O Problema da Corrupção e a Sociologia Americana Fernando Filgueiras Doutorando em Ciência Política no IUPERJ Mestre em Ciência Política pela UFMG Prof. de Sociologia Jurídica na Faculdade Metodista Granbery Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas Paulino Soares de Sousa da UFJF. [email protected] A sociologia sempre careceu de uma análise detalhada do modo como a corrupção na política pode vir a ocorrer. Enquanto ramo distinto da própria sociologia, a sociologia política sempre prescindiu de explicações causais da corrupção, que possibilitassem a predição de seus eventos na esfera pública e o posterior controle de suas práticas. Por se tratar, talvez, de um fenômeno que não tem fontes empíricas metodologicamente congruentes, é possível que o desinteresse por parte dos cientistas sociais a respeito da corrupção se justifique, porque o instrumental teórico não permitia desenvolver hipóteses plausíveis, as quais deveriam ser testadas e corroboradas com um determinado corpo de conceitos analíticos, dados à experimentação. Só a partir dos anos de 1950, nos Estados Unidos, que a sociologia começou a desenvolver hipóteses sobre a corrupção, a partir de um viés empírico e comparativo, bem como sobre o modo de acordo com o qual ela ocorre no interior das ordens políticas. O objetivo era explicar eventuais causas e conseqüências para o desenvolvimento político, possibilitando, por conseguinte, sua predição enquanto fenômeno e derivando mecanismos para seu controle. As primeiras hipóteses para a corrupção na política surgem no interior do estrutural-funcionalismo, herdeiro das teorias sociológicas de Talcott Parsons e de Robert King Merton. O pressuposto das análises cotejadas sobre a corrupção na política é que ela ocorre como disfunção no interior dos sistemas sociais, representando uma realidade social objetiva que, ou põe a sobrevivência do sistema em jogo, ou cria uma estrutura predatória, em que o resultado da ação implica em padrões de comportamento que tendem à reprodução de espólios e de vantagens obtidos de modo eminentemente ilegal. A corrupção, desse modo, é fator de mudança social, fazendo parte do contexto de evolução e de modernização das sociedades, uma vez que impõe a mudança ou reproduz uma estrutura social sujeita a revoltas ou revoluções implementadas por grupos subalternos, resultando em desordem latente constante. De acordo com Merton1, ela pode representar uma função manifesta ou uma função latente da modernização, porque provém de pressões sociais que resultam em violação da norma. Por outro lado, como estrutura, a corrupção significa todas aquelas ações intencionais praticadas pelos atores que sobreponham os interesses privados sobre o interesse público, as quais ocorrem devido a uma ausência de certo grau de institucionalização política, capaz de moldar e controlar as paixões humanas no contexto da modernidade. Em sua funcionalidade, a corrupção é investigada em termos de eventuais custos e benefícios para a ordem política, ou seja, em que medida suas conseqüências podem representar uma função positiva ou uma função negativa no desenvolvimento das instituições da modernidade. De acordo com Merton, a funcionalidade da corrupção é determinada porque as ações praticadas pelos atores são intencionais, reproduzindo continuamente uma estrutura social onipresente que faz a mediação e a contextualização das práticas sociais, tendo em vista seus meios e seus objetivos. A perspectiva estrutural-funcionalista remete a corrupção, portanto, para um viés de modernização das sociedades, tornando-a variável conforme o estágio que cada sociedade ocupa na evolução, além de sua problematização estar contextualizada no jogo inerente dos sistemas sociais. 1 Conf. Robert King Merton, Sociologia: Teoria e Estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970. 