne” é um texto ingênuo, como percebeu o autor anos mais tarde. Mas a ingenuidade deste texto não tira o seu valor enquanto formulação de um objeto de análise e reflexão. Isso porque o problema que o autor aborda está plenamente enraizado no contexto e na realidade em que ele foi escrito. Talvez a melhor estratégia para começar a comentar este trabalho seja prestando atenção na ultima linha do livro: “Toulouse, aout-decembre 1945”. A data e o local em que o texto foi escrito e nem tanto o local e o ano da efetiva publicação é o que aqui nos interessa mais. Isso porque ele nos permite desvendar alguns traços do texto não muito evidentes, mas que lidos dentro do contexto se tornam mais claros. Como podemos ver, o texto foi escrito logo no final da II Guerra Mundial, em que toda a Europa emergia das ruínas da destruição e dos horrores de um conflito armado. Ao contrário da maioria dos intelectuais da época, que durante a guerra estiveram exilados no mundo anglo-saxão que não foi invadido pelos nazistas, Lefebvre viveu esse período numa França que, de um lado estava ocupada pelas forças alemãs, e de outro, encontrava-se sob a tutela de um governo fascista e colaboracionista, o governo de Vychi. Já militante comunista, ligado ao PCF, Lefebvre vive o momento da ocupação numa vida clandestina nas atividades da resistência francesa. Não sabemos qual foi o nível de engajamento e participação de Lefebvre no movimento da resistência, mas seja como for, ele viveu os dramas da guerra como a maioria da população européia. Essa população sai do conflito vivendo um drama profundo, muitos perderam a família, amigos, vizinhos, projetos de vida que foram por água abaixo e que jamais poderiam ser retomados, nem mesmo depois do conflito. No leste europeu, em que a experiência da guerra foi mais violenta, não foram raros os casos de pessoas que, ao voltarem dos campos de concentração ou dos campos de batalha, se descobriram completamente sós nas suas cidades e paises de origem. Estranhos em sua própria terra, perderam com a guerra todo e qualquer laço social que poderiam ter em suas vidas. Para aqueles que ficaram na Europa durante o conflito, uns mais e outros menos, cabia a todos uma questão que tocava profundamente suas existências pessoais e sociais, o dilema de reconstruir a vida, projetos, sonhos, desejos, laços e relações. Porém, a vida de antes da guerra não poderia mais ser retomada. De outra maneira, as sociedades européias também viviam o dilema da reconstrução. Tantos os vencidos como os vencedores do conflito tinham diante de si tarefa da reconstruir suas sociedades, não apenas as instituições de Estado, o sistema econômico, mas também o básico, todo o aparato pratico sensível da vida cotidiana, ruas, escolas, casas e edifícios, redes elétricas e de esgoto que foram destruídos ou danificados durante a guerra. Enfim, era preciso reconstruir a vida cotidiana enquanto realidade concreta e vivida. Se os intelectuais que voltaram do exílio, tais como Adorno e os demais frankfurtianos, tomaram como temas de sua reflexão a crise da razão, as contradições do iluminismo e o tema da barbárie e da irracionalidade que daí emergem, Lefebvre vai propor um caminho diferente que não exclui uma crítica profunda da modernidade européia. Para os frankfurtianos, o conflito mundial e o holocausto evidenciariam o fracasso do projeto iluminista que sustentaria filosoficamente a modernidade, a crítica da razão e da cultura na sociedade moderna se dava na identificação do seu oposto como seu próprio resultado, a barbárie e a irracionalidade. Daí emergiria uma espécie de kultur pessimismo não só inspirado em Marx, mas também em Weber e nas suas reflexões sobre a teoria da jaula de ferro e o caráter redutor imposto pelo sistema referencias da racionalidade moderna. Mas em Lefebvre, a critica da modernidade passa por duas questões, a primeira é a de fazer frente ao dilema imediato que o pós-guerra impunha para cada europeu e suas sociedades, reconstruir a vida. A segunda questão é que as irracionalidades do moderno subsistiam não nas esferas altas de um projeto filosófico, mas na alienação cotidiana que perpassa toda a sociedade. Nesse sentido, a modernidade aparece aí em todo o seu sentido dialético, o moderno instaura o domínio do homem sobre a natureza, sobre o mundo e sobre a própria vida, mas esse é um domínio alienado em que o homem se vê prisioneiro de sua própria dominação e de sua própria vida. Nesse sentido, a modernidade não é apenas o lugar da tragédia e da reificação do homem, mas é também o lugar dos possíveis, das virtualidades dadas como possibilidades de superação da alienação e da própria irracionalidade que a cerca. Nesse sentido, a crítica lefebvriana do moderno é também uma recusa de um pessimismo que os frankfurtianos introduzem no pensamento filosófico europeu. No que concerne a questão da reconstrução da vida, a critica da vida cotidiana proposta por Lefebvre, e que é parte de sua critica da modernidade, tem significações e sentidos políticos, mas nunca doutrinários e dogmáticos. Ao propor o cotidiano como objeto de reflexão e ponderação numa Europa em que a cotidianidade havia sumido e se tornado impossível durante o período da guerra, Lefebvre aponta para a possibilidade da criação de uma nova cotidianidade pensada enquanto obra e enquanto domínio do homem sobre sua própria vida individual e social. Nesse sentido, o cotidiano surge como questão também política em que o conhecimento pode e deve guiar os caminhos da prática, isto é, a noção de práxis cumpre um papel de extrema relevância nessa proposta. Se o tema da reconstrução se colocou enquanto problema político que animou debates e divergências no contexto europeu recém saído da guerra, a crítica da vida cotidiana de Henri Lefebvre se propunha a participar desse debate sob a palavra de ordem: “Changer la vie”. Isto implicava em duas coisas: a) critica profunda do pensamento marxista oficial que desconsiderava a vida cotidiana como um objeto de reflexão e como esfera carregada de implicações e possibilidades políticas transformadoras; b) uma analise profunda da sociedade burguesa, em especial na França, país em que se gestaram as várias revoluções burguesas, todas elas disruptivas. No que concerne a crítica ao marxismo oficial, Lefebvre parte para uma releitura dos textos do jovem Marx, indo às fontes e trazendo à baila uma reflexão profunda sobre a teoria da alienação e as raízes que o pensamento de Marx já trazia enterradas na experiência cotidiana da sociedade moderna. No que concerne a segunda questão, a reflexão sobre a sociedade burguesa na França, Lefebvre parte da literatura, das obras de Flaubert, Balzac e Baudelaire mostrando como e de que forma a cotidianidade já se torna uma questão na experiência de vida de uma sociedade burguesa. O que se constata aí é um cotidiano capaz de envolver e de condensar os aspectos mais profundos de uma existência que é a um só tempo social e individual, projetos de vida, desejos, necessidades, satisfações e frustrações que, enquanto experiências, isto é, enquanto componentes do vivido, vão carregando de significado a vida cotidiana enquanto modo de vida do moderno. Se a França emerge para modernidade, criando suas referências mais universais, através de sucessivas revoluções disruptivas que tiveram seu tempo ao longo do século XIX, no começo do século XX o que cumpre é consolidar a sociedade burguesa através da rotina, do cotidiano e da estabilidade que só se perturba por interesses extra cotidianos. Não que a revolução tenha saído da dicção e do vocabulário francês do século XX, mas sua presença vai se tornando aos poucos cada vez mais virtual. Se a França que emerge da II Guerra Mundial traria em si a possibilidade de uma nova revolução, e era essa a ingenuidade de que Lefebvre se recordaria em 1968, esta, segundo o autor, só poderia se dar se tomasse o cotidiano como seu objeto e objetivo. Isto porque seria o cotidiano a esfera da vida social carregada de sentido revolucionário virtual, o possível da revolução, uma vez que é no cotidiano que as pessoas vivem, sofrem, experimentam os seus dramas, criam os seus sonhos e elaboram os seus projetos. Daí que decorre o diálogo com o pensamento de Marx e a crítica ao marxismo oficial e canônico de seu tempo, o stalinismo em especial. Lefebvre, com isso, dedica dois capítulos do livro publicado em 1946 para a discussão dessa questão. Capitulo III, dedicado à análise do marxismo enquanto conhecimento crítico do cotidiano e seguido de um capítulo IV dedicado a analise do desenvolvimento do pensamento marxista. O cotidiano, ou a vida cotidiana como ela é e é feita na sociedade burguesa, é uma vida que está em constante conflito com o próprio ser humano que a vive. Se a dimensão existencial, mas limitada desse conflito foi destrinchado por Kirkegaard, é em Marx que teremos revelados os elos que ligam o pensamento à ação, às idéias e à experiência do vivido (Lefebvre, 1958). Se toda consciência é consciência de algo