Correios SBP - Sociedade Brasileira de Pediatria

Propaganda
EDITORIAL
Prezado(a) colega,
Com a esperança de um ano de 2003, repleto de saúde e realizações em nossas vidas, iniciamos o 9º ano
deste veículo de informação aos pediatras brasileiros.
No primeiro número dos Correios da SBP (jan/fev/mar de 2003) trazemos um Documento Científico do
Departamento de Cardiologia – Parte I – que nos proporciona uma visão bem prática de semiologia em
cardiologia pediátrica e de interpretação do eletrocardiograma, fornecendo noções básicas desta especialidade
para os pediatras. A parte II será publicada no 2º número deste ano e nos dará uma visão das Cardiopatias
Congênitas mais freqüentes nos pacientes pediátricos.
Mantivemos neste número uma diversidade de artigos comentados de interesse aos pediatras em geral, com
artigos sobre: Dor abdominal recorrente na infância; Efeitos da cisaprida em recém-nascidos; Uso de corticosteróides
nasais e crises de asma; Doença de Kawasaki baseada em evidências e Perigos do bebê conforto e dos assentos
infantis para crianças menores de 1 ano.
Espero que os colegas aproveitem este número e reitero os nossos votos de um feliz 2003.
Antonio Carlos Partorino
Editor dos Correios SBP
ÍNDICE
Cardiologia pediátrica: abordagem prática
Parte 1: Fundamentos de semiologia em
cardiologia pediátrica e de interpretação
do eletrocardiograma
Uso de corticosteróides nasais
e necessidades de visita ao pronto
atendimento por crises de asma
Edmundo Clarindo Oliveira, Cleonice de
Carvalho Coelho Mota . . . . . . . . . . . . . . . .
5
Anormalidades orgânicas na dor abdominal
recorrente na infância
Stördal K, Nygaard EA, Bentsen B
Acta Pediatr 2001; 90:638-42 . . . . . . . . . . . .
10
Efeitos da cisaprida no intervalo
QTc em recém-nascidos a termo
Semana DS, Bernardini S, Louf S,
Laurent- Atthalin B, Gouyon JB
Arch Dis Fetal Neonatal 2001; 84:44-6 . . . . . . . .
14
Adams RJ, Fuhlbrigge AL, Finkelstein JA, Weiss ST
J Allergy Clin Immunol 2002; 109:636-42. . . . . . . .
16
Doença de Kawasaki: avaliação diagnóstica,
tratamento e propostas para pesquisas futuras
baseadas em evidências
Brogan PA, Bose A, Burger D, Shingadia D,
Tulloh R, Michie C et al
Arch Dis Child 2002; 86: 286-90. . . . . . . . . .
19
Traumatismo craniano em menores de um ano:
os perigos do bebê conforto e dos assentos
infantis para carro.
Wickham T, Abrahamson E
Arch Dis Child 2002;86: 168-9. . . . . . . . .
22
CORREIOS DA SBP - Diretor de publicações: Dr. Renato Soibelmann Procianoy - Coordenador do PRONAP: Dr. João Coriolano Rego Barros - Coordenador dos
Correios: Dr. Antonio Carlos Pastorino - Coordenador Documentação Científica: Dr. Paulo de Jesus Hartmann Nader - Comitê Executivo: Dr. Claudio Leone,
Dr. Clóvis Artur Almeida da Silva, Dra. Heloisa Helena de Souza Marques, Dra. Lúcia Ferro Bricks, Dra. Marta Miranda Leal, Dr. Mário Cícero Falcão, Dra. Luiza Helena
Falleiros R. Carvalho, Dra. Valdenise Martins Laurindo Tuma Calil - PRONAP / SBP – Programa Nacional de Educação Continuada em Pediatria – Rua Augusta,
1939 - 5º andar - sala 53 – Cerqueira César – São Paulo – SP – CEP: 01413-000 – Fone: (11) 3068-8595 – Fax: (11) 3081-6892 – E-mail: [email protected]
Colaboraram neste número: Dr. Edmundo Clarindo Oliveira, Dra. Cleonice de Carvalho Coelho Mota, Dr. Mauro Batista de Morais, Dra. Vera Lucia Sdepanian, Dr. Ulysses
Fagundes-Neto, Dra. Ana Paula Beltran M. Castro, Dr. Antonio Carlos Pastorino, Dr. Clovis Artur Almeida da Silva, Dra. Renata Dejtiar Waksman. Revisores deste número:
Dr. Antonio Carlos Pastorino, Dra. Marta Miranda Leal. As opiniões expressas são da responsabilidade exclusiva dos autores e comentadores, não refletindo
obrigatoriamente a posição da Sociedade Brasileira de Pediatria. Tire suas dúvidas, faça suas críticas e sugestões aos editores sobre os artigos aqui publicados, pelo
e-mail: [email protected] Criação, Diagramação e Produção Gráfica:
Atha Comunicação & Editora – Rua Machado Bittencourt, 190 - 4o andar Conj.
410 – Cep: 04044-000 – São Paulo – SP – Tel: (11) 5087-9502 - Fax: (11) 5579-5308 – E-mail: [email protected].