1. Corrupção e Modernização De acordo com Samuel Huntington2, o tema da corrupção está, funcional e estruturalmente, ligado ao fenômeno da modernização, concebendo-o como uma medida da ausência de institucionalização política suficiente, dada pelo paradigma das instituições sociais e políticas da modernidade Ocidental. O estrutural-funcionalismo, quando trata do fenômeno da corrupção, parte do pressuposto de que as sociedades se modernizam e que o resultado desta modernização depende de fatores estruturais e funcionais decorrentes da mudança, os quais informam o patamar que determinada sociedade ocupa no desenvolvimento, sendo que a corrupção pode se tornar mais evidente em sociedades tipicamente subdesenvolvidas. Por outras palavras, a corrupção é um problema funcional e estrutural de uma dada sociedade, tendo em vista seu estágio de desenvolvimento. Portanto, o critério para o estabelecimento do conceito de corrupção, segundo a vertente estrutural-funcionalista, é concebe-la nos termos da ação intencional praticada no interior de um sistema social, conforme uma estrutura normativa institucionalizada, a qual limita ou motiva a prática de corrupção3. De acordo com Samuel Huntington, a “corrupção é o comportamento de autoridades públicas que se desviam das normas aceitas a fim de servir a interesses particulares”4, sendo mais comum em algumas sociedades do que em outras e, como mostra o autor, mais comum em algumas etapas da evolução de uma sociedade do que em outras. A definição do autor parte do problema da institucionalização política, que significa uma aceitação comum entre os atores políticos das normas do sistema, assegurando a estabilidade e a previsibilidade das ações tomadas a partir dele. O sistema institucional motiva ou coíbe determinadas práticas sociais, conforme critérios de funcionalidade, determinados pela modernização. Como regra geral, as organizações do sistema devem ser adaptáveis, complexas, autônomas e coesas, possibilitando a institucionalização política de determinadas práticas que visam a assegurar o desenvolvimento e a estabilidade do sistema. Os 2 Conf. Samuel Huntington, A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, São Paulo: EDUSP, Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1975. 3 Ver, a esse respeito, Robert C. Brooks. The Nature of Political Corruption. In: Arnold Heidenheimer (org.). Political Corruption. Readings In Comparative Analysis. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1979. 4 Samuel Huntington, op. cit., pág. 72. critérios de funcionalidade das organizações do sistema, entretanto, apresentam seus pares dicotômicos como desfuncionalidade inerente às organizações, as quais motivam a prática de corrupção pelo output do sistema político, ou seja, pelos resultados não intencionais da ação política, estipulados por barreiras econômicas e sociais ao desenvolvimento. Dados os quatro critérios de institucionalização política, segundo Huntington, a corrupção se torna mais evidente quando não há institucionalização política satisfatória, que dê conta de tornar as normas do sistema aceitas pelos diferentes grupos presentes na arena social. A modernização, acompanhada de baixa institucionalização, de acordo com este autor, cria um hiato político mediante o qual a corrupção política ocorre. Quando as organizações do sistema são rígidas, simples, subordinadas e apresenta desunião entre seus membros, a probabilidade de que a corrupção se torne recorrente e um padrão de articulação de interesses é enorme, uma vez que reproduz uma estrutura social não moderna, responsável por ensejar práticas típicas de estruturas sociais patriarcais, que se utilizam largamente do clientelismo, do suborno e de espólios ilegais. Huntington observa a corrupção como fruto da modernização, ou seja, como fenômeno decorrente das mudanças sociais e políticas, que tem seu grau proporcionalmente determinado pela institucionalização. A premissa fundamental é naturalizar a questão da modernização, tomando-a como lei invariante que determina os demais fenômenos sociais, especialmente o que aqui nos interessa: a corrupção na política. Enquanto imagem produzida mediante indução, a prática da corrupção é mais costumeira em sociedades pouco desenvolvidas, especialmente se considerarmos a escassez de recursos disponíveis à distribuição, o autoritarismo e o uso de cargos públicos para auferir vantagens privadas. Neste contexto, ela faz parte da estrutura social, fazendo com que ações consideradas corruptas ou corruptoras por parte dos agentes sejam um padrão recorrente de relação social, determinada de modo intencional, mas muitas vezes reproduzidas não intencionalmente, tendo em vista