BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O DISCURSO EM SALA DE AULA. Jorgete Pereira Oliveira Universidade do Estado da Bahia – UNEB – Departamento de Ciências Humanas - CAMPUS III Nas últimas décadas o discurso em sala de aula tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores interessados nas investigações acerca dos processos de ensino-aprendizagem. O trabalho Functions of Language in the classroom de Cazden e Hymes (1972) é citado por Wertsch (1996) como um marco nos estudos sobre o discurso em sala de aula e a partir dele o debate sobre o assunto foi impulsionado. Muitos estudiosos têm se dedicando a este tema na busca de expandir os estudos e seus referenciais teórico-metodológicos (ex: Mercer, 1998; Edwards, 1998; Valsiner, 1998; Wertsch, 1991/1996, Bakhtin, 1990, 1997, 2004). As contribuições desses pesquisadores representam diferentes opções teóricas e metodológicas, entretanto, elas têm uma concordância básica: a análise do discurso entre alunos e professores pode fazer avançar a compreensão a respeito dos processos de significação/ressignificação dos conteúdos debatidos em sala de aula e de como os professores podem contribuir nesse processo. Para Mercer (1998) algumas das descobertas sobre o discurso em sala de aula não têm origem na Psicologia ou Pedagogia, mas em outras disciplinas (Sociologia, Antropologia, Lingüística e outras) e apresentam diversos métodos para seu estudo e observação. Ainda para este estudioso, as proposições da Psicologia Sociocultural podem constituir um referencial para a construção de um aporte teórico coerente do ensino e da aprendizagem enquanto processo discursivo. Vygotsky (1986) afirma que as interações sociais fazem avançar a capacidade de generalização do pensamento e esta, por sua vez, aumenta a capacidade que as pessoas têm de participar das práticas sociais, que são práticas interativodiscursivas. Para Mercer (1998, p.22) as contribuições das pesquisas com base na Psicologia Sociocultural são bastante valiosas, entretanto, essas contribuições e seus desdobramentos ainda não constituem o que se poderia chamar uma “teoria da educação como processo discursivo, adequada e bem embasada”. Para esse autor o que se tem atualmente “é um rico e eclético recurso teórico carente de coerência e cujos conceitos ainda não foram definidos operacionalmente para a pesquisa em sala da aula”. Wertsch e Smolka (1994) apontam que algumas das implicações das formulações de Vygotsky não estão bem desenvolvidas e sugerem que os conceitos bakhtinianos de dialogia, linguagem social e gêneros de fala podem contribuir para ampliar as contribuições de Vygotsky. Essas questões levantadas nos parágrafos anteriores sugerem a necessidade de continuar buscando conceitos alternativos aos tradicionalmente formulados pela perspectiva sociocultural. Isso é necessário para que o discurso de alunos e professores seja compreendido como instrumento psicológico e cultural que possibilita a construção das subjetividades e do conhecimento em sala de aula. Em um texto intitulado Em direção a uma psicologia do discurso da educação em sala de aula Edwards (1998) propõe uma outra direção para o estudo do discurso em sala de aula. Para esse autor, o discurso, por possuir uma natureza sócio-epistêmica, possibilita aos pesquisadores estudarem como os participantes dele vivenciam os processos epistêmicos, ou seja, como eles constroem o conhecimento e a realidade. O autor apresenta uma perspectiva de análise do discurso e de como ele funciona nas interações sociais e nas instituições de modo geral, inclusive na sala de aula. A abordagem epistemológica proposta por Edwards (1998, p.47) tem por base que “o discurso é o meio principal através do qual tanto os participantes como os pesquisadores constroem versões sobre o que são a mente e o mundo”. Com base nesta formulação ele defende e aponta para uma perspectiva da psicologia do discurso, cujo objetivo não seria analisar a relação entre experiência e conhecimento, entre contexto e os processos mentais. Pode-se estudar