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O PROCURADOR DO ESTADO DIANTE DE UM DIREITO
DINÂMICO. A ADVOCACIA PÚBLICA
NA PÓS-MODERNIDADE JURÍDICA
Marcos Sampaio1
RESUMO
Com base na idéia de que os direitos nascem das necessidades
histórias e, por isso, devem também ser interpretados
historicamente, o presente trabalho, busca perceber a influência
do tempo no desenvolvimento histórico do pensamento jurídico.
Para tanto, o texto começará visitando abordagens filosóficas e
literárias da temporalidade para só então deter-se em uma
concepção jurídica do tempo. Do jusnaturalismo à pósmodernidade observando sua influência no processo de
construção do direito, sua fugacidade e sua alterabilidade.
Plavras-chave: tempo, história, filosofia, literatura, advocacia
pública.
ABSTRACT
Based on the idea that rights arise from the historical needs,
therefore, must also be interpreted historically, this work seeks
to understand the influence of time in the historical development
of legal thought. Thus, the text will start visiting literary and
philosophical approaches of temporality and only then stop at a
face legal time. Of natural law to postmodernity observing its
influence on the construction of the law, their transience and
their modifiability.
1
Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Constitucional e
Econômico da Unifacs e de Direito Administrativo da Faculdade Baiana de Direito. Procurador do Estado da
Bahia e Advogado.
84
Revista de Direito PGE-GO, v. 26, 2011.
Keywords: time, history, philosophy, literature, public advocacy.
SUMÁRIO
1 O tempo; 2 O tempo e a literatura; 3 O tempo e a filosofia; 4 O
tempo e o direito; 4.1 O Jusnaturalismo e o tempo no direito; 4.2
O tempo e o positivismo jurídico. A modernidade jurídica; 4.3 O
direito em tempos de pós-modernidade jurídica; 5 O papel da
advocacia pública na pós-modernidade; Conclusão.
1 O TEMPO
Tem-se afirmado, em diversas perspectivas, que o tempo é o senhor da razão,
numa profusão de análises e circunstâncias reveladoras do quanto se fez especulações no
objetivo para desvelar ou construir a temporalidade que fornece a compreensão da razão ao
ser no espaço, no mundo, na cultura e também no direito.
A análise literária tem se debruçado sobre o tempo como um de seus elementos
centrais, quer para compreender o que diz a obra de um determinado o romancista ou poeta,
quer para tentar perceber as armadilhas que o tempo opõe à humanidade e os efeitos daí
decorrentes.
A estrutura do texto narrativo busca, ao lado de saber quem conta a história, como
conta, o que conta, com quem aconteceu, visa perceber quando ocorreu a história e quando se
deu a produção. Necessários verificar a extensão do tempo da história, notando seus meandros
e verificando se o mesmo é cronológico ou psicológico. Por outro lado, o tempo em que se
escreveu revela muito sobre as circunstâncias da produção, suas influências, sua situação no
mundo em que foi produzido. O ser humano vive em constante relação com o tempo.
Não por outra razão que a filosofia tem abordados perspectivas do ser diante dele,
o que ele pode e reciprocamente, como ele estar no mundo, estando em si. O passado, o que
ainda aí está apesar de passado, as possibilidades de futuro, o presente real e imaginário.
Ponto culminante das reflexões de Nietzsche sobre a questão do tempo aborda
aspectos de sua filosofia da temporalidade, especialmente as noções de pressa (die Hast) e
devagar (langsam) e, ainda muito se teria a falar de sua concepção do eterno retorno.
Marcos SAMPAIO, O Procurador do Estado Diante de um Direito Dinâmico..., p. 83-114
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Do ponto de vista da filosofia da história, Bobbio chegou a tecer sua a
preocupação com o fato de os direitos do homem poderem ser interpretados como um “sinal
premonitório” do progresso moral da humanidade. Os direitos nascem das necessidades
histórias e, por isso, devem também ser interpretados historicamente.
Essa reflexão sobre o tempo inspira o presente trabalho, buscando perceber a
influencia do tempo no desenvolvimento histórico do pensamento jurídico, passando pelo
direito natural e chegando aos nossos dias.
Sem nenhuma pretensão de esgotar o tema, o texto deseja chamar atenção para um
aspecto muito evidente, mas pouco notado pelos estudiosos das escolas de ciência jurídica.
Assim, a primeira parte desse artigo se dedica a pincelar algumas notas sobre a
influência do direito na literatura, distinguindo a importância da análise do tempo tanto para a
análise literária, quanto para o conteúdo da obra. Neste último aspecto, foca-se no
desenvolvimento da poesia de Carlos Drummond de Andrade, o poeta maior, procurando-se
apresentar um substrato de sua reflexão e inquietação com o tempo em que se vive ou se
viverá.
A segundo parte analisa o tempo na filosofia, partindo-se ligação da poesia
drummoniana com a obra da Jean Paul Sarte, para quem o homem é aquele que compreende a
historicidade do pensamento na relatividade de todas as opiniões. Após o existencialismo,
segue o capítulo perpassando por algumas matrizes filosóficas, realçando a importância do
tempo para Heidegger, para a fenomenologia e para a o pensamento filosófico
contemporâneo.
A terceira parte se dedica ao estudo do tempo no direito, desde o jusnaturalismo
até a pós-modernidade. Nesta, o tempo não somente volta a ter influência no processo de
construção do direito, mas também revelou sua fugacidade e sua alterabilidade, na medida em
que o direito muda, a cada dia, numa curva incerta onde a incerteza é a marca preponderante.
Mas um tempo em que a reinserção dos vetores axiológicos e teleológicos produz
uma pauta que embora não ofereça as mesmas condições de segurança que o positivismo
ofertava, impede a utilização voluntarista e o decisionismo pela técnica argumentativa e por
um conjunto de novas ferramentas hermenêuticos postas à disposição do aplicador do direito.
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Do ponto de vista geral, o presente estudo pretende destacar a influência do tempo
na formação da cultura jurídica verificada.
Especificamente pretendeu, sem esgotar, chamar atenção para a importância do
tempo na literatura e na filosofia, criando a base para uma demonstração de um tempo estático
no naturalismo2 que pretendeu construir um direito ahistórico, e um extremo dinamismo da
pós-modernidade, tendo em vista que o direito de nosso tempo é circular, renovado e
autêntico, porque “tudo que é sólido, se desmancha no ar”3. Com a dinamicidade e a
complexidade da vida atual não se permite mais soluções generalistas e iguais, no tempo e no
espaço, para todos, reclamando soluções jurídicas mais aderentes à realidade posta.
O que se procurará demonstrar é que o tempo atual é o dos direitos específicos,
não de um direito temporalmente vinculado, mas de um direito em que o tempo importa muito
mais pelas condicionantes históricas, sociais, políticas e culturais que pela racionalidade que
ele pretendia oferecer.
É um tempo de direitos presentes, influenciados pelo passado, mas com o olhar
firme no futuro.
2 TEMPO E LITERATURA
A relação do ser humano com o tempo sempre foi alvo das mais profundas
especulações intentadas para perceber ou construir as circunstâncias que dão razão ao ser no
espaço, no mundo, na cultura e também no direito. Justifica-se a inserção dessa abordagem
pela movimento que tem verificado a relação entre direito e literatura, tendo Ronaldo
Dworkin4 vislumbrado consistentes semelhanças entre ambos. Por isso sustentou ser possível
aprimorar a Direito comparando a interpretação jurídica com a interpretação em outros
campos do conhecimento, especialmente com a literatura.
2
3
4
Embora se tenha demonstrado que isso não é uma marca indiscutível de todas as escolas de fundamentação
jusnaturalista.
Cf. Karl Marx.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. P. 235.
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Ao perceber a aproximação entre direito e literatura, especialmente quanto ao
método, propôs a interpretação literária como um modelo para o método central da análise
jurídica5. Para ele, um processo judicial é afinal uma narrativa, feita de várias narrativas
adversas, e que a sentença é a conclusão, o capítulo é epílogo (ainda que a estória consinta
continuações, ou recursos).