dado na experiência concreta de vida, sempre em movimento no qual o homem cria o seu mundo criando a si mesmo, então, toda consciência é consciência da vida em movimento que ao criar o seu sentido cria outra coisa que não coincida com a própria vida, mas que não está além dela e que dela depende, esta vida é vida cotidiana definida como existência concreta. Se há contradição entre a consciência e a vida cotidiana na qual ela se forma, o método da reflexão de Marx consistia justamente em encontrar o elo de ligação entre o que os homens são e o que eles pensam ser, entre o que eles pensam, querem e desejam e o que eles vivem e são de fato. Daí, claro, os desencontros que marcam as diferenças entre o pensar e o viver, entre o conceber e o agir. Daí que, considerar a sociedade tal qual ela é, sua estrutura, seu modo de funcionamento, seus dilemas, implicaria enquanto disposição metodológica, partir da experiência vivida e do imediato para chegar nas contradições que eles engendram em relação às suas representações. Nesse sentido, como diz o autor, o conhecimento crítico da vida cotidiana teria um sentido metodológico profundo em que cabia um método dialético cujos objetivos Lefebvre identificava da seguinte maneira: Il ne se contente pas de decouvrir et de critiqué cette vie reelle, pratique, dans le detail de la société. Il sait passer par une integration ratinelle de l individu au social – de l échelle individuelle a la échelle nationale e sociale. Et inversemente. Cette penetration dans la vie individuelle et quotidienne de la méthode dialectique est assez peu connu pour qu il soit indispensable, ici, de resumer lê marxisme, considere comme critique de la via quotidienne. (LEFEBVRE, 1958, P 161) Assim, Lefebvre procura salientar no pensamento de Marx os temas e as reflexões que definiriam o pensamento marxista como crítica da vida cotidiana, isto é, como pensamento crítico que incide sobre seres humanos reais e concretos, disposição metodológica que Marx anuncia em “A Ideologia Alemã”. Lefebvre aponta, assim, no seu resumo, cinco pontos temáticos em que a obra de Marx se constrói enquanto critica da vida cotidiana: a) crítica da individualidade; b) crítica das mistificações; c) crítica do dinheiro ; d)crítica das necessidades; e) crítica do trabalho. Cada uma dessas críticas se desenvolve a partir de uma temática central e todas elas estão envolvidas no escopo da teoria da alienação, isto é, são modalidades distintas de mesmo fenômeno, a alienação na sua acepção sociológica. A crítica da individualidade, no pensamento marxista, teria como seu tema central a idéia de consciência privada em oposição à noção de consciência pública. O simples fato de que possamos falar e duas consciências opostas já coloca um dos pontos importantes da crítica, a idéia de consciência fragmentada decorrente de uma sociedade em que o regime de trabalho se dá por uma divisão altamente acentuada e parcelarizada. Ao trabalho fragmentado corresponderia uma consciência e uma vida também fragmentadas. Esta fragmentação teria seu efeito alienante, sendo ao mesmo tempo resultado de uma alienação, o fato de que a consciência privada, apartada da consciência pública, tornariam obscuros os laços e os elos que associam a vida individual á vida social, a experiência assim só seria concebida e pensada nos marcos estreitos e limitados de um modo de pensar que não consegue conceber tais experiências como eventos integrados num mundo, numa história e numa dada sociedade. Se através de Marx podemos afirmar que não existe experiência individual e pessoal que não seja social, porque é antes de tudo experiência humana vivida em sociedade, a consciência privada, resultado do individualismo próprio da sociedade burguesa, limita a percepção do social envolvido no evento pessoal e individual. Assim, o homem moderno, se configura como um ser fechado sobre si mesmo e enclausurado na estreiteza de seus próprios interesses alienados, porque são formulados na experiência de uma existência limitada. Como percebe Lefebvre: C´est bien une vie “privée” : privée de realité, de liens avec le monde, une vie à que tout l´humain est étranger – que celle de l´individu façonné par les tendences individualiste. Sa vie se dissocie en termes contradictoires ou separés : le travail et le repos, la vie publique et la vie personelle, les circonstances et l´intimité, les hasards et le secret intérieur, les chances et les fatalités, l´ideal et le réel, le merveilleux et le quotidien. Sa conscience, au lieu de s´élargir et de conquérir le monde, se replie, se rétrécit (Lefebvre, 1958, p.162). A crítica das mistificações seria decorrente da crítica da consciência privada, pois a consciência mistificada, decorreria de ausência de elos consistentes entre o indivíduo e o mundo. As ideologias do mundo moderno comportariam sempre um grau considerável de mistificações que penetrariam a vida cotidiana tornando-a também um espaço para um fervilhar de um conjunto muito variado de mitos e de adesões mistificadas que se motivariam nos mau entendidos da consciência privada. A crítica do dinheiro seria outro ponto em que o pensamento marxista se definiria enquanto crítica da vida cotidiana. Como aponta Lefebvre, a crítica ao dinheiro não se confundiria com a crítica á riqueza, esta última muitas vezes sendo resultado de um ressentimento pequeno-burguês contra a alta burguesia. A riqueza, no sentido em que o materialismo dialético propõe, seria o resultado da existência humana como atividade prática, parte da grandeza do homem que se dá pelo enriquecimento de sua própria vida. A riqueza, nesse sentido, significaria um alargamento das possibilidades de realização concreta das potencialidades humanas como expressão direta da riqueza da existência, tanto a riqueza material quanto a simbólica. Desta feita, o dinheiro seria, enquanto representação da riqueza, sua forma abstrata e alienada em que a existência humana se encontraria condicionada pelo seu próprio produto. A crítica ao dinheiro é parte e manifestação da alienação econômica e do trabalho, como também e nesse sentido, condensação alienada do mundo das necessidades reais concretas que aparecem ao homem moderno como necessidade de dinhieiro e dependência da existência em relação ao dinheiro. Essa é uma alienação que toca e condiciona a dinâmica da vida cotidiana na sociedade moderna, uma vez que nela não se vive sem dinheiro, isto é, a existência humana que só se efetiva através da posse e do uso da riqueza produzida socialmente, só pode se efeitvar na sociedade burguesa na sua forma alienada através do dinheiro que, enquanto abstração prática e real, condensa a realidade humana e suas necessidades na simbolização fetichizada do valor. Se o dinheiro condensa o reino das necessidades, esse reino é um dos componentes definidores mais profundos da cotidianidade. O reino do cotidiano é o reino em que a necessidade que se coloca como experiência concreta, seja pela escassez ou seja pela sua satisfação imediata. Mas se todo o reino da necessidade, nas condições de existência social modernas deve, e de fato é, recondicionado pela necessidade de dinheiro como meio necessário para a satisfação de todas as demais necessidades, a própria necessidade e sua percepção se encontram em relação de alienação, isto é, toda necessidade acaba sendo percebida e concebida como necessidade de dinheiro. Com isso, a vida cotidiana que se torna condicionada por essa abstração, fecha ao ser humano, pensado enquanto ser desejante, a possibilidade de realizar-se e desenvolver-se livre e plenamente pelo cultivo de suas potencialidades. Ora, aqui Lefebvre introduz a questão do desejo como componente do reino das necessidades, sendo o desejo uma necessidade elaborada e humanamente vivenciada e cultivada3. O desejo, assim, seria uma necessidade que supera a sua forma bruta porque já está socializada pela possibilidades mais desenvolvidas de sua satisfação. Daí que o desejo, no contexto de uma sociedade de classes, pode também ser definido como uma necessidade que não é reconhecida como tal, caindo para o lado do luxo e supérfluo. A crítica da necessidade enquanto crítica da vida cotidiana é justamente os arranjos sistêmicos que operam no interior da cotidianidade que organizam e estruturam o mundo das necessidades. A própria produção capitalista opera nesse sentido através não só da satisfação das necessidades, mas muito mais pela exploração do desejo. Assim, o empreendimento capitalista se esforça para a criação necessidades fictícias, artificiais e imaginárias. Tal produção não parte da identificação e da satisfação dos desejos reais, e nem pelo trabalho de converter necessidades grosseiras e brutas em desejos elaborados e humanizados4. É através da publicidade que capitalismo operaria na criação da 3 Ao introduzir a noção de desejo no escopo da teoria das necessidades, Lefebvre abre a possibilidade teórica de uma discussão mais profunda entre o pensamento de Marx e Freud. Isso ficará mais evidente e consistente nas formulações do segundo volume do “ La Critique de la Vie Quotidienne” que iremos comentar mais adiante. 