Apresentação Nem tudo na sociedade é visível e nem tudo que é visível dá conta do que a sociedade é. Um campo específico da Sociologia, que é a Sociologia da vida cotidiana, desenvolveu orientações e procedimentos, perspectivas teóricas e métodos técnicos para examinar, situar, compreender, interpretar e explicar essa peculiaridade da sociedade como objeto de conhecimento científico. Anomia e alienação, nos primórdios da Sociologia, apareciam como temas residuais e expressões de anomalias sociais, de “defeitos” da estrutura e da dinâmica sociais, fatos patológicos, como a anomia foi definida por Émile Durkheim. Hoje, mais de um século depois do nascimento dessa ciência, já sabemos e já nos convencemos de que o anômalo é “normal”, componente problemático da modernidade. Anomia e alienação são manifestações do obscurecimento da realidade que definem o tempo do homem comum, do homem simples, o homem que perdeu o sentido da História e da historicidade de suas ações e de seu pensamento. O homem que não compreende a manipulação industrial de seus horizontes pelos meios de comunicação e pelo poder, o que o torna mais personagem de uma ficção cotidiana do que senhor de seu próprio destino, mais produto do que pessoa. A cotidianidade se impôs como manifestação do tempo dessa perdição. A busca do tempo perdido, na Sociologia da vida cotidiana, é a busca do tempo perdido da História, do atual como história, do possível que se esconde na falsa temporalidade do tempo das ações sociais reduzido ao agora, ao viver o instante, ao mero sobreviver. É o tempo do dia a dia, de um dia depois do outro, sem passado nem futuro. Mas é, também, a busca e a compreensão do tempo perdido que se oculta 10 UMA SOCIOLOGIA DA VIDA COTIDIANA nas estruturas sociais profundas, as que se manifestam ocasionalmente na violência dos linchamentos, expondo códigos de conduta de épocas remotas, adormecidos no inconsciente coletivo. Ou nas regras não sabidas que regulam a conduta social em face da morte e do morto. A sociedade se organiza em camadas de tempos sociais desencontrados, dominados por um atual anacrônico, isto é, destemporalizado. Há algo de proustiano na Sociologia de Henri Lefebvre, um dos autores que inspiram os ensaios aqui reunidos, uma Sociologia da busca e do desvendamento dos tempos que nos regem e não sabemos, o que foi e continua sendo, o que será e já é. Tensões que pulsam o nosso cotidiano, disfarçadas num agora enganoso. Compreender o fugaz e episódico, e também os disfarces e escamoteações da realidade, ir reiteradamente às suas raízes e determinações para nos compreendermos, tornou-se uma necessidade social, existencial e mesmo política de urgência. É nas sutilezas desse campo de mistérios e ocultações da realidade social que a imaginação sociológica encontra seus grandes desafios teóricos e investigativos. É aí que o sociólogo não pode desconsiderar a relevância do fragmentário e do que se propõe no tempo do mero átimo. Aí estão os segredos mais eficazes da reprodução social e da oculta revolução do que parece esconder-se nas dobras cinzentas do irrelevante e do que aparenta ser mínimo. Aí se situa, como observou Henri Lefebvre, a produção social inovadora, a práxis, que não pode deixar de estar dialeticamente contida no próprio processo de reiteração das relações sociais já existentes, no reprodutivo. A Sociologia da vida cotidiana não deve ser confundida com uma Sociologia minimalista e redutiva dos processos sociais aos componentes fenomênicos da vida social. Ao contrário, ela se propõe a investigar o visível e o aparente das ações e relações sociais cotidianas na mediação das estruturas sociais e dos processos históricos que lhes dão sentido, não raro o sentido do inesperado. O artesanato intelectual do sociólogo é a ferramenta inventiva que constrói em face de cada desafio. Não é um método técnico, mas um conjunto de intuições sociologicamente fundamentadas da regra de criação do método ad-hoc, ajustado ao desafio investigativo e explicativo do objeto ao mesmo tempo, em cada circunstância. O foco e a temporalidade da observação sociológica deslocaram-se para a vida cotidiana, para os processos microssociais, para o que muitos consideram, equivocadamente, o irrelevante. Minha orientação teórica tem sido a de passar ao largo desse desdém e buscar os liames entre as estruturas sociais profundas e datadas, duradouras, ocultas, e suas expressões no cotidiano, ordinário e banal. Esse é, de certo modo, um tema de Claude Lévi-Strauss, em Antropologia estrutural, especialmente no capítulo sobre “História e etnologia”. Porém, na orientação lefebvriana, é preciso reencontrar a historicidade da ação e da práxis nas invisibilidades a que foi relegada e em que se refugiou. A sociedade contemporânea caracteriza-se por uma nova pobreza, a pobreza de esperança APRESENTAÇÃO 11 que advém da redução do tempo da vida social ao agora, ao viver por viver, ao sobreviver. Um reencontro da historicidade social é possível, como é possível a reconciliação da sociedade com a esperança que já teve e já não tem. O artesanato intelectual é o conjunto de técnicas e recursos de que o sociólogo pode se valer para exercitar a imaginação sociológica na busca do elo perdido entre o atual e o sempre. Neste livro, exponho minha concepção do tema e o modo como exercito a observação da realidade nessa perspectiva, nas pesquisas que realizo e nas análises que desenvolvo, na prontidão para o sociologicamente inesperado e surpreendente. O artesanato não se limita à invenção, elaboração e uso de técnicas de coleta e registro de dados, não diz respeito apenas aos chamados métodos técnicos de pesquisa. Abrange a conexão da pesquisa com a teoria, sobretudo com os métodos de explicação. Mas abrange, também, o modo de expor os resultados da investigação científica, o estilo narrativo do pesquisador. O artesanato intelectual tem uma dimensão teórica, define um modo sociológico de ver e uma prontidão permanente para observar a circunstância e os circunstantes, seus bloqueios e sua dinâmica. Abrange os insights preparatórios da pesquisa e da análise. Implica o reconhecimento de uma temporalidade peculiar, que é a da vida cotidiana, seu ritmo próprio na afirmação e na anulação dos momentos do processo social e histórico, o transitório e o transitivo. Há nessa orientação um diálogo com o insólito, o contraditório, o discrepante, o desconstrutivo, o revelador. Mas também com o eventual e o acaso. É o que Henri Lefebvre tratou como funcionalmente metodológico no seu método regressivo-progressivo, no analisador-revelador, a dimensão heurística do método no próprio empírico. No privilegiamento da tríade, no reconhecimento no real não o binário dos dualismos nem a ele limitado, mas o triádico da dialética – reiteração, transformação, criação, enfim produto e obra. Uma recusa das certezas enganosas do convencional, do estruturado, do duradouro. É que o mundo não é mais assim, embora ainda o seja. *** Este livro não é, portanto, um convencional manual de método, mas um conjunto de análises centradas nas questões metodológicas relacionadas com aquilo que C. Wright Mills chamou de artesanato intelectual e de imaginação sociológica. Uma explicitação de procedimentos técnicos em conexão com o método de explicação, o da elaboração teórica. Um modo sociológico de ver, descrever e interpretar desde as simples ocorrências de rua até os fatos e fenômenos sociais relevantes e decisivos. Nele, a vida cotidiana é objeto de descrição interpretativa, na linha da Sociologia de Henri Lefebvre, de Roger Bastide, de Florestan Fernandes, de Robert Nisbet, de Alfred Schutz e de seus herdeiros intelectuais.