A aproximação do direito com a literatura já não é mais novidade no Brasil, e o
estudo sistemático da relação entre os dois ganhou corpo, como aponta Daniel Nicory do
Prado6, com a transição paradigmática conhecida como giro lingüístico, a partir da qual, a
linguagem funciona como elemento constitutivo da própria realidade.
No Direito Constitucional contemporâneo, não só a hermenêutica constitucional se
aproxima da hermenêutica literária, como a aproximação geral, e substancial entre
Constituição e Literatura é quase um tópico corrente na mais alta literatura jusconsticional.
Germano Schwartz7 considera que tanto os constituintes como os juízes seriam romancistas de
uma obra aberta: a Constituição.
É por essa razão que se examinará, ainda que sumariamente, a influência do
tempo tanto na análise literária como na obra de um autor, o poeta Carlos Drummond de
Andrade, sem embargo de tantas outras obras e autores8.
Na análise literária, vista como o processo de compreensão da obra fictícia, além
da verificação dos personagens, do enredo e da linguagem, é essencial se faça uma
abordagem relacionada ao contexto histórico e social em que se passa o enredo – ainda que
não reais –, ou em que o seu autor viveu e escreveu. Não é por outra razão que o tempo é
relevante elemento de análise literária, como bem explica Massaud Moisés 9 e também
5
6
7
8
9
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. P. 247.
PRADO, Daniel Nicory do. Autos da Barca do Inferno: o discurso narrativo dos participantes da prisão em
flagrante. Salvador: Editora Juspodvm, 2010. P. 28.
SCHWARTZ, Germano. A Constituição, o Direito e a Literatura. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
v. 1500.
Mário Quintana escreve sobre o tempo em vários de seus poemas. Destaca-se, aqui, Ah! Os relógios. In A
Cor do Invisível. Para Aldos Huxley, “O degrau da escada não foi inventado para repousar, mas apenas para
sustentar o pé o tempo necessário para que o homem coloque o outro pé um pouco mais alto.” De William
Shakespeare, pode-se destacar: “Não, Tempo, não zombarás de minhas mudanças! As pirâmides que
novamente construíste Não me parecem novas, nem estranhas; Apenas as mesmas com novas vestimentas.”
MOISÉS, Massaud. A análise literária. 15. ed. São Paulo: Cultrix, 2005 e, ainda, MOISÉS, Massaud. A
criação literária: poesia. 16. ed. São Paulo: Cultrix, 2003.
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Antônio Cândido10.
No conteúdo, destaca-se, no presente ensaio, o tempo na obra de Carlos
Drummond de Andrade que traduziu na poesia as angústias com o curso da humanidade,
descrita pelo tempo de homens partidos, que pressentem horas esmigalhadas no pó da rua, da
realidade. O momento da depuração do ser.
O tempo é um dos aspectos que concede unidade à poesia de Drummond 11: o
tempo passado, o presente e o futuro como tema. Sua trajetória - qualquer que seja o assunto
tratado - marca-se por uma tentativa de conhecer a natureza humana, através da volta ao
passado, da adesão ao presente e da projeção num futuro possível.
O passado renasce nas reminiscências da infância, da sua terra natal e das
passagens de releitura da história antiga. A adesão ao presente concretiza-se quando o poeta se
compromete com a sua realidade histórica (poesia social). O tempo futuro aparece na
expectativa de um mundo melhor, resultante da cooperação entre todas as pessoas.
Quando Carlos Drummond de Andrade escreveu seu primeiro livro 12, o tema do
sujeito que constrói sua própria história já era marcante. O eu-lírico narrado na poesia
"Infância" narra a descoberta de um ser singular, produto do que constrói e não um mero
reproduzido de uma essência eterna e imutável. É desse contexto que "A Falsa Eternidade"
adverte não ser possível plagiar a eternidade, na medida em que “todas as formas de duração
infinita foram cessando igualmente”13.
A relevância do tempo em sua obra remete à possibilidade de compreender, à um
só tempo, o momento histórico em que viveu a as interferências do curso da vida na
compreensão e no agir da cada pessoa. A poesia "O Tempo" bem revela essa dupla
característica:
O Tempo
Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
10
11
12
13
CANDIDO, Antonio Noções de análise histórico-literária. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra Completa. 5º ed. Rio de Janeiro: Nova Agular, 1979.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. Belo Horizonte: Pindorama, 1930.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992. P. 1233.
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foi um individuo genial.
Industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar
e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação
e tudo começa outra vez, com outro número
e outra vontade de acreditar
que daqui para diante tudo vai ser diferente.
O desenvolvimento literário em diversas de suas obras parecem conduzir o leito
ao momento descrito, mergulhando-o no universo cunhado em palavras pelo poeta, com uma
riqueza de detalhes que já se afirmou, sem exageros, que ler Carlos Drummond de Andrade é,
também, estudar história mundial e do Brasil.
Enfim, a obra de Drummond bem representa como o ser é instigado na curva do
tempo a refletir sobre o passado, perceber o presente e pensar num futuro, seja ele um
contruído, um dado ou uma surpresa impassível de compreensão, de razão e de redução
consciente.
3 TEMPO E FILOSOFIA
Elisângela Alves Gusmão14 registra a similitude da experiência filosófica do
existencialismo tanto na poesia de Carlos Drummond de Andrade quanto na obra da Jean Paul
Sarte, para quem o ser humano é aquele que compreende a historicidade de todo pensamento
na relatividade de todas as opiniões. É a busca do homem para compreender a sua essência
por meio de sua existência, pela sucessão das experiências adquiridas.
O existencialismo desenvolvido por Jean Paul Sarte 15 bem marca a possibilidade
do ser humano de desenvolver-se livre de amarras prévias. Por isso afirma que:
14
15
GUSMÃO, Elisângela Alves. A Filosifia Existencialista na Poesia de Carlos Drummond de Andrade. In:
http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/artigos_revistas/98.pdf. Acesso em 14 de junho de 2010.
SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987. P. 154.
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dizer de um homem o que ele ‘é’ é dizer ao mesmo tempo o que ele pode e
reciprocamente: as condições materiais de sua existência circunscrevem o campo de
suas possibilidades (seu trabalho é duro demais, está por demais cansado para dar
prova de atividade sindical ou política).
É por isso que defende ponto de vista no qual sustenta que o desenvolvimento
histórico das condições de possibilidade do ser humano não pode ser a “absurda justaposição
de um resíduo contingente e de uma significação a priori”16.
O existencialismo, em Sartre, é baseado na idéia de liberdade ("o homem está
condenado à liberdade"). A idéia de liberdade e de projeto humano pela liberdade. O homem é
livre, ainda que não queira optar, ele está optando. Qualquer opção do ser humano é uma
opção do homem no mundo, em sua projeção, realizadora da possibilidade de traçar seu
próprio caminho no mundo (sua própria existência).
Logo, o existencialismo de Sartre combate o essencialismo da existência, a visão
de mundo estática e preconiza o dinamismo do ser no tempo com a possibilidade de progredir
e regredir, sempre. É este o lastro do seu método progressivo-regressivo17.
Influenciando Jean Paul Sarte no compreensão do existencialismo moderno,
Heidegger tratou do desafio dos conhecidos e a libertação para o novo. Para ele, a existência
do ser no tempo é apoiado no passado, vivendo o presente e buscando formas de determinar o
futuro, ainda que este jamais possa ser completamente dominado.
Em seu pensamento, a forma de juntar os pedaços a que homem é reduzido pelo
mergulho na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. Ela possibilitaria ao homem
livrar-se de suas pequenas idiossincrasias e chegar ao autoconhecimento em sua dimensão
mais profunda.
Heidegger divide a existência em três "estruturas existenciais": afetividade, fala e
16
17
SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987. P. 167.