4 Disto cumpre lembrar a afirmação de Marx em “Introdução para a Crítica da Economia Política” em que o grau de desenvolvimento de uma sociedade e de seu modo de produção não se define apenas pela sua capacidade de satisfazer as necessidades sociais, mas também forma em que tais necessidades são satisfeitas. Como bem lembrava Marx nesse texto, todos temos necessidade de comer, mas se comemos carne crua com unhas e dentes, ou uma carne assada com garfo e faca, acompanhada de vinho, isso traz e revela graus completamente diferentes de desenvolvimento social das forças produtivas e da forma como necessidade daquilo que não necessário e na criação do desejo daquilo que não é desejado. A crítica do trabalho, por sua vez, teria como seu tema central a alienação do trabalhador e do homem. Se a integração social de cada indivíduo se dá através e pelo trabalho, esta será sempre uma integração alienada. A despeito de qualquer vontade individual, de qualquer disposição subjetiva em relação a esta sociedade, a existência de cada um se encontra condicionada pela realidade de sua classe social e do lugar que esta classe ocupa na divisão geral do trabalho. Se o social é o resultado desse trabalho enquanto atividade produtiva no sentido amplo, isto é, enquanto produção não apenas de produtos e de objetos, mas também de necessidades, desejos, relações socias e instituições, fazer parte de uma classe significa participar de uma forma específica não só do ato da produção, mas também de sua distribuição, fruição e consumo da coisa produzida. Isto implica estar submetido às leis que regem essa produção que são produtos das mesmas, estar submetido ás relações de dominação e á realidade objetiva que essa produção estrutura. Desta feita, a divisão do trabalho implicaria sempre numa participação parcelar no conjunto da sociedade mais ampla e, por isso, a percepção deste conjunto estaria sempre condicionada pela posição específica e fixa no interior da divisão do trabalho que obscurece a parcepção do lugar do indivíduo no interior da totalidade porque essa totalidade não se apreende senão pelas mistificações decorrentes da própria situação de alienação. Daí que Lefebvre busca sintetizar através das teses de Marx sobre a alienação a experiência do homem moderno alienado. C´est ainsi que regné sur le monde toute la vie sociale une puissance inhumain, brutalement objetive, que nous avons nommé suivant ses différents aspects : argent, division parcellaire du travail, marché, capital, mystification et privation, etc. 5«Cette fixation de l´activité sociale, cette solidification de notre produit en une force extérieur qui est au dessus de nous, qui échappe à notre contrôle, dejoue notre atteint et anéandit no calculs, est jusqu´à ce jou un des facteurs prinipaux du dévelppment historique. » (Lefebvre, 1958, p.179) O trabalho parcelar e organizado na sua parcelarização fixa funda uma potência através da qual o homem exerce o seu domínio sobre a natureza como nunca antes na os produtos dessa sociedade são distribuídos entre seus membros. Isto é, maneira como cada um, na sua vida prática e real participa do desenvolvimento geral da sociedade de que faz parte. história. Trata-se da potência humana desenvolvida que, ampliando as possibilidades de realização do homem, amplia também o reino de sua liberdade. Assim, segundo a leitura de Lefebvre, a definição marxista de liberdade, sempre concreta e dialética, vai implicar sempre o desenvolvimento das potências humanas. A liberdade, nesse sentido, sempre vai supor um poder e um aumento do poder humano sobre a natureza, e também sobre a sua própria natureza (psíquica e biológica). A cada momento histórico em que o homem supera pelo trabalho um dado conjunto de necessidades, ele amplia o horizonte de seu poder e dominação, e portanto a amplitude de sua própria liberdade. Este é poder pertence aos homens agrupados integrados á uma dada sociedade. Assim, toda liberdade, que depende de condições materiais e concretas, só pode ser uma liberdade social, todo indivíduo só é livre na medida em que pertence a uma sociedade livre e capaz de desenvolver essa liberdade que pertence á seres humanos agrupados em sociedade e nunca a indivíduos isolados. A liberdade, portanto, se anula na medida em que o poder humano se volta contra o próprio ser humano, isto é, a alienação como fenômeno histórico e sociológico também significa e se dá como exploração e dominação do homem pelo homem (dimensão social e política) que transforma a liberdade possível em grilhões reais e concretos. Todo esse resumo do pensamento marxista desenvolvido por Lefebvre supõe uma leitura muito específica do pensamento de Marx. Ao tratar do desenvolvimento do pensamento marxista, Lefebvre escora sua leitura, fundada sobre a teoria da alienação e sobre os trabalhos do jovem Marx, numa disposição de dupla recusa das leituras mais comuns do pensamento de Marx. De um lado, teríamos a leitura dogmática marcada por excessiva fidelidade às expressões literais do pensamento marxista através dos textos do próprio Marx. Essa leitura dogmática teria como principal defeito o erro e a fetichização do pensamento marxista que ficaria estancado e reificado como letra morta nos limites do próprio texto. De outro lado, as leituras soltas e as interpretações ditas livres do pensamento de Marx tenderiam fetichizar suas reflexões num sentido oposto, isto é, ao torna-lo território livre para toda sorte de especulações, se atribuiria a Marx méritos e defeitos e toda sorte de formulações e constatações que ele de fato não fez, e nem poderia fazer. Para Lefebvre, essa dupla recusa significava em termos de prática e reflexão duas coisas. Tomar as reflexões de Marx a partir de seu sentido mais profundo, ou seja, partir das realidades concretas, dos seres humanos reais de carne osso, ou como 5 Marx Apud Lefebvre, 1958, p. 179. diria o próprio Lefebvre, partir do vivido das experiências cotidianas e toma-las como âncora das reflexões teóricas. Em segundo lugar, guiar tais reflexões através de seu sentido dialético como forma através da qual o pensamento pode, e deve, dar conta de tornar inteligível todo os conjuntos de contradições e dissimulações que estão presentes e são inerentes á experiência do vivido. É nesse sentido que, já em 1946, Lefebvre define o pensamento marxista como crítica da vida cotidiana, ou seja, como modo de pensamento capaz de transpor as ilusões e dissimulações das experiências sociais concretas e revelar-lhes suas contradições, interpreta-las como realidades carregadas de conflitos, mas também de possibilidades determinadas. Daí que o pensamento marxista, enquanto crítica da vida cotidiana, não é apenas a constatação, muitas vezes constrangedora do real, mas também é a crítica desse real dado pelas possibilidades de superação que ele guarda e que dele fazem parte. Isto é o que Lefebvre define como crítica do real pelo possível que identifica o atraso do primeiro em relação ao segundo. Se os fundamentos marxistas da sociologia da vida cotidiana são lançados no texto de 1946, esses fundamentos podem ser identificados e enumerados da seguinte maneira: a) tomar o vivido como centro da experiência humana e âncora de toda reflexão teórica; b) pensamento dialético como estratégia cognitiva num duplo sentido, desdogmatização e desfetichização de toda consciência e como abertura que torne possível a incorporação de categorias cognitivas marxistas ou não marxistas através da relativização dessas categorias e da crítica dialética das mesmas; c) pensamento sempre em movimento e em sintonia com a realidade objetivando fazer parte da mesma, portanto, carrega-lo de potência transformadora visando a realização dessa potência : « Changer la Vie !». Esses três fundamentos, todos eles escorados pela teoria da alienação aparecem no texto de 1946 como princípios teóricos e reflexivos que sustentariam um projeto de pesquisa. Por isso, o texto de 1946 cumpre o objetivo de formular um objeto de análise, expor os objetivos teóricos e práticos deste projeto e jusitificar a importância teórica e política do objeto proposto. Esse projeto, no entanto, só será retomado e realizado mais de dez anos depois, num contexto muito diferente daquele em que foi escrito. Os textos de 1958 (prefácio da segunda edição do volume I) e de 1961 (o volume dois da obra), vão se marcar por uma reavaliação do projeto inicial e por uma tentativa de realizar e de pôr em ação os fundamentos já lançados e contidos no texto de 1946. As décadas de 50 e 60 : a cotidianidade no auge do pós-guerra6 A retomada de um projeto iniciado em 1945 traz significações importantes. Lefebvre começa a escrever o prefácio da segunda edição do volume I de « La Critique de la Vie Quotidienne » em 1957, mais de 10 anos depois de iniciado o projeto. O novo contexto, segundo o autor, impunha também a retomada do tema do cotidiano, uma vez que