Ano 9 - Jan/Fev/Março/2003
3
DIRETORIA 2001/2003
PRESIDENTE:
Lincoln Marcelo Silveira Freire
10 VICE-PRESIDENTE:
Dioclécio Campos Júnior
20 VICE-PRESIDENTE:
João Cândido de Souza Borges
SECRETÁRIO GERAL:
Eduardo da Silva Vaz
10 SECRETÁRIO:
Vera Lúcia Queiroz Bomfim Pereira
20 SECRETÁRIO:
Marisa Bicalho P. Rodrigues
30 SECRETÁRIO:
Fernando Filizzola de Mattos
1O DIRETOR FINANCEIRO:
Carlindo de Souza Machado e Silva Filho
2O DIRETOR FINANCEIRO:
Ana Maria Seguro Meyge
DIRETORIA DE PATRIMÔNIO:
Mário José Ventura Marques
COORDENADOR DO SELO:
Claudio Leone
COORDENADOR DE INFORMÁTICA:
Eduardo Carlos Tavares
CONSELHO ACADÊMICO:
PRESIDENTE:
Reinaldo Menezes Martins
SECRETÁRIO:
Nelson Grisard
CONSELHO FISCAL:
Raimunda Nazaré Monteiro Lustosa
Sara Lopes Valentim
Nilzete Liberato Bresolin
ASSESSORIAS DA PRESIDÊNCIA:
Pedro Celiny Ramos Garcia
Fernando Antônio Santos Werneck
Claudio Leone
Luciana Rodrigues Silva
Nelson de Carvalho Assis Barros
Reinaldo Menezes Martins
DIRETORIA DE QUALIFICAÇÃO
RESIDÊNCIA E ESTÁGIO - PROGRAMAS:
E CERTIFICAÇÃO PROFISSIONAL:
COORDENADOR:
Clóvis Francisco Constantino
COORDENADOR DO CEXTEP:
Hélcio Villaça Simões
COORDENADOR DA ÁREA DE ATUAÇÃO:
José Hugo Lins Pessoa
COORDENADOR DA RECERTIFICAÇÃO:
José Martins Filho
DIRETOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
Fernando José de Nóbrega
COORDENADORES:
MERCOSUL:
Remaclo Fischer Júnior
AAP:
Conceição Aparecida de M. Segre
IPA:
Sérgio Augusto Cabral
DIRETOR DOS DEPARTAMENTOS CIENTÍFICOS:
Nelson Augusto Rosário Filho
DIRETORIA DE CURSOS E EVENTOS:
Dirceu Solé
COORDENADOR DA REANIMAÇÃO NEONATAL:
José Orleans da Costa
COORDENADOR DA REANIMAÇÃO PEDIÁTRICA:
Paulo Roberto Antonacci Carvalho
COORDENADOR DOS SERÕES:
Edmar de Azambuja Salles
CENTRO DE TREINAMENTO EM SERVIÇOS:
COORDENADOR:
Mário Cícero Falcão
COORDENADOR DOS CONGRESSOS E EVENTOS:
Álvaro Machado Neto
COORDENADOR DO CIRAPS:
Maria Odete Esteves Hilário
DIRETORIA DE ENSINO E PESQUISA:
Lícia Maria Oliveira Moreira
COORDENADORA DA GRADUAÇÃO:
Rosana Fiorini Puccini
RESIDÊNCIA E ESTÁGIO-CREDENCIAMENTO:
COORDENADORA:
Cleide Enoir P. Trindade
4
Ano 9 - Jan/Fev/Março/2003
Aloísio Prado Marra
COORDENADOR DA PÓS - GRADUAÇÃO:
Francisco José Penna
COORDENADOR DA PESQUISA:
Marco Antônio Barbieri
DIRETORIA DE PUBLICAÇÕES DA SBP:
DIRETOR DE PUBLICAÇÕES:
Renato Soibelmann Procianoy
DIRETOR DO JORNAL DE PEDIATRIA:
Renato Soibelmann Procianoy
COORDENADOR DO PRONAP:
João Coriolano Rego Barros
COORDENADOR DOS CORREIOS DA SBP:
Antonio Carlos Pastorino
DOCUMENTOS CIENTÍFICOS:
COORDENADOR:
Paulo de Jesus H. Nader
CENTRO DE INFORMAÇÕES CIENTÍFICAS:
COORDENADOR:
Ércio Amaro de Oliveira Filho
DIRETORIA DE BENEFÍCIOS E PREVIDÊNCIA:
Guilherme Mariz Maia
DIRETOR DE DEFESA PROFISSIONAL:
Mário Lavorato da Rocha
DIRETORIA DA PROMOÇÃO SOCIAL DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE:
João de Melo Régis Filho
PROMOÇÃO DE CAMPANHAS:
COORDENADORA:
Rachel Niskier Sanchez
DEFESA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE:
COORDENADORA:
Célia Maria Stolze Silvany
COMISSÃO DE SINDICÂNCIA:
COORDENADORES:
Euze Márcio Souza Carvalho
José Gonçalves Sobrinho
Rossiclei de Souza Pinheiro
Antônio Rubens Alvarenga
Mariângela de Medeiros Barbosa
DEPARTAMENTO DE CARDIOLOGIA
DOCUMENTO CIENTÍFICO
Cardiologia pediátrica: abordagem prática
Parte 1: Fundamentos de semiologia em cardiologia
pediátrica e de interpretação do eletrocardiograma
Edmundo Clarindo Oliveira*
Cleonice de Carvalho Coelho Mota**
ABREVIATURAS
AD
AE
B2
BE
BED
BEE
CCC
CIV
DC
D-E
ECG
EP
FC
IC
PA
PAP
PE
Rx
SAD
SAE
SBV
SVD
SVE
TGVB
VD
VE
2. SEMIOLOGIA
Átrio direito
Átrio esquerdo
2a bulha
Braço esquerdo
Borda esternal direita
Borda esternal esquerda
Cardiopatia congênita cianótica
Comunicação interventricular
Débito cardíaco
Direito-esquerdo
Eletrocardiograma
Estenose pulmonar
Frequência cardíaca
Insuficiência cardíaca
Pressão arterial
Pressão de artéria pulmonar
Perna esquerda
Radiografia
Sobrecarga de átrio direito
Sobrecarga de átrio esquerdo
Sobrecarga bi-ventricular
Sobrecarga de ventrículo direito
Sobrecarga de ventrículo esquerdo
Transposição dos grandes vasos da base
Ventrículo direito
Ventrículo esquerdo
1. INTRODUÇÃO
O objetivo primordial desse documento, apresentado
em dois módulos, é a abordagem das principais cardiopatias que ocorrem na infância, de forma prática e simplificada, e voltada ao Pediatra, isto é, dispensando um prévio conhecimento profundo de cardiologia.