como os participantes do discurso consideram o pensamento, a lembrança, a compreensão, numa situação específica em que essas atividades cognitivas são socialmente solicitadas e negociadas. Pode-se observar como os participantes do discurso falam sobre esses temas enquanto parte de suas ações discursivas e não exatamente a relação entre experiência e processos cognitivos. O analista do discurso deveria “observar, fazer afirmações empíricas e teorizar sobre como os participantes agem” (Edwards, 1998, p.49). Nessa perspectiva, portanto, não se considera possível estudar conceitos, memória e pensamento enquanto revelados pelo discurso. Ele sugere que a atividade analítica do discurso deve traduzir os problemas de maneira que possam ser examinados empiricamente. A partir daí ele analisa alguns fragmentos de aulas para demonstrar como a análise do discurso, em sala de aula ou fora dela, deve ter um tratamento empírico, apontando, ao mesmo tempo, alguns parâmetros para a interpretação. “A análise do discurso não fica limitada a fazer comentários interpretativos sobre fragmentos da fala. É uma abordagem ordenada, baseada em princípios a respeito da fala e do texto, que trata matérias tais como as relações sociais, a relevância contextual, a realidade e a mente como tópicos e não como recursos explicativos. A tarefa do analista então seria a de analisar e verificar como os próprios participantes constroem e usam essas categorias como parte de suas práticas discursivas” (Edwards, 1998, p.70-72). A proposta desse autor pode servir de alerta ao se buscar fazer uma análise do discurso para que não se tome qualquer discurso, obrigatoriamente, como expressão de alguma concepção subjacente a ele. Mas considero que uma análise empírica do discurso, acrescida de análises qualitativa e interpretativa, poderia ampliar as várias possibilidades de analisá-lo. É possível captar todos os aspectos contidos em um discurso, seja ele qual for, com base, principalmente, em seus aspectos explícitos e observáveis? Como tratar os aspectos “inaudíveis” do discurso? Nesse caso, as análises qualitativa e interpretativa não poderiam alargar as possibilidades do caminho metodológico? Se pensarmos com base nas formulações de Bakhtin (2004) o discurso não pode ser reduzido à sua forma lingüística e a seu significado abstrato como normalmente o fazem os lingüistas. A noção de “voz” de Bakhtin é mais do que os seus sinais audíveis pois envolve fenômenos mais gerais como a perspectiva do falante resultante de sua visão de mundo, da sua visão conceitual e do seu lugar social. Essas vozes têm uma “intenção” associada a elas, e não são usadas pelo falante de forma isolada. Elas refletem a intenção e a pronúncia de outras vozes. Portanto, a partir de uma visão Bakhtiniana, um diálogo entre um (a) professor (a) e seus alunos é algo mais amplo do que a interação restrita professor-aluno e as palavras ditas face a face. Ele reflete os contextos sociais onde ocorre e suas relações de poder hierarquizadas. Da mesma forma, para Valsiner (1998), a simples observação das mensagens transmitidas no discurso, pode ser um ponto de partida, mas elas não determinam a riqueza dos fenômenos que ele envolve. Para esse autor “a complexidade do discurso em sala de aula o torna possível de análise sob diversas perspectivas” (Valsiner, 1998, p.29), mas deve-se estudálo como um processo dinâmico e construído conjuntamente por todos que dele fazem parte. Assim, ele propõe uma abordagem co-construtivista do estudo das pautas discursivas, durante as quais os participantes “criam novas formas de organização da mediação semiótica e novas formas de ação” (Valsiner, 1998, p. 30). Ainda segundo esse autor, para se equacionar as questões teóricas no estudo do discurso, independentemente de como ele é abordado, é importante considerar “o processo construtivo conjunto envolvido” (Valsiner, 1998, p.30). E assim ele desenvolve uma perspectiva teórica da construção compartilhada do discurso em sala de aula. Para esse teórico, a construção compartilhada