todo o processo de construção da sociedade européia do pós-guerra, seus dilemas, embates e desencontros que resultaram numa Europa marcada pela guerra fria e, por isso, pelo risco de um novo conflito, obrigavam o autor a aprofundar as suas considerações iniciais. O fato é que, ao longo do processo, como percebe Lefebvre, a vida cotidiana tornou-se cada vez mais central e importante na estruturação da sociedade européia do pós-guerra. A amplitude da sociedade de consumo, a maior ênfase no lazer e os problemas e questões decorrentes da vida familiar e doméstica eram elementos cada vez mais importantes que conviviam de maneira forte com os dilemas do mundo do trabalho, que por sua vez, passava por uma reformulação política através do pacto social democrático. Se o mundo da tecnicidade penetrava o cotidiano de maneira mais intensa, essa penetração não se dava mais de maneira exclusiva no mundo do trabalho, na fábrica ou no escritório, já não tinha mais como objetivo apenas o mundo da produção. Fazendo parte, mais do que antes, do mundo da cotidianidade familiar e dos lazeres, a tecnicidade passa a ser um dos elementos profundamente relevantes que marcam a cotidianidade do pós-guerra e a reconstrução da vida não se dá com o sentido revolucionário que se esperava em 1945. O texto muito menos ingênuo do que o de 1946, o prefácio de 1958 reelabora as intenções políticas e intelectuais do projeto inicial mantendo ainda os seus fundamentos marxistas. Nesse sentido, Lefebvre (1958) busca um aprofundamento da teoria da alienação apontando para o fato de que, dentro do escopo do pensamento marxista, a idéia de alienação se tornara uma categoria negligenciada e deixada de lado. A categoria de alienação seria aqui também importante no sentido de se propor e de se elaborar uma sociologia marxista considerada como ciência específica em relação às outras ciências. 6 Os textos dessa fase já estão marcados pela militância do autor no movimento situacionista em que se deu a sua colaboração com Guy Debord em termos de atuação política. Contudo, os textos de “La Critique de la Vie Quotidienne” tem um caráter mais intelectual e científico do que o texto de “La Vie Quotidienne dans le Monde Moderne”, este último texto, sem dispensar a discussão intelectual e sociológica que ele comporta, em especial sua discussão com o estruturalismo e com o funcionalismo, se define por uma evidente tomada de posição. Contudo, nesse período já havia se dado e ruptura entre Lefebvre e o PCF. Desta feita, cumpriria definir os traços fundamentais desta sociologia que, se querendo marxista, deveria ser ciência da sociedade ao mesmo tempo sendo crítica da mesma. Nesse sentido, o prefácio de 1958 tentava fazer uma re-leitura ampla do texto de 1946 através de uma profunda reflexão tanto do problema sociológico que se pretende enfrentar como também dos recursos teóricos que devem ser utilizados para esse enfrentamento. Assim, a releitura da teoria marxista através da categoria de alienação não vem separada de uma profunda reflexão sobre a vida cotidiana e suas transformações e mudanças constatadas no contexto da década de 50. Nesse sentido, Lefebvre percebe mudanças consideráveis que se constituiriam como fenômenos sociológicos de primeira grandeza. Entre os quais deve-se destacar a crescente importância da tecnicidade como instrumento cotidiano de regulação e condução da vida. Esse novo elemento traz implicações profundas, pois passa a determinar e ampliar as possibilidades na vida prática, não se restringindo mais ao âmbito do trabalho, a tecnicidade se torna elemento importante na vida privada (familiar) e na esfera dos lazeres. Se de um lado, a tecnicidade traz consigo a possibilidade de ampliação das potencialidades da vida, de outro traz consigo a limitação e a restrição como elementos presentes e agravados do escopo da própria vida cotidiana. Com isso e por isso, o cotidiano passa a ser um objeto de questionamento e reflexão sobre a própria sociedade. Se nesse texto Lefebvre traz importantes reflexões que aprofundam e desenvolvem os fundamentos marxistas de uma sociologia do cotidiano que o texto de 1946 já continha, também traz novidades consideráveis. O que chama a atenção é que, assim como no texto de 1946 a presença da literatura se mostra importante como apontamento dos problemas que serão tratados de outra maneira no texto. Em 46 Lefebvre percebe na literatura francesa do século XIX o cotidiano e a modernidade como temas de crítica e reflexão artísticas, mas no texto de 58, a leitura de Brecht e Chaplin serão as fontes através das quais o autor francês fará uma interpretação profundamente sociológica do cotidiano. Se no cinema de Chaplin, visto como narrativa e ficção, temos a questão do cotidiano como relação entre o homem e o mundo material, entre os homens e as coisas, temos que essa mesma relação é marcada pela contradição, pelo conflito e pela alienação que transforma o homem em coisa, porque esse homem se põe como um ser dominado pela coisa. Assim, Chaplin, montando uma narrativa calcada nas imagens inversas, o vagabundo como o inverso do trabalhador, o riso como o inverso do trágico, a pilhéria como o inverso da crueldade, vai revelando a dimensão alienada das relações do homem com o mundo dos objetos criado pelo próprio homem. As interações, sempre complexas, entre o mundo das pessoas e o mundo das coisas, não envolve apenas o discurso e o falar, a perfomance cênica dos filmes de Chaplin evidenciam também as imagens inversas e aberrantes dos usos cotidianos do corpo, a trapalhada vem sempre nessa relação complexa com o mundo prático sensível, o riso revela o conflito dessa relação. Contudo, no teatro de Brecht, o centro da questão está na relação que os seres humanos estabelecem com outros seres humanos. A máscara, o papel social, a dissimulação, as identificações dos indivíduos com suas máscaras e seus papéis revelam toda uma dimensão dramatúrgica da vida social cotidiana. Como aponta Lefebvre, Brecht não purifica a cotidianidade para pô-la no palco, ela já é suficientemente dramatúrgica a tal ponto que os personagens de ficção conseguem ser mais autênticos em relação ao público do que as pessoas reais, essas sendo os verdadeiros personagens identificados com seus papéis e suas próprias máscaras. Assim, não é a leitura de Gofman e da fenomenologia americana a fonte que Lefebvre utiliza para perceber a dimensão dramatúrgica da vida social e as relação complexas que dão o enquadramento e moldura do cotidiano, a relação dos seres humanos com as coisas e a relação dos seres humanos entre si. Nesse sentido, o autor francês introduz aqui a idéia de jogo social que move as dissumulações, as relações entre as máscaras e os papéis sociais assumidos pelas pessoas-personagens. O cotidiano, nesses termos, é o espaço social e o lugar da experiência do jogo que envolve as disposições cotidianas na prática social, tanto as disposições corporais quanto disposições cognitivas. O jogo, é assim, um enredamento em que se envolvem e se implicam as pessoas-personagens que atuam no cotidiano. Aqui a literatura e a arte, num sentido mais amplo, cumprem a tarefa de uma crítica da vida cotidiana, ainda que numa acepção limitada apenas na identificação do problema. Desta forma, o que o texto de 1958 parece sugerir, é que a sociologia do cotidiano deveria trazer alguns dos traços da literatura enquanto crítica da vida cotidiana, ou seja, ser capaz de condensar de maneira reveladora na consciência a complexidade das situações sociais cotidianas sendo ao mesmo tempo conhecimento e crítica dessas mesmas situações. Contudo, a sociologia da vida cotidiana que se quer crítica de seu objeto, deve ir além do conhecimento e da própria crítica abrindo através de ambos a possibiliidade da mudança. Por isso, a crítica da vida cotidiana pela arte e pela literatura teria sempre esse caráter limitado, mas sempre teria também essa característica da qual o autor não se furta. Lefebvre volta às fontes literárias de conhecimento do cotidiano em 1968 numa profunda análise de Joyce que abre o livro « La Vie Quotidienne dans le Monde Moderne » acentuando justamente a importância do tema do cotidiano dentro da dicção cultural da sociedade moderna e também como esse texto de Joyce traz á tona um conjunto complexo de contradições, conflitos, dramas e significações contidos na cotidianidade. Embora Lefebvre não vá desenvolver uma sociologia da literatura e nem uma sociologia da crítica da vida cotidiana pela literatura, o tema da ficção literária é importante na sua reflexão. Pois em Lefebvre, a literatura não aparece como mero reflexo da realidade cotidiana, se assim fosse bastaria ultrapassar o reflexo e ir direto à coisa refletida. Também não é apenas mediação entre o cotidiano e a consciência crítica do cotidiano, pois se fosse apenas isso, as sucessivas releituras da teoria da alienação seriam desnecessárias, bastaria apenas uma teoria da mediação descartando-se os demais aspectos da teoria da alienação, como o