No primeiro módulo são apresentados fundamentos
de semiologia em Cardiologia Pediátrica e de interpretação do eletrocardiograma. No próximo exemplar estaremos publicando uma sinopse das cardiopatias congênitas cianóticas, divididas de acordo com a condição fisiopatológica determinante de cada uma.
A história clínica é importante para a formulação diagnóstica e, às vezes, pequenos detalhes são decisivos para
um diagnóstico correto. Devemos começar a história caracterizando quem informa os dados, determinando o grau
de convivência e de parentesco com a criança. (Algumas
vezes a babá informa melhor do que a mãe).
2.1. Sinais e sintomas:
Þ Insuficiência Cardíaca:
• cansaço durante mamadas ou durante outros
esforços, associado ou não à sudorese;
• dificuldade em ganhar peso;
• infeções pulmonares de repetição;
• edema pulmonar, sistêmico até anasarca
podem ocorrer em casos mais graves.
Þ Cianose:
• quando central e bem evidente indica que a
saturação sistêmica está abaixo de 80%.
Þ Dor torácica:
• a origem cardíaca representa 5% dos casos;
• quando associada a esforço físico, síncope e
cansaço deve ser investigada a etiologia cardíaca;
• quando a dor for localizada em um ponto
específico, sem relação com esforço e de duração
prolongada (acima de 30 minutos), provavelmente
é de origem extracardíaca.
Þ Palpitações
Þ Sopro: um dos principais motivos da consulta
cardiológica.
• sopro diastólico com frêmito, ou com sinais de
crescimento da área cardíaca é patológico;
• sopros suaves, sem frêmito com pouca
irradiação e sem sinais de aumento cardíaco
são geralmente inocentes. No Quadro 1 estão descritas algumas características dos sopros inocentes.
OBS: A época e a maneira do início dos sintomas é
importante para o diagnóstico:
• o início súbito de sintomas sugere fechamento
Ano 9 - Jan/Fev/Março/2003
5
Quadro 1: Características dos sopros inocentes
Sopro sistólico pulmonar
Localização
Irradiação
Timbre
Duração
Modificações
2° EIE
Geralmente
Rude
Curto
Aumenta com exercício e febre; diminui ou desaparece
sem irradiação
Sopro de Still
com inspiração profunda
Borda esternal
Às vezes irradia
Musical
Curto
esquerda (BEE)
para o ápice
vibratório
Aumenta com febre e exercício; diminui ou desaparece
com o ortostatismo, com a extensão do pescoço
inferior
e projeção do tórax para frente
Sopro venoso cervical
Área
Fúrcula e região
(hum venoso)
supraclavicular
cervical
Suave
Contínuo
Aumenta com a rotação do pescoço para o lado oposto
e com a posição sentada. Diminui com o decúbito,
e cervical
com a rotação do pescoço para o mesmo lado
e com a compressão da veia jugular
Sopro arterial
Área
supraclavicular
supraclavicular
Região cervical
Rude
agudo do canal arterial em doenças ducto-dependentes e arritmia;
• sintomas de insuficiência cardíaca (IC) iniciados
após a primeira semana de vida e com piora progressiva sugerem lesão de shunt E-D. Os sintomas iniciam
quando cai a resistência pulmonar e conseqüentemente diminui a pressão pulmonar;
• sintomas iniciados após um processo infeccioso devem sugerir a possibilidade de doenças inflamatórias
como pericardite e miocardite.
2.2. Exame físico:
Devemos avaliar o tamanho do coração, o débito cardíaco (DC), cianose, pressão arterial (PA), pressão pulmonar (PAP), importância dos sopros e sua etiologia.
Þ Tamanho do coração
Como o ventrículo direito (VD) é anterior e o ventrículo
esquerdo(VE) é posterior:
• ictus desviado para dentro, associado com
impulsões sistólicas em borda esternal, indica
aumento de VD;
• ictus desviado para esquerda e para a região
lateral do tórax indica aumento de VE.
Þ Débito cardíaco (DC)
Sinais de DC adequado:
• Criança tranqüila, com interesse por brinquedos,
dormindo relaxada, mamando em um seio
(segurando carinhosamente o outro).
• Pulso pedioso e da artéria temporal superficial
amplos, associados à temperatura dos artelhos
maior que do joelho e testa.
Sinais de DC inadequado:
• Apatia, irritabilidade ou sonolência, desinteresse
por brinquedos associado a pulso pedioso fraco e
6
Ano 9 - Jan/Fev/Março/2003
Curto
Diminui com hiperextensão dos
ombros e elevação do braço ipsilateral
temperatura dos artelhos menor que joelho e testa,
podendo apresentar extremidades frias com
hipertermia central Þ baixo débito cardíaco ( ß DC).