“Definiremos o método de aproximação existencialista como um método regressivo-progressivo e analíticosintético; é ao mesmo tempo um vaivém enriquecedor entre o objeto (que contém toda a época como
significações hierarquizadas) e a época (que contém o objeto na sua totalização); com efeito, quando o objeto
é reencontrado em sua profundidade e em sua singularidade, em lugar de permanecer exterior à totalização
(como era até aí, o que os marxistas tomavam como sua integração na história), ele entra imediatamente em
contradição com ela: numa palavra, a simples justaposição inerte da época e do objeto ocasiona bruscamente
um conflito vivo”. In SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural,
1987. P. 176.
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entendimento. São três fenômenos existenciais que caracterizam como as coisas do passado,
do presente e do futuro se manifestem para o homem e a unidade desses três fenômenos
constitui a estrutura temporal que faz a existência inteligível, compreensível:
1) a afetividade: as coisas do passado chegam ao homem como valores, afetandolhe os sentimentos, que podem ser públicos, compartilhados, e transmissíveis;
2) a fala: no presente, as coisas se traduzem em palavras da linguagem na
articulação dos seus significados;
3) o entendimento: as coisas do futuro, onde o projeto que define o homem
encontrará a morte, são as coisas não garantidas, que lhe são devolvidas para gerar nele o
sentimento de que não está em casa neste mundo, mesmo estando entre as coisas que lhe são
mais familiares.
Portanto, no homem, o ser está relacionado ao tempo e está dado, - existe -, nestes
três fenômenos, nestes três "existenciais".
José Reis18 dedica importante ensaio ao tempo na obra de Heiddeger ressaltando
que embora ele não ponha expressamente os problemas de saber o que são em si mesmas a
memória e a antecipação, pensa estas como deve ser. Assim, embora se referindo ao que já
passou e ao que ainda não chegou, pensa isso como simultâneo ao presente em que se está:
assim como o passado é um ser-sido (Gewesenheit) - o que ainda aí está apesar de passado -,
assim também o futuro é o puro possível, a possibilidade enquanto possibilidade não o
presente futuro.
Como registra Ricardo Maurício Freire Soares, Heidegger contribui com o seu
pensamento filosófico para permitir a conciliação do ser com a sua temporalidade,
consideradas as existências do passado, do presente e do futuro.
O ser que se projeta no tempo é a matriz do pensamento de Heidegger. Logo, o
tempo é fundamental para compreender sua abordagem filosófica. A inserção da précompreensão, ou seja, a idéia prévia que o sujeito cognoscente possui sobre o objeto, na
18
REIS, José E. O Tempo em Heidegger. In Revista Filosófica de Coimbra. Coimbra: Tipografia Lousanense,
2005. Vol. 14, N. 28. PP. 369-414.
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interação hermenêutica que permite ao interprete criar a conclusão do que interpreta, revela a
expressão da situação do homem na construção do saber. Logo, o circulo hermenêutico de
Gadamer revela um constructo baseado no ser vivente, em suas circunstâncias e com seu
horizonte próprio e real.
É por isso que, na interpretação de textos literários, o significado não está
guardado no tempo do escritor que não poder esperar ser desvendado pelo intérprete.
A fenomenologia de Merleau-Ponty19 lembra que não se pode conceber o tempo
como resultado da soma de agoras:
já que cada coisa só pode oferecer-se com suas determinações plenas se as outras
coisas recuam para o indefinido dos longínquos, que cada presente só pode oferecerse em sua realidade excluindo a presença simultânea dos presentes anteriores e
posteriores, e já que assim uma soma de coisas ou uma soma de presentes é um nãosenso.
Tamanha a relação sua relação com o tempo na busca da verdade que sentencia
que o presente sem a reflexão sobre o porvir ou a hegemonia do presente seria a “exatamente
a definição da morte, o presente vivo está dilacerado entre um passado que ele retoma e um
porvir que projeta”20.
Na sua incursão filosófica procura demonstrar que a razão no empírico e o
sensível no racional perpassa pelo ser que percebe21, num tempo em que vive, mas com seu
passado e o olhar firme no horizonte que descortinará o futuro.
A lucidez de Theodor Adorno e Max Horkheimer22 lembram que se deve atribuir a
verdade um núcleo temporal, em vez de opô-la ao movimento histórico como algo imutável.
19
20
21
22
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura.
São Paulo: Martins Fontes, 2006. P. 446.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura.
São Paulo: Martins Fontes, 2006. P. 447.
"O que faltava ao empirismo era a conexão interna entre o objeto e o ato que ele desencadeia. O que falta ao
intelectualismo é a contingência das ocasiões de pensar. No primeiro caso, a consciência é muito pobre; no
segundo, é rica demais para que algum fenômeno possa solicitá-la. O empirismo não vê que precisamos
saber o que procuramos, sem o que não o procuraríamos, e o intelectualismo não vê que precisamos ignorar o
que procuramos, sem o que, novamente, não o procuraríamos." MERLEAU-PONTY, Maurice.
Fenomenologia da Percepção. Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
P. 56.
ADORNO, Theodor W. HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos.
Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. Nota à Segunda Edição.
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Criticando o esclarecimento tentado pela modernidade, afirma que o mesmo “se converte, a
serviço do presente, na total mistificação das massas”.
Os efeitos do tempo não passam sem observação mesmo para os que querem
construir verdades imutáveis e absolutas.
Ricardo Maurício Freire Soares23, analisando o jusnaturalismo teológico de Santo
Agostinho e comparando-o com o pensamento de Cícero, indica que para eles, a justiça é um
referencial plasmado numa idéia superior e atemporal. Sobre Tomás de Aquino, e sua
"Summa Theologica", pinça a existência de uma lei eterna, “oriunda do divino que coordena
todo o universo, incluindo o homem”.
Para São Tomás de Aquino24 a lei natural proveniente da eterna disposição divina é
atemporal, absoluta e não pode o ser humano modificá-la, anulá-la, nem desconheça-la. A lex
naturalis foi cuidadosamente definida pelo filósofo como: “Partecipatio legis aeternae in
rationali creatura”.
O tempo tem provocado o pensamento humano, fazendo-o reproduzir um
pensamento pendular que ora o faz crer em verdades absolutas e imutáveis, válidas para todos
e em todos os tempos, ora avança no degrau da verdade como um constructo, um consenso
temporal ou mesmo algo impossível de ser reduzido à finitude humana.
A reflexão sobre o tempo tem encontrado espaço de desenvolvimento na filosofia
e também no direito, como se passará a demonstrar.
4 TEMPO E DIREITO
4.1 O jusnaturalismo e tempo no direito
23
24
SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo:
Saraiva, 2010. P. 35/6.
Registro, outrossim, que para S. Tomás, o direito natural seria variável porque as condições da vida social
são variáveis e, por isso, ele afirmará com vigor que a natureza do homem é mutável, móvel e as leis serão
mutáveis, sendo o direito natural também mutável. O problema é que essa mutabilidade é sempre assentada
em expressões genéricas e vagas que acabam por buscar num espaço atemporal a sua definição, de tessitura
cristã.
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O jusnaturalismo pretendeu estabelecer um sistema jurídico axiológico atemporal,
criado a partir da existência de um direito superior e universal que não cederia espaço às
modificações, porque estas seriam sempre obra do desvirtuamento duma ética universal e
naturalmente instituída.
A pena cuidadosa de Ricardo Maurício Freire Soares25 não deixou de consignar,
na
caracterizarização do jusnaturalismo, a pressuposição de uma instância jurídica
consistente num “direito natural [que] corresponderia a uma exigência perene, eterna ou
imutável de um direito justo, representada por um valor transcendental ou metafisico de
justiça”.
Em grande parte, o naturalismo pretendeu congelar o direito com valores unívocos
e imutáveis, eternos e perenes, afastando as influências do curso do tempo sobre sua formação
e sua compleição.