o fato de que a estrutura social tradicional reproduz instituições políticas mais discricionárias e, portanto, mais sujeitas à prática de corrupção. Daí a necessidade da institucionalização política conforme o paradigma das sociedades do Ocidente, porque, supostamente, elas apresentaram resultados melhores no desenvolvimento do que os modelos patriarcais e autoritários. Porém, a modernização, ao invés de cumprir o papel de restringir a prática de corrupção, pode motiva-la, uma vez que seus resultados podem gerar um hiato político entre organização política e estrutura social. Quando as organizações do sistema político não são adaptáveis às mudanças, as normas deixam de ser legítimas, criando um descompasso entre a ação dos grupos sociais e as instituições, tornando muitas vezes alguns comportamentos aceitos como modernos, corruptos de um ponto de vista tradicional. De outro lado, quando a modernização ocorre em sociedades cujas instituições não são complexas, a oportunidade para que a corrupção ocorra é muito grande, na medida em que o poder é dependente de poucas pessoas. Quando a modernização ocorre em sociedades cujas instituições políticas estão subordinadas a grupos sociais específicos, o produto da mudança fica concentrado nas mãos destes grupos, a partir do momento em que eles se utilizam destas instituições para corromper o sistema e articular seus interesses, ou seja, capturam a burocracia do Estado para perseguir seus fins privados. Por fim, quando as instituições não são coesas, não há disciplina burocrática e coordenação política, fazendo com que a modernização, que amplia as atividades sujeitas ao controle do governo, crie a oportunidade para que burocratas utilizem o aparelho estatal para tirar vantagens pessoais. Explicar a corrupção, desse modo, significa coloca-la em função da modernização, uma vez que há uma relação necessária, imbuída de uma resultante determinada conforme o tipo de institucionalização. A modernização, primeiramente, altera os valores da sociedade, que se não tem institucionalização política da ordem, resulta em incertezas e instabilidade, emergindo a decadência institucional e a corrupção generalizada, na medida em que as normas do sistema não têm valor em si. Em segundo lugar, a modernização contribui para a ascensão de novos grupos sociais à arena política, estabelecendo um ambiente propício a comportamentos corruptos através da criação de novas formas de riqueza e de poder. Em arranjos institucionais pouco adaptáveis e subordinados, estes novos atores tendem a ser corruptos pela estrita ausência de instituições políticas eficazes para intermediar a relação entre o público e o privado, através de sanções aos comportamentos desviantes. Finalmente, a multiplicação de atividades sujeitas ao controle do governo torna-se uma fonte de corrupção na medida em que a modernização colabora para o insulamento do Estado em relação à sociedade, o qual ocorre, por sua vez, através da burocratização e da especialização técnica, sujeitas à captura por determinados grupos sociais. Caso não haja institucionalização política suficiente, a expansão das atividades governamentais, gerada pela modernização, cria incentivos para a corrupção. Do modo como Huntington constrói seu argumento, a corrupção é determinada na relação necessária entre estrutura social, de um lado, e funcionalidade das organizações políticas, de outro lado. No entanto, a corrupção pode exercer ela mesma uma funcionalidade importante no desenvolvimento econômico e político, sendo um meio para superar a rigidez burocrática que emperra o crescimento econômico e um meio para superar as normas tradicionais, fazendo com que novas elites sejam incluídas na arena política via a compra de cargos públicos. O argumento básico é que a corrupção pode ser benéfica ao desenvolvimento, na medida em que ela desobstrui barreiras burocráticas e facilita o investimento econômico, auxiliando a sociedade na modernização. Como funcionalidade, no contexto da modernização, a corrupção deve ser pensada sem nenhum tipo de normatividade que poderia embaçar seu alcance enquanto fenômeno. Joseph Nye5 revisa o conceito de corrupção, fazendo uma análise de seus custos e de seus benefícios no contexto do desenvolvimento político, o