Nota: baixo DC indica emergência no tratamento.
Þ Pressão arterial: deve ser medida com o maior
manguito possível de modo a sobrar espaço para colocar
o estetoscópio na região cubital. Em nossa experiência a
principal causa de falsa hipertensão arterial é o uso de
manguito pequeno.
Þ Pressão pulmonar: o sinal mais importante é o aumento da intensidade da 2a bulha audível no segundo
espaço intercostal esquerdo.
Þ Sopros:
Devemos caracterizá-los em:
• Sistólico:
à sistólico irradiando da base do tórax para as carótidas, seguindo o fluxo da aorta Þ estenose aortica;
à sistólico irradiando para ambos hemitóraxes, associado a aumento de VD Þ estenose pulmonar;
à sistólico longo audível no ápice cardíaco, irradiando para a axila esquerda Þ insuficiência mitral;
à sistólico longo, audível na borda esternal esquerda
(BEE) baixa, que aumenta com a inspiração Þ insuficiência tricúspide;
à sistólico longo, em BEE média e baixa, com irradiação para BED Þ CIV.
• Diastólico:
à diastólico iniciado logo depois da B2 e associado a
pulsos de amplitude aumentada Þ insuficiência aórtica;
à diastólico com início após B2 e sinais de aumento
de VD, sem alteração do pulso Þ insuficiência pulmonar;
à mesodiastólico no ápice Þ estenose ou hiperfluxo mitral;
à mesodiastólico em BEE baixa, com aumento na
inspiração Þ estenose ou hiperfluxo tricúspide.
• Contínuo:
à contínuo em BEE alta, associado com pulsos
amplos Þ PCA;
à contínuo em BED alta, com aumento na inspiração,
e que desaparece quando se comprime a região lateral
do pescoço, comprimindo a jugular Þ sopro inocente chamado de “hum venoso”.
E
à
à
à
devemos classificá-los de 1 a 6:
grau 4 a 6: quando associado a frêmito;
grau 2 e 3: evidente e sem frêmito;
grau 1: sopro discreto, difícil de auscultar.
3 . ELETROCARDIOGRAMA (ECG)
O que o pediatra precisa saber?
A interpretação do ECG tem sido considerada difícil
para a maioria dos pediatras e um privilégio dos cardiologistas. Entretanto, o que se precisa realmente saber, e que resolverá mais de 90% da elaboração diagnóstica, é simples e acessível a todos.
Se, em qualquer momento, você achar alguma
coisa difícil, perdoe-nos, a culpa é nossa por não
termos explicado bem. Se, por outro lado, você achar
muito fácil e sentir vontade de ter alguns ECGs para
interpretá-los, alcançamos o objetivo.
O pediatra deve ser capaz de identificar o ritmo,
calcular freqüência e eixo cardíaco e diagnosticar sobrecargas ventriculares e atriais.
• bradicardia sinusal: quando a FC está abaixo
de 60 bpm.
Você está familiarizado com as derivações cardíacas? Se você estiver parabéns, do contrário espere
um pouco que faremos uma breve revisão quando
falarmos do eixo cardíaco.
Onda “p” positiva em DI e aVF Þ ritmo sinusal (RS)
3.2. Cálculo da freqüência cardíaca (FC)
Inicialmente vamos ajudar um engenheiro a fazer um
cálculo. Ele está construindo uma estrada de 1500 km e
deseja colocar postes de 15 em 15km. Ele quer saber
quantos postes precisa comprar. Basta dividir 1.500 por
15 e a resposta é 100 postes.
Se você achou isso muito fácil, você já aprendeu calcular a FC. Vamos ver? O papel do ECG é milimetrado e
dividido em quadrinhos de 1mm de lado e, comumente,
a velocidade do papel é 25mm/s que, em 1 minuto, é
igual a 1.500mm (já encontramos o 1.500). Cada batida
cardíaca gera um complexo.
Se medirmos a diferença entre as duas batidas (o
mesmo que o intervalo entre os postes no exemplo do
cálculo do engenheiro), saberemos quantos milímetros
separa uma batida da outra, ou seja:
1.500 / intervalo das batidas = FC
Exemplo: em um intervalo de batidas de 20mm teremos uma FC de 75 bpm.
3.1. Ritmo
O ritmo nasce no nó sinusal, viaja pelos feixes internodais criando uma onda de despolarização atrial chamada onda P. Essa onda deve ser positiva em DI e aVF
para que o ritmo seja chamado de ritmo sinusal.
3.3. Eixo cardíaco
Por definição:
• taquicardia sinusal: quando a frequência cardíaca
(FC) está acima de 100bpm.
Agora vamos conversar um pouco sobre eixo cardíaco.
Os eletrodos são colocados nos braços e pernas e com
isso sabemos se o vetor cardíaco está apontando para
Ano 9 - Jan/Fev/Março/2003
7
baixo, para cima, para direita e esquerda. Desse modo
podemos combiná-los e localizá-los de acordo com o
quadrante em que se encontram.
• DI: derivação na qual o eletrodo explorador é colocado no braço esquerdo (BE). Se o complexo é positivo significa que o vetor está apontando para o BE, ou seja, para
a esquerda. Negativo em DI aponta para a direita.
• aVF: derivação com o eletrodo explorador na perna
esquerda (PE). Positivo aponta para o pé, ou seja, para
baixo; o contrário para cima.