Norberto Bobbio26, num esforço para estabelecer critérios que permitam distinguir,
no Direito Romano, o direito positivo (jus civile) do direito natural (jus gentium), lembra que
o primeiro limita-se a um determinado povo, ao passo que o natural não tem limites e,
enquanto o positivo é elaborado e posto pela entidade social criada pelos homens, o outro é
posto pela naturalis ratio.
Arremata lembrando que o jusnaturalismo preve uma
imutabilidade do direito no tempo.
O que se deseja apresentar, mais uma vez, é a cristalização de valores imutáveis,
válidos para todos os tempos, em qualquer espaço e para todos os seres humanos, na
construção de uma idéia de direito.
Para compreender os diversos fundamentos do jusnaturalismo, Ricardo Maurício
Freire Soares27 agrupa quatro categorias bem marcadas, quais sejam: a) o jusnaturalismo
cosmológico, vigente na antiguidade clássica; b) o jusnaturalismo teológico, surgido na Idade
Média, tendo como fundamento jurídico a idéia de uma divindade onisciente, onipotente e
onipresente; c) o jusnaturalismo racionalista, surgido no seio das revoluções liberais
25
26
27
SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo:
Saraiva, 2010. P. 27.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. P. 18.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Curso de introdução ao estudo do direito. Salvador: Editora juspodivm,
2009. P. 116 e seguintes.
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95
burguesas do século XVII e XVIII, tendo como fundamento a razão humana; d) o
jusnaturalismo contemporâneo, gestado no século XX, fincado na possibilidade do justo sob o
prisma histórico e social.
Apesar das nuances que o diferenciam e da crítica evolutiva que o jusnaturalismo
contemporâneo recebeu e soube reconstruir com maior clareza – embora sem exclusividade
porque o jusnaturalismo clássico também tivera percebido, como abaixo se demonstrará – na
medida em que percebeu que o conteúdo do direito justo deveria variar, ao talante das
condições de possibilidade histórica, cultural e social de cada povo, tem razão Ricardo
Maurício Freire Soares28 quando aponta firme crítica a mais protuberante característica do
jusnaturalismo: “... a compreensão de justiça como uma estimativa a-histórica, atemporal e
aespacial, em que pese a crítica do jusnaturalismo contemporâneo, merece sérias objeções.”
O certo é que o direito natural, ainda que se reconheça o esforço clássico e
contemporâneo para superar as justas críticas a uma ordem axiológica cristalizada num direito
estável e inerte, em linhas gerais adota posicionamento contrário a evolução do direito, na
medida em que assentado, na melhor das hipóteses, em axiomas como o de justiça que tem,
indiscutivelmente, a pretensão de perpetuidade.
Norberto Bobbio, ao estabelecer seus seis critérios de distinção entre o
direitopositivo e o direito natural1, embora formulando a ressalva feita por Aristóteles, põe
como um deles a antítese entre a mutabilidade e a imutabilidade, afirmando que o direito
natural é imutável no tempo, ao passo em que o direito positivo suscetível às inflexões das
variações reclamadas ou decididas pela vida.
Não se desconhece o jusnaturalismo histórico, também identificado como
jusnaturalismo crítico ou qualificado pela racionalidade crítica, cuja concepção do direito
natural afasta a noção deste como um corpo normativo acabado, terminado e para sempre,
admitindo um conjunto de critérios racionais baseados em dados objetivos proporcionados
pela chamada natureza do ser humana, evidenciado pela orientação ou tendência que surte da
chamada essência das pessoas, de sua natureza, ou de sua instância humana básica, como
28
SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo:
Saraiva, 2010. P. 41.
96
Revista de Direito PGE-GO, v. 26, 2011.
ensina o filósofo jesuíta Arturo Gaete29.
Diferençando essas duas concepções de jusnaturalismo, a que se assenta num
traço ahistórico e a dinâmica, Jesus Antonio de la Torre Rangel 30 indica que a maior parte das
críticas que são desferidas ao jusnaturalismo defendido e cultivado pela Escola (ou doutrina)
de Direito Natural e não ao naturalismo clássico.
Jesus Antonio de la Torre Rangel31 explicita a diferença entre a Escola (ou
doutrina) de Direito Natura e o jusnaturalismo clássico dizendo que a) enquanto a primeira se
funda somente na razão, sendo racionalista; a segunda se funda num determinado conceito
global do ser humano, assentado numa antropologia integral, não somente na razão; b) a
primeira é ahistórica, tendo por princípio a noção de que o direito “es el mismo e igual ‘para
todos, em todo tiempo y lugar’”, ao passo em que para a Escola Clássica, embora seus
fundamentos revele sempre um potencial perigo da ahistoricidade, “sus más claros
exponentes, sin embargo, dejan um camino abierto para su adptación histórica, como
Francisco Suárez”; c) a Escola de Direito natural tem como lastro o individualismo, ao passo
em que a Escola Clássica acentua a importância da comunidade; e, d) o Jusnatunarlismo
clássico, de raiz cristã, tem implícito o conceito bíblico de direito como Mišpat32, ou seja, de
liberação do oprimido e de avanço social pela proteção dos pobres, ao passo que a Escola de
Direito Natural carece desta concepção.
A distinção mais relevante, para a presente análise, entre as duas correntes do
jusnaturalismo, é que o naturalismo clássico desenvolveu uma visão integral do homem,
concebendo a existência dos direitos humanos tanto individuais como sociais, tendo como
base a relação entre as pessoas, com fundamento na justiça, e com a possibilidade de
historizar-se, ainda que isso não ocorra, finalmente, como adverte Jesus Antonio de la Torre
Rangel33 pela repetição de enunciados gerais, afirmações de justiça e bem comum, como
29
30
31
32
33
GAETE, Arturo. La Ley Natural: um enfoque histórico. In Mensaje n. 428. Santiago do Chile: 1994. P. 160.
RANGEL, Jesús Antonio de la Torre. Iusnaturalismo, Personalismo y Filosofía de la Liberación. Uma
visión integradora. Servilha: Editorial MAD, 2005. P. 27.
RANGEL, Jesús Antonio de la Torre. Iusnaturalismo, Personalismo y Filosofía de la Liberación. Uma
visión integradora. Servilha: Editorial MAD, 2005. P. 28/9.
E, também, o Sedaqá. Em linhas gerais, o profeta Amós descreve Mispat como sendo a justiça aplicada pelo
juiz e Sedaqá é a justiça aplicada por uma pessoa justa e implica os conceitos de misericórdia, compaixão e
entendimento.
RANGEL, Jesús Antonio de la Torre. Iusnaturalismo, Personalismo y Filosofía de la Liberación. Uma
Marcos SAMPAIO, O Procurador do Estado Diante de um Direito Dinâmico..., p. 83-114
97
valores transcendentais.
A possível divergência vem apenas para confirmar a importância do processo de
desenvolvimento histórico na obtenção de valores, ou na manutenção estática deles, pelo
jusnaturalismo.
4.2 O tempo e o positivismo. A modernidade jurídica
A tentativa de superação dos postulados do jusnaturalismo conduzidas pelos
movimentos iluministas e renascentistas à necessidade de criar modelos dinâmicos, mas
completamente fundados razão humana, pela adoção de um conjunto de valores que deveriam
ser plasmados e desenvolvidos pelo projeto de determinação de condutas unicamente
assentado na lei, expressão máxima da vontade majoritária.
A superação do modelo desenvolvido pela sociedade medieval perpassava pela
concentração de um único centro de produção do direito, acabando com o pluralismo jurídico
medieval. Michel Miaille34 aponta como um dos “erros35” dos jusnaturalistas consistiu na
observação de que a teoria do direito natural não tinha uma verdadeira função de
conhecimento como conceito cientifico, mas ocupava-se tão somente de sua função práticosocial.
Mas a burguesia do século das Luzes dirige seus esforços para a modificação do
quadro sócio político naquele instante imposto pelo desenho resultante do final do Século
XVII, essencialmente marcada pela hierarquização e pela aceitação de uma verdade políticoreligiosa reinante.