fetichismo, as misitficações e os estranhamentos. Aqui, Lefebvre considera a literatura, enquanto crítica da vida cotidiana, uma apropriação possível do cotidiano e de seus sentidos dentro de uma situação de alienação que é mais ampla. Desta feita, a crítica da vida cotidiana na sua forma e realização sociológica teria como tarefa intelectual e política, ao mesmo tempo, alargar as possibilidades de apropriação do cotidiano, de seus sentidos e de suas significações vividas enquanto experiência social. Num sentido mais amplo de um projeto de uma sociologia do cotidiano, nem a noção de reflexo e nem a noção de mediação bastariam para pôr o problema sociológico em questão em seus justos termos7. A questão aqui é o problema da apropriação possível da vida cotidiana na situação de alienação tal qual ela é vivida numa sociedade capitalista. Assim, falar de conhecimento sobre o cotidiano significa explora-lo através das dimensões em que ele é se dá. Lefebvre identifica três dimensões da cotidianidade que, postas em relação dialética, constituem uma unidade, portanto uma totalidade que deve ser apreendida. Essas trê dimensões são o trabalho, a família e o lazer. É nessas três dimensões que a dramturgia social que Lefebvre identifica em Brecht devem ser analisadas numa acepção sociológica e metódica, isto é, definição de objeto e método. A questão que se dá aí é identificar o cotidiano como o lugar em que se dá a experiência do drama que marca o vivido. A vida cotidiana é dramática não apenas nas suas representações e apropriações cognitivas, drama, melodrama, frustração, 7 Isso não que dizer, de forma alguma, que as noção acima citadas sejam desnecessárias á reflexão sobre o problema, mas que elas seriam insuficientes para a resolução da questão. insatisfação, tragédia, ...etc, mas também nas suas experiências que marcam os momentos distintos de alienação e desalienação de todo homem que se defronta com o mundo em que vive, de todo homem que deve necessariamente se pôr em relação com as coisas (mundo prático sensível que é também social) e com as outras pessoas, outros seres humanos (mundo social). Assim, o projeto lefebvriano supõe um estudo das possibilidades e limitações contidas nessas duas dimensões da existência social humana, a dimensão material e a dimensão social tout cour. Mas essas dimensões não se dissociam, uma sempre está implicada na outra e vice-versa. Nesse sentido, pensar o cotidiano na sua tripla dimensão (trabaho, família e lazer) é pensa-lo como uma esfera tensa da vida social carregada de conflitos. Esses três termos definem uma relação dialética em que as normas e os padrões de interação se contradizem ou se negam, eles também marcam, na sua estrutura, as possibilidades de existência concreta dos seres humanos. Assim, a idéia de que toda realização humana e de que toda integração social se dá pelo trabalho é contraposta à situação concreta dentro do modo de vida do moderno em que os projetos de vida, as aspirações, os desejos e sonhos de cada indivíduo envolvem essas três dimensões, isto é, o social como pressuposto da existência humana também se concretiza no lazer e na vida privada (familiar). A noção de fruição aqui tem uma significação especial, pois a fruição acaba sendo também atividade de apropriação que cada indivíduo realiza em relação à sua própria vida. Daí que Lefebvre, no texto de 1958, vai prestar uma atenção toda especial á dimensão do lazer como um aspecto de grande relevãncia da experiência cotidiana. Sendo o lazer também uma crítica da vida cotidiana que cada um de nós faz na sua própria existência, ele também é elemento deste mesmo cotidiano que é objeto de sua crítica. O lazer, dentro do contexto contemporâneo já identificado na década de 50, também comportaria a dimensão alienada. Os lazeres passivos, as máquinas de lazer (como a televisão e o rádio) e todas as formas de fruição condicionadas pela exploração capitalista do lazer, teriam reduzido a fruição a um ato de mera passividade e relaxamento em relação ao mundo do trabalho. Assim, os ritmos de trabalho impostos, em grande parte pelas exigências da tecnicidade que permeia a vida cotidiana no trabalho, exigiria formas de lazer alienantes que precindem das atividades de fruição, sejam elas físicas (o esporte e o jogo) ou intelectuais (a criação como lazer, o pequeno artesanto, o hobbie8). De outro lado, é justamente esta exigência do lazer alienado, o 8 Seria muito exagero supor que as formas criativas de lazer tenham sumido da cena da vida moderna, pelo contrário, é nessa vida que a noção de hobbie aparece como categoria real. O fato é que a « deixar o cérebro de molho » como se diz popularmente, que abre o caminho para a exploração capitalista do lazer na forma da mercadoria de entretenimento. O que Adorno analisa como desenvolvimento da indústria cultural é parte integrante do processo de atendimento ás demandas do cotidiano. Como a noção de cotidianidade não aparece, senão de forma muito tosca, na reflexão adorniana, o autor alemão não consegue chegar ao fundo da questão, ou seja, a regressão da consciência, o « barbarismo » cultural, a produção cultural em geral que perde sua sofisticação e sua qualidade não se deve apenas e tão somente a uma alienação decorrente mercantilização da cultura, o produto cultural realizado através da forma mercadoria. Há mais nesse processo quando introduzimos aí a noção de cotidiano, pois essa mercadoria cultural não se define apenas pelo seu valor de troca, mas pelo seu valor de uso. Este uso, que determina também o seu sentido, visa atender uma necessidade dada, é expressão dessa mesma necessidade. A necessidade de representação que a indústria cultural supre esconde uma outra necessidade, esta sim seria, nos termos Lefebvre, uma necessidade real, de sonho, de fruição criativa, de apropriação da vida, de aventura, enfim de realização da condição humana. De certa forma, os produtos de indústria cultural seriam lidos como expressões condensadas das necessidades cotidianas, portanto um dado para o estudo da própria cotidianidade. Por isso que uma das fontes empíricas de pesquisa que Lefebvre vai mobilizar, em especial no segundo volume de « La Critique de la Vie Quotidienne », será os produtos simbólicos da indústria cultural, em especial as revistas feminas, como estratégia de identificar todo um sistema de necessidades que envolve a cotidianidade moderna. Daí que, os fundamentos marxistas de sociologia lefebvriana devem passar necessariamente pela teoria das necessidades. Assim, a noção de necessidade aparece não apenas na sua significação cultural, ou seja, necessidade representada realizada como necessidade de representação, mas também na sua significação política que envolve a relação do cotidiano com o Estado. Esta relação se dá pelas formas políticas e jurídicas com que o Estado, de um lado, regula o cotidiano e, de outro, como a aitividade política implica na satisfação de necessidades direcionadas ao Estado, como reinvindicação e demanda. Assim, as questões econômicas e concernentes à gestão da econômia nacional (impostos, salários, taxas de desemprego) até as demandas mais simples da vida política e da existência possibilidade do próprio exercício do hobbie tem se tornado escassa para grande parcela da população tornando-se mais um privilégio de quem tem tempo e dinheiro para o exercício desta forma de lazer. imediata do Estado (saneamento básico, luz elétrica, escolas, creches, ruas, ...etc.) fazem parte das necessidades cotidianas que ganham expressão política. A política se funda no cotidiano, nas necessidades e demandas cotidianas, mas faz parte das chamadas altas esferas da vida social em que as decisões políticas se tornam efetivas. Se o Estado se funda no controle do cotidiano como realização de seu poder de Estado, o cotidiano direciona suas necessidades para o Estado quando se cumpre a tarefa política de converter a necessidade cotidiana imediata em demanda política elaborada. Daí que, se a política (Estado) faz parte do cotidiano como mecanismo de sua regulação preservando a sua estabilidade, a luta política que converte necessidade imediata em demanda elaborada, o que também constitui a atividade política, vai se definir como crítica da política pelo cotidiano como também como crítica da vida cotidiana pela atividade política. Daí que Lefebvre insiste nas significações políticas profundas da noção de crítica da vida cotidiana e nos objetivos políticos embutidos no seu projeto. Ou seja, aqui a sociologia da vida cotidiana é também uma sociologia política sendo ao mesmo tempo conhecimento da política, pela sua base cotidiana, e crítica da política no sentido praxiológico, conhecimento que informa a prática alterando a realidade que estuda e que é objeto de sua crítica. Este longo prefácio de 1958, que traz toda uma reflexão de retomada de um projeto, já anuncia o segundo volume a obra. O volume dois, publicado em 1961, deveria trazer um sistemática reflexão sobre a teoria das necessidades como também