• DI e aVF positivos: vetor para esquerda e para baixo, que é a posição normal do coração.
localizá-lo no plano horizontal. Basta estudá-lo em
V1 (derivação com o eletrodo colocado na borda esternal direita, ou seja, anterior). Se for positivo em
V1, o vetor está para frente e o contrário, para traz.
Em V6, o eletrodo é colocado na axila esquerda, e é
posterior.
3.4. Diagnóstico de sobrecargas ventriculares e atriais
• Sobrecarga atrial:
à o átrio esquerdo é horizontalizado e seu crescimento prolonga a duração da onda P, sobrecarga de átrio
esquerdo (SAE) Þ onda P de duração > 2,5mm;
à AD é vertical e seu aumento amplia a onda P, sobrecarga de átrio direito (SAD): Þ onda P de amplitude
> 2,5mm.
• DI positivo aVF negativos: vetor para a esquerda
e para cima ou seja desvio para a esquerda.
Se você tem dificuldade para guardar essa diferença,
pense numa pessoa direita, digna, que pode andar de
cabeça erguida, ou seja, na sobrecarga de AD a onda “p”
é verticalizada.
• Sobrecarga Ventricular:
Agora para aumentar a sua compreensão do ECG, vamos conversar um pouco sobre SVD e SVE, passo fundamental para ajuda diagnóstica em muitas cardiopatias.
• DI negativo e aVF positivo: eixo para direita e para
baixo (desvio para a direita).
• DI e aVF negativos: eixo para direita e para cima
(desvio para direita máximo).
Inicialmente vamos lembrar um pouco as mudanças na circulação pulmonar após nascimento. No útero a pressão VD é um pouco maior que a do VE em
decorrência do pulmão não expandido e da aorta fetal estar conectada à placenta, estrutura esta de resistência baixa. Após o nascimento com a retirada
da placenta e expansão pulmonar, inicia-se a queda
da pressão em VD e aumento de VE. Entretanto isso
acontece de forma gradual, de modo que para o diagnóstico de sobrecarga dos ventrículos devemos
saber a idade da criança.
Estávamos esquecendo de rever algumas definições:
§ Onda P: despolarização atrial
§ Onda q: toda primeira onda negativa do complexo
§ Onda R: qualquer onda positiva do complexo
Concluindo, com estas duas derivações podemos
localizar o eixo no plano frontal. E mais fácil ainda,
8
Ano 9 - Jan/Fev/Março/2003
§ Onda S: toda onda negativa que não seja a primeira
§ Onda T: de repolarização ventricular (não pode
ter menos que 3mm de amplitude e nem ser negativa em DI, aVL e V6).
EXEMPLO 02:
* Dr. Edmundo Clarindo Oliveira
Presidente do Departamento de Cardiologia da SBP, Chefe do serviço de Cardiologia Pediátrica do Centro Geral de Pediatria/FHEMG, Chefe do serviço de Cardiologia Hospital Vera Cruz (Belo Horizonte - MG), Cardiologista da Faculdade de
Medicina da UFMG.
** Dra. Cleonice de Carvalho Coelho Mota
Secretária do Departamento de Cardiologia da SBP, Prof a Adjunta da Faculdade
de Medicina da UFMG.
Referências Bibliográficas
Vamos enfim descrever os critérios para SVD, SVE e
SBV (sobrecarga biventricular):
à SVD : Onda R > 15mm no primeiro ano de vida e
maior que 10mm após essa idade analisada em V1.
Gayler GC, Ongley P, Nadas AS. Relation of systolic pressure in the right ventricle to the electrocardiogram.
N Engl J Med 1958; 258:979-82.
à SVD: Um dos sinais mais precoces é onda R>S
associada à onda T positiva em V1 após 72 horas de vida.
Katz LN, Wachtel H. The diphasic QRS type of electrocardiogram in congenital heart disease . Am Heart J 1937;
13:202-6.
à SVE: Onda S de V1 + R de V6 maior que 45mm
com onda R em DI e R em V6 maior que 13mm associada à onda T achatada.
Keith JD. Congestive Heart Disease. IN: Keith JD, Rowe
RD, Vlads P, cols. Heart disease in infancy and chidhood.
3rd ed. New York, Mac Millan, 1975.
à SBV: Evidencias de forças acentuadas dos dois ventrículos que mostraremos nos exemplos.
Liebmarn J, Plonsey R. Electrocardiography. In: Moss AJ,
Adams FH, Emmanovilides CG, cols : Heart disease in
infants, children and adolescents. Baltimore: Willians &
Wilkins, 1977; pp 20-23.
EXEMPLO 01:
Nadas AS, Fyler DC. History, physical examination, routine tests. Pediatric cardiology, 3rd ed. Phyladelphia, WB
Saunders, 1972.
Rudolph AM. In: Congenital disease of the heart: Clinical
physiological consideration. New York, Futura Publishing
Company, 2001.
Van Bergen FH. Comparison of indirect and direct methods of measuring arterial blood pressure. Circulation 1954:
10: 48.
Wasserburgen RH. The normal and abnormal unipolar electrocardiogram in infants and children. Baltimore: Williams & Wilkins, 1963; pp 64-100.
Ano 9 - Jan/Fev/Março/2003
9
GASTROENTEROLOGIA
Anormalidades orgânicas na dor abdominal
recorrente na infância.