desvinculando de concepções ético-morais da política. Até então, o conceito de corrupção, de acordo com Nye, tinha uma conotação moralista, que encobria a dinâmica mediante a qual este fenômeno ocorre e que não permitia determinar suas causas e suas conseqüências para o Estado e para a sociedade. Neste sentido, é necessário fazer uma análise dos custos e dos benefícios da corrupção, tendo em vista o processo de modernização em curso e as dimensões estrutural e funcional do problema. Como benefício, a corrupção, se mantida sob controle, é responsável por cotejar o desenvolvimento econômico, a integração nacional e o aumento da capacidade do governo através dos vícios privados que, a princípio, gerariam benefícios públicos. No que tange ao desenvolvimento econômico, a corrupção é um instrumento para a formação de capital privado, que seria utilizado pelo governo para investimentos através do aumento de receitas, com a ampliação de impostos. A corrupção também ajuda no desenvolvimento econômico através da superação de barreiras burocráticas, que criam empecilhos ao investimento uma vez que demandam excessivos documentos e 5 Conferir Joseph Nye, op. cit. pagamento de taxas. Além disso, a corrupção cria incentivos para investimentos estrangeiros e de grupos minoritários na economia nacional, uma vez que propicia ganhos de capital maiores do que aqueles pagos em contextos de normalidade institucional. No que tange aos benefícios da corrupção para a integração nacional, ela contribui para a integração das elites em torno de um consenso nacional de desenvolvimento, além de catalisar a transição de valores tradicionais para valores modernos das não-elites6. Finalmente, dadas as duas conseqüências possíveis da corrupção mencionadas acima, ela colabora para o aumento da capacidade governamental através da centralização do poder em função das mudanças estruturais em curso7. Como custo ou desfuncionalidade, a corrupção pode prejudicar o desenvolvimento econômico, a integração nacional e a capacidade do governo, se não mantida sob controle rígido por parte das instituições políticas. Face ao desenvolvimento econômico, a corrupção favorece a emissão de capital para paraísos fiscais, retirando-os do país em que estes recursos foram acumulados, além de criar uma distorção dos investimentos econômicos. Ademais, a corrupção representa uma perda de tempo e de energia em função dos custos de transação inerentes, além de custos de oportunidade decorrentes da dependência ao capital estrangeiro. No que diz respeito aos custos da corrupção à integração nacional, ela favorece revoluções sociais, golpes militares e segregação étnica, uma vez que grupos subalternos podem emergir à arena política reivindicando probidade e integridade das ações da administração pública. Isto porque as instituições políticas de dada sociedade em processo de modernização carecem de institucionalização satisfatória, resultando em instabilidade e não aceitação da norma vigente no sistema. Como produto dos custos anteriores, a capacidade do 6 Huntington e Nye reiteram várias vezes que os grandes exemplos de função da corrupção no desenvolvimento político são encontrados principalmente na América Latina, incluindo o Brasil, e no Leste Asiático, que entraram tardiamente no capitalismo. Além desses autores, conferir também Colin Leys, What Is the Problem about Corruption? In: Arnold Heidenheimer (org.), Political Corruption. Readings In Comparative Analysis. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1979. 7 James Scott afirma ser a corrupção uma forma alternativa, encontrada pelos agentes políticos, de articular seus interesses junto à esfera pública, mediante a construção do que ele chamará de máquinas políticas. Estas máquinas políticas são grupos sociais que procuram influenciar o conteúdo das decisões políticas tomadas na arena legislativa, através da persuasão das elites partidárias em torno de seus valores. Scott, assim como Nye, afirma que a constituição destas máquinas políticas colabora para o arrefecimento da disputa entre clivagens sociais que surge com a mudança, colaborando, desta forma, para o desenvolvimento. Conferir James Scott, Corruption, Machine Politics, and Political Change. In: American Political Science Review, vol. 