uma reflexão sobre a revista feminina identificada como condensação da realidade cotidiana e seu sistema de necessidades. Aqui Lefebvre propõe o tema do feminino e da condição de genêro como um tema importante para uma sociologia do cotidiano. A mulher seria, pela sua condição social, o centro de um modo de vida capaz de resumir em si o cotidiano com suas contradições e conflitos. É na análise da condição feminina e na ambigüidade desta condição que Lefebvre identifica a própria ambigüidade como categoria fundamental do cotidiano. Embora a mulher seja a figura social que condensa a ambigüidade, esta categoria extrapola com os limites da condição feminina como uma condição específica, isto é, a ambigüidade feminina revela uma ambigüidade outra que é a da própria condição do cotidiano. O texto de 1961, se marca, de um lado, pelo aprofundamento da teoria das necessidades, e de outro, pela sistematização de um conjunto de conceitos e categorias teóricas e de análise que servem como instrumental teórico para uma sociologia do cotidiano. Segundo o autor, esta sistematização teórica se desenvolveu no confronto direto com o material de pesquisa coletado pelo autor9 . Um texto muito mais denso e erudito do que os que comentamos até agora, este volume II guarda uma teoria do cotidiano, na qual a análise da condição feminina estará diluída em meio ás suas considerações sobre a teoria das necessidades.10 Deste modo, o este texto traz uma série de considerações e sistematizações, críticas, reflexões e formulações que vão além do que aqui poderíamos comentar. Ao desenvolver as categorias específicas e os conceitos formais de sua teoria do cotidiano, Lefebvre supõe um denso esforço de aprofundamento do pensamento dialético e do método de Marx em que temas e questões que estão fora do escopo do pensamento marxista são incorporados através de uma crítica dialética. Essa estratégia de formulação teórica retira da leitura lefebvriana do pensamento de Marx toda e qualquer tendência de dogmatismo ou de interpretação dogmática. Segundo o autor francês, todo pensamento dogmático é fetichizado e, portanto, é pensamento morto porque se aprisiona no seu fetiche como verdade absoluta e imutável. Por isso também é um pensamento fechado para realidade que o cerca. Desfetichizar para Lefebvre significa dialetizar o pensamento. Dialética não significa apenas oposição necessária entre os opostos, mas também diálogo entre esses elementos que se opõem. A dialética só pode ser pensamento vivo em movimento porque é um pensamento que dialoga, não sem método ou sem disciplina, e nunca sem crítica. É através dessa estratégia de pensamento, que toma em conta uma reflexão profunda sobre a dialética, que Lefebvre vai elaborando as categorias específicas que constituem a cotidianidade, por isso são instrumentos para a sua análise. É nesse processo que Lefebvre vai dialogando com várias correntes relevantes do pensamento ocidental moderno, Nietzsche, Freud, Bohr, Hegel, Merton,...etc. Filosofia, sociologia, psicanálise, e até a física quântica, o concurso das mais diversar ciências parcelares são introduzidas na reflexão através da dialética também como uma estratégia de apropriação dessas disciplinas e de seus conhecimentos no escopo de uma reflexão marxista viva e não dogmática. Dentre as categorias específicas do cotidiano analisadas e formuladas por Lefebvre nessa estratégia de formulação teórica, vamos destacar apenas três. Não que as 9 Deve-se salientar que, como nos informa Lefebvre (1961) a primeira versão do volume II de “La Critique de la Vie Quotidienne” foi perdido na gráfica, o que obrigou o autor a re-escrever o livro inteiro. Isso, de outro lado, o obrigou a re-fazer o caminho de análise. Como não conhecemos a versão original desse texto, fica difícil saber e medir os lucros e prejuízos desse contratempo no mínimo desagradável. 10 Lefebvre (1961) justifica essa escolha argumentando que a análise da condição feminina através da teoria das necessidades e da categoria da ambigüidade extrapolava a condição muito específica do objeto demais não sejam importantes, na realidade são fudamentais para se compreender o pensamento de Lefebvre e o seu movimento. Mas o fato é que os limites deste trabalho nos obrigam a fazer escolhas. Assim, escolhemos essas três categorias porque através delas podemos perceber algumas considerações e avanços que não estavam presentes de maneira tão sistemática e desenvolvida quanto no texto de 1961. É através dessas categorias que se pode pensar e discutir todo um conjunto temas novos que são incorporados á reflexão marxista. Assim, as três categorias que aqui vamos discutir são : a) noção de ralidade ; b) o vivido e o viver ; c) ambigüidade. A noção de ralidade tem sido uma das categorias centrais do pensamento dogmático e do positivismo na identificação postulada por essas correntes de pensamento entre o real e a verdade. Esta noção é uma das mais fetichizadas, segundo Lefebvre, do pensamento social e científico da sociedade moderna. Termo que em si já guarda uma autoridade absoluta, é também uma das noções centrais que fazem parte do pensamento cotidiano, isto é, da forma cotidiana de pensar a vida no mundo moderno. O real é sempre identificado também com o concreto, com o existente e com o tangível. Tornar esta noção uma categoria de análise da sociologia do cotidiano significaria dialetiza-la através da relativização desta noção. O real não seria apenas o concreto e o existente, mas também suas representações e suas simbolizações que guardariam uma realidade própria relacionada ao real concreto e ao dado. É no conjunto dessas representações e simbolizações, de desejos e necessidades gestados nesse real dado e concreto, o existente, que se estabelece dialética dessa noção de real. Isso porque ele vem sempre acompanhado do virtual que nele está contido, o possível que é dado como um vir-a-ser, como real futuro passível de existir se for feito a existir. Assim, o futuro está vivo e ativo no presente como virtualidade e projeto. O próprio real existente é um possível realizado. A dialética entre o real e o virtual, é a dialética entre o presente e presença, entre o existente e a existência. Isto é, toda realidade comporta a virtualidade que é sua negação e promessa de superação, mas toda realidade comporta uma riqueza inúmerável de possíveis que se encarnam em idéias, na consciência, formulação do desejo a partir da necessidade como substrato que motiva a noção de projeto e utopia. Realizar um possível é transformar a existência em existente. Mas isso implica em um movimento que supõe a decisão que se define em três atitudes : escolher, julgar e agir. Nesse sentido, a realidade cotidiana, no seu fluxo é movida pelo ato de decisão. de análise, desta feita o tema do feminino é tratado ao longo do texto. Em artigo de 1962, Lefebvre trata de maneira mais específica o tema da mulher relacionando-o ao tema das mitologias da vida cotidiana. Ligada a essa concepção dialética de realidade, está a noção de vivido e a sua relação com o viver. O vivido, enquanto categoria sociológica, estaria ligado ao conjunto de experiências sociais dadas e realizadas no correr da cotidianidade. O vivido implica a decisão, mas não se reduz a ela. Lefebvre, no entanto, tem dificuldade de definir a noção de vivido sem expo-la na sua acepção dialética. Segundo ele, o vivido se defniria por uma focalização da consciência numa prática, um centro de densidade e calor. Esta focalização se desloca, mudando de nível com pertubações e distorções que essa mudança comporta. Assim, continuando o autor, a consciência individual não é um centro dado e nem uma esfera fechada. Ela comporta mudanças de nível e de acepção nas constantes focalizações que o indivíduo deve empregar no interior das práticas para as quais a consciência é mobilizada. Nesse sentido, o vivido se realiza constantemente nas tramas das relações pessoais que define a sua esfera de realidade. Contudo, o vivido não pode ser definido plenamente sem a sua contraparte dialética, o viver. Entre os dois se desenvolve um movimento dialético que envolve a cotidianidade e a consciência social. O viver seria da ordem da expectativa da experiência, no sentido de que estaria carregado de uma certa consciência do possível, ou seja, da experiência possível e concebida. Nesse sentido, o viver, que é muito mais vasto que o vivido, com horizontes mais largos, é definido como virtualidade, como presença. Já o vivido é o realizado e o presente. Assim, é inevitável a contradição e o conflito entre o vivido e o viver, uma vez que o primeiro se define na experiência, muitas vezes dolorosa, da vida como ela é, ao passo que o segundo se define na experiência, ás vezes carregada do sentimento da frustração, da constatação da vida como ela poderia ser, ou seja, do quanto ela poderia ser diferente. Assim como percebe Lefebvre : Le vécu, c´est le present, et le vivre la presence. Le vécu, c´est aussi l´oeuvre vivante ou morte du vivre : c´est