Organic abnormalities in recurrent abdominal
pain in children
Stördal K, Nygaard EA, Bentsen B
Acta Pediatr 2001; 90:638-42
INTRODUÇÃO
O objetivo do estudo foi pesquisar a freqüência
de anormalidades orgânicas em crianças com dor
abdominal recorrente, utilizando novos métodos diagnósticos em gastroenterologia pediátrica (pHmetria esofágica, teste do hidrogênio no ar expirado,
endoscopia digestiva alta, sorologia para pesquisa
de doença celíaca e infecção pelo Helicobacter pylori e endoscopia digestiva alta).
Foram incluídos no estudo 44 pacientes (idade entre
dois e quinze anos, mediana de oito anos, 26 do sexo
feminino e 16 masculinos) consecutivamente atendidos
no Departamento de Pediatria de um Hospital Distrital
da Noruega, com quadro de dor abdominal recorrente,
caracterizada pela ocorrência de pelo menos três episódios de dor abdominal, com intensidade suficiente
para interferir nas atividades habituais do paciente, sendo a duração da queixa superior a três meses.
RESULTADOS
A duração média dos episódios dolorosos foi igual a
154 ± 222 minutos, a localização predominantemente periumbilical (n=17; 39%) ou epigástrica (n=19; 43%). Nenhum paciente apresentava dor em queimação, mas sim
do tipo cólica ou contínua. Vômitos e/ou regurgitação foram queixas associadas em 18 (41%) pacientes. O exame físico revelou a presença de massa fecal palpável no
quadrante inferior esquerdo do abdome em quatro pacientes. Os exames laboratoriais incluindo hemograma, eletrólitos, provas de atividade inflamatória e função hepática não mostraram anormalidades dignas de nota.
Das 44 crianças, 34 completaram o teste do hidrogênio no ar expirado após ingestão de 1g/kg de peso
10
Ano 9 - Jan/Fev/Março/2003
de lactose. Dez pacientes não realizaram o teste por se
recusarem a ingerir toda a lactose oferecida durante
o teste, sendo que 3/34 (9%) apresentaram aumento
na excreção de hidrogênio no ar expirado e sintomatologia de intolerância durante o teste. Conclusão sobre
a relação entre a má absorção e intolerância à lactose
com a dor não pode ser estabelecida porque estes três
pacientes além de terem excluído a lactose da dieta
realizaram tratamento para doença do refluxo gastroesofágico ou para gastrite nodular do antro.
Na pHmetria esofágica, o parâmetro utilizado para a
caracterização da doença do refluxo gastroesofágico foi o
índice de refluxo (percentagem do tempo com pH no esôfago distal menor do que 4,0 em relação à duração total
do exame). Índice de refluxo superior a cinco por cento foi
observado em nove (vinte e oito por cento) dos 36 pacientes que realizaram o exame.
Dos 44 pacientes, oito não realizaram a pHmetria
porque apresentaram desaparecimento da dor abdominal enquanto aguardavam agendamento deste procedimento. Dos nove pacientes com refluxo, cinco
apresentaram completo desaparecimento da dor e
dois melhora parcial durante a realização do tratamento do refluxo.
Endoscopia digestiva alta foi realizada em seis
pacientes: um apresentou gastrite antral e cinco esofagite. “Esofagite foi encontrada em dois pacientes com
refluxo e em três com pHmetria normal. Portanto,
esofagite e/ou doença do refluxo gastroesofágico foi
o diagnóstico primário em doze crianças.”
A sorologia para H. pylori foi positiva em três
pacientes. Os três foram submetidos a endoscopia
e em um foi caracterizada gastrite nodular do antro
gástrico com cultura positiva para a bactéria (paciente mencionado no parágrafo anterior).
Os autores estabeleceram os seguintes diagnósticos
nos 44 pacientes: 55% sem achados orgânicos, 16%
constipação, 22% refluxo gastroesofágico ou esofagite,
2% gastrite nodular de antro e intolerância a lactose, 5%
refluxo gastroesofágico e intolerância a lactose.
Posteriormente, foi proposta outra classificação de
dor abdominal recorrente, redistribuindo as crianças com
esta queixa em três categorias:
¨ Orgânica (aproximadamente 5% dos casos);
¨ Psicogênica (10% dos casos) e
¨ Disfuncional (85% dos casos).
DISCUSSÃO
Na Discussão, os autores ressaltam que a alta freqüência de causas orgânicas para a dor abdominal crônica
recorrente, poderia ter sido devida ao fato do grupo estudado ter sido referenciado aos especialistas por sua maior
gravidade, uma vez que o grupo estudado, correspondia
a cerca de um por cento dos prováveis casos de dor
abdominal recorrente na área de cobertura do hospital onde
foi realizado o estudo.
No entanto, os autores insistem que este fator de
tendenciosidade não justificaria plenamente os achados
indicativos de alta freqüência de causas orgânicas em
pacientes com dor abdominal recorrente.
Procuram transmitir uma mensagem sobre a importância dos novos métodos diagnósticos em gastroenterologia pediátrica na abordagem do paciente com dor abdominal recorrente, mas reconhecem que a gênese desta
entidade envolve a interação de múltiplos fatores.
COMENTÁRIOS
A dor abdominal crônica recorrente constitui um dos
motivos mais freqüentes de consulta pediátrica e em
gastroenterologia pediátrica na faixa etária correspondente aos escolares.
A dor abdominal recorrente de natureza psicogênica, em geral, ocorre em adolescentes maiores de doze
anos e constitui uma reação de conversão inconsciente,
conseqüente a um conflito psicológico associado a fator
precipitante familiar.