envolvida na atividade discursiva tem mais a ver com a criação de novos significados e/ou ressignificação de significados já existentes do que com a transmissão e aceitação do discurso à medida que ele vai acontecendo. Observar as mensagens transmitidas no discurso serve de base para a construção/reconstrução de novas formas de organização subjetiva/cognitiva, mas elas não determinam de forma absoluta a riqueza dos fenômenos envolvidos nos contextos discursivos. Estes trabalhos comentados até aqui são algumas perspectivas que podem orientar os estudos do discurso em sala de aula. A leitura e a reflexão sobre eles reforçaram a minha opção pelas idéias de Bakhtin enquanto base teórica para o estudo do discurso em sala de aula. Entendo que as idéias de Bakhtin ampliam, dinamizam e complementam os postulados da Psicologia Sociocultural na compreensão do discurso enquanto processos sócio-interacionais os quais promovem mudanças nos processos de subjetivação e de construção do conhecimento em sala de aula. Por isso acredito na pertinência dessa complementação, na medida em que tenho buscado estabelecer certa unidade e coerência entre esses pressupostos teóricos. Bakhtin (1990) considera o homem como um ser organizado histórica e socialmente, e compreende o homem dentro de suas relações sociais concretas. Para ele o homem torna-se inconcebível fora de uma teia social que ele mesmo tece e onde é tecido. A partir dessa concepção de homem, a linguagem passa a ser compreendida não somente como uma ferramenta verbal, mas também social, a favor da interação entre indivíduos socialmente organizados. Portanto, nessa perspectiva, a linguagem é multifacetada e dialógica. Qualquer discurso ou enunciado é atravessado por vozes sociais e carregado de indícios sociais de valores e de nuances ideológicas É o próprio Bakhtin quem diz: “A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso. Em todos os seus caminhos até o objetivo, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar com ele de uma interação viva e tensa” (Bakhtin, 1990, p. 88). Dessa forma, então, em qualquer enunciado ocorre uma tensão de vozes sociais, um cruzamento de vozes alheias cujos limites não são precisos e cuja interação pode conter os mais diversos tipos de relação: apoio mútuo, contraposição, paráfrase, identidade, entre outros (Afonso 2003, p.52). Mais adiante, na análise, retomarei essas categorias. Assim, relações dialógicas é um processo de confronto e de aproximação de vozes, de perspectivas, de visões de mundo. Qualquer enunciado, além de permeado pelo outro, é também dirigido ao outro, mesmo que este outro não esteja presente fisicamente. As relações dialógicas possuem dois níveis que são inseparáveis: o primeiro é aquele que se estabelece entre o eu e o outro nos processos discursivos, nos processos de comunicação. O segundo é aquele estabelecido no interior do enunciado, através do diálogo, nem sempre simétrico, entre os discursos, as vozes sociais que compõem uma comunidade. É nesse cruzamento de vozes que são constituídos os indivíduos, os “eus”. Estes se realizam no “nós”. As vozes do outro vão se juntar às vozes do eu estabelecendo uma relação dialética e possibilitando uma interação, seja simétrica ou assimétrica, entre as vozes. Portanto, o conceito de Dialogia é fundamental em Bakhtin e indica algo mais amplo do que aquilo que normalmente se entende por diálogo. Dialogia se refere, assim, às muitas formas possíveis de como duas vozes podem se encontrar. Polifonia, outro conceito fundamental no pensamento de Bakhtin, ocorre quando as vozes em interação participam da interlocução de forma igualitária e enquanto consciências autônomas. Polifonia, como diz Bakhtin (1997, p.4) é a “multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis (...) a multiplicidade de vozes de consciências eqüipolente ...” Nesse processo, o “Eu” do outro, não transforma o outro em objeto. O “Eu” do outro se afirma como o outro-sujeito pleno de direitos, sujeito de consciência autêntica, fazendo com que cada opinião “viesse a