que je fais, c´est que je sais, dans ma lumiére et mes horizons : qui ne m´appartient pas, étant social par excellence. Vécu et quotidienneté ne coïncident pas exactement, malgré leurs lien étroits. Le vivre ne se situe pas à part du quotidienne. (Lefebvre, 1961, p. 219) Desta forma, o vivido é da ordem do real, daquilo que é realizado, ao passo que o viver é da ordem do virtual e do possível. Por isso, nesse movimento dialético, o vivido se torna uma experiência dramática da vida, o drama de indivíduos e grupos sociais se agudiza nessa contradição. Ao mesmo tempo, sendo da ordem do real, nas suas relações de conflito e contradição com o viver, o vivido também é movimento dentro do real, por isso ele é decisão : escolha, julgamento e ação. Daí o seu aspecto dramático em cada elemento que constitui a decisão como prática e consciência, isto é, como práxis, envolve a experiência do drama da escolha, do julgamento e da ação. A dramatização da decisão implica, socialmente, na teatralização e numa espécie de jogo sério que recorre a todo um aparato simbólico e macanismos de representação no sentido de ampliar o vivido. Funerais, casamentos, ritualizações, ...etc seriam exemplos de teatralizações evidentes carregadas deste simbolismo que visa o alargamento da experiência. A noção de ambigüidade está ligada, de certa forma à noção de vivido. A ambigüidade, tal qual Lefebvre a discute, poderia ser definida como um estancamento da decisão no âmbito do vivido pela desdramtização de seu movimento. O drama que se atenua passa a sobrepor a comédia do detalhe sobre a tragédia do conjunto como explica o autor francês. O jogo social se torna pesado e frívolo, baseado no cálculo, mobilizado pelos sentimentos banais que o jogo suscita nas rivalidades que são postas em movimento. Daí que as atitudes sociais oscilam ao longo de um jogo de dissimulações em que rivalidades e admirações se mascaram mutuamente (Lefebvre, 1961). A ambigüidade marcaria o reino da banalidade e da superficialidade das interações e experiências sociais dissimulando e ocultando o vivido e o viver que nelas estão implicados, o vivido e o viver, no âmbito da ambigüidade, parecem se separar. A ambigüidade se define e se constitui em situações sociais vividas a partir de contradições estufadas que não são percebidas enquanto tais. A ambigüidade é uma situação social, dada no interior de um grupo, em que o indivíduo adota uma certa indiferença em relação às contradições e conflitos, percebidos como meras diferenças. A ambigüidade é uma situação complexa em que as contradições e as oposições virtuais não se resolvem e as possibilidades não se realizam. Equanto situação social, a ambígüidade nunca é percebida enquanto aquilo que ela é. Pelo contrário, ele é vivida num vai e vêm entre os pólos opostos da situação porque o agente tergiversa evitando o ato de escolha. Por isso a ambigüidade, enquanto situação social, impede o ato da decisão e se marca pela atenuação do drama, porque a escolha e a própria exigência da escolha estão escondidas nas atitudes ambígüas dos indivíduos. Se o cotidiano está permeado e cheio de ambígüidades, como afirma Lefebvre, ele passa a se caracterizar por esta situação em que os seus conflitos profundos, suas contradições e suas tensões estão reduzidos, escondidos e dissimulados. Assim, é essa situação que dá ao cotidiano o seu caráter de obscuridade que deve ser desfeita no estudo crítico da cotidianidade. O contraponto dialético da ambígüidade é a decisão e a exigência de decisão, de escolha, de julgamento e de ação. Com essas categorias, mas também com os outros conceitos e noções que nos abstemos de comentar nesse textos, Lefebvre consegue incorporar temas importantes que concernem à questão do cotidiano. O drama, a ambigüidade da existência, a experiência através do vivido e do viver, as confrontações entre o real e o possível, elevam a reflexão aprofundando-a no âmbito das questões e dilemas de seres humanos reais e concretos. Porém, essas questões e dilemas ultrapassam o escopo da vida pessoal e das relações humanas imediatas porque estão condicionadas pelo conjunto da estrutura social, isto é, toda essa reflexão deve levar em conta os elos entre a dimensão macro sociológica da existência com a dimensão micro sociológica. Essas duas dimensões estão presentes no cotidiano como elementos tanto de sua estabilidade como de sua eventual perturbação. Daí que essa reflexão sociológica dá conta de incorporar temas que pertenciam a outras correntes de pensamento e a outras disciplinas científicas. É o caso de toda a reflexão lefebvriana sobre a questão do desejo. Tema típico da psicanálise freudiana, está aqui dialetizado na sua relação com a necessidade. O desejo, como necessidade elaborada é ao mesmo tempo sua negação, necessidade não reconhecida como tal que cai na experiência do luxo, ou do interdito e da transgressão. O desejo, nesse sentido, seria também parte do setor não dominado da vida pelo ser humano (pulsões, o inconsciente, e toda a natureza humana não dominada pelo ser humano) na sua relação com o setor dominado (normas, processo produtivo, natureza transformada, superação da necessidade, ...etc). Daí que, a neurose, as pulsões, as pertubações psíquicas fazem, de tempos em tempos a sua emersão no cotidiano que é onde a estrutura psíquica do ser humano se ativa no eterno conflito entre o super ego (a dimensão das normas), o id (a dimensão das pulsões) e o ego (negociação entre as exigências do super ego e as demandas do id). Dialetizar isso nas considerações de uma sociologia marxista do cotidiano significa perceber também as contradições que o capitalismo impõe ao uso do desejo e sua realização na vida cotidiana. Se pelo lado do mundo do trabalho, se cobra do profissional e do trabalhador a disposição de ascetismo que implica a renúncia do desejo, o mundo do lazer, marcado pela sociedade do consumo, supõe o movimento inverso, o hedonismo que convida a entrega do ser ao seu desejo. Assim, o capitalismo que expropria o desejo no mundo do trabalho, é o mesmo que o explora na forma do consumo. O indivíduo se vê aí imerso numa situação de ambígüidade perpétua, pois entre o ascetismo e o hedonismo não há condições de escolha, o mundo do trabalho e o mundo do lazer não são duas realidades desconectadas e apartadas, mas compõem com o mundo privado (onde cabe a negociação, ás vezes tergiversada, entre hedonismo e ascetismo) uma unidade dialética que envolve compromissos, projetos de vida e aspirações de indivíduos reais e concretos. Como vimos, o texto de 1961 é muito mais denso que os outros e nele se contém de fato a uma teoria do cotidiano. Se em 1968, o célebre texto « La Vie Quotidienne dans le Monde Moderne » teve um grande sucesso por conta de suas tomadas de posição, marcadas pelo contexto francês da revolta universitária e do intenso envolvimento do autor com o movimento situacionista, esse texto também traz uma espécie aplicação dessa teoria do cotidiano como instrumento intelectual numa leitura do mundo social moderno e ocidental. Lefebvre muitas vezes foi criticado por pensadores marxistas por não tomar posição, por ter sido um intelectual mais acadêmico do que militante. De outro lado, ele também foi muito criticado por intelectuais nãomarxistas da universidade que afirmavam que suas análises eram enviesadas e corrompidas pelas suas tomadas de posição. Contudo, mais interessante do que discutir se ele toma ou não toma posição, é pensar como e que posição o autor toma uma vez que está informado pela teoria e pelo conhecimento que ele desenvolveu. Nesse sentido, o texto de 1968 se marca por um projeto de ação que fecha a análise do livro que apresenta toda uma problemática do cotidiano no mundo moderno. A revolução cultural proposta por Lefebvre neste texto é definida como um possível que deveria se realizar como um ato de apropriação da vida na transformação dos elementos que definem e constituem o seu drama. É, assim, o desenvolvimento aprimorado da proposta original de 1946, « Changer la vie ! ». Final da década de 70 e uma modernidade em crise : uma conclusão Depois de longa carreira tratando de outros temas de extrema relevância para o seu pensamento, e sem deixar de lado completamente o tema do cotidiano, Lefebvre retoma a obra de « La Critique de la Vie Quotidienne » publicando o seu terceiro volume em 1981. Contexto tão diferente dos que embeberam a produção das obras anteriores, o volume III traz em relação a elas diferenças dignas de serem comentadas, ainda que brevemente. Uma delas é a re-avaliação que autor faz das obras anteriores dentro do contexto novo avaliando também os acontecimentos e as mudanças que se decorreram no mundo ao longo dos anos em que a obra foi produzida. A outra é a constatação das mudanças significativas na esfera do cotidiano que foram marcadas pela chamada revolução técnico-científica. Se os momentos de produção da obra, 1946-1958-1961-1968, foram marcados sempre por essa junção entre o projeto teórico e o projeto