A opressão e a desigualdade do antigo regime conduziram a formatação de um
novo centro decisório que, capitaneado pelas idéias de John Locke, Jean-Jacques Rousseau e
Montesquieu, deveria ser único e exercido pela maioria parlamentar, pelos chamados
34
35
visión integradora. Servilha: Editorial MAD, 2005. P. 29.
MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Tradução Ana Prata. 3º Ed. Lisboa: Editorial Estampa,
2005. P. 271.
A expressão está entre aspas porque o autor coloca o possível erro para demonstrar sua objeção aos
argumentos que tentam desqualificar o jusnaturalismo.
98
Revista de Direito PGE-GO, v. 26, 2011.
representantes do povo. O direito positivo, considerado aquele posto e aprovado pelo Estado,
é considerado o único e verdadeiro direito.
A pesquisa histórica relativa às origens do positivismo jurídico podem revelar que
seu propósito libertário defendia a submissão à uma ordem de valores dinâmica e distinta
daquela que se pretendia imobilizada.
Versando sobre os pontos fundamentais da doutrina positivista, Norberto Bobbio 36
as resume em sete aspectos bem postos:
a) quanto ao modo de abordar o direito, o positivismo o observa como um fato e
não como um valor. Logo, o jurista deve estudar o direito com o cientificismo da Escola de
Viena37 e não como uma ordem axiológica ou com a formulação de juízos de valores.
Acentuava o pensador italiano que na linguagem juspositivista “o termo ‘direito’ é então
absolutamente avalorativo, isto é, privado de qualquer conotação valorativa ou ressonância
emotiva: o direito é tal que prescinde do fato de ser bom ou mau, de ser um valor ou um
desvalor”38; O que se observa é que o positivismo tenta desenvolver uma teoria do direito em
que os valores a serem adotados serão sempre relativos e dados pela maioria regente.
b) o juspositivismo define o direito em função do elemento da coação, eis que
significa a autorização à ordem estatal para manter a regra desenvolvida faticamente naquele
momento, pelo sujeito competente;
c) no que pertine a fonte do direito, o positivismo consagra a legislação (a obra do
legislador eleito pelo povo). Por isso, ele “elabora toda uma complexa doutrina das relações
entre a lei e o costume (excluindo-se o costume contra legem ou costume ab-rogativo e
admitindo somente o costume secundum legem e eventualmente o praeter legem), das relações entre lei e direito judiciário e entre lei e direito consuetudinário”39.
d) o positivismo desenha um modelo de norma jurídica imperativista, onde fica
36
37
38
39
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. P. 131 e
s.
Sobre a influencia do Círculo de Viena no pensamento de Hans Kelsen confira-se: CARDOSO, Sidney
Amaral. Positivismo jurídico: o círculo de viena e a ciência do direito em kelsen. Revista da Esmese, Sergipe,
n. 3, 2002. Disponível em: <http://www.esmese.com.br/revistas.htm>. Acesso em: 09 jun. 2010.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. P. 131.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. P. 132.
Marcos SAMPAIO, O Procurador do Estado Diante de um Direito Dinâmico..., p. 83-114
99
bem claro a quem as normas se dirigem, e a que se deve ou não obediência. Verifica-se que
tudo que não está escrito na norma é permitido, em razão do primado da legalidade.
e) o ponto adicional levantado pela teoria positivista diz respeito à teoria do
ordenamento jurídico, que toma a estrutura não mais da norma isoladamente, mas do conjunto
integrado e harmônico das normas jurídicas vigentes numa sociedade, o fazendo pelo
desenvolvimento de uma teoria da coerência e da completitude do ordenamento jurídico40.
f) quanto ao método de ciência jurídica, o positivismo reserva ao jurista a tarefa
de observar o elemento declarativo não lhe sendo outorgado o mister produtivo ou criativo do
direito.
g) Por fim, quanto ao dever de observância da lei, vige o Gesetz ist Gesetz (lei é
lei).
A ideologia do direito impõe um respeito à lei, nos moldes de um positivismo
ético, sendo que num positivismo extremista a validade e a justiça da lei são correlatas. O
direito justo é o direito posto pela lei, cujo conteúdo é sempre definível.
Com o advento da teoria pura do direito41 no início do Século XX, Hans Kelsen
propõe desenvolver uma teoria do direito completamente desapegado de prescrições morais
ou valorativas. Afasta-se da sociologia, da política, da religião ou de qualquer saber que tente
subtrair do direito uma neutralidade ímpar. Para ele, o direito é acrítico e puro, como se
constata da passagem abaixo:
A tese de que o Direito é, segundo a sua própria essência, moral, isto é, de que
somente uma ordem social moral é Direito, é rejeitada pela Teoria Pura do Direito,
não apenas porque pressupõe uma Moral absoluta, mas ainda porque ela na sua
efetiva aplicação pela jurisprudência dominante numa determinada comunidade
jurídica, conduz a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva estadual que
constitui tal comunidade. Com efeito, pressupõe-se como evidente que a ordem
coercitiva estadual própria é Direito42.
40
41
42
Sobre o tema, confira-se a seguinte obra: BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília:
UNB, 1997.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 7º Ed. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 7º Ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. P. 77.
100
2011.
Revista de Direito PGE-GO, v. 26,
Privilegia-se tão somente a norma em sua compatibilidade vertical com o sistema,
numa avaliação meramente formal, a partir da compreensão de que o direito é um sistema
lógico-dedutivo, tal como pensado e exposto por Descartes43.
Há um enorme esforço, da teoria pura, para afastar o direito da moral, na medida
em que para Kelsen, a moral é relativa e deve ser estudada pela ética e não pelo direito que
deveria se ocupar, tão somente, do estudo científico da norma jurídica e não do conteúdo que
possui.
Como pontua Ricardo Maurício Freire Soares44, a validade da norma jurídica é
decorrência da observância da norma superior que estabelece seu conteúdo (o que deve ser
prescrito), a competência para prescrever e o modo pelo qual se construirá a prescrição,
dentro da totalidade sistêmica hiequarquizada pela pirâmide bem conhecida.
A obra de Hans Kelsen procura afastar o direito da justiça, na medida em que a
Ciência do Direito não é dado o trabalho de identificar o que é justo, mas apenas descrever o
positivado como justo, pelo direito.
A filosofia de direito kelsiana é marcada pelo cepticismo axiológico na medida em
que as questões valorativas não são suscetíveis de objetividade ou de controle pelo direito que
será sempre relativo, eis que não haveria um valor imutável ou perene, mas aquele escolhido
para o tempo e para o espaço verificados45.
Para o pensamento de Kelsen, portanto, o tempo promove a transformação do
direito, dado que suas definições serão hauridas da atividade construtiva da realidade
evidente. Por essa razão, sustenta que a vigência da norma será sempre espaço-temporal,
definida pelo tempo dos seres que se auto-regulam:
Visto a conduta humana, assim como as suas condições e efeitos se processarem no
espaço e no tempo, o espaço e o tempo em que os fatos descritos pela norma
decorrem devem ser fixados no conteúdo da mesma norma. A vigência de todas as
normas em geral que regulam a conduta humana, e em particular a das normas
43
44
45
Cf. DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo:
Saraiva, 2010. P. 45/46.
De notar que Kelsen não ignora o lugar dos valores como integrante da experiência jurídica, mas apenas diz
que isso é incontrolável pelo direito.
Marcos SAMPAIO, O Procurador do Estado Diante de um Direito Dinâmico..., p. 83-114
101
jurídicas, é uma vigência espaço-temporal na medida em que as normas têm por
conteúdo processos espaço-temporais. 46
Ao lado do entendimento do direito despido de qualquer carga valorativa,
sobreleva a doutrina de Kelsen uma figura metafórica igualmente conhecida: a da norma
como uma moldura, como delimitadora de um espaço onde estariam as diversas opções que
poderiam ser escolhidas pelo aplicador do direito para resolver o caso concreto. É a pura
expressão do positivismo científico tão perseguido pelo desejo de participar do Círculo de
Viena.
Rogério Silva Aguiar47 lembra que Kelsen, todavia, jamais pretendeu sacrificar a
justiça na medida em que, para ele, não poderia haver tal conflito, uma vez que aquilo que a
norma trazia em si era o justo e, portanto, a justiça restaria valorizada pela força atribuída à lei
que era, em seu ponto de vista, coincidente com a sua definição.
Embora inegável à segurança jurídica desse modelo, uma vez que a obediência a
uma regra previamente conhecida afastava a possibilidade de qualquer sanção, sobretudo
aquela decorrente de um juízo valorativo originário de fonte distinta da estatal, na negação da
carga valorativa e a tentativa de viver por regras não correspondeu a dinâmica da vida com
seu pluralismo e com a complexidade da modernidade que reclama soluções mais flexíveis e
concertadas às diferenças entre povos, e, até mesmo, dentro de um único espaço territorial.
O cidadão, numa dimensão político democrática, necessita ter esta segurança
jurídica da mesma maneira como o motorista necessita vislumbrar o caminho, vendo-o, para
que o mesmo se torne previsível.
Mas a segurança não é inconciliável com a justiça, e a fórmula avalorativa do
positivismo acabou por permitir o uso da lei como meio artificialmente posto para justificar
iniqüidades, desconsiderando, como dito, as vicissitudes da realidade e do respeito à valores
que jamais poderiam ter sido desprezados, por um direito neutro.
46
47
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 7º Ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. P. 13.
AGUIAR, Roger Silva. O positivismo e o pós-positivismo na criaçao e aplicação do Direito Civil Brasileiro.
In: MELO, Clayson M. et al. Novos Direitos: Os paradigmas da pós-modernidade. Niterói-rj: Impetus, 2004.
p. 143-188. P. 151.
102
2011.
Revista de Direito PGE-GO, v. 26,
A neutralidade é um valor porque ela oculta objetivamente a natureza do direito
que é exposto, vez que, se o direito é feito pelo Estado, não é inocente esconder-se como ele
é, de fato, gerado, e quais os valores que encampa. Afinal,como lembra Michel Miaille, “o
Estado não é um instrumento ao serviço de um sistema sócio-politico, ele é esse sistema” 48. O
excessivo formalismo da validez normativa não propiciam um desenvolvimento do tripé
direito, legitimidade e justiça, mas antes os afastam.
Para o presente estudo o que importa frisar é que enquanto no jusnaturalismo o
pressuposto lógico era a existência de valores estáticos, com as ressalvas anteriormente feitas,
o positivismo se apresenta como uma reflexão de um direito despido de valores, ou, como
aqui assinalado, com carga axiológica definida livremente pelo direito que servirá ao poder e
aqueles que podem dizer o que é o sistema jurídico, valendo-se do direito para impor a
coercibilidade de suas vontades de dominação social e coletiva.
O tempo diz o conteúdo do justo, variável ao sabor daqueles que detém
competência para criar e fazer valer a norma jurídica. É um direito estéril, sem qualquer
compromisso com o desenvolvimento do ser humano. A moral, mesmo em Hart, é possível
mas não obrigatório.
O problema, como foi visto, é que as variações do positivismo não abordaram,
com profundidade, o problema da justiça, contentando-se apenas com a validade formal das
regras da vida, sem observar que muitas vezes, é este mesmo direito merece ser recusado em
razão de ter se afastado do justo que, nos dias atuais, somente pode ser o capaz de ofertar a
todos uma vida digna.
É certo que alguma ordem institucional, a segurança jurídica e a certeza do direito
são indispensáveis à construção de um direito justo, vez que a desordem jurídica e a
insegurança acabam por inviabilizar o reconhecimento dos direitos e a implementação da
justiça.
Jeremy Benthan, lembrado por Gustavo Radbruch49, afirma que graças a
48
49
MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Tradução Ana Prata. 3º Ed. Lisboa: Editorial Estampa,
2005. P. 135.
Introducción a La Filosofia Del Derecho, trad. por W. Roces, ed. Fondo de Cultura Económica: México,
1955, pág. 42.
Marcos SAMPAIO, O Procurador do Estado Diante de um Direito Dinâmico..., p. 83-114
103
segurança se pode prever o futuro e, portanto, tomar decisões que possam influenciá-lo.
Adiante confirma que sobre a segurança repousam todos os planos, todo o trabalho e
desenvolvimento da vida; com ela a vida não é simplesmente uma sucessão de instantes sem
qualquer continuidade. Conclui o jurista e filósofo com a segurança é uma característica da
civilização, o que diferencia o homem culto do selvagem; a paz da guerra e o homem de la
bestia.
O amazonas de idéias surgidas no iluminismo fez Immanuel Kant contemplar o
ideário moderno enfatizando o papel ativo do “eu pensante”, e suas múltiplas possibilidades
cognitivas, submetidas aos imperativos categóricos que apresentara, maximizando o respeito
devido ao ser humano.
A modernidade foi caracterizada pela forma participativa na tomada de decisões
sobre os mais diversos aspectos que influenciam a vida social, valorizado o estado
democrático de direito, em sua dimensão emancipatória e progressista, assentada na
supremacia constitucional, na divisão de poderes e na soberania nacional, e pela busca de
implementação de métodos que pudessem oferecer a vida digna a todos.
Todavia, a promessa da segurança foi cumprida com a formação da cultura da
idolatria da lei e do apego excessivo à forma legal que acabavam servindo a preservação do
quadro social. A busca da racionalidade jurídica tem encantado o pensamento hodierno na
medida em que oferece possibilidades de operação do direito com segurança jurídica para,
pretensamente, cumprir a promessa de aproximar o direito da justiça.
O plano do direito exigia a mera subsunção ao direito positivo, pela conhecida
fórmula do silogismo , em face da necessidade de buscar a chamada voluntas legislatoris.
A verdade é que a modernidade, de matriz iluminista, banalizou a multiplicidade
da vida, esforçando-se para simplificar a vida humana aos desideratos daqueles que podem
criar as leis e exigir seu cumprimento. Parodiando Duguit, pode-se dizer que a quimera da
modernidade é inserir nas leis a perfeição que os homens não têm.
A racionalidade moderna não somente deixou de atender as necessidades básicas
das pessoas, com os ideais libertários, como também se vergou a patrocinar unicamente um
sistema econômico determinado que necessita da uniformidade para alcançar a escala de
104
2011.
Revista de Direito PGE-GO, v. 26,
distribuição do que produzia em massa.
Evidente a evolução do vetor de mercado, mais que daquele que transforma a vida
das pessoas, fazendo-as progredir. O discurso do moderno favoreceu o crescimento do
mercado, permitiu o progresso técnico, mas engendrou problemas sociais sem precedentes.
A afeição às idéias de segurança, previsibilidade, e certeza do direito se revelaram
muito caras, ora porque solaparam a função social do direito em múltiplos contextos, ora
porque não mais ofereciam as respostas que a sociedade exigia.
Em face do problema do direito justo, o positivismo jurídico, em qualquer uma de
suas múltiplas manifestações, revela propostas limitadas e insatisfatórias. A subordinação da
legitimidade do direito à especial observância dos critérios de validez formal que norteiam a
produção das normas jurídicas não poderiam oferecer à vida respostas capazes de emancipar a
cidadania.
Logo, o direito precisava perceber-se no seu tempo e não poderia estar concertado
à uma liberdade absoluta, porque para legislar não se poderia partir de um papel em branco,
mas de uma história de vida já vivida e presente, em dimensões culturais, históricas, políticas
e sociais.
O direito na modernidade parecia tão livre dos efeitos do tempo que sucumbiu aos
ideais da chamada pós-modernidade.