63, nº 4, 1969. governo se vê reduzida, na medida em que há uma redução da capacidade administrativa, decorrente da inefetividade dos programas governamentais, e uma decadência da legitimidade do regime político. De modo geral, a desfuncionalidade da corrupção é traduzida como instabilidade política, a qual emperra o desenvolvimento econômico e social na linha da modernização. A funcionalidade ou desfuncionalidade da corrupção, entretanto, apenas pode ser avaliada levando-se em consideração a estrutura social que contextualiza e reproduz as ações praticadas pelos agentes. Por outras palavras, a corrupção somente é benéfica se o contexto político e social for favorável, isto é, se apresentar uma tolerância cultural elevada entre os grupos dominantes, além da existência de segurança para membros de partidos opostos e a existência de mecanismos societais e institucionais de controle sobre o comportamento corrupto. Por outro lado, se estas condições não forem observadas, a corrupção, provavelmente, resultará na instabilidade e em obstáculos para o desenvolvimento, tais como os custos relacionados acima. 2. Corrupção e Cultura Política Do modo como os teóricos da modernização tratam o fenômeno da corrupção, ela é explicada como desfuncionalidade inerente de uma estrutura social de tipo tradicional, que, no contexto da modernidade, gera instabilidade no plano político e econômico. Todavia, além da relação de custos e de benefícios da corrupção, existe outra vertente do estrutural-funcionalismo ligada ao problema da cultura. Ao invés de afirmar o primado do político e do econômico, os autores ligados à chave da cultura política afirmam o primado da cultura como fator de desenvolvimento. A ligação entre corrupção e modernização se estende, atualmente, para o campo da cultura política, vertente no interior do próprio estrutural-funcionalismo, que visa a perceber as diferenças culturais em relação ao tema do desenvolvimento. Esta abordagem da cultura política, tributária do clássico trabalho de Almond e Verba8, e atualizada no trabalho de 8 Gabriel Almond & Sidney Verba, The Civic Culture, Political Attitudes and Democracy in Five Nations, Princeton: Princeton University Press, 1963. Inglehart9, visa a estabelecer que o controle da corrupção está ligado à existência de valores presentes em sociedades desenvolvidas e modernizadas, tais como os temas da confiança interpessoal e nas instituições, do capital social e da religião protestante. A ausência destes valores, que é característica de sociedades “pouco” avançadas e católicas, nos termos da cultura cívica, resulta na existência de corrupção como forma de mediação social10. A premissa desta vertente é que a cultura política tem o primado sobre o político e o econômico, uma vez que determina a formação da estrutura social conforme valores concebidos historicamente em dada civilização. O interessante é que a questão dos valores não representa nenhum tipo de justificação racional, mas a constatação empírica de regularidades funcionais dos mesmos com o tema do desenvolvimento e da democracia. O essencial é que a vertente da cultura política reduz a narrativa da modernidade a uma história da religião protestante, produzindo a criação de áreas de modernidade dominadas, formalmente, pelo espírito do capitalismo e da religião protestante. Desse modo, os Estados Unidos e os países anglo-saxões representam as ilhas de modernidade, enquanto as demais nações são descritas por uma cultura predatória ligada substancialmente à tradição, a qual utiliza a corrupção como forma convencional de mediação social11. Tema importante para a vertente da cultura política, os padrões culturais de matriz protestante tendem a ampliar a confiança interpessoal, um mecanismo central de estruturação da democracia e das organizações econômicas. De acordo com Ronald Inglehart12, a confiança está nas relações face-a-face estabelecidas por indivíduos, resultando em interações capazes de estruturar a ação coletiva e de assegurar padrões horizontais de organização social, levando em consideração um respeito inato à norma. Ao contrário de interações sem confiança, em que o padrão estruturante da ação coletiva leva a hierarquias rígidas no interior das sociedades, propiciando um contexto favorável a trocas pessoais e a redes estabelecidas de clientelas. A análise do tema da confiança, 9 Ronald Inglehart, Culture Shift in Advanced Industrial Society, Princeton: Princeton University Press, 1990. 