A dor abdominal disfuncional, por sua vez, parece resultar de quatro fatores que interagem com intensidade variável, mas, estão presentes na maioria dos pacientes:
1. Distúrbio funcional constitucional da motilidade intestinal;
2. Estilo de vida e hábitos;
3. Fatores ambientais atuando como fontes de tensão e
estresse;
4. Temperamento associado a habilidade de resposta ao
estresse, a tensão e ao limiar de percepção dolorosa. A
participação de fatores biológicos e psico-sociais fundamenta modelos biopsicosociais para explicar a dor abdominal crônica recorrente disfuncional.
Recentemente, no que ficou conhecido como critério de
Roma, formulou-se a proposta de classificar a dor abdominal crônica recorrente disfuncional em três subgrupos:
Praticamente, todos os livros e artigos sobre dor abdominal crônica recorrente na criança, mencionam o clássico
artigo de John Apley & Nora Naish, publicado em 1958, que
define dor abdominal recorrente como a ocorrência de pelo
menos três episódios de dor, com intensidade suficiente
para interferir nas atividades habituais do paciente, com
duração da queixa superior a três meses.
¨ Dor abdominal recorrente disfuncional propriamente dita;
Pelo menos três episódios de dor devem ter ocorrido nos últimos doze meses. A partir desta observação,
foi proposta a classificação da dor abdominal recorrente em duas categorias: não-orgânica ou “psicogênica”
incluindo cerca de 95% dos pacientes e os demais 5%
como a dor sendo secundária a causas orgânicas.
Dispepsia foi definida como a presença de dor
abdominal ou desconforto na região epigástrica, na
ausência de outras anormalidades, inclusive na endoscopia digestiva alta, subdividindo-as em: dispepsia úlcera-símile, na qual a dor epigástrica é em queimação, e dispepsia por dismotilidade, que se mani-
¨ Dor abdominal recorrente associada com dispepsia funcional e
¨ Dor abdominal crônica recorrente com hábito intestinal
anormal (síndrome do intestino irritável).
Ano 9 - Jan/Fev/Março/2003
11
festa por saciedade precoce, empachamento gástrico e náuseas. Na prática, nem sempre é possível
catalogar o paciente em cada uma destas categorias, podendo encontrar-se, também, pacientes com
sintomatologia compatível com mais de uma destas
subdivisões. Um grupo de trabalho, participante do
Congresso Mundial de Gastroenterologia Pediátrica,
realizado em 2000 ressaltou que os critérios diagnósticos para síndrome do intestino irritável e dispepsia funcional devem ser motivo de validação na
população pediátrica.
Em função de que estas classificações recentes
ainda não foram divulgadas e testadas de maneira a
serem consagradas, na prática, muitos diagnosticam
dor abdominal recorrente disfuncional sem as subdivisões mencionadas acima.
No artigo aqui abordado, a coleta dos dados foi
realizada entre 1997 e 1998, portanto, antes destas
publicações (5,6). Os autores selecionaram a casuística de acordo com o critério de Apley & Naish (1958).
Entretanto, utilizaram investigação diagnóstica que
consideramos excessiva, por incluir na primeira abordagem eletrólitos, enzimas hepáticas, IgE total, sorologia para doença celíaca e H.pylori, teste respiratório com a lactose e pHmetria esofágica. A endoscopia digestiva alta também parece ter sido indicada em excesso neste grupo de pacientes.
Em nossa opinião, conforme a conduta que tradicionalmente adotamos, indicamos para um paciente
com dor abdominal crônica recorrente, inicialmente,
os seguintes exames: hemograma com velocidade
de hemossedimentação, análise de urina e cultura,
parasitológico de fezes e radiografia simples de abdome. Ultrassonografia de abdome também pode ser
realizada(4). Após a avaliação inicial, oferecemos atenção ao paciente e à família, contemplando todas as
facetas biopsicossocias que podem estar presentes
na vida de cada paciente. Com este procedimento
constata-se que uma parcela considerável dos pacientes apresenta desaparecimento ou atenuação da
sintomatologia sem o uso de qualquer medicação.
Este aspecto, do ponto de vista científico, dificulta o estabelecimento de relação causa-efeito entre
uma determinada conduta e a recuperação do paciente (por exemplo, mudanças na dieta, prescrição
de antiácido por duas semanas, entre outras). Assim, no artigo norueguês, pode ser questionada a
relação de causalidade entre os diagnósticos orgânicos estabelecidos e a dor.
12
Ano 9 - Jan/Fev/Março/2003
Os próprios autores ressaltam a impossibilidade,
na sua casuística, de responsabilizar a deficiência
ontogenética de lactase como causa de dor abdominal recorrente, uma vez que, seus pacientes apresentavam, também, refluxo gastroesofágico, tendo
recebido tratamento para as duas condições. No estudo norueguês, foi observado 7% de má absorção
(teste do hidrogênio no ar expirado) e intolerância
(sintomas durante o teste) à lactose. O que esperar
aqui no Brasil, onde a deficiência ontogenética de
lactase apresenta maior prevalência. Outro dado não
compatível com nossa experiência foi a ocorrência
de intolerância em todos os pacientes com má absorção de lactose, segundo o teste do hidrogênio no
ar expirado. Em geral, sintomatologia de intolerância no teste ocorre apenas em uma parcela dos casos (cerca de 10%) com má absorção ontogenética
a lactose.
Outra surpresa no estudo de Stördal e col. foi o
diagnóstico de doença de refluxo gastroesofágico e/
ou esofagite em 10 (22%) dos 44 pacientes estudados. Ressalta-se que nenhum apresentava dor em
queimação ou retroesternal. Todos apresentaram
melhora com o tratamento, sem recidivas.