político que sempre estiveram expressos nos textos, o III volume reavaliava seus objetivos e as possibilidades daquele projeto se sustentar. Os fracassos políticos da esquerda, os resultados dos movimentos de contestação, o fim das utopias que marcaram o maio de 68 na França, dão o quadro de uma contexto cultural em que o autor percebe que o « Changer la Vie ! » não se figurava mais como um possível, como uma virtualidade que pudesse se realizar da forma como pretendiam e propuseram os situacionistas. A obra não se sustentaria mais dentro de seu sentido militante original. Se o mundo tomava um rumo diverso do que pretendiam uns, para muitos ele se afigurava como uma crise. O autor, portanto, justifica a retomada deste trabalho percebendo a crescente importância que o tema do cotidiano adquiriu no ambiente universitário ao longo dos anos. Nesse sentido, não faltavam tentativas e propostas de reflexão sobre a problemática do cotidiano como uma questão, em especial na sociologia. Assim, o volume III procura re-ler e re-avaliar a obra anterior a fim de mobiliza-la para tratar de uma questão específica, ou seja, tratar das mudanças e continuidades que marcam a vida contemporânea e tentar identificar os possíveis que se afiguram no novo contexto. As mudanças do cotidiano, os fracassos das utopias de esquerda, o recrudescimento das estruturas de poder eram temas que um discurso intelectual punha em debate, a crise da modernidade e de sue modo de vida, o fim das utopias e da possibilidade de realização do projeto da modernidade. De outro lado, os efeitos e resultados da revolução tecnico-científica já supunham uma mundialização cultural e social através das novas tecnologias que também redesenhavam os movimentos e o ritmo da vida cotidiana. Nesse sentido, através do mundo prático sensível, das tecnologias, a qualidade de vida humana, cultural, social e econômica teriam se elevado de maneira significativa. Esses dois discursos, o nostálgico pessimista e o otimista apologético marcariam as duas tendências centrais do contexto cultural e político que vinha se abrindo na década de 80. De um lado, se afirmava o fim da modernidade, a sua crise, o fim de toda ideologia. De outro, se brindava às maravilhas da tecnologia, da globalização resultantes do avanço do capitalismo. Identificando esses dois discursos, Lefebvre propõe como objetivo desse volume III a busca de um outro olhar sobre o contexto da modernidade que pudesse superar as duas alternativas dadas. É nesse sentido, que o autor expõe de maneira suscinta a sua teoria do cotidiano buscando mobiliza-la para uma interpretação do mundo contemporâneo que estava em questão naquele momento. Sua teoria do cotidiano ainda se justificava não apenas, e tão somente, como um instrumento interpretativo para a formulação de uma teoria do mundo social. Mas possibilitava a identificação das novas virtualidades que emergiam do mundo contemporâneo. O texto por isso quebra com o pessimismo que muitos intelectuais constestadores, alguns deles como Guy Debord, antigo líder do movimento situacionista da década de 60, passaram a manifestar nos finais da década de 70 e ao longo da década de 80. O que cabia como objetivo do texto de 1981 era conhecer o contexto do momento reconhecendo a crise do moderno, mas sem cair no pessimismo nostálgico, este tendo na teoria pós-moderna uma de suas expressões possíveis, era também sintoma da crise. Ou como diz Lefebvre com sua típica ironia, a ideologia do momento era postular a fim de todas as ideologias. De outro lado, a recusa do discurso otimista era o que repunha a crítica na ordem da discussão, a constatação de que a cotidianidade do momento supunha mecanismos de controle mais recrudescidos e acentuados, a idéia de uma cotidianidade programada através do consumo, dos métodos de planificação urbana, da publicidade, e outras técnicas sociais se atualizavam num contexto em que o conhecimento passa a exercer um papel cada vez mais decisivo na condução da vida cotidiana pelas grandes estruturas de poder e dominação típicas da sociedade moderna, Estado e Mercado. De outro lado, esse mundo, como d´antes, continuava marcado por virtualidades novas, possibilidades de apropriação da vida que não eram, e nem podiam ser, perceptíveis nas décadas anteriores. O projeto ainda se justifica, mas é preciso viabiliza-lo de outra forma. Desta feita, o terceiro volume da obra se divide no seu corpo em duas partes centrais que o autor intitula como « o que continua » e « as descontinuidades ». Isso coloca a obra num movimento de avaliação do contexto com o qual a teoria do cotidiano vai ter que se defrontar para avaliar e poder falar da sociedade na qual ela tenta se inserir como crítica. Nesse sentido, a teoria lefebvriana da sociedade moderna e do cotidiano enquanto modo de vida do moderno deve ser capaz de se defrontar com as mudanças inevitáveis do seu objeto. O lado com o qual essa obra (volume III) se torna bem sucedida é justamente a sua capacidade de participar e de se colocar num debate muito diferente daquele no qual ela se gestou inicialmente. Isso é que faz dessa teoria, no meio de toda a sua complexidade, uma teoria forte. Poderíamos alongar essa discussão sobre o volume III descrevendo detalhadamente tanto a condução dos argumentos do autor contidas no texto, como também as coordenadas do debate em que este texto se insere. Mas basta nessa guisa de conclusão apenas evidenciar que os fundamentos marxistas de uma sociologia da vida cotidiana se justificariam como uma teoria social, apenas na medida em que possam continuar fazendo parte da realidade cultural e dinâmica da sociedade que eles têm como objeto de crítica. Decorridos mais de 20 anos desta última publicação, o olhar mais amplo sobre essa teoria nos evidenciou duas coisas. A primeira foi o esforço do autor nas sucessivas atualizações de seus pressupostos e teses através do confronto com as questões de momentos muito específicos. Isso aponta para um modo de pensamento que não se quer estático, uma teoria que se propõe a falar da realidade se confrontando com os temas e as questões postas em pauta por essa mesma realidade. Desta feita, o que vale salientar não é defasagem ou a atualidade de seus conceitos e categorias, de suas teses e hipóteses, mais importante do que isso, é buscar nesse modo de pensar (dialético) e nos problemas com quais ele se defronta a capacidade de se fazer uma leitura teórica do mundo social. Muitos dos movimentos dialéticos que faziam parte do cotidiano ao tempo que Lefebvre desenvolvia essa teoria já não existem mais, difícil imaginar em pleno começo de séc. XXI que as mulheres ainda condensem a realidade cotidiana quando os papéis sociais que montam a dinâmica da vida familiar foram radicalmente alterados. Mas é igualmente difícil não perceber que toda a nossa cotidianidade está marcada por um conjunto variado de novas ambigüidades e movimentos dialéticos, e que novos mitos do cotidiano ainda povoam as expectativas de nossas consciências mistificadas e fetichizadas. Como também é impossível recusar à tecnicidade o seu papel central dentro da esfera do cotidiano na era dos e-mails, dos telefones celulares, dos fornos de micro-ondas, dos dvds, cds, MP3, Laptops, notebooks, ...etc. Caberia também avaliar a crescente importância das psicoterapias, dos tratamentos alternativos, das novas relgiões (grande parte delas importadas do oriente), os espaços virtuais de interação na internet, os novos produtos de indústria cultural. De outro lado, cabe também avaliar o crescente problema da dependência ás drogas, as novas psicopatologias (novas neuroses e psicoses), o alcoolismo, violência urbana e toda uma série de problemas e temas que estão implicados na cotidianidade. Também encontramos nesta teoria todo um conjunto de sugestões de análise e temas que devem ser levados em conta, temas que vão da sociologia política e da teoria democrática, passando pela arte e literatura até a psicanálise. De tais temas sugeridos, muitos foram desenvolvidos em outras obras da vasta produção do autor, outros foram deixados de lado, por limitação ou por ato de decisão (escolha, julgamento e ação) do próprio autor. Nesse sentido, essa teoria só é capaz de ainda interpretar o mundo quando se coloca nele e diante de seus problemas e debates. Ela nasce de uma questão imediata e dada no contexto de sua elaboração e ela exige esse confronto com o real e com o vivido para ser mobilizada como interpretação válida do mundo social. Campinas, 19 de setembro de 2007 Marcelo S. Masset Lacombe Bibliografia : ADORNO, Theodor W. Prismas: La crítica de la cultura y la sociedad. Barcelona: Ed. Ariel, 1962. __________________. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1985. GOFFMAN, Erving. As Representações do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985. HELLER, Agnes. Cotidiano e História. Rio de Janeiro, Paz e Terra,[1970]. ______________. Sociologia de la Vida cotidiana. 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