10 Conferir, a esse respeito, Thimothy Power & Júlio González. Cultura Política, Capital Social e Percepções Sobre a Corrupção: Uma Investigação Quantitativa em Nível Mundial. In: Revista de Sociologia e Política, nº 21, 2003. 11 Conferir, a esse respeito, Gabriel Almond & James Coleman (coords.), A Política das Áreas em Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1969. 12 Ver, a esse respeito, Ronald Inglehart, op. cit. desse modo, se dá na sua presença ou na sua ausência do cenário social em que se pesquisa, ou seja, construindo modelos binários na busca de um maior ou menor grau de democracia e prosperidade econômica. Desse modo, culturas cívicas que apresentam indicadores de confiança elevados, tendem a ter maior prosperidade econômica e política, enquanto culturas cívicas que apresentam baixos indicadores de confiança interpessoal estariam no pior dos mundos, amarradas a seu subdesenvolvimento. Desde a publicação do famoso livro de Robert Putnam13, o tema da confiança interpessoal ganhou pujança na análise da prosperidade ou das mazelas comparativas entre culturas cívicas. Do ponto de vista lógico, o que os autores que estudam o tema da confiança afirmam, é que o baixo nível de confiança interpessoal leva a interações de caráter autoritário, enquanto alto indicador de confiança interpessoal leva a interações democráticas e a uma maior prosperidade econômica. Esta relação, do ponto de vista estatístico, corrobora sessenta por cento dos casos estudados, conforme uma pesquisa conduzida por Inglehart14 em sessenta e cinco sociedades. Nesta abordagem, a confiança interpessoal aumenta a capacidade de a sociedade coordenar as expectativas, gerando o capital social15 necessário para a estabilização e eficácia das instituições políticas, tendo em vista a herança deixada pela religião protestante. De acordo com Lipset e Lenz16, a análise da corrupção não deve estar revestida de um tratamento que leve em consideração apenas a disfunção da ação humana intencional, ao modo de Merton, mas pela forma como os valores orientam a ação mediante a estrutura social, cuja onipresença determina os valores culturais que referendam determinadas ações por parte dos atores. Os valores estão determinados empiricamente na cultura política, os quais são responsáveis por ensejar o 13 Conferir Robert Putnam, Comunidade e Democracia. A Experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998. 14 Conf. Ronald Inglehart, Cultura e Desenvolvimento Político. In: Samuel Huntington & Lawrence Harrinson, A Cultura Importa. Os Valores que Definem o Progresso Humano, Rio de Janeiro: Record, 2002. 15 O conceito de capital social diz respeito a um conjunto de valores ou normas informais que permitem os membros de um determinado grupo cooperarem entre si. O capital social pode ser considerado como um estoque de normas cooperativas, tais como reciprocidade, honestidade e altruísmo, que cada sociedade constrói em sua história cultural. O capital social se propaga conforme externalidades positivas, em seu sentido econômico, fazendo com que os indivíduos sejam socializados no conjunto destas normas e reproduzam suas funções no interior da sociedade. A esse respeito, ver Robert Putnam, op. cit. e Francis Fukuyama, Capital Social, In: Samuel Huntington & Lawrence Harrinson, A Cultura Importa. Os Valores que Definem o Progresso Humano. Rio de Janeiro: Record, 2002. 16 Conferir Seymour Martin Lipset & Gabriel Salman Lenz, Corrupção, Cultura e Mercados. In: Samuel Huntington & Lawrence Harrinson (orgs.) A Cultura Importa. Os Valores que Definem o Progresso Humano. Rio de Janeiro: Record, 2002. desenvolvimento ou a desfuncionalidade da organização política e econômica. Valores que são acessíveis ao observador da cena social e que são estáveis como determinantes de funcionalidades do comportamento humano. Como premissa geral, a corrupção é menos evidente em sociedades modernas, enquanto que em sociedades tradicionais é um padrão recorrente de comportamento político. Desse modo, Lipset e Lenz apontam o argumento geral da vertente