O percentual de refluxo segundo a pHmetria esofágica prolongada em crianças com dor abdominal
recorrente foi maior do que em pacientes com manifestações clínicas compatíveis com refluxo gastroesofágico (vômitos, regurgitações, asma brônquica,
fibrose cística). De acordo, com os exames realizados em nossa Disciplina, pHmetria anormal foi caracterizada em 23% dos pacientes com queixas específicas de doença do refluxo gastroesofágico, valor semelhante ao encontrado no artigo em questão
em pacientes com dor abdominal crônica recorrente, que não é considerada um manifestação de doença do refluxo gastroesofágico.
Outro aspecto refere-se à caracterização de infecção pelo H. pylori por sorologia, que foi motivo de
indicação de endoscopia digestiva alta. Não existem
estudos que mostrem associação epidemiológica
entre dor abdominal crônica recorrente e infecção com
H. pylori. Neste estudo norueguês três pacientes
apresentaram sorologia positiva para H. pylori (6,8%)
sendo que na endoscopia de um deles se encontrou
gastrite nodular de antro. No Brasil, a infecção pelo
H. pylori atinge cerca de 30% da população pediátrica. Provavelmente, metade destas crianças apresenta
nodularidade no antro gástrico. Como conduzir estes pacientes? Erradicar o H. pylori provavelmente
não relacionado com a sintomatologia passa a constituir uma alternativa muitas vezes não evitável.
O mesmo pode ocorrer se a endoscopia for indicada em todas crianças com dor abdominal recorrente. Provavelmente, um em cada cinco apresentará nodularidade de antro gástrico associada à infecção pelo H. pylori, especialmente quando for baixo o
nível sócio-econômico do paciente. Não deve ser
esquecido que a infecção pelo H. pylori, até onde vai
nosso conhecimento, não predispõem nem protege
a criança de apresentar dor abdominal recorrente
disfuncional, que depende da interação de outros
fatores.
Ao que tudo indica, o amplo protocolo diagnóstico adotado pelos autores, conduziram ao estabelecimento de inúmeros diagnósticos não obrigatoriamente relacionados à dor abdominal recorrente. Este
aspecto, parece ter tido maior relevância em sua
casuística no que se refere ao refluxo gastro-esofágico ou as crianças norueguesas, apresentam alguma predisposição especial a este tipo de distúrbio
com apresentação clínica atípica. Vale lembrar que
na própria casuística do artigo em questão, oito dos
44 pacientes não realizaram a pHmetria esofágica
porque apresentaram desaparecimento da dor abdominal enquanto aguardavam agendamento para este
procedimento diagnóstico.
Para finalizar, é importante ressaltar que para este
grupo heterogêneo de crianças com dor abdominal
recorrente, a abordagem de cada paciente deve ser
individualizada. Orientação da família e do paciente
constitui a principal estratégia terapêutica.
É importante o estabelecimento de um diagnóstico positivo (como por exemplo dor abdominal recorrente disfuncional), mesmo que não seja definitivo,
em vez de informar simplesmente que todos os exames subsidiários básicos (hemograma, análise de
fezes e urina, radiografia simples e ultra-som abdominal) resultaram normais, deixando a impressão
que por não ter sido identificada uma causa orgânica, trata-se de distúrbio psicológico ou psiquiátrico.
Deve ser enfatizado que a dor é real e não mera
simulação da criança. É necessário, também, identificar e procurar neutralizar fatores de tensão e estresse, não permitir que o paciente falte na escola
pela dor abdominal e evitar atitudes que constituam
reforço para a dor. Para os pacientes que persistirem com dor abdominal recorrente após a aborda-
gem clínica e laboratorial inicial, a indicação dos
outros exames deverá ser feita de forma criteriosa e
individualizada.
Tradução e comentários
Dr. Mauro Batista de Morais
Dra. Vera Lucia Sdepanian
Dr. Ulysses Fagundes Neto
Referências Bibliográficas
Apley J, Naish N. Recurrent abdominal pains: a field
survey of 1000 school children. Arch Dis Child 1958;
33:165-70.
Bode G, Rothenbacher D, Brenner H, Adler G. Helicobacter pylori and abdominal symptoms: a population-based study among preschool children
in
southern Germany. Pediatrics 1998; 101:634-7.
Hyams J, Colletti R, Faure C, Gabriel-Martinez E,
Maffei HVL, Morais MB, et al. Functional gastrointestinal disorders: Working group report of the first
World Congress of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition. J Pediatr Gastroeneterol Nutr
2002;35:S110-S117.
Macarthur C, Saunders N, Feldman W. Helicobacter
pylori, gastroduodenal disease, and recurrent abdominal pain in children. JAMA 1995; 273:729-34.
Morais MB. Dor abdominal recorrente. In: Carvalho
ES, Carvalho WB. Terapêutica e prática pediátrica.
São Paulo, Atheneu, 1996. p. 223-5.
Olson A. Recurrent abdominal pain: an approach to
diagnosis and management. Pediatr Ann 1987;
16:834-42.
Rasquin-Weber A, Hyman PE, Cucchiara S, Fleisher DR,
Hyams JS, Milla PJ, et al. Childhood functional gastrointestinal disorders. Gut 1999; 45 Suppl 2:II60-8.
Stordal K, Nygaard EA, Bentsen B. Organic abnormalities in recurrent abdominal pain in children. Acta
Paediatr 2001; 90:638-42.
Ano 9 - Jan/Fev/Março/2003
13
Download