tornar-se um ser vivo e constituir-se da voz inquieta do homem” (1997, p.12). Mas para Afonso (2003) o termo polifonia, criado por Bakhtim, é alvo de tensões e de discussões e pode ser considerado por alguns, um termo relativo apenas ao universo do romance e da literatura. Isso porque o termo foi cunhado a partir do estudo que Bakhtin realizou sobre a obra de Dostoievski, considerada um tipo de romance polifônico. Ainda para Afonso (2003) a compreensão e apreensão da origem do termo polifonia não deve restringir-se apenas ao aspecto literário. Este autor considera esse aspecto literário preliminar, como um embrião do fenômeno que Bakhtim chamou de polifonia. Ele concebe que a raiz desse conceito bakhtiniano é muito mais filosófica e ética que literária. Por isso sugere que a polifonia deve ser compreendida como visão e atitude diante do mundo e, nesse sentido, ela ultrapassa os limites da literatura, da ficção e da arte para fazer parte da vida e, consequentemente, da linguagem. Assim sendo, considero polifonia como uma teia complexa de vozes, cuja característica principal é o fato de que, nenhuma dessas vozes, se sobrepõe às outras. Para Goulart (2003) a importância que Bakhtin dá à linguagem ressalta a natureza social que ele lhe confere. Ainda para essa autora, segundo Bakhtin, é pela linguagem, na linguagem e com a linguagem que os feixes de sentido se constroem, dialogam e disputam espaço. O outro, como parte constitutiva da situação social da enunciação permite que o sujeito também seja parte constitutiva dessa organização, constituindo-se. O diálogo, então, é condição fundamental para se conceber a linguagem. É pela interação verbal que a linguagem se nutre e adquire força. Considero as idéias de Bakhtin relevantes para o trabalho em sala de aula na medida em que elas dão base teórica para compreender e interpretar os enunciados e a relação destes com os recursos expressivos e didáticos movimentados durante as aulas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO, Guilherme Processos retórico-argumentativos em sala de aula: as relações dialógicas entre os participantes. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem , Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal. 2003; BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec. 2004; BAKHTIN, Mikhail Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária 2ª ed. 1997; BAKHTIN, Mikhail Questões de literatura e de estética. São Paulo: Editora UNESP/HUCITEC. 1990; EDWARDS, Derek Em direção a uma psicologia do discurso da educação em sala de aula Em, COOL, César e EDWARDS, Derek (orgs.), Ensino, aprendizagem e discurso em sala de aula: Aproximações ao estudo do discurso educacional (pp. 47-74). Porto Alegre: Artemed. 1998; GOULART, C. M. A. Uma abordagem bakhtiniana da noção de letramento: contribuições para a pesquisa e para a prática pedagógica. Em: Freitas, Maia Teresa; Souza e Solange Jobim & Kramer, Sônia. Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez Editora. 2003; MERCER, N. As perspectivas socioculturais e o estudo do discurso em sala de aula. Em COOL, César e EDWARDS, Derek (orgs.), Ensino, aprendizagem e discurso em sala de aula: Aproximações ao estudo do discurso educacional (pp.13-28). Porto Alegre: Artemed: 1998; VALSINER, J. Indeterminação restrita nos processos de discurso. Em COOL, César e EDWARDS, Derek (orgs.), Ensino, aprendizagem e discurso em sala de aula: Aproximações ao estudo do Discurso Educacional (pp. 29-46). Porto Alegre: Artemed. 1998; VYGOTSKY, L. S. Thought and Language. Cambridge, Ma. The MIT Press. 1986/2000; WERTSCH, James. A voz da racionalidade em uma abordagem sociocultural da mente. Em MOLL, Luis C. (org.), Implicações pedagógicas da psicologia sócio-histórica (pp. 107-121) Porto Alegre: Artes Médicas. 1996; WERTSCH, James. Voices in the mind. Cambridge, MA: Harvard University Press. 1991; WERTSCH, J. E. e SMOLKA, A. Continuando o Diálogo. Vygotsky, Bakhtin e Lotman. Em: H. Daniels (Org) Vygotsky em Foco: Pressupostos e desdobramentos. Campinas: Papirus (1994).