culturalista, afirmando que países de tradição protestante são menos corrompidos do que os demais países de tradição católica, principalmente. De acordo com este argumento, o comportamento de protestantes é mais conducente ao respeito das normas, enquanto as demais religiões tendem a ser mais tolerantes com relação às fraquezas humanas, especialmente a corrupção. Os trabalhos ligados à conotação da cultura política, como apresentado na vertente norte-americana da sociologia, liga a corrupção às interações construídas pelos atores sociais, refletindo experiências e valores que permitem ao indivíduo aceitar ou rejeitar entrar em um esquema de corrupção. Ao lado do sistema institucional e legal, o sistema de valores é fundamental para motivar ou coibir práticas de corrupção, no interior de uma sociedade. Entretanto, a abordagem culturalista toma os valores como regularidades funcionais carecidas de justificação racional. Dizer que a política de determinada nação é mais corrompida do que a política de outra nação carece de relativizar o próprio conceito de corrupção a partir do que vem a ser a honestidade e a integridade por parte dos atores sociais. Por outras palavras, a correlação entre religião protestante e probidade da administração pública, ou a correlação entre religião católica e corrupção apresenta-se de modo espúrio, uma vez que não levam em consideração, na análise, as diferenças semânticas do termo corrupção nas diferentes culturas. Por outro lado, as pesquisas contemporâneas, em contraposição a esta vertente culturalista, chamam a atenção para os fatores subjetivos envolvidos no tema da corrupção. As pesquisas de viés anticulturalista sobre a corrupção buscam desvendar sua percepção por parte da sociedade, a qual é alimentada comunicativamente na esfera pública, mediante debates construídos na mídia, experiências próprias com atos de suborno ou pagamento de propinas e a percepção construída interativamente na relação com os grupos sociais17. Ao lado do sistema de valores, a percepção relaciona-se com a definição mediante a opinião pública, focando o modo como ela absorve e processa o 17 Bruno Speck, Mensurando a Corrupção: Uma Revisão de Dados Provenientes de Pesquisas Empíricas. In: Cadernos Adenauer, nº 10 (Os Custos da Corrupção), 2000. tema da corrupção, derivando sua avaliação e seu comportamento perante o poder público18. O problema da percepção da corrupção, além de seu caráter subjetivo, é o fato de ela depender de flutuações com que o tema é reverberado na opinião pública, estando a percepção da corrupção necessariamente ligada à presença do escândalo.19 De outro lado, como observa Michael Johnston20, a percepção sobre a corrupção varia no tempo e está relacionada a diferentes atitudes por parte dos grupos sociais. Isto significa que a categoria opinião pública carece de especificar o que vem a ser este público, uma vez que comunga com um todo orgânico e naturalizado as visões subjetivas sobre a corrupção. De acordo com o professor Johnston, a opinião pública é formada de “muitos públicos”. Definir, portanto, a corrupção pela opinião pública, significa encobrir as diferenças de atitudes e valores que perpassam os diferentes públicos, tornando a percepção carente de uma substância valorativa que prescinda deste tipo de categorização funcional. A abordagem sociológica, de modo geral, procura gerar congruência entre frames analíticos e evidências empíricas, derivando representações da corrupção mediante a dedução das categorias centrais para a separação entre o público e o privado e a indução de imagens produzidas conforme as experiências traçadas pelos atores sociais. No que diz respeito ao plano analítico, a sociologia parte da estruturação das dimensões pública e privada, tornando-a onipresente e fator da reprodução de ações intencionais e não intencionais por parte dos atores. A teoria social terminou por produzir a naturalização do público, seja por sua autonomia funcional em contextos de modernização, seja por sua autonomia dada pela cultura política, seja por sua autonomia enquanto locus de opiniões que analisem e determinem o comportamento dos agentes. No que tange ao plano empírico, desse modo, a sociologia induziu imagens distorcidas da corrupção, porque parte de uma generalização que carece das singularidades significativas, dadas pelas diferenças semânticas produzidas pelos próprios atores em contextos políticos. Em primeiro lugar, porque a teoria da 18 Arnold Heidenheimer, Perspectives on the Perception of Corruption. In: Arnold Heidenheimer & Michael Johnston (orgs.), Political Corruption. Concepts and Contexts, New Brunswick, London: Transaction Publishers, 2002. 19 H. Erskine, The Polls: Corruption in Government. In: Public Opinion Quartely, nº 37, 1973. 20 Michael Johnston, Right and Wrong in American Politics: Popular Conceptions of Corruption. In: Arnold Heidenheimer & Michael Johnston (orgs.). Political Corruption. Concepts and Contexts. New Brunswick, London: Transaction Publishers, 2002. modernização e a teoria da cultura política tomam como paradigma as instituições e as estruturas sociais do Ocidente, sem levar em consideração os processos históricos que relativizariam as bases de evidências fenomênicas. Em segundo lugar, porque atrelar o alcance da corrupção à opinião pública encobre determinadas relações necessárias entre fenômenos de modo espúrio, porque os casos de corrupção que vêm a público são casos fracassados, além de estar relacionados a valores subjetivos mascarados em torno de uma unidade conceitual produzida artificialmente em torno do termo opinião. 3. Considerações Finais Do ponto de vista da sociologia americana, a ocorrência do problema da corrupção está relacionado ao problema da modernização e o modo como sociedades tradicionais transitam para a modernidade. Uma vez ligado ao aspecto de uma sociabilidade tradicional, o argumento desenvolvido pela sociologia americana a respeito da corrupção termina por “forçar” a incorporação de valores típicos das ilhas de modernidade, por parte das sociedades tradicionais. A sociologia americana desconsidera os elementos multiculturais e a diferença nos valores políticos, fazendo com que o problema da corrupção em sociedades subdesenvolvidas ou em fase de desenvolvimento seja cotejado conforme os critérios e categorias típicas da própria sociedade americana. Do ponto de vista metodológico e empírico, isto termina por ou sobreestimar a presença da corrupção em algumas sociedades ou subestima-la em outras sociedades. Não levando em consideração, na análise empírica, as diferenças nos padrões de sociabilidade e nos padrões culturais, a sociologia americana contribui para lançar mais cortina de fumaça sobre o problema da corrupção. Por exemplo, em vista dos valores americanos, o familismo é imoral e fonte de enorme corrupção. Do ponto de vista de uma sociedade como a chinesa, o familismo é fator de agregação e solidariedade no conjunto da sociedade como um todo, não sendo considerado, por parte dos chineses, uma fonte de corrupção na política. É necessário, portanto, formular um outro desenho de pesquisa empírica se quisermos compreender a corrupção por um viés comparativo. O procedimento metodológico da sociologia americana desconsidera os elementos multiculturais que informam o alcance da corrupção nas arenas políticas contemporâneas. Ademais, a análise da corrupção por parte da sociologia americana carece de compreendê-la em relação aos fatores morais que informam as visões de mundo e a abrangência do fenômeno nas sociedades contemporâneas. A par disso, o conteúdo preditivo da análise da sociologia americana sobre o problema da corrupção faz com que seu combate esteja atrelado, necessariamente, à incorporação de instituições e valores tipicamente americanos. Não se trata, como aqui quero argumentar, de anti-americanismo, mas de construir um desenho de pesquisa comparativa que reduza a influência exercida pelos vieses que estão presentes na pesquisa sociológica acerca da corrupção. Dificuldades são muitas para se construir esse desenho de pesquisa, porque a corrupção no conjunto das sociedades tem singularidades determinantes na medida de seu alcance e de sua prática social. O desafio para a construção de uma pesquisa comparativa está em incorporar os elementos de singularidade de cada sociedade e o modo como certas instituições e práticas sociais informam a abrangência da corrupção na política, na economia, na sociedade e, sobretudo, na cultura. ____________________________________