4.3 O direito em tempos de pós-modernidade jurídica
Os acontecimentos do início do século XX, designadamente a realização de uma
revolução socialista em 1917, faziam aparecer razões reais de inquietação para os juristas
burgueses. As antigas pretensões universalizantes de verdade e eficácia dos enunciados
normativos, de inspiração iluminista, cedem lugar a uma realidade disforme, de conteúdos
concretos fortemente indeterminados, aptos a gerar incerteza quanto ao seu alcance e capaz de
desafiar mesmo os critérios hermenêuticos mais elásticos.
Marcos SAMPAIO, O Procurador do Estado Diante de um Direito Dinâmico..., p. 83-114
105
Como lembra Antonio Carlos de Almeida Diniz50, em muitos casos o rigor do
modelo formalista de muitas legislações na descrição de condutas levou ao fracasso das
tentativas de acompanhamento satisfatório da pujante velocidade dos potenciais conflitos,
deixando de solucionar grande parte das controvérsias nos mais diversos campos do
relacionamento humano.
Até mesmo o homem da rua, imagem criada por PIERO CALAMANDREI quando se
referiu a l'uomo della strada, simples, ingênuo e destituído de conhecimentos jurídicos, era é
capaz de distinguir entre o bem e o mal, o sensato e o insensato, o justo e o injusto, e não se
curvou ao sofisma bem elaborado do positivismo, mas soube se irresignar e buscar
alternativas à um direito que poderia se apresentar como iníquo ou perverso.
Por isso, era imperioso que a ordem jurídica fosse composta por um harmonioso
convite a conciliação de valores, ainda que por vezes discrepantes, mas que se resolvem pela
busca da convivência deles em uma relação de verdadeira complementaridade e
interdependência, já que, em essência, a plenitude do cumprimento do objetivo de cada um
valor não pode prescindir de um respeito mínimo ao outro.
As promessas da modernidade perderam encanto na mesma medida em que não
lograram concretizar os ideais emancipatórios da cidadania complexa. A impossibilidade de
realização da liberdade, da igualdade e do acesso igualitário para todos gerou uma enorme
desconfiança do discurso unificante.
A realidade social, na perspectiva pós-moderna, é cambiante, fragmentada, fluída
e plural e o direito tem que conviver com tal perspectiva, descortinando novos desafios de
conhecer, perceber e aplicar o direito.
Partindo desse pluralismo e do relativismo cultural inegável, Ricardo Maurício
Soares Freire51 divisa os elementos fundamentais da cultura jurídica pós-moderna,
mencionando o direito plural, reflexivo, prospectivo, discursivo e relativo
50
51
DINIZ, Antonio Carlos de Almeida. O Direito entre o Moderno e o Pós-Moderno: Perspectivas e Desafios.
In: MAIA, Antonio Cavalcante. et al. Perspectivas Atuais da Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005. p. 301-320. P. 302.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e interpretação jurídica. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 51 e
seguintes.
106
2011.
Revista de Direito PGE-GO, v. 26,
O pluralismo se manifesta na medida em que há a implosão de modelos genéricos
e fechados, reclamando o fenômeno da descodificação, e o aparecimento de uma
multiplicidade de fontes legislativas e de institutos jurídicos.
O caráter reflexivo, na pós-modernidade, pela necessidade que o direito tem de
espelhar as demandas da convivência social, na medida em que o direito deve fazer-se um
sistema sempre aberto e inconcluso, porque capaz de amoldar-se aos constantes influxos
fáticos e axiológicos da vida social, e não ser a tentativa de estabelecimento de uma pauta de
comportamentos prévios, num projeto de pasteurização social fictício e somente imaginado
por desconhecer a pluralidade e riqueza da natureza humana.
Com bem lembra Carlos Cossio 52, desde Pitágoras, a valoração jurídica tem sido
identificada com a Justiça. Todavia, adverte ele, a valoração jurídica não é tão simples, mas
complexa porque não trata de um único valor, mas de um plexo valorativo, que nos planta o
problema terminológico de sua designação. Por isso registra que a conduta valiosa não é a
unitária, mas a resultante da complexa rede de pessoas que se apresentam em suas múltiplas
interações.
Não se pode conceber o ordenamento jurídico como um sistema fechado, mas
como uma ordem aberta aos valores e ao fatos da mobilidade da realidade vivenciada.
Tem razão Claus Wilhelm Canaris53 quando diz que a unidade do ordenamento
jurídico não pode mais ser tratada como contendo categorias puramente formais, mas com
uma dimensão de unidade valorativa que somente pode realizar-se numa ordem jurídica
historicamente determinada. Os sistemas de puros conceitos fundamentais, pela sua própria
perspectivação, não querem nem podem dizer nada.
O direito pós-moderno é, também, prospectivo na medida em que resta superada
uma concepção sistêmica fechada e eminentemente dedutiva, uma vez que o sistema jurídico,
ao contrário, caracteriza-se pela sua abertura e mobilidade54.
52
53
54
COSSIO, Carlos. La Valoración Jurídica Y La Ciencia Del Derecho. Buenos Aires: Arayú, 1954. P. 82/84.
CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Tradução
de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. P. 27.
CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Tradução
de Antonio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. P. 103.
Marcos SAMPAIO, O Procurador do Estado Diante de um Direito Dinâmico..., p. 83-114
107
Por isso, utiliza fórmulas normativas propositalmente genéricas, indeterminadas e
contingenciais, não poucas vezes valendo-se dos chamados standards jurídicos que são pautas
móveis, que além de ter de ser inferidas da conduta reconhecida como ‘típica’ têm que ser
permanentemente concretizadas e aplicadas no caso concreto pelo ato de decidir. O standard
é um tipo real e, ao mesmo tempo, sempre um tipo ideal axiológico.
Os textos normativos passam a cultivar prioridades axiológicas, contornos que se
pretendem proteger um plexo de valores e a diversidade de preceitos normativos aderentes a
casos concretos.
O fenômeno jurídico pós-moderno é também o da valorização da dimensão
discursivo-comunicativa, realçado pela dimensão retórica do direito, uma manifestação da
retórica discursiva.
O conhecimento jurídico passa a exigir uma utilização de recursos lingüísticos da
semiótica, transformando o papel do operador do direito agora compelido a examinar as
significações do direito no espaço das interações comunicativas.
Como acentua Ricardo Maurício Soares Freire 55 “a teoria e a prática do Direito
passam a enfatizar o estabelecimento das condições de decibilidade dos conflitos,
potencializando o uso de técnicas persuasivas”.
Ou seja, o raciocínio jurídico não mais se limita a mera operação lógico-formal
subsuntiva, mas adiciona fórmulas axiológicas de consenso, baseados não apenas em
evidências, mas também em juízos de valor.
Por fim, a pós-modernidade deu ao direito um conteúdo relativo, onde não mais
existem verdades absolutas, mas sempre dados provisórios, marcados pela constelação
dinâmica de valores, princípios e fundamentos.
O pensamento pós-positivista cristaliza um novo desafio hermenêutico permeado
por instâncias subjetivas e, em face isso, bem distante do mito da certeza do conhecimento
jurídico. Já não é mais possível fundamentar o raciocínio jurídico em premissas absolutas e
incontestáveis, uma vez que evidente o relativismo científico.
55
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e interpretação jurídica. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 53.
108
2011.
Revista de Direito PGE-GO, v. 26,
Houve aqui o que Thomas Kunh56 chama de revolução paradigmática que
significam episódios extraordinários em que há a mudança dos compromissos intelectuais por
membros de uma profissão que desintegram a tradição ligada à ciência normal, rejeitam uma
teoria científica e adota-se outra incompatível com a primeira, gerando a própria alteração da
visão de mundo. Em suma: são as revoluções científicas a fase de transição para um novo
paradigma nos quais vivenciam-se “episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais
um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com
o anterior”.
A quebra de paradigma evidenciada representa o corte ou distanciamento do
passado que negava a noção de valores e de conquistas, e a consagração de um modelo que
não se conforma com a simplicidade dos modernos positivistas.
Vive-se então uma época em que a certeza é uma variável convivendo em meio de
tantas outras, como acentua Antonio Carlos de Almeida Diniz57, já que ela não é mais o ideal
de segurança proporcionado pela expectativa de um resultado único possível e predefinido,
mas a associação de possibilidades concorrentes entre si, em busca do justo, da consciência da
contingência e da indeterminação da regra.
O mundo se encontra numa complexa forma de viver, em que mutações,
paradoxos e indeterminações oferecidas pela grandeza do sistema social contemporâneo
exigia aberturas epistemológicas multireferencias, na medida em que a solução do problema
real não pode ser feita por um referencial linear cartesiano, mas pelo ordenamento
multifacetário, pluricausal e multividente.
O aumento dos riscos e das contingências provoca a perda do prestígio do método
de racionalidade eminentemente formal e aplicável a hipóteses presumíveis, por meio de
operações lógicas elementares de submissão da norma ao caso concreto e provoca o confronto
da realidade normativa agora cambiante a um mundo de complexa tessitura do corpo social.
56
57
KUNH, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução: Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira.
9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. Passim.
DINIZ, Antonio Carlos de Almeida. O Direito entre o Moderno e o Pós-Moderno: Perspectivas e Desafios.
In: MAIA, Antonio Cavalcante. et al. Perspectivas Atuais da Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005. p. 301-320. P. 305.
Marcos SAMPAIO, O Procurador do Estado Diante de um Direito Dinâmico..., p. 83-114
109
Importa aclarar que a pós-modernidade não nega completamente a importância e
o papel da lógica formal, mas apenas percebe que na medida em que o processo decisório
continua a seguir a forma do silogismo, mas sem a garantia do valor da conclusão, e tão
somente como um mecanismo de apreciação e de revelação das premissas escolhidas,
justificadas pela cuidadosa motivação, e desde que possam suscitar o menor número de
objeções, com defende Chaïn Perelman58.
Ademais, Robert Alexy contribui com as teorias pós-modernas na medida em que
sustenta o direito não poder prescindir de uma teoria do discurso, embasada numa
racionalidade prática de regras, princípios e procedimentos.
Com os ideais da pós-modernidade se verifica que estamos em frente a um tempo
em que o direito é sempre relativo, porque a vida humana assim o é. Logo, faz-se
imprescindível a abertura, na construção da norma cambiante, ao nosso tempo, às nossas
necessidades e possibilidades. Um direito que se transforma, a cada segundo.
5 O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA NA PÓS-MODERNIDADE
O tempo fluído em que se tem que voltar a confiar na capacidade humana de
resolver conflitos, dentro dos valores plasmados e curtidos pelo povo, no desenvolvimento
emancipatório de sua cidadania sofisticada e humana, tem provocado transformações na
atuação do advogado público.
Isso porque, longe do tempo em que a separação entre direito e política era
impositiva, a abertura da norma jurídica aos acessos da moral, da economia e da política,
criaram novas obrigações ao advogado público.
Ela não mais defende um sistema legalista formal, como fora no século
suplantado, mas, como lembra Heron Gordilho59, atua com a obrigação de aproximar a
dogmática e o senso comum, ela não apenas “analisa, mais do que isso, sugere, provoca,
58
59
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Virginia Pupi. São Paulo: Martins Fontes,
1998. P. 242/243.
GORDILHO, Heron José de Santana. Por Uma Dogmática Pós-Moderna. Revista do Programa de PósGraduação em Direito da UFBA, N. 16, P. 47/62, Ano 2008.
110
Revista de Direito PGE-GO, v. 26, 2011.
negocia, através da representação dos sujeitos jurídicos e não de papeis sociais. Ele é o que dá
voz ao povo e ao seu imenso senso de justiça.”
Em seu mister, deve atentar para um direito que potencializa a hermenêutica
construtiva, devotada a implementação da justiça social, contemplando possibilidades
jurídicas de promoção da cidadania, com a inclusão dos mais pobres, nodatamente pela
proteção do hipossificiente.
Numa perspectiva neoconstitucionalista, deve estabelecer laço de conexão
necessária entre o direito e a moral e, para tanto, os direitos fundamentais e os princípios
constitucionais representariam a ponte de ligação entre eles.
O advogado público tem, em sua atividade, que superar-se da antiga função
meramente descritiva da norma jurídica para agora contribuir na realização de uma atividade
ativa na concretização dos valores sociais e comprometido com o problema da efetividade do
sistema jurídico como um todo e da ordem constitucional, especialmente.
Indubitavelmente há uma convergência para um constructo axiológico e
teleológico, que impõe a compreensão e aplicação de princípios que necessitam ser realizados
gradualmente num esforço que o tempo irá impor e, ao mesmo tempo, revelar.
Duas conseqüências decorrem deste enfoque: a ponderação como resultado de
uma atividade radicalmente subjetiva, já que resultado de um juízo de valor do intérprete, mas
dentro de marcos axiológicos dados pelo constitucionalismo; e, a uma ponderação que leva à
conseqüência uma forma de particularismo jurídico, bem analisado na filosofia moral, embora
pouco percebido pela teoria jurídica.
Se na visão neoconstitucionalista o direito muda dia-a-dia, para potencializar a
realização da justiça, a atuação do advogado público caminha nessa perspectiva cambiante, de
compromisso com a realização dos mais caros valores postos na Constituição.
Como visto, tanto a poesia e quanto a filosofia já perceberam o compromisso do
sujeito com o seu tempo. Impor-se, agora, que o direito manejado pela advocacia pública seja
um direito comprometido com a realidade circundante, transformando esse profissional não
em um mero reprodutor de saberes, mas vocacionado a encontrar soluções atuais aos
inúmeros problemas que se lhe apresentam.
Marcos SAMPAIO, O Procurador do Estado Diante de um Direito Dinâmico..., p. 83-114
111
CONCLUSÃO
De tudo o que foi dito, até aqui, o que se pode constatar é que o direito na pósmodernidade é dinâmico e mutável, capaz de vencer os albores com forma e conteúdo
diferentes. O direito do nosso tempo é um direito relativo, não aprisionado ao tempo passado,
mas aderente ao presente, sem perder de vista a construção do futuro.
Não existem mais verdades finais, mas apenas verdades resultantes de uma
construção processual e contextual, sempre sujeita a crítica e as novas explicações. O risco de
generalizações baseadas em dados estatísticos até pode mostrar, mas não revela a realidade,
uma vez que a tendência de generalização é uma tendência do pensador neutro, mas que pode
o levar à conclusões precipitadas e inconsistentes e o que é pior, a injustiças.
A relativização das verdades aceitas representa um desafio a construção de
perspectivas distintas, para um mundo diferente, em que já não se pode sustentar a pretensão
de uniformidade ou de univocidades. Cada ser, em cada espaço, cada grupo ou grupos, podem
subverter as noções que aparentemente são corretas, pela adoção de fórmulas que sejam
capazes de resolver seus conflitos e alcançar suas pretensões de pacificação.
Isso não se consegue com um direito fulcrado em verdades antigas que tentam se
perpetuar, nem com um direito neutro que admite tudo, mas a pós-modernidade admite ser
possível fazê-lo com um direito participativo, aderente ao tempo e ao espaço, e firmemente
assentado em valores bem marcados pelo constitucionalismo democrático.
Com o advento da pós-modernidade a neutralidade do advogado público vai sendo
substituída pelo intérprete consciente de suas circunstâncias, com percepção de sua postura
num espaço político, ainda que com campos ideológicos tão distintos.
O compromisso com a realização dos valores democráticos e firme na concreção
da dignidade da pessoa humana são as únicas formas que permite aproximar o direito da
justiça fazendo com que aquele sirva a esta.
112
Revista de Direito PGE-GO, v. 26, 2011.
O advogado público de nosso tempo é aquele que tentar redescobrir a justiça. Só
